Cidadania e protagonismo comunitário: reflectindo sobre os museus e a gestão patrimonial

August 18, 2017 | Autor: Graça Filipe | Categoria: Heritage Studies
Share Embed


Descrição do Produto

CIDADANIA E PROTAGONISMO COMUNITÁRIO: REFLETINDO SOBRE OS MUSEUS E A GESTÃO PATRIMONIAL Graça Filipe - Portugal1 A dinâmica de criação ou de renovação de museus e, de forma mais geral, a realidade museológica em Portugal ao longo das últimas três décadas proporcionam um interessante campo de pesquisa e análise de experiências marcadas, na sua génese ou em ciclos da sua existência, por manifestações de cidadania ou por iniciativas comunitárias, a par de outras essencialmente institucionais ou resultantes de vontade política, tanto a nível nacional, como local. O significado e a expressão que as práticas de cidadania e a participação de comunidades tiveram ou mantêm nalguns museus devem ser objeto de investigação com o necessário rigor científico, mas é também necessário que os próprios protagonistas ou agentes envolvidos nos processos tomem parte voluntária na sua análise e discussão (Varine, 2000). Os dados daí resultantes podem ajudar não só a elaborar estratégias concertadas entre todos os que se propõem utilizar os museus enquanto instrumentos de mudança e de desenvolvimento (Varine, 2002), como a construir melhores políticas públicas, ainda mais exigíveis na atual conjuntura em que a pressão económica é particularmente incidente nos sectores da cultura e do património cultural. Procurarei sintetizar e apresentar algumas questões e aspetos decorrentes quer da minha experiência prática, quer da minha investigação sobre o Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS), mas que se relacionam com reflexões mais abrangentes sobre museus comunitários e ecomuseus e com o debate sobre os mecanismos e fatores de transformação dos museus. Entendido como projeto de reconhecimento, valorização e gestão de património natural e cultural, o EMS é «claramente definido pelo seu território, o concelho do Seixal, num processo simultaneamente tradicional (municipal) e inovador (comunitário)» (Varine, 2005). Designouse e evoluiu associado à ideia de ecomuseu a partir de 1983, mas a sua génese remonta ao período entre 1979 e 1981, em que decorreu um levantamento ‘histórico e cultural’ de âmbito concelhio, por iniciativa municipal e com uma expressiva adesão e participação da comunidade local. Foi esse processo, consubstanciado no primeiro inventário de património cultural no território e na primeira exposição, no Seixal, sobre história e património locais, que conduziu à institucionalização de uma entidade museal, o Museu Municipal do Seixal, em 1982. Do estudo académico que efetuei há alguns anos sobre o EMS e da análise do processo de crescimento e consolidação decorrido desde a sua génese até 1999, recordo a conclusão (Filipe, 2000) sobre a necessidade – e até urgência, atendendo a razões conjunturais que seguidamente também referirei - de repensar o programa museológico e o modelo de gestão do Ecomuseu e de elaborar um plano estratégico de modo a abarcar o património em processo de reconhecimento, comunicá-lo (Varine 2005) e estimular a participação da comunidade, em 1

Texto associado à participação no IV Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários, sobre Patrimônio e Capacitação dos Atores do Desenvolvimento Local, em Junho de 2012, em Belém, Ecomuseu da Amazónia/FUNBOSQUE. Mesa Redonda 5: Cidadania e Protagonismo Comunitário, a convite dos organizadores.

Página 1 de 6

conjugação com o desenvolvimento do trabalho científico dinamizado pelo museu. A necessidade de reprogramação advinha de um ciclo de crescimento e consolidação da experiência museológica municipal, em cujos expressivos resultados fora determinante a componente participativa da comunidade em relação à salvaguarda e valorização de património, o que potenciava um novo ciclo de vida do EMS. A conjuntura de urgência prendia-se, por um lado, com dois fatores externos. O primeiro era a criação da estrutura de projeto da Rede Portuguesa de Museus, ligado ao então Instituto Português de Museus e a pretensão de o Ecomuseu vir a integrar essa rede nacional. O segundo era a possibilidade de candidatura, por parte da tutela, a um programa nacional com financiamento europeu (Programa Operacional da Cultura), apresentando um projeto de qualificação do EMS. Por outro lado, era necessário definir a configuração (descentralização territorial e centralização funcional) do EMS e ordenar o território musealizado (Filipe, 2009; Varine, 2009), de forma a abarcar sob sua gestão novos sítios patrimonializados, principalmente devido à reconversão de espaços industriais, que o poder político municipal, reconhecendo o interesse histórico e o valor cultural que a comunidade local lhes atribuía, pretendera subtrair parcialmente à intervenção de promotores imobiliários. Na prática e no âmbito do serviço municipal correspondente ao museu (inserido na orgânica municipal) foram realmente definidos novos objetivos e metas que se deviam levar à prática a partir de 2000, mediante conjugação de medidas de ordenamento do território e de valorização e gestão de património cultural, através do Programa de Qualificação e de Desenvolvimento (PQD) do EMS, aprovado pela tutela em 2001. Internamente, com a equipa técnica e a tutela, e externamente, com vários parceiros e instituições com as quais o EMS trabalhava, aquele programa serviu para repensar o papel do museu e os processos de patrimonialização, no território em mudança e consubstanciou uma base propositiva, em que se pretendia integrar a interação com a comunidade e estimular a sua participação cívica. No terreno, porém, não se concretizou a discussão do PQD, nem a pretendida participação, inviabilizando-se o percurso de negociação e de compromisso público sobre o plano e objetivos propostos, apesar de o documento ter sido implicitamente adotado pela tutela como marco programático do EMS e de, sob vários títulos e nos dois eixos de atuação preconizados (1. qualificação dos ‘núcleos’ e musealização da Mundet; 2. circuito museológico industrial), ter constituído uma ferramenta indispensável à transformação do museu e ao seu funcionamento até aos dias de hoje (Filipe 2008). Tomando como base essa mesma ferramenta, foram elaborados os instrumentos de adesão do EMS, em 2001, à Rede Portuguesa de Museus (RPM) e realizou-se o programa de qualificação museológica do Moinho de Maré de Corroios. Em 2007, a equipa técnica do museu redigiu as propostas de Regulamento e de Política de Incorporações, que, inerentemente à regulamentação da LeiQuadro dos Museus Portugueses (2004), eram instrumentos necessários para a credenciação e inclusão na referida Rede Portuguesa de Museus. Não levando a efeito a discussão pública da proposta de Regulamento do EMS (requisito juridicamente incontornável para a sua aprovação), a tutela (CMS) também não o adotou formalmente até hoje, o que aliás já implicaria uma atualização. Pergunta-se, então, sob que perspetivas é dada relevância ao património cultural na estratégia municipal de desenvolvimento, que espaço de discussão e de participação a CMS atribui à comunidade, qual o modelo de gestão patrimonial e, neste contexto, que papel é destinado ao EMS. O que foi entendido como componente de um protagonismo comunitário no projeto de criação do Museu Municipal do Seixal, se recuarmos ao início da década de 1980, expressouse, sem dúvida, na respetiva definição da missão, vocação, perfil temático e propósitos de construção identitária. Ao longo das seguintes décadas e sempre que o EMS, cumprindo a sua

Página 2 de 6

missão, atualizou ou aprofundou, com a(s) comunidade(s), o (re)conhecimento do seu património (Varine, 1991) e impulsionou o seu inventário, restabeleceu-se uma dinâmica participativa em torno do Ecomuseu. Este correspondeu-lhe incrementando o trabalho de campo, facultado por meios e recursos municipais, através de uma equipa reforçada multidisciplinarmente até 2010. Nunca se pretendeu, nem tal seria possível, integrar no sistema do EMS todo o património cultural identificado ou em vias de reconhecimento, quer a nível da comunidade local, quer mediante proposta de proteção legal, para a qual se delinearam parcerias entre a CMS e outras instituições e empresas. Não identificamos, contudo, uma dinâmica de iniciativa comunitária que em ritmo constante ou por vontade independente, suplante os desafios dos profissionais e da equipa do museu. Portanto, num território em mudança, renovaram-se algumas comunidades apoiantes dos projetos do EMS, sem verdadeiramente desencadearem ou exigirem novas ações, sempre depositando a responsabilidade (e confiança) no órgão do poder local que assumiu a orientação política e a definição da matriz de desenvolvimento do território municipal, onde se proclama inscrita a missão do Ecomuseu. Até que ponto ainda perdura, da parte da tutela municipal, a abertura à experimentação e à inovação, que cremos ter fundamentado a aceitação da ideia de ecomuseu e o interesse em conhecer e adotar os princípios da ecomuseologia (e da nova museologia)? A designação de ecomuseu mantém-se por genuína vontade e determinação em implicar uma cidadania ativa na gestão do património e do EMS em particular? «Conquanto possa ter proporcionado alguma clarificação teórica das linhas de orientação preconizadas desde a criação do museu, mais do que influído diretamente na sua evolução, a nova denominação teve sobretudo efeitos no meio museológico e profissional e na forma de mediatização, associada à novidade que a utilização do vocábulo constituía no nosso país e que a tutela até certo ponto aproveitou para transmitir a ideia de pioneirismo e de inovação da iniciativa museológica do município» (Filipe, 2004: 7). Apesar de mantida a prevalência da mesma matriz política na entidade de tutela, à medida das mudanças registadas no país e no território, também mudaram os perfis de competência (e decisão) na administração municipal e multiplicou-se o número de pessoas e de órgãos ou instâncias de gestão. Em maior número e mais dispersos, tornou-se cada vez mais difícil partilhar com eles a empatia pelas ideias renovadoras das práticas museológicas. Tornou-se também mais difícil implementar uma participação crítica em relação às questões do património cultural, no que concerne os próprios técnicos que nele intervêm (stakeholders), a par dos cidadãos interessados e comunidades detentoras do património natural e cultural, faltando igualmente meios de ativação dos processos de produção social e de construção e transmissão de memórias coletivas. Realço, neste contexto, o problema da aceitação e do manuseamento de conceitos novos (ou diferentes dos que têm imediato enquadramento legal) e da maior ou menor abertura à inovação e experimentação, por exemplo pressupondo a transdisciplinaridade ou a responsabilidade (e mesmo liderança, em certos projetos) assumida fora das cadeias hierárquicas (incluindo elementos exteriores à administração pública), aspetos que influenciam e frequentemente dificultam os circuitos de comunicação e pesam nas relações de poder. Nota-se ainda a pouca relevância que na prática tem sido conferida aos instrumentos de gestão do EMS (plano estratégico, programa museológico, planos de atividade) ou a dificuldade em reconhecer a transversalidade de atuação que é requerida em termos de uma gestão patrimonial sustentável e a importância e papel do museu, desde logo na capacitação da comunidade para tomar parte nesse processo dinâmico. A tendência de compartimentação de eixos de atuação e, consequentemente, a dissociação de vertentes que impedem a compreensão holística e a concretização de estratégias sobre uma

Página 3 de 6

mesma realidade, constituem outro problema em vários campos ligados ao EMS. Por exemplo no que toca o turismo, seria lógico estabelecer uma ligação operacional e estimular a conceção de estratégicas convergentes, se não mesmo intersectoriais, uma vez que o património natural e cultural é reconhecido como a principal âncora dos programas de desenvolvimento turístico no concelho do Seixal. O caso do património marítimo-fluvial merece particular referência e as boas práticas do EMS justificariam um esforço de continuidade. O Ecomuseu conseguiu estabelecer parcerias importantes desde a década de 1980 e consolidou-as, particularmente na década de 2000, tornando-as tão diversas quanto a representatividade temática, geográfica e cultural exigia neste domínio de interpretação e de salvaguarda de património, comum ao estuário do Tejo e às suas comunidades e não apenas do território concelhio. Creio que esta seria uma área do Ecomuseu a avaliar criteriosamente e a incentivar, no que diz respeito tanto à dinâmica comunitária, como à articulação de programas e de colaborações institucionais e associativas, que deveriam participar nessa avaliação em conjunto com a equipa técnica. «É ao preço dessa constante e voluntária discussão dos ecomuseus por seus próprios agentes e seus animadores que o processo criador favorável ao progresso da instituição como instrumento de desenvolvimento comunitário será desencadeado e perpetuado» (Varine, 2000: 77). É indubitável que o Ecomuseu construiu fortes laços com sectores diversos da população e contribuiu para a criação de raízes por parte de comunidades em torno do património, mas a superação da falta de iniciativa passa por atribuir àquelas um papel e uma responsabilidade, se necessário juridicamente consignada, na gestão patrimonial. A constituição de um grande acervo e a dificuldade de controlo das incorporações, principalmente devido a critérios demasiado amplos ou, como no caso do EMS, pela tentativa de dar resposta às expectativas das próprias comunidades em relação à patrimonialização de uma significativa diversidade de testemunhos materiais, pode tornar-se também um constrangimento para a renovação do museu e uma limitação à adoção de uma programação na perspetiva de inovação e de transformação das relações sociais (Desvallées e Mairesse, 2011: 552-553). O debate sobre a patrimonialização e os problemas da gestão patrimonial, fazendo o balanço de três décadas do museu municipal/EMS, parecem-me aspetos cruciais não só para compreender as mudanças no território e avaliar ou repensar as políticas públicas (e municipal), como também, comparando o Seixal com outras experiências, para indagarmos a validade e pertinência de alguns conceitos e princípios ideológicos – como os da função social dos museus e da iniciativa e protagonismo comunitário para o património - quando limitadamente aplicados. Por mais diversificados que sejam os contextos e as abordagens conceptuais a partir das quais tentamos fazer uma leitura de cada realidade, por exemplo em Portugal e no Brasil, o diálogo sobre diferentes experiências e a pesquisa de ferramentas para uma análise comparativa certamente nos trarão mais-valias. Assumindo a transformação dos museus à luz de mudanças transversais às nossas sociedades e ao mundo global, precisamos de identificar de forma muito específica as respostas criativas para a salvaguarda e a valorização do património, em lugares e circunstâncias temporais particulares, que traduzam as necessidades das comunidades e que contribuam para as estruturar e reforçar (Watson, 2008). Quarenta anos depois da Declaração de Santiago, vale a pena recordar como emergiram alguns novos paradigmas que hoje continuam a mudar o mundo dos museus e, com estes, o universo patrimonial. Hugues de Varine, nossa constante fonte de inspiração, pelo pensamento crítico, renovação conceptual e orientação prática para a museologia comunitária, defendeu recentemente, no que diz respeito aos museus locais, a realização de

Página 4 de 6

um diagnóstico participado, convocando pessoas capazes e interessadas em participar em novos modelos futuros de gestão do património, mediante um plano de reordenamento e organização, à escala de cada território, envolvendo outras organizações, os cidadãos e os poderes públicos» (Varine, 2011). Num contexto em que seja operacionalizada a participação das comunidades e em que os museus se integrem em políticas públicas intersectoriais à escala dos territórios, sublinho a importância do modelo de gestão da instituição museal, ligada, como no caso do EMS, a uma reprogramação evolutiva e a um plano de salvaguarda do património, enquanto recurso de desenvolvimento local. Para além de assumir a transformação do museu, em ciclos dinâmicos de interação com as necessidades expressas pelos cidadãos, é imprescindível traçar linhas definidoras e identificar os fatores importantes de renovação, em caso algum aceitando o determinismo da carência económica. Até que ponto precisará a museologia comunitária (e os ecomuseus) de um enquadramento legal específico e distinto em relação aos museus comuns, com fins de estudo, de educação e de deleite? A gestão patrimonial, que tem estado frequentemente associada aos museus municipais, principalmente desde a década de 1980, como exemplifica a experiência do EMS e de tantos outros museus em Portugal, requerendo meios técnicos e humanos específicos e exigindo políticas intersectoriais, não pode pois estar confinada aos modos tradicionais de gestão dos museus locais. Tem de compreender as tarefas ligadas aos aspetos financeiros e jurídicos do património, às equipas técnicas multidisciplinares, assim como processos estratégicos e de planificação das atividades que valorizem os recursos patrimoniais. Não basta proclamar os museus como lugares de produção social (Chaumier, 2011) e pretender que a iniciativa comunitária seja génese de mudança. A cidadania e a participação comunitária não podem ficar simplesmente implícitas na missão dos museus, precisam de estar claramente inscritas no modelo de gestão e fazer parte de um compromisso que ligue todos os parceiros, sempre que possível inscrita na planificação estratégica do museu, visando definir e pôr em prática a sua missão como organização e adotando os objetivos em função de uma certa duração e de meios específicos, prevendo e assegurando a avaliação dos resultados, acompanhando as mudanças.

Referências bibliográficas CHAUMIER, Serge (2000), «Les ambivalences du devenir d’un écomusée : entre repli identitaire et dépossession», Publics & Musées nº 17-18, Presses Universitaires de Lyon, p. 83-112. DESVALLÉES, André, MAIRESSE, François (2011), «Société», Dictionnaire encyclopédique de muséologie, Paris, Armand Colin, p. 543-558. FILIPE, Graça (2000), O Ecomuseu Municipal do Seixal no movimento renovador da museologia contemporânea em Portugal. Tese de Mestrado em Museologia e Património na FCSH da UNL [policopiado]. FILIPE, Graça (2008). “Património e museologia, planeamento e gestão para o desenvolvimento. Conceitos e práticas em mudança no Ecomuseu Municipal do Seixal”, Museologia.pt. nº 2, Instituto dos Museus e da Conservação, p. 200-211. FILIPE, Graça (2009), «Da musealização de património ao ordenamento do território musealizado: em busca de um modelo de sustentabilidade adequado a cada realidade em mudança», Museal nº 4, Faro, p. 36-49.

Página 5 de 6

VARINE, Hugues de (1991), L’Initiative communautaire : recherche et expérimentations. Mâcon, Éd. W/MNES. VARINE, Hugues de (2000), O Ecomuseu, Ciências & Letras, FAPA 27, Porto Alegre, p. 61-90. VARINE, Hugues de (2002), Les racines du futur. Le patrimoine au service du développement local, Chalon sur Saône, ASDIC. VARINE, Hugues de (2005),« Museologia e museografia dos territórios», Ecomuseu Informação nº 34, Câmara Municipal do Seixal/Ecomuseu Municipal, p. 8-12. VARINE, Hugues de (2009), «Museus e ordenamento do território», Museal, n°4, Faro, p. 5159. WATSON, Sheila (Ed.) (2008), Museums and their Communities, Londres e Nova Iorque, Routledge, p. 1-23.

Página 6 de 6

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.