Cidade Compacta e Cidade Dispersa: Ponderações sobre o Projeto do Alphaville Brasília

July 21, 2017 | Autor: Carolina Pescatori | Categoria: Urbanismo
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ANAIS do XVI ENANPUR – Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional

CIDADE COMPACTA E CIDADE DISPERSA: PONDERAÇÕES SOBRE O PROJETO DO ALPHAVILLE BRASÍLIA

Autora: Carolina Pescatori Candido da Silva; arquiteta urbanista pela FAU-UnB, Mestre em Arquitetura da Paisagem pela Pennsylvania State University - EUA, doutoranda do PPGFAU-UnB; professora assistente da FAU-UnB. Email: [email protected] Telefone: (61) 8646 6790 Endereço: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU Universidade de Brasília – UnB Instituto Central de Ciências - ICC Norte - Gleba A Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa Norte - Caixa Postal 04431 CEP: 70904-970 - Brasília / DF

RESUMO Parte das teorias contemporâneas sobre a forma da cidade foca num debate dual: de um lado, estudos demonstram a intensidade do crescimento e expansão da urbanização, formando uma leitura de cidade dispersa, considerada por alguns autores como a morte da cidade; do outro, estudos objetivam frear essa dispersão e prover respostas urbanísticas baseadas no resgate da cidade "tradicional", formando uma leitura de cidade compacta. O embate entre estas leituras é central à discussão sobre morfologia urbana contemporânea. A análise do projeto urbanístico do Alphaville Brasília aponta para a inserção da capital nos padrões de intensificação da dispersão urbana, materializando modos de vida ainda raros ali, e constituindo uma “nova periferia”. A estratégia urbanística e mercadológica da empresa se baseia na construção de uma imagem ambígua de cidade, ora dispersa, ora incorporando parcialmente a ideia de cidade compacta, mas sempre negando seu contexto na região do entorno do DF. Palavras-chave: cidade compacta, cidade dispersa, Brasília, Alphaville, urbanismo. 1

ABSTRACT Part of the contemporary urban morphology theories focuses on a dual debate: on one hand, studies have shown the strong growth and expansion of urbanization, forming the interpretation of the dispersed city, considered by some authors as the death of the city; on the other, studies aim to curb sprawl, and provide answers based on the rescue of the "traditional" city, forming the interpretation of the compact city. The clash between these interpretations is central to contemporary urban morphology. The analysis of the master plan of Alphaville Brasilia points to the inclusion of the Brazilian capital in the patterns of urban sprawl intensification, materializing ways of life that were still rare there, and constituting a "new periphery". The urban and marketing strategies of Alphaville are based on the construction of an ambiguous image of the city, somewhat dispersed, and, at the same time, partially incorporating the idea of the compact city, but always denying its context in the surroundings of the Federal District. Keywords: compact city; dispersed city, Brasília, Alphaville, urbanism.

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1. Coesão e dispersão: um embate de ideias no campo do urbanismo e o falso fim da cidade Alguns dos autores que trataram de coesão e dispersão do tecido urbano construíram suas leituras da cidade de maneira tão dramática e catastrófica, que levaram a crer que a urbanização contemporânea teria características absolutamente ímpares, únicas e inéditas na história da cidade ocidental. Para eles, estaríamos vivenciando um momento de ruptura no processo de urbanização; a cidade estaria se esvaindo em territórios amorfos e mutantes, impossíveis de serem reconhecidos como parte de uma construção social e histórica representada pelo o signo linguístico de cidade. No texto “O reino do Urbano e a Morte da Cidade”, Françoise Choay argumenta que as transformações recentes das cidades europeias foram tão profundas que existe um desencontro entre o espaço urbano tal como está e a palavra cidade, que não mais o define: Não chegou o momento de admitir, sem sentimentalismos, o desaparecimento da cidade tradicional e de perguntar-nos sobre o que a substituiu, isto é, sobre a natureza da urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se convertido no destino das sociedades ocidentais avançadas? (CHOAY, [1994] 2004, p. 2).

Choay constrói este argumento baseada em uma narrativa de temporalidade ampla, que considera projetos/propostas urbanísticas desde as intervenções de Haussmann até aqueles que ela considerará como "sinais de desconstrução": a cidade linear de Arturo Soria y Mata e os projetos urbanos de Le Corbusier. Nossa interpretação tem um sentido diverso daquele proposto por Choay, que afirma que esses prenúncios teóricos e projetuais de dispersão da cidade teriam condições de "matá-la". Certamente, esses indícios de dispersão estavam imbuídos de uma visão fortemente crítica à cidade adensada e coesa. Porém, estas ideias não tiveram capacidade de definir ou determinar um caminho único para o urbanismo daquele momento em diante, muito menos foram aplicadas de forma literal. Elas apenas se incorporaram ao seu repertório como possibilidades propositivas, como parte de uma paleta de configurações que foi se ampliando na medida em que os urbanistas se depararam com a crise da cidade industrial. Esta questão da "superação" da cidade, tanto como léxico quanto como espacialidade, foi colocada pelo arquiteto norte-americano Melvin Webber em 1968, no texto The Post City Age, trabalho que influenciou diretamente a interpretação de "morte da cidade" de Françoise Choay. Webber argumenta que as inovações tecnológicas na comunicação e no transporte foram tão radicais no século XX, que expandiram a escala da sociedade urbana para relações "cada vez mais independentes da cidade", em um processo que reduziu a importância do lugar e do espaço físico (WEBBER, 1968, p. 471). Para Webber, 3

Nossos layouts compactos de cidade espelham diretamente as tecnologias mais primitivas em uso no tempo em que foram construídos. De modo similar, o padrão locacional das cidades no continente refletem as tecnologias disponíveis no momento em que estes assentamentos cresceram. (...) Assim, a cola que uma vez uniu estes assentamentos está se dissolvendo agora, e os assentamentos estão se dispersando por terrenos cada vez mais amplos (WEBBER, 1968, p. 473).

Se é fato que a ampliação das comunicações e a facilidade de mobilidade por meio de outras tecnologias, especialmente o automóvel, flexibilizaram profundamente a relação de distâncias e interdependência entre os lugares de trabalho, moradia, e consumo no século XX, também é fato que esta flexibilização foi maior para as classes ricas, que obtinham os meios econômicos para acessar estas novas tecnologias. Webber, obviamente, compreende esta relação de privilégios, afirmando que as revoluções na comunicação e nos transportes "permitiram que uma classe afluente vivesse em qualquer lugar - nos subúrbios, nos distritos rurais, nas montanhas, que seja - mantendo-se minuciosamente "urbanas", participando completamente da vida intelectual, profissional e econômica", mas os mais pobres foram mantidos à margem do processo, "tornando-se cada vez mais "rurais" no sentido de que eles são não-participantes nas questões da comunidade global" (WEBBER, 1968, p. 470). Porém, o descolamento entre as atividades sociais e o espaço profetizado Webber não se realizou completamente com as novas tecnologias de comunicação e transporte. E não apenas porque o acesso e a utilização destas tecnologias se deu de forma desigual, mas também porque a promessa de fluidez e velocidade das mudanças não se concretizou. Ricos e pobres, moradores do subúrbio ou da periferia, podem até ter condições diversas de escolha de localidades para morar, trabalhar e consumir; mas todos continuam a depender, em graus variados, da localização dos lugares na cidade. A relação locacional do homem com o espaço urbano não foi superada; a cidade e o acesso a ela permanecem fundamentais na construção do espaço urbano até a atual década do século XXI. Segundo Margareth Pereira (2008), parte destes autores que defendem a "morte" da cidade desenvolveu seus estudos considerando espaços de tempo muito curtos, o que os impede de reconhecer que processos de transformação e reestruturação social, econômica e territorial são recorrentes na história da cidade, ampliando a sensação de perplexidade diante dos eventos contemporâneos: No caso, a perplexidade e a abstração podem ser observadas em diversos textos de arquitetos, sociólogos, geógrafos, urbanistas que buscando sinalizar uma mudança nas formas de interação social e em suas territorializações visíveis levou à construção e generalização de novas expressões adjetivadas como a “cidade contemporânea” (1988) e a “cidade genérica” (1994) de Koolhaas e as “cidades globais” (1991) de S.Sassen entre tantas outras, como já mencionamos. Quanto mais especializadas nas análises conjunturais e distanciadas do trato com processos históricos e

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com os atores sociais observados de modo mais próximo, as áreas de saber reagiram com maior estranhamento e perplexidade a certos processos como as “macro regulações econômicas e de mercados”, os “impactos tecnológicos” ou as “reconstruções da imagem das cidades” desenvolvendo discursos generalizantes pautados na maior parte dos casos em observação de aspectos econômicos e materiais mas, sobretudo, visuais das cidades, observados em temporalidades curtíssimas (PEREIRA, 2008, p. 7).

Nos parece que, mais do que uma ruptura que desconstrói a cidade, a urbanização desde a segunda metade do século XX impõe uma re-conceituação do que é cidade; uma releitura das diversas formas de ocupação e configuração do território urbano que incorpore, integre e abarque as intensas transformações que os últimos dois séculos forjaram no espaço. A tão defendida impressão de diluição e “morte” da cidade vem de leituras estritamente morfológicas e visuais da cidade, que desconsideram relações de apropriação e reapropriação cotidianamente realizadas pelos homens que vivem nos mais diversos lugares urbanizados, inclusive em áreas antes caracteristicamente rurais, por exemplo. Mesmo nos espaços mais difusos, menos densos, menos constituídos de características tradicionalmente compreendidas como “urbanas”, os homens realizam suas vidas, insistentemente, dia a dia. Circulam, trabalham, se encontram, estudam, consomem, produzem. A urbanização dispersa não matou a cidade; foi a cidade que se transformou, e inclui agora outros modos e formas de viver que não mais se restringem aos centros consolidados, aos quarteirões e esquinas, à aglomeração densa da cidade do século XIX. Se insistirmos em ver cidade apenas nas imagens pregnantes das cidades (industriais) prédispersão, perderemos a capacidade de encontrar a cidade atual, que abarca a cidade tradicional e muitas outras formas urbanas. Portanto, corroboramos com esta outra linha de interpretação, colocada por Pereira (2008), argumentando que um olhar atento à história do processo de urbanização pode oferecer uma reação crítica à interpretação de que este momento é único e novo, completamente distinto e diverso na história da cidade: A leitura dos compêndios de “história das cidades” ou de certos textos da “história das ciências sociais e humanas” nos permitem constatar o quanto são recorrentes os processos de mudança de escala, ritmo ou duração nas interações das cidades bem como os processos de regulação nas tecnologias de comunicação e informação, de “ajustes” macroeconômicos ou de investimento nas reformas da imagem das cidades [grifo nosso] (PEREIRA, 2008, p.8).

Além do olhar pautado pela interpretação histórica, a abordagem sociológica sobre a cidade também pode arrefecer os ânimos e acalmar o pessimismo generalizado contido nas teorias que defendem que a cidade chegou ao fim. Os estudos clássicos da Escola de Chicago do início do século XX compreendiam a cidade como fato social em constante movimento e, 5

portanto, passível de transformações significativas na sua organização sócio-espacial sem, no entanto, se transformar numa coisa outra que não seja mais reconhecível como cidade. O conceito de cidade desenvolvido por Louis Wirth em seu clássico artigo Urbanism as a Way of Life de 1938, afirma que "Para propósitos sociológicos, a cidade pode ser definida como um assentamento relativamente grande, denso, e permanente de indivíduos socialmente heterogêneos" (WIRTH, 1938, p.8). A riqueza deste conceito é a incorporação aos aspectos espaciais - o tamanho e a densidade, de um importante aspecto social - a heterogeneidade, o que o torna particularmente interessante para uma abordagem urbanística da cidade. Para Wirth, não podemos restringir a identificação do urbanismo apenas aos seus aspectos espaciais, "vendo-o meramente como uma delimitação rígida no espaço, procedendo como se os atributos urbanos cessassem abruptamente de existir depois de uma linha arbitrária de limite" (WIRTH, 1938, p. 4). Assim, o conceito de Wirth não é determinístico, muito menos fechado. Wirth compreende que a cidade se transforma a partir das interações entre espaço e população. Deste modo, Wirth amplia e flexibiliza seu conceito de cidade quando afirma que: Devemos reconhecer, no entanto, que no mundo social, instituições e práticas podem ser aceitas e continuadas por razões diferentes daquelas que as trouxeram à existência originalmente, e que, do mesmo modo, o modo de vida urbano pode ser perpetuado sob circunstâncias bastante diversas daquelas necessárias a sua origem [grifo nosso]." (WIRTH, 1938, p. 9).

Este entendimento de que a cidade é um organismo em constante estado de mudança, que advém da lógica da cidade como sistema ecológico, é extremamente pertinente e atual para a discussão sobre os recentes fenômenos de expansão urbana compreendidos dentro da leitura de cidade dispersa, especialmente na contra-argumentação sobre como a dispersão causou a pretensa morte da cidade. Compreender a cidade não apenas como forma urbana, mas como instituição social, de caráter mutante, pode ter efeito libertador nas pesquisas no campo da Arquitetura e do Urbanismo. Esta abordagem exime a dispersão urbana, nas suas mais diversas formas, da “culpa pela morte da cidade”, e, ao contrário, permite que o arquiteto-urbanista compreenda os tecidos dispersos como parte integrante da cidade contemporânea e do seu crescimento, proporcionando um olhar menos tendencioso e potencialmente mais acurado sobre as formas de habitar do homem do século XXI. Ainda sobre o crescimento da cidade, Robert Park reconhece, no texto The City: Suggestions for the Investigation of Human Behavior in the Urban Environment de 1925, a importância de se estudar o fenômeno de crescimento urbano porque “A organização da 6

cidade, o caráter do ambiente urbano e da disciplina que ele impõe são finalmente determinados pelo tamanho de sua população, sua concentração e distribuição dentro da área da cidade” (PARK, 1925, p. 6). Apesar de passados quase 100 anos destes estudos, reconhecemos sua permanência e pertinência para o conhecimento da cidade do século XXI. Cidade esta que não morreu; apenas está se transformando, crescendo mais uma vez. Conhecer o processo de crescimento de uma cidade é parte importante do próprio conhecimento sobre ela. Compreender historicamente os processos de dispersão e coesão, e as interpretações sobre cidade dispersa e cidade compacta é trabalho fundamental para o campo do urbanismo. São muitos os conceitos que permeiam as interpretações sobre a urbanização dispersa no final do século XX. Segundo Bernardo Secchi, teóricos e pesquisadores da cidade criaram uma espécie de “bulimia terminológica” para definir os processos de urbanização, incluindo a megalópole, o sprawl do subúrbio americano, a cidade difusa, a edgecity, as regional cities, e as sprawlcities como descrições da mesma forma de urbanização dispersa. Para o autor,esta variedade de conceitos apenas descrevem diferentes nuances de um mesmo fenômeno, sendo “indicadora do embaraço que as novas formas de urbanização suscitam em seus observadores” (SECCHI, 2009, pp. 44–45) Certamente, a característica mais marcante da urbanização dispersa é a expansão e extensão da malha urbana e do modo de produção urbano para além dos limites da cidade consolidada, conforme afirma Monte-Mór (2007). Esta expansão se dá com o predomínio das baixas densidades habitacionais apoiadas em amplo sistema de infraestrutura viária, como destacam Monclús (1998), Dematteis (1998), Reis (2006), Spósito (2007), e Catalão (2009). No entanto, este crescimento territorial da cidade do século XXI não está mais ligado à migração campo-cidade, como no século XX; agora a expansão territorial se dá pela acomodação de uma população já urbana, que tem o modo de vida urbano assimilado. Outro aspecto significativo da dispersão urbana é a fragmentação da ocupação do território que deixa extensos espaços menos adensados entre núcleos ocupados, espaços estes que são muitas vezes erroneamente interpretados como “vazios”, mas que constituem partes produtivas e intrínsecas à cidade e as suas dinâmicas.Segundo Milton Santos, esta configuração mais complexa e imbricada entre urbano e rural está ligada ao processo de informacionalização do território, quando ciência, técnica e informação passam a influenciar "os processos de remodelação do território essenciais às produções hegemônicas, que necessitam deste meio geográfico para sua realização", e onde vê-se que o campo "acolhe 7

o capital novo e difunde-o rapidamente", num movimento de descentralização que, segundo o autor, "atinge muitas zonas e pontos longínquos do território nacional, deste modo envolvidos pelo nexo da modernização capitalista" (SANTOS, [1993] 2005, pp. 38–47). A dispersão urbana e o grande distanciamento entre núcleos urbanos ocupados são caracterizados, ainda, como fenômenos contemporâneos, pós-industrialização, consequentes de forças diversas, dentre elas as do mercado imobiliário sedento por novas (e mais baratas) áreas de ocupação, aliado ao recrudescimento da violência urbana, que leva as classes médias e altas a procurar uma segregação planejada (CALDEIRA, 2000; LIMONAD, 2007; SPOSITO, 2007). Reis (2006) sintetiza algumas das principais características da dispersão urbana: (1) descentralização da população, do emprego e dos serviços; (2) produção de “novas periferias”; (3) extensão da área urbanizada por vasto território, separadas fisicamente mas fortemente interdependentes, formando um sistema urbano único; (4) desenvolvimento de novos modos de vida, viabilizados pela maior mobilidade (especialmente a individual), “organizando seu cotidiano em escala metropolitana e inter-metropolitana, envolvendo diversos municípios”; (5) novas formas de organização urbanística: condomínios e loteamentos fechados, empreendimentos de usos múltiplos isolados, shoppings centers – alteração das relações público – privado. A ocupação do território pelo homem sempre dependeu da facilidade de acesso a novas áreas, sendo esta capacidade de expansão proporcional à abertura de vias de circulação e à disponibilidade de tecnologias de transporte. Segundo Villaça (1998) e Secchi (2009), a ocupação urbana do território na contemporaneidade foi significativamente ampliada pela maior disponibilidade de transporte motorizado, primeiramente o coletivo e posteriormente o privado, aspecto determinante para a expansão das cidades que passaram a englobar outros– e mais distantes – territórios. Mas, definitivamente, foi o automóvel e sua posterior popularização que ampliaram as possibilidades de ocupação do solo e de dispersão urbana. Apesar de os impactos ambientais e sociais do uso extensivo e intensivo do automóvel como meio de transporte terem sido amplamente estudados e criticados desde os anos 90, é necessário compreendê-lo como uma tecnologia que apenas viabiliza o espalhamento e a expansão da ocupação urbana e, ainda assim, de forma "imperfeita", conforme a discussão anterior sobre a interpretação de Melvin Webber e a superação da cidade. O automóvel é um meio, um instrumento, que é peça-chave no funcionamento da cidade dispersa, mas não a causa dela.

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Há uma ampla bibliografia crítica à dispersão, particularmente após os anos 1990. Este período é caracterizado por Robert Bruegmann como uma "campanha contra a dispersão", em seu interessante (e raro) estudo sobre dispersão, suas limitações e vantagens intitulado Urban Sprawl: a Condensed History (2011). Bruegmann sintetiza os principais argumentos desta crítica: custos econômicos; custos ambientais pelo aumento do consumo de combustíveis e pela diminuição das terras agricultáveis e florestadas; problemas sociais relacionados à diminuição da urbanidade; a "ofensiva" contra o automóvel; a necessidade de se limitar o crescimento urbano; e objeções estéticas e simbólicas (BRUEGMANN, 2011). Estas críticas serão esmiuçadas posteriormente nesta pesquisa, mas o que é relevante destacar neste momento são suas consequências para o pensamento urbanístico atual. A principal resposta desenvolvida por este arcabouço crítico foi o retorno às formas mais coesas de urbanização, muitas vezes resgatando configurações "tradicionais" da cidade préindustrial, sintetizadas em interpretações que consolidamos sob a insígnia de cidade compacta. Este termo não constitui um conceito em si, mas reúne um importante conjunto de diretrizes urbanísticas que procuram: (1) promover unidades territoriais autônomas em termos de oferta de equipamentos, serviços, empregos e moradia, como forma de diminuir a demanda por transporte e as distâncias a serem percorridas; (2) fortalecer subcentros e criar novas centralidades para diminuir a convergência de deslocamentos para os centros das cidades; (3) ocupar o solo de forma compacta (maiores densidades populacionais e construtivas) para diminuir as distâncias intramunicipais e viabilizar o transporte coletivo e os modos não-motorizado; (4) ocupar vazios urbanos para otimizar os deslocamentos por transporte público; (5) limitar áreas de expansão urbana (NEWMAN; KENWORTHY, 1999; GEHL; GEMZØE, 2002; NEWMAN; JENNINGS, 2008; ECHAVARRI et al., 2009; HOLANDA, 2010; GEHL, 2011;GEHL, 2013). Todas estas diretrizes tratam de uma tentativa de domesticar a dispersão, focando na retração e contenção do processo dispersivo por meio de planos, estratégias e inúmeros instrumentos urbanísticos e diretrizes de projeto. No planejamento, podemos destacar o esforço para se delimitar perímetros urbanos rígidos, o zoneamento de usos mistos, o aumento das densidades populacionais e construtivas, e todas as diretrizes de incentivo à ocupação de vazios urbanos. No campo do desenho urbano, esta tentativa de contenção do fenômeno dispersivo se apresenta, muitas vezes, nas fortes intenções de resgate de formas urbanas ditas “tradicionais”, por meio de propostas de ocupação mais compactas,com maiores densidades populacionais, proposição de malhas viárias mais integradas (grelha), tipologias de ocupação com relações mais diretas entre espaços públicos e privados, menores afastamentos laterais e frontais, e incentivo ao uso misto. No que tange a mobilidade urbana, o aumento das densidades populacionais e construtivas é tido como 9

estratégia primordial para a priorização do transporte público sobre o automóvel e para o incentivo ao uso de modos de transporte não-motorizados. Apesar destes esforços, a dispersão urbana tem se ampliado (REIS, 2006). E como processo em expansão, ela nos parece inevitável, e deve ser enfrentada como realidade e como parte factual da cidade. Reiteramos o argumento de que este processo de crescimento urbano fragmentado e complexo não determina o fim da cidade, e sim mais uma de suas transformações para incluir tipologias e estratégias de ocupação do território que, inclusive, não são absolutamente “novas”. A noção de que a cidade é (ou sempre foi) um espaço de delimitação espacial clara, que comporta um assentamento compacto e coeso não se sustenta historiograficamente, nem teoricamente. Seguindo esta tendência, também a região do Distrito Federal parece se inserir nos processos de dispersão urbana. No entanto, é necessário caracterizá-lo mais detalhadamente para identificar possíveis especificidades do processo de urbanização “candango”.

2. Brasília e a dispersão urbana Não creio que se possa projetar uma cidade-capital para ser aumentada indefinidamente. Se o centro, o sistema de tráfego, os parques e os edifícios públicos são adequados para uma população eventual de meio milhão a 600 mil pessoas, serão inadequados para uma população de um milhão ou um milhão e meio. Portanto, é preciso haver alguma delimitação do crescimento da cidade-mãe, uma vez alcançado o tamanho mais aconselhável; e os desenvolvimentos posteriores, especialmente dos centros agrícolas e industriais, devem ser planejados, a fim de que eles atuem como cidades-satélites e de apoio dentro da região. (HOLFORD, 1957 In XAVIER, KATINSKY, 2012. p.26)

Esta afirmação de William Holford, urbanista inglês membro da Comissão Julgadora do Concurso Nacional de Projetos para a Capital Federal ilustra como a questão de se estabelecer limites para a cidade – no caso populacional, mas consequentemente, também territorial – era seminal para o urbanismo naquele momento. No caso de Brasília, a limitação de população para 500 mil habitantes foi determinada posteriormente à divulgação do edital do concurso, como resposta a questionamentos de Ary Garcia Roza, então Diretor Presidente do IAB, e foi divulgada em carta pelo próprio Niemeyer (BRAGA, 2010, pp.4244). A ideia de que a cidade precisa ter limites populacionais definidos e, por vezes também limites territoriais, remonta aos primórdios da urbanização. No planejamento urbano do século XXI ela permanece vigente na figura do “perímetro urbano”, que delimita geograficamente (e tributariamente) as áreas urbanas, separando-as das rurais. No entanto, como a contínua expansão das áreas urbanas é uma realidade desde o final do século XIX 10

no Brasil, estes perímetros são frequentemente aumentados a cada revisão de Plano Diretor na maioria dos municípios brasileiros, como demonstram as recentes pesquisas de avaliação de Planos Diretores no Brasil (SANTOS JUNIOR; MONTANDON, 2011), colocando em xeque a eficácia dos limites urbanísticos. Assim como a determinação de limites para o crescimento para a cidade sempre esteve no cerne das discussões sobre a cidade no urbanismo, também esteve a questão de como organizar territorialmente o inevitável crescimento da população urbana. O ordenamento territorial por cidades-satélites, que remonta ao final do século XIX, se consolidou na teoria urbanística do século XX como a melhor solução para viabilizar a coesão dos tecidos urbanos e facilitar a infraestruturação do território urbanizado. O projeto urbanístico de Brasília incorporou estes princípios de limitação populacional e física, bem como de organização territorial controlada por meio do modelo de cidadessatélites. Hoje, Brasília foi muito além dos desígnios de seu projeto original, e apesar de ter apenas 54 anos, se transformou em uma cidade absolutamente consolidada como centro político-administrativo do país e como centro regional de importância econômica. A série de estudos coordenados desde os anos 1980 pelo professor Aldo Paviani é seminal para o entendimento da construção de Brasília não apenas como capital, mas particularmente, como metrópole regional, ao redor da qual gravitam diversos municípios goianos e mineiros e parcelas significativas de suas populações. Destes estudos, destacamos a leitura de dispersão planejada e periferização planejada desenvolvidas por Paviani e aplicadas à Brasília, e que são de extremo interesse a esta pesquisa. A dispersão planejada diz respeito ao planejamento polinucleado da cidade, e está na origem de seu projeto: a organização territorial em cidades-satélites distantes entre si e da cidade-mãe. As cidades-satélites de Brasília nunca foram pensadas para serem administrativamente ou politicamente autônomas, ou seja, não seriam municípios em seu sentido pleno. Deveriam ser, isto sim, minimamente autônomas em termos de oferta de empregos e serviços, autonomia que está na essência da teoria das cidades-satélites, mas isso não ocorreu (PAVIANI, 2010). Mas mesmo que a ideia de cidade-satélite não tenha se concretizado completamente no território de Brasília, estes núcleos urbanos configuraram o que Paviani vai caracterizar como uma ocupação dispersa, polinucleada, conceitos bastante interessantes para a localização de Brasília no debate contemporâneo sobre a dispersão urbana. Brasília começa a ser implantada, em plenos anos 1960, territorialmente dispersa, tendo diversos núcleos habitacionais construídos a distâncias significativas da cidade-sede, o 11

Plano Piloto, e contendo vazios urbanos intersticiais entre eles. Diferentemente de outras cidades brasileiras, Brasília nasce dispersa, talvez antes mesmo de este fenômeno iniciar em outras áreas do país, conforme a periodização de Nestor Goulart (REIS FILHO et al., 2007), e sua periferia permanece fragmentada e distante do centro – Plano Piloto – durante décadas. Paulatinamente, no entanto, estes vazios intersticiais vão sendo ocupados, construídos, implicando na conurbação de cidades-satélites, configurando uma área urbana mais contínua e diluindo os limites entre seus núcleos urbanos. Porém, esta ocupação dispersa do território da Brasília metrópole, composta pelas cidadessatélites e pelos municípios da RIDE1 reproduzia o modelo de urbanização centro rico – periferia pobre, como demonstra o mapa de distribuição espacial de renda. Havia uma clara concentração de renda nas áreas centrais.

Figura 1 - Renda por Região Administrativa em Brasília. Fonte: CODEPLAN, 2003.

Mesmo o aparecimento dos condomínios horizontais em áreas rurais de Brasília, que é uma característica marcante da dispersão urbana contemporânea, não implicou numa transformação significativa da distribuição territorial da população, nem mesmo numa transformação das periferias da cidade. Estes condomínios “consolidados” de Brasília têm características semelhantes àquelas que conformam as leituras de cidade dispersa, com a criação de novos núcleos habitacionais segregados em áreas antes rurais, implicando na ampliação do perímetro urbano e na migração de parte da classe média para zonas periféricas. No entanto, estas novas zonas habitacionais se localizam em áreas muito

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A RIDE /DF – Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno, é uma região integrada de desenvolvimento econômico, criada pela Lei Complementar n.º 94, de 19 de fevereiro de 1998 para efeitos de articulação da ação administrativa da União, dos Estados de Goiás, Minas Gerais e do Distrito Federal.

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próximas do centro urbano da metrópole, o Plano Piloto; mais próximas que muitas das mais antigas cidades-satélites, como Taguatinga, Ceilândia e Gama, por exemplo. Desde 2009, no entanto, um outro tipo de urbanização, este sim, ainda mais característico da dispersão urbana como reconhecida em outras cidades, começou a ser construído na região de Brasília: o Alphaville. O Alphaville se constitui como um exemplo característico da urbanização dispersa porque além de incluir em seu projeto condomínios horizontais fechados, dos quais temos inúmeros exemplos em Brasília desde os anos 1970, é um loteamento que se localiza em Cidade Ocidental, município goiano integrante da RIDE/DF,mas que é completamente voltado aos atuais moradores do DF. Ou seja, Alphaville Brasília é um empreendimento de grande porte que pretende atrair moradores do DF para as “franjas” da metrópole, o que conformaria uma nova periferia ao redor da capital brasileira. Estudar o Alphaville Brasília dentro do debate sobre a cidade dispersa e a cidade compacta pode permitir uma melhor compreensão deste novo modo de habitar, ainda estranho à Brasília, mas consolidado em outras metrópoles brasileiras: a configuração de uma periferia muito mais diversa, complexa e potencialmente conflituosa, considerando a aproximação física de bairros completamente díspares nas suas características econômicas, sociais e urbanísticas. Bairros estes claramente apartados e separados por uma parafernália de segurança e controle de proporções ainda pouco valorizadas no DF, como demonstra estudo de Cristina Patriota: É interessante que nenhum dos condomínios com os quais tive contato em Brasília possui guardas ostensivamente armados. Quando perguntados a respeito da necessidade de guardas armados, os moradores contatados tampouco respondem afirmativamente. Muitos condomínios possuem guaritas sem guardas e mesmo os que possuem guardas uniformizados,anotando o número da carteira de identidade do visitante, estes raramente pedem para ver documentos. Moradores narram casos de pessoas que se mudaram para o condomínio por causa da segurança, mas a maioria aponta a segurança do condomínio como um ganho a mais, quando o que importava mesmo era ter uma casa para morar [grifo nosso] (PATRIOTA DE MOURA, 2010, p.60).

Ao contrário do que demonstram pesquisas consolidadas sobre condomínios fechados em outras cidades brasileiras, onde a questão da segurança foi fator preponderante na escolha por viver em um condomínio horizontal fechado, Patriota afirma que as estratégias de segurança dos condomínios de Brasília não são tão rigorosas e violentas, e que, surpreendentemente, segurança não foi um critério determinante para a maioria dos moradores. Em sua pesquisa, Patriota revela que a decisão de morar em condomínio está muito mais relacionada à necessidade de se ter uma casa e à impossibilidade de adquirir 13

um imóvel nas áreas centrais mais valorizadas: Plano Piloto, Lago Sul e Lago Norte (PATRIOTA DE MOURA, 2010). Partindo das peculiaridades no perfil dos moradores de condomínios horizontais em Brasília apresentadas por Patriota, onde a proximidade com o “centro” mantém sua importância como critério de escolha de local de moradia, Alphaville não parece uma opção atrativa. Entretanto, os 498 lotes do Residencial 1 foram vendidos em apenas 5 horas em junho de 2010, o que não ocorreu com as vendas do Residencial 2, lançado em 2012 e que ainda conta com unidades disponíveis. Saturação? Pura especulação imobiliária ou ampliação do processo histórico de dispersão urbana de Brasília? Então, como compreender a construção do Alphaville Brasília no entorno de DF? Como a empresa construiu e continua a construir sua imagem para os potenciais moradores, empresários, comerciantes e investidores? Que imagem de cidade é essa? O estudo do projeto urbanístico do Alphaville Brasília pode iluminar algumas destas questões.

3. Alphaville S.A. e o Alphaville Brasília A Alphaville S.A. é a maior empresa urbanizadora do Brasil na atualidade, tendo empreendimentos de diferentes portes em 21 estados. A empresa atua em dois segmentos diferentes: a construção de “residenciais” e de “núcleos urbanos”. Os residenciais são os conhecidos condomínios horizontais fechados, que contabilizam a maioria dos empreendimentos da empresa. Já os núcleos urbanos são empreendimentos maiores e mais complexos, constituídos por áreas residenciais em condomínios fechados e áreas centrais voltadas a serviços e comércio, mas também para indústria. Este “modelo” de urbanização foi desenvolvido na primeira experiência da empresa, quando a Construtora Albuquerque Takaoka (que se transformaria posteriormente na Alphaville S.A.) construiu o Alphaville na região metropolitana de São Paulo, nos municípios de Barueri e Santana do Parnaíba, em 1973. O Alphaville Brasília segue o modelo de núcleo urbano, sendo formado por um Centro Comercial, um Parque Empresarial, uma Vila Universitária, grandes áreas para habitação multifamiliar (condomínios fechados verticais) e quatro condomínios horizontais fechados, como mostra plano geral do projeto (ver Figura 2). O projeto completo prevê uma população de cerca de 135 mil moradores em 40 mil unidades imobiliárias, sendo construído em diversas etapas ao longo de 12 anos (ALPHAVILLE URBANISMO S.A., 2014).

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Figura 2- Plano Geral do Alphaville Brasília.Fonte: Alphaville, 2014.

Como já colocado, o Alphaville Brasília se localiza fora do DF, dentro do município de Cidade Ocidental - GO. Em nenhuma mídia, seja em propagandas, pôsteres, “outdoors” ou no sítio do empreendimento, o nome deste município é citado. Sempre se reforça a facilidade de acesso ao Plano Piloto, medida em tempo (“20 minutos da Ponte JK”), nunca em quilômetros. Nem mesmo no endereço do empreendimento o município de Cidade Ocidental é citado: “Km 13,5 da Rodovia DF-140”. Nota-se que a planta baixa do projeto urbanístico de Alphaville Brasília (Figura 2) está pairando sobre uma imagem de um etéreo céu azul, completamente desconectada do seu território geográfico-social, onde nem mesmo a topografia é representada. Alphaville não deseja ter contexto algum. Este esforço por ressaltar a conexão com o DF e o Plano Piloto, e de esconder a localização no “entorno” do DF, se justifica dentro da leitura de Patriota de Moura: os potenciais moradores de 15

Alphaville, não estão fugindo da violência urbana da cidade, mas procurando uma alternativa de moradia mais acessível financeiramente do que os imóveis disponíveis na área central. O plano geral do centro do Alphaville Brasília foi elaborado pela empresa multinacional de origem norte-americana RTKL, enquanto o projeto dos condomínios e os demais projetos executivos foram desenvolvidos por equipe própria da Alphaville e outros escritórios brasileiros. A RTKL é um escritório voltado para o planejamento e projeto de grandes empreendimentos para a iniciativa privada, mas também para governos, com sede na em várias cidades nos EUA, além da Europa (Londres), Ásia (Beijing e Xangai na China), Oriente Médio (Abu Dhabi e Dubai nos Emirados Árabes, Jeddah na Arábia Saudita,) e América do Sul (São Paulo). No sítio da empresa encontramos poucas informações sobre o projeto de Alphaville: um curto texto de apresentação e cinco imagens do projeto: uma vista aérea geral e quatro imagens mais aproximadas. Todas focam prioritariamente no chamado Parque Empresarial e no Centro Comercial. Mesmo com poucas informações, elas nos permitem aprofundar um pouco mais a interpretação sobre este novo loteamento, bem como algumas inferências relevantes para compreender Alphaville como fenômeno urbanístico e social.

Figura 3 - Imagem do sítio da RTKL tratando do projeto do Alphaville Brasília.RTKL, 2014.

Em um dos primeiros grandes esforços de planejamento urbano depois do projeto original do famoso arquiteto Oscar Niemeyer para a capital do Brasil

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em 1960, a Alphaville Urbanismo comissionou a RTKL para definir um plano urbanístico para o Alphaville Brasília, uma comunidade de uso misto de 995 hectares. A maior empresa de incorporação residencial do Brasil pediu que a RTKL introduzisse um vibrante centro urbano de uso misto como foco das comunidades residenciais circundantes. Projetado para acomodar uma população futura de mais de 200 mil habitantes, o plano conserva os atributos naturais do sítio e encoraja as atividades à pé por meio de um layout de amenidades bem pensado, espaço público de lazer, e opções residenciais variadas. Ele também mantém alguns dos melhores atributos de Brasília, incluindo a arte nos espaços públicos e a proteção do patrimônio.(RTKL, 2014)2.

Figura 4 - Vista aérea do projeto do Alphaville Brasília.Fonte: RTKL, 2014

Além da vista aérea do loteamento, o sítio da RTKL apresenta imagens mais detalhadas mostrando o Parque Empresarial e o Centro Comercial, onde percebemos a notória aplicação de princípios urbanísticos de compactação para construir a imagem comercial do futuro centro do Alphaville Brasília.

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Tradução livre. Texto original: In one of the first major urban planning efforts to follow famed architect Oscar Niemeyer’s original design of Brazil’s capital city in 1960, Alphaville Urbanismo commissioned RTKL to refine the Alphaville Brasilia master plan, a 995-HA mixed-use community. Brazil’s premier residential developer asked RTKL to introduce a vibrant mixed-use town center as the focus for surrounding residential communities. Designed to accommodate an eventual population of over 200,000 residents, the plan conserves the site’s natural attributes and encourages pedestrian activity through a thoughtful layout of amenities, public recreational space, and varied residential options. It also maintains some of the best attributes of Brasilia, including public art and protected landmarks (RTKL, 2014).

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Figura 5 - Imagens do Centro Comercial e Parque Empresarial do Alphaville Brasília.Fonte: RTKL, 2014.

O pequeno texto de apresentação busca retratar uma imagem seletiva do que será Alphaville, um recorte da realidade que reforça a grandiosidade do novo “bairro” – tanto em termos de área quanto de população, enquanto destaca alguns atributos urbanísticos do projeto. É intrigante a atribuição do projeto urbanístico de Brasília a Oscar Niemeyer e não a Lucio Costa, pois o primeiro é arquiteto cuja obra é amplamente reconhecida internacionalmente, sendo comumente ligada à ideia de modernidade, ideia esta sempre reforçada pela empresa. É claro que as imagens dos edifícios no projeto de Alphaville não lembram em nada a produção artística de Niemeyer, mas construir uma ligação do projeto com este nome emblemático é uma importante estratégia de propaganda e de produção da imagem do novo loteamento. Para além dessa imagem de modernidade, reconhecemos outros três temas marcantes no texto e nas imagens do Alphaville Brasília: o ambientalismo ligado à proximidade com a 18

“natureza”, a urbanidade e a mobilidade urbana. Parte destes temas é recorrente na crítica à dispersão urbana, enquanto eles são apresentados como características constituintes do seu avesso, a cidade compacta. Segundo a RTKL, “o plano conserva os atributos naturais do sítio”, aludindo à ideia de que o Alphaville Brasília estaria localizado em área de interesse ambiental, afirmação reforçada em textos sobre o empreendimento onde lê-se “Natureza perto de você”(ALPHAVILLE URBANISMO S.A., 2014). Esta construção ganha força na vista aérea geral do empreendimento (Figura 4), que mostra o Parque Empresarial e o Centro Comercial em destaque, ilustrando seu entorno em diversas nuances de verdes, ilustrando massas de vegetação de forma bastante ambígua e pouco detalhada. Na imagem é notória a intenção, e, portanto, a construção imagética, de um entorno ainda florestado, remetendo a uma ideal de encontro com a natureza próxima e de preservação ambiental. Ao passo que o Jardim ABC é ilustrado de forma ambígua, com cores térreas e arroxeadas que denotam mais um descampado do que uma comunidade existente (ver parte esquerda da Figura 4). A imagem de satélite de junho de 2013 da região onde se encontra o Alphaville mostra uma realidade bastante diferente, com algunstrechos florestados, de fato, mas a maior parte da área completamente antropizada, onde se vêem muitas chácaras (algumas, inclusive, adjascentes à Alphaville), e o bairro Jardim ABC ocupando uma área bastante significativa ao longo da margem esquerda de Alphaville, questões que elucidam uma apropriação ludibriosa da ideiade “retorno à natureza” propagada pela empresa e pelos projetistas.

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Figura 6 - Vista aérea da região do Alphaville Brasília.Fonte: Google Earth, 2014.

Já as imagens do Centro Comercial e do Parque Empresarial (Figura 5) ilustram uma característica muitas vezes ignorada pelos estudos que tratam do "modelo Alphaville": estas áreas não são muradas, ou seja, se aproximam mais do que reconhecemos como uma cidade aberta, onde as restrições de circulação nas ruas não são tão violentas nem tão explícitas. A circulação de pessoas estaria, ao mínimo hipoteticamente, livre no centro de Alphaville, e somente os condomínios horizontais seriam cercados. No entanto, esta hipótese não nos parece muito plausível. Segundo entrevistas com arquitetos da empresa Alphaville Urbanismo3, responsáveis pela implantação do plano urbanístico, o Aphaville Brasília espelha a configuração urbana do primeiro empreendimento da empresa, que definiu o modelo de “núcleo urbano”, o Alphaville-Barueri. Em visitas de campo ao Alphaville-Barueri, constatou-se que, apesar de não haver restrições à circulação de pessoas nas ruas do Centro Empresarial, estas são vigiadas por sistemas de câmeras, e cada um dos lotes constitui uma unidade isolada do seu entorno por meio das mais diversas estratégias de segurança, como muros, grades e guaritas, câmeras e vigilantes que asseguram o controle de acesso ao interior dos edifícios (Figura 7Figura 8 Figura 9).

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Entrevistas realizadas pela autora na sede da empresa Alphaville Urbanismo S.A. em São Paulo, em dezembro de 2014.

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Figura 7 - Condomínio Multifamiliar na área central de Alphaville Barueri.

Figura 8 - Sistema de vigilância das áreas públicas de Alphaville Barueri.

Figura 9 - Entrada para a área completamente cercada do Centro Comercial de Alphaville Barueri.

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Ademais, o projeto do Alphaville Brasília ignora completamente e propositalmente seu entorno imediato, não construindo ligações - ruas, avenidas, parques ou praças - entre o Centro Comercial e o Parque Empresarial e áreas consolidadas do município de Cidade Ocidental, como, por exemplo, o Jardim ABC, núcleo urbano de baixa renda vizinho ao empreendimento. Esta desconexão constitui-se como uma estratégia clara de separação entre Alphaville e seu entorno, desconexão que é reforçada pelas técnicas de representação do espaço urbano utilizadas nas imagens encontradas no sítio da RTKL. A vista aérea geral de Alphaville (Figura 4) e o texto aludem evasivamente ao que denominam de “comunidades residenciais”. Não há nenhuma referência ao fato destas serem comunidades fechadas e muradas, fato que contradiz frontalmente a ideia de urbanidade, como demonstra Caldeira ao falar da condição menosprezada dos espaços públicos de São Paulo frente à fortificação dos espaços da elite: Numa cidade de muros e enclaves como São Paulo, o espaço público passou por uma transformação profunda. Vivenciado como mais perigoso, enquadrado por grades e muros, fragmentado pelos novos vazios e enclaves, privatizado com correntes fechando ruas, guardas armados e guaritas, o espaço público é cada vez mais abandonado pelas camadas mais altas. Na medida em que os espaços para os mais ricos são fechados e voltados para dentro, o espaço que sobra é abandonado àqueles que não podem pagar para entrar. Como os mundos privatizados das camadas mais altas são fechados e voltados para dentro, eles são por princípio o oposto do espaço público moderno. No entanto, os espaços públicos restantes, territórios de medo, também não podem aspirar modernos. A vida cotidiana na cidade de muros reforça exatamente os valores opostos: incivilidade, intolerância e discriminação. (CALDEIRA, 2000, p. 313).

As demais imagens do Centro Comercial e do Parque Empresarial (Figura 5) ilustram um centro dinâmico, pretensamente moderno na sua arquitetura espelhada e refletiva, conforme o padrão pós-moderno de arquitetura corporativa que encontramos em inúmeras metrópoles. Estes edifícios emolduram espaços públicos bem desenhados, aparentemente propícios ao caminhar e ao encontro das pessoas (que, no entanto, chegarão ao centro de carro e assim se deslocarão por ele). Estas imagens remetem a uma visão de urbanidade, abordada como a criação de um ambiente urbano vibrante, diverso e dinâmico, seguindo a linha de interpretação consagrada pela jornalista Jane Jacobs em 1961, e que permanece fortemente arraigada no urbanismo contemporâneo. Jacobs defendia que, em termos urbanísticos, a urbanidade depende da concentração de pessoas e edifícios (entendida como aumento da densidade construtiva e bruta); da configuração os quarteirões curtos; e do uso misto (JACOBS, 2000). Jacobs, na sua advocacia pela densidade, diversidade de usos e limitação do tamanho dos espaços urbanos, abriu espaço para uma reinterpretação contemporânea da coesão morfológica nas 22

cidades tradicionais, e influenciou profundamente os autores posteriores que defendem a compactação urbana. No entanto, nossa análise permite trazer à tona outra grande contradição entre a imagem construída de Alphaville pelos projetistas e a realidade. Há uma profunda desconexão do Centro do Alphaville Brasília em relação ao seu entorno, o que constitui uma ruptura absolutamente não condizente com a pretensa imagem de urbanidade, muito com menos com o texto, que promete “introduzir um centro urbano vibrante e de uso misto como foco das comunidades residenciais vizinhas”. Além disso, esta alegação de integração com as áreas residenciais adjacentes não se sustenta quando conhecemos mais a fundo o projeto completo da empreendimento. A construção de uma imagem falaciosa de espaços públicos de qualidade no centro de Alphaville é reforçada quando analisamos um projeto complementar ao plano geral: o paisagismo da praça e da avenida central do Centro Comercial elaborado pelo escritório EKF Arquitetura de Exteriores. A apresentação do projeto no sítio da EKF também incorpora as questões da urbanidade, da sustentabilidade ambiental, da mobilidade urbana e da construção de um ambiente urbano "equilibrado", como demonstra a transcrição do texto de apresentação do projeto da Boulevard no sítio da EKF e as imagens do projeto (Figura 10): Boulevard amplo e contínuo, para usufruto exclusivo de pedestres, que proporciona explorações espaciais com multi-atividades e surpresas visuais dentro do contexto paisagístico composto, norteado por premissas de sustentabilidade. A configuração dos panos de estar e circulação, assim como a distribuição dos mobiliários e as áreas de vegetação reforçam a ideia de meio urbano, onde o dinamismo e a diversidade de formas, cores e estilos criam um rico mosaico que oferece ao indivíduo inúmeras possibilidades de caminhos e paisagens. Apesar das áreas possuírem usos distintos, todos obedecem a conceitos e intenções comuns como a busca do equilíbrio entre: individual X coletivo X unidade.

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Figura 10 - Projeto da Avenida do Centro Comercial.Fonte: EKF, 2014.

Novamente, as imagens remetem a um ideal de espaço público bem constituído, arborizado, com amplas calçadas repletas de pedestres, generosos espaços de permanência alimentados por “explorações espaciais com multi-atividades”, sempre seguindo o princípiomor do urbanismo contemporâneo: a “sustentabilidade”. Estas estratégias discursivas de urbanidade, sustentabilidade e mobilidade urbana são reforçadas pelas imagens do projeto da avenida, sendo que uma análise mais cuidadosa desmonta estes princípios.

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A leitura do plano geral de Alphaville mostra que o Centro Comercial está isolado na parte superior do loteamento, sendo completamente apartado do restante da área urbanizada. Esta ausência de conexões físicas para além da via de acesso praticamente impede que pessoas caminhem até esta avenida, revelando que este trecho urbano terá o automóvel como principal modal de transporte. O uso misto propagado no texto também é restrito, com poucos lotes residenciais próximos. Novamente, a ausência de conexões com as outras áreas vai limitar a “desejada” diversidade que o projeto promete: “onde o dinamismo e a diversidade de formas, cores e estilos criam um rico mosaico que oferece ao indivíduo inúmeras possibilidades de caminhos e paisagens.” A análise dos materiais encontrados sobre o projeto de Alphaville Brasília nos levam a concluir que há, intencionalmente, a construção de uma imagem ambígua de cidade, que incorpora as leituras de cidade dispersa e compacta simultaneamente, mas em espaços diferentes e para públicos diferentes. Para os potenciais moradores dos condomínios, Alphaville se apropria da ideia de cidade dispersa, caracteristicamente suburbana, de baixa densidade, propiciando o “desejado” contato com a natureza – destruída pela cidade; o espaço amplo “necessário” para a criação de crianças saudáveis, correndo “livres” pelas ruas seguras da cidade murada. Para os empreendedores, comerciantes, empresários, Alphaville constrói uma cidade diametralmente oposta, baseada na leitura de cidade compacta. Um centro urbano de alta densidade construtiva, com edifícios de vários pavimentos e alta taxa de ocupação dos lotes, mas com boa distribuição de espaços abertos, incluindo praças e bulevares. O zoneamento de uso misto constitui espaços com certa diversidade, mas não há previsão de uma mistura mais intensa entre habitação – serviços – comércio; as áreas para habitação multifamiliar são separadas dos demais usos. Mas como mostramos neste artigo, apesar desta ligação com o modelo de cidade compacta, a análise do projeto urbanístico revelou sérias inconsistências e incompletudes, bem como um esforço projetual, material e imagético de construir mais um enclave (ainda que não completamente murado) isolado de sua realidade local.

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