Cidadania Europeia, pilar fundamental da União Europeia (2009)

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: Cidadania, Cidadania Europeia
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Cidadania Europeia, pilar fundamental da União Europeia1 É nos períodos mais conturbados e de maior inquietude que costumam ecoar as vozes mais escutadas recordando-nos a necessidade de meditarmos sobre um sempre necessário retorno aos valores e regresso aos princípios. Nos tempos que correm, fruto da contingência que se conhece, a invocação da cidadania europeia e de tudo o que a mesma significa ou implica passou a ser feito com redobrado vigor, na esperança talvez de que o seu conteúdo concreto possa fornecer linhas e princípios de orientação numa sociedade tantas vezes parecendo que anda à deriva, sem norte e em busca desse mesmo norte. Justifica-se, assim, regressarmos, por momentos que seja, a esse vasto domínio da cidadania europeia, no quadro de um debate muito alargado que se vem travando em torno do próprio conceito de cidadania, o qual já não se reporta apenas à pertença a uma comunidade estato-nacional e ao direito de participar, através do voto, na sua estruturação política e na identificação dos seus principais governantes2. A noção de cidadania europeia aparece-nos introduzida pelo Tratado da União Europeia de 1992 e reforçada por um Capítulo que lhe foi 1

Comunicação elaborada para o seminário de Verão «Debater a Europa», realizado de 29 de Junho a 1 de Julho de 2009, organizado pelo Centro de Informação Europeia Jacques Delors e Europe Direct de Aveiro, em parceria com o Gabinete do Parlamento Europeu em Portugal, Representação da Comissão Europeia em Portugal e Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20. 2

Carlos Eduardo Pacheco do Amaral, «Em torno do conceito de cidadania», in Maria Manuela Tavares Ribeiro (coord), Europa em Mutação. Cidadania. Identidades. Diversidade Cultural. Quarteto. Coimbra 2003, pag 291 ss.

expressamente consagrado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que começou por ser proclamada na Cimeira de Nice de 7 de Dezembro de 2000 antes de ser revisitada e corrigida em Estrasburgo em 12 de Dezembro de 2007 e antes de possuir efetiva força jurídica3 – pese embora, mesmo atualmente, já se lhe possa atribuir importante influência na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, enquanto critério orientador para essa mesma jurisprudência4. A sua concretização inicial foi vista como um elemento de profundo significado político no caminho para a concretização da união política prevista pelo Tratado de Maastricht. A cidadania europeia é, portanto, um conceito que nos aparece juridicamente regulado pelo Tratado da União Europeia e politicamente enquadrado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – apesar de ambos os documentos consagrarem dispositivos de conteúdo muito semelhante. 3

A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi apenas proclamada na Cimeira de Nice de 7 de Dezembro de 2000. Posteriormente, o seu texto foi revisto e aprimorado na Cimeira de Estrasburgo de 12 de Dezembro de 2007 – continuando, ainda assim, desprovido de eficácia jurídica plena. O Tratado de Lisboa – contrariamente, por exemplo, ao que estava previsto no Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa – não inclui a Carta no texto de nenhum Tratado da União. A mesma continua a figurar como um Anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (Tratado de Roma). Todavia, nos termos do Artigo 6º do Tratado da União Europeia – na redação que lhe foi dada por esse mesmo Tratado de Lisboa – a «União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados». Portanto, e em síntese: só após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa é que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estará apta a produzir a totalidade e a plenitude dos efeitos jurídicos a que tende, sendo juridicamente eficaz, possuindo um valor jurídico idêntico aos Tratados apesar de deles não fazer parte integrante, aparecendo apenas como Anexo ao Tratado da União. Quererá isto significar que, até essa data, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia está destinada a não produzir quaisquer efeitos? Cremos que não. Desde logo, apesar de não possuir eficácia jurídica plena ou força vinculativa, nada impede que, por exemplo, o seu conteúdo não sirva de critério orientador para a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia. 4

António Vitorino, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Princípia. Cascais 2002, pag 50

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Tal como nos aparece definida no Capítulo V da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o conceito de cidadania europeia abrange os seguintes direitos5: 1. O direito a eleger e a ser eleito nas eleições municipais e nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado de residência, mesmo que não seja o da nacionalidade (artigos 39º e 40º da CDFUE); 2. O direito, genérico, a uma boa administração (artigo 41º da CDFUE), o que compreende vários direitos de que poderemos destacar: a. O direito a audiência em processo administrativo; b. O direito à fundamentação dos atos administrativos; c. O direito à reparação dos danos causados pela UE, seus órgãos e agentes; d. O direito de acesso aos documentos das instituições e órgãos da UE (artigo 42º da CDFUE); 3. O direito de reclamação e de queixa perante o Provedor de Justiça Europeu (artigo 43º da CDFUE);

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Sobre esta matéria, por todos, António Goucha Soares, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A proteção dos direitos fundamentais no ordenamento comunitário. Coimbra Editora. Coimbra 2002, pag 60 ss.

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4. O direito de petição ante o Parlamento Europeu (artigo 44º da CDFUE); 5. O direito de livre circulação e residência no território de qualquer Estado-Membro da União Europeia (artigo 45º da CDFUE); 6. O direito à proteção diplomática e consular por parte dos agentes de qualquer Estado-Membro ante países terceiros (artigo 46º da CDFUE). Estes direitos, grosso modo, já se encontravam todos previstos no Tratado de Roma6,7 (com as suas subsequentes alterações, em particular aquelas que foram introduzidas pelos Tratados de Maastricht, Amesterdão e Nice) com duas importantes exceções: 1. O Tratado de Roma, apesar das diferentes e sucessivas alterações de que foi alvo, não contempla o direito dos cidadãos a uma boa administração; 2. Enquanto o Tratado de Roma define quem são os cidadãos europeus, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia é omissa a esse respeito. Desta quase coincidência absoluta entre a noção de cidadania do Tratado de Roma e a noção de cidadania da Carta dos Direitos Funda 6

A partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Tratado de Roma de 25 de Março de 1957 que instituiu a Comunidade Económica Europeia e que foi, posteriormente, sucessivamente alterado, passará a designar-se “Tratado sobre o funcionamento da União Europeia”, substituindo a actual designação de “Tratado que institui a Comunidade Europeia”. 7

António José Fernandes, Direitos humanos e cidadania europeia. Fundamentos e dimensões. Almedina. Coimbra 2004, pag 118 ss.

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mentais da União Europeia resulta que, apesar desta ainda carecer de eficácia jurídica plena e força vinculativa – só a terá se e quando o Tratado de Lisboa entrar em vigor – os direitos que densificam o conceito de cidadania europeia possuem já plena tutela jurídica por estarem consignados no Tratado de Roma. Aqui chegados, tendo concluído pela grande similitude em termos de conteúdo entre os conceitos de cidadania previstos no Tratado de Roma e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, impõe-se determinar quem dos mesmos poderá beneficiar. Ou, dito de outra forma, responder à questão: quem são, afinal, os cidadãos europeus? Tendo dois textos estruturantes – o Tratado de Roma e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – que fazem referência ao conceito de cidadania europeia, será neles que deveremos buscar a resposta à questão formulada. Ora, sobre a matéria: 1. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia é completamente omissa. Nada nos diz sobre quem são os cidadãos europeus, os titulares dos direitos que densificam o conceito de cidadania europeia. 2. O Tratado de Roma, na matéria, é apenas remissivo – isto é, remete para a cidadania dos Estados-Membros, referindo que no seu artigo 17º que é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. Ora, desta remissão efectuada pelo Tratado de Roma resulta uma consequência óbvia:

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são os Estados-Membros e não a União Europeia quem determina quem é cidadão da própria União Europeia! porquanto é cidadão da União Europeia, possui a cidadania da União Europeia, quem for cidadão de um dos seus Estados-Membros. Em bom rigor: é cidadão da União quem possuir a nacionalidade (artigo 17º) de um Estado-Membro da União. E este aspecto afigura-se curioso porquanto o Tratado europeu rompe e corta com a clássica coincidência entre os conceitos de cidadania e de nacionalidade. Temos, pois, a existência de uma cidadania que não corresponde a uma nacionalidade. Mais – existe, hoje, uma cidadania (a da União Europeia) que une ou liga 27 nacionalidades diferentes pairando sobre elas ou, o que é o mesmo, temos atualmente 27 nacionalidades diferentes (e vamos dar por adquirido que a cada Estado-Membro da União Europeia corresponde uma única nacionalidade, o que em termos rigorosos não é líquido que aconteça) unidas por uma mesma e única cidadania – a da União Europeia – a qual não substitui as 27 cidadanias dos Estados-Membros da União, antes as complementa. Por outro lado há duas notas que devem ser evidenciadas porque intimamente conexas com esta problemática: Em primeiro lugar impõe-se recordar que a introdução deste conceito de cidadania europeia possui um valor profundamente simbólico. O seu objectivo último residirá na tentativa de gerar, a longo prazo, um futuro demos europeu, um futuro povo europeu. Em segundo lugar, a cidadania europeia, tal como nos aparece desenhada e configurada nos Tratados e na Carta dos Direitos Fundamentais apenas acrescenta direitos verdadeiramente novos para os cidadãos que se deslocam para fora das fronteiras do seu país de origem. Para os cidadãos que permanecem dentro das fronteiras dos seus Estados a noção de cidadania europeia não vem acrescentar nada de significativamente novo e inovador. 6

Será, então, um conceito dispensável? Claramente – não! E não porque a teoria geral do conceito de cidadania – que também se aplica à própria noção de cidadania europeia – leva consigo e é indissociável de quatro pretensões individuais e dos correspondentes deveres que lhe andam associados8. Estas quatro pretensões individuais reclamam: 1. A proteção contra o estrangeiro, que é definido como “o outro”. É uma pretensão que deriva do vínculo de pertença a uma certa comunidade. 2. A participação ativa do indivíduo na condução do destino da cidade, da polis. 3. Um estatuto de igualdade entre todos os membros e indivíduos unidos pelo vínculo de pertença à comunidade e irmanados na condução dos destinos políticos da cidade. 4. A pretensão de reconhecimento dos direitos individuais contra a própria comunidade de que o indivíduo faz parte e na qual se integra. Em síntese em conclusão: 8

Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado.

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Cidadão europeu é, antes de mais, uma qualificação político-jurídica: um indivíduo que nasce ou adquire a cidadania de um Estado incluído no lugar físico a que convencionalmente se chama Europa e que integra essa nova forma de organização política, de feição supraestadual, designada como União Europeia9. Todavia, o processo de integração europeia torna esta definição muitíssimo mais complexa – e, na verdade, tende para a criação de um novo conceito de cidadania europeia, que não se confunde com o estatuto de cidadão da União; e que também não equivale ao resultado da adição dessa cidadania “trans-estadual” às já existentes cidadanias estaduais10. A cidadania europeia, se deixa de ser uma designação geográfica, não se identifica com um estatuto supraestadual que substitui sem resto os Estados nacionais, nem é a soma desses dois estatutos. Só pode, por isso, ser um novo estatuto, nesse sentido, radicalmente diferente11. Assim sendo,

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Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado. 10

Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado. 11

Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado.

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A cidadania da União é apenas um estatuto adicional – de sobreposição e não de substituição12 – a atribuir aos titulares das cidadanias nacionais e, portanto, um mero acréscimo das pretensões dos cidadãos europeus, correlativo ao exercício dos poderes próprios das instituições e órgãos da União Europeia. Assim, Nos dias que correm, a cidadania da União Europeia só pode fazer sentido se for entendida como contrapeso dos poderes atribuídos aos seus órgãos e instituições, de maneira a garantir que o exercício desses poderes não provocará uma diminuição das pretensões garantidas pelas cidadanias nacionais13. Da mesma forma que estas se constituem numa verdadeira carta de direitos dos cidadãos contra a atuação dos órgãos e agentes estaduais no plano interno, também a cidadania europeia, não substituindo os direitos constantes das diferentes cidadanias nacionais, antes os completando e complementando, ganha sentido e verdadeira razão-de-ser se for encarada como uma carta de direitos dos cidadãos dos diferentes Estados-Membros da União Europeia que os protege e garante contra a atuação das instituições, órgãos e agentes da própria União Europeia. E nessa medida – enquanto magna carta de direitos dos cidadãos contra a atuação das instituições, órgãos e agentes da União Europeia – é a cidadania europeia que se volve num pilar fundamental da União Europeia e do projeto europeu em construção. Projeto que, ou é democrático ou pura e simplesmente não é. Projeto que, ou tem a suficiente arte e o necessário engenho para convocar os cidadãos europeus a nele participarem ou pura e simplesmente acabará por se es 12

Maria Luísa Duarte, A cidadania da União e a responsabilidade dos Estados por violação do direito comunitário. Lex. Lisboa 1994, pag 33. 13

Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado.

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fumar e consumir-se a si próprio. Projeto que, ou se empenhará em concretizar, densificar e ampliar cada vez mais os direitos inerentes à cidadania que proclama, fazendo com que cada cidadão europeu em concreto os possa sentir, ou estará definitivamente condenado a ser sentido como algo de estranho, diferente e longínquo pelos europeus – e, por isso, dispensável e supérfluo. ________________________________________________________ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS14 • AA.VV., Citoyenneté et démocratie humaniste en Europe face aux nouveaux engeux. Fondation Robert Schuman. Paris 1999. • António Goucha Soares, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A proteção dos direitos fundamentais no ordenamento comunitário. Coimbra Editora. Coimbra 2002. • António José Fernandes, Direitos humanos e cidadania europeia. Fundamentos e dimensões. Almedina. Coimbra 2004. • António Vitorino, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Princípia. Cascais 2002. • Carlos Eduardo Pacheco do Amaral, «Em torno do conceito de cidadania», in Maria Manuela Tavares Ribeiro (coord), Europa em Mutação. Cidadania. Identidades. Diversidade Cultural. Quarteto. Coimbra 2003. • Jorge Figueiredo Dias, Cidadania europeia e cidadanias: a encruzilhada. Comunicação apresentada na Fundação Bissaya Barreto, em Coimbra, sobre o tema «Cidadanias», em 28 de Novembro de 2003. Texto não publicado. 14

Da vasta bibliografia existente sobre a matéria, limitámo-nos a referenciar aquela com que trabalhámos diretamente para a elaboração deste texto.

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• Luís Lobo-Fernandes, Isabel Camisão, Construir a Europa. O processo de integração entre a teoria e a história. Princípia. Cascais 2005. • Maria Luísa Duarte, A cidadania da União e a responsabilidade dos Estados por violação do direito comunitário. Lex. Lisboa 1994. • Maria Manuela Tavares Ribeiro (coord), Europa em Mutação. Cidadania. Identidades. Diversidade Cultural. Quarteto. Coimbra 2003. • Maria Manuela Tavares Ribeiro, A Ideia de Europa. Uma perspectiva histórica. Quarteto. Coimbra 2003. • Viriato Soromenho Marques (coord) et al, Cidadania e construção europeia. Museu da Presidência da República. Lisboa 2005.

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