Cidade e Entropia Social

May 28, 2017 | Autor: Vinicius M. Netto | Categoria: Sociologia, Arquitetura e Urbanismo, Sociología, Urbanismo, Teoria Social
Share Embed


Descrição do Produto

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

Cidade e entropia social Vinicius M. Netto

Introdução A impressão de que vivemos em um mundo cada vez mais complexo

é compartilhada por muitos de nós: a noção de que há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, em uma velocidade rápida demais para

ser acompanhada por nossas mentes e nossas ações; o contato com

volumes de informação impossíveis de serem digeridos; a sensação de uma conectividade sem precedente entre eventos e lugares. Essas impressões remetem à ideia de que finalmente vivemos na simultaneidade absoluta dos fluxos de eventos que previa o filósofo do tem-

po Henri Bergson no começo do século XX: a consciência amedronta-

dora da impossibilidade de abarcar os eventos que acontecem em uma única percepção instantânea parece mais sentida do que nunca (ver Netto, 2011).

Como lidamos com uma sociedade com tamanha complexida-

de? Este capítulo discute como a cidade é parte das experiências em

um mundo percebido como dessa complexidade. Curiosamente, esse é um tema pouco explorado na teoria social. Diferentemente da teoria

116

Cidade e entropia social

econômica, boa parte da teoria social lida com cidades como um fenômeno quase ad hoc ao mundo social. A vida urbana parece uma parte

incidental da vida social; o espaço, um mero pano de fundo das nossas ações conjuntas. A abordagem introduzida neste ensaio busca mostrar o lugar da cidade na vida social de forma intrínseca, incluindo a riqueza

da heterogeneidade do espaço urbano como parte inerente da realiza-

ção e da interdependência das nossas ações. Mas essa demonstração requer alguns recursos.

O primeiro deles é o de procurar desnaturalizar a presença de

algo constante em nossa experiência, como é o caso do espaço. Requer destacar uma dimensão material entre outras para mostrar o quanto

ela é necessária para o todo da nossa experiência. Para tanto, farei uso

da abstração e de metáforas, de modo a nos aproximarmos de seus componentes pouco visíveis – construindo cenários chamados de con-

trafatuais – aqueles que partem de perguntas como ‘o que aconteceria se...’ – digamos, ‘o que aconteceria se o espaço não fosse parte das nos-

sas ações’. Construirei um cenário hipotético de ‘ações livres de espa-

ço’ para enfatizar seu contrário: o quanto o espaço importa como meio

das nossas ações e como meio da formação de um sistema de interação

complexo como é o caso de nossa sociedade. Espero assim mostrar de uma perspectiva nova o quão intrínsecos são nossa sociedade, cidades e espaço.

Parte da complexidade que enfrentamos em nossa experiência

cotidiana tem a ver com informação: um excedente de informação produzida em níveis que tornam ‘conhecer os conhecimentos’ e a profu-

são de mensagens que circulam um enorme problema contemporâneo (Castells). A esse problema segue o desafio da seleção da informação,

que cada vez mais parece se impor ao sistema social (Luhmann), amea-

çando sua própria integração, trazendo riscos como as fraturas entre campos especializados e as dificuldades crescentes de conhecer e esta-

belecer conexões entre tantas ações possíveis. Temos mais informação 117

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

e mais opções de interação do que podemos conhecer, dificultando o próprio processo de escolha.

Essa complexidade das possibilidades de informação e interação

tem um nome: entropia, uma tendência à imprevisibilidade, à incomen-

surabilidade, à impossibilidade de anteciparmos o que acontecerá em seguida e de reconhecermos ordem, mesmo que momentânea. Na ver-

dade, o próprio modo como construímos nossas interações depende da seleção entre ações e interlocutores disponíveis. A pergunta que se põe com cada vez mais frequência a cada um de nós parece ser: entre tantas possibilidades de informação, ações e interlocuções, quais serão aque-

las que efetivaremos, com quais atores e em que lugares? A teoria social propõe papéis da linguagem e das tecnologias da comunicação nessas

decisões e passagens entre as ações e interações possíveis e aquelas realizadas. Mas seriam a linguagem e as tecnologias os únicos meios para produzirmos esse tecido conectivo?

Este ensaio se propõe a buscar um lugar para o espaço na cons-

tituição desse tecido: uma presença do espaço urbano mediando a pro-

dução da trama de interações que constitui nossa vida em sociedade. Explora um conceito de um espaço atuado como um sistema de refe-

rências com o papel de informar e absorver nossos cursos de ação de modo a articulá-los entre si. Argumenta que esses fluxos de ações con-

vergentes e divergentes no espaço urbano ocorrem a todo momento, quando pessoas saem de suas casas para seus trabalhos, para buscar

serviços em lugares, ou para interagir. Propõe que o espaço se torna parte da seleção e conversão de ações individuais possíveis em ações sociais realizadas.

Argumentarei finalmente que essa articulação constante entre

nossas ações, alimentada pelo espaço, teria um efeito sobre a complexidade do mundo social: reduziria riscos de uma complexidade im-

possível de ser entendida; reduziria a tendência à imprevisibilidade total de nossas ações; reduziria sua entropia. Mostrarei que, a cada

momento em que percorremos a cidade atuando, estamos participan-

118

Cidade e entropia social

do dessa – frágil, momentânea, mas fundamental – ordenação social

da ação, reduzindo entropia e viabilizando o mundo social em sua continuidade. O capítulo descreve o espaço urbano como uma rede

silenciosamente viva sob o fluxo contínuo das nossas associações – me-

diando ativamente a conectividade de nossos atos, ao mesmo tempo em que, para usar as palavras do filósofo Graham Harman (2002) em outro contexto, desaparece em ‘favor da realidade visível’ que ele ajuda a constituir – a realidade de nossas ações e experiências.

Um mundo social em crescente complexidade ‘Vivemos em um mundo cada vez mais complexo’ – ao menos

essa é a impressão de muitos de nós. Nesse contexto, fazer sentido des-

sa complexidade se torna um desafio. Manuel Castells (1996) relaciona

essa complexidade ao problema do excesso de informação (too much information). Aparentemente, nossa sociedade global produz mais in-

formação do que conseguimos conhecer e lidar. O sociólogo alemão Niklas Luhmann (1995) via essa complexidade de outro modo: o real desafio que ela traz é o excesso de opções (too many choices), o que

nos impõe o problema incontornável da escolha. Luhmann entendia

sociedades como sistemas de ações e de comunicações, diferenciados em uma rede de subsistemas. Os elementos estruturais que viabilizam

esses sistemas em contínua formação seriam frágeis em si, sobretudo

temporalmente: os momentos passageiros, mas sucessivos da escolha e o da conexão entre nossas ações. Para Luhmann, a reprodução de um sistema social demanda a capacidade de formar ligações entre atores e

entre suas ações – um sistema em que elementos (digamos, os atores) podem se ligar a quaisquer outros elementos.

Essas conexões seriam construídas na forma de comunicação.

A comunicação, por sua vez, é medida pelo significado (Sinn); e pela geração da informação, a seleção dentro deste repertório de possibili-

119

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

dades de referências. As estruturas do mundo social seriam, portanto, voláteis: elas existem enquanto ações e comunicações acontecerem. Sistemas sociais precisam assim desenvolver meios capazes de conec-

tar nossas ações ou eventos. Tais conexões só podem ser realizadas no tempo (Luhmann não leva em conta o espaço). Buscamos fazer

conexões o tempo todo, de modo a realizarmos nossas atividades e atuarmos socialmente.

Esse emaranhado de ações e de informação social possui imen-

sa entropia: a tendência a se encontrarem em estados de imprevisibi-

lidade, resultado do caráter individual e da enorme pluralidade de

atores, seus atos e os conteúdos informacionais e motivações desses atos, variáveis no tempo e em sucessão e simultaneidade constante. Em sociedades onde o número de interações ou conexões possíveis é exponencial, em função da imensa quantidade de ações e de informação pro-

duzidas, temos também exponenciada a dificuldade de conhecer essas possibilidades e selecionar entre elas. Temos um aumento de um tipo de complexidade que Luhmann chama de ‘não estruturada’ ou entrópica – uma complexidade informacional (e prática) que pode a qualquer momento cair em incoerência e perda.

Mais do que descrever o curso dos eventos em si, esse é um

cenário desenhado para vermos as possibilidades e riscos silencio-

sos que sociedades enfrentam todo o tempo. Esta visão incomum de Luhmann permite que percebamos o esforço que fazemos diariamen-

te quando atuamos socialmente, escolhendo coisas a fazer e atores e

atividades com os quais vamos interagir, de modo a reduzir os riscos de não conseguirmos interagir, efetuar uma tarefa, cumprir um tra-

balho, a um mínimo que possa ser absorvido (cf. Luhmann, 1995, p.

287). Para entender melhor este cenário, precisamos entender como sistemas sociais tendem à complexidade e à entropia – evocando a

definição pioneira de outro pensador pouco ortodoxo: o teórico da informação C. E. Shannon.

120

Cidade e entropia social

Complexidade e entropia: a definição de Shannon Uma definição inicial de entropia tem a ver com tendência a um

aumento da complexidade e variabilidade de conteúdos – à dificuldade de prever as combinações entre componentes ou eventos. Um dos pio-

neiros da teoria da informação (a cibernética), Shannon (1948) colo-

cou essa definição de modo bastante preciso. O problema fundamental

da comunicação é o de reproduzir em um ponto, de forma exata ou aproximada, uma mensagem selecionada em outro ponto. Frequentemente as mensagens têm significado: elas estão correlacionadas a cer-

tas entidades físicas ou conceituais de acordo com algum sistema. Se

o número de mensagens no conjunto é finito, a entropia é uma medida da probabilidade de uma mensagem (ou peça de informação) ocorrer.

Um exemplo ajudará a esclarecer o que isso quer dizer. No dia-

grama de Shannon (Figura 1), a linha 1 mostra todas as letras indepen-

dentes, com a mesma probabilidade de ocorrer. Na aproximação de ‘pri-

meira ordem’ (2), as letras estão independentes entre si e têm a mesma probabilidade de aparecerem que na língua inglesa, usada por Shannon.

Na seguinte (3), temos a adição da frequência com a qual letras seguem outras letras em inglês, em pares ou diagramas. Na aproximação de ter-

ceira ordem (4), temos letras escolhidas conforme a probabilidade de sua associação com outras, em trios. A linha 5 mostra palavras escolhi-

das de modo independente entre si, mas com a mesma probabilidade de aparecerem na língua inglesa. Finalmente, a linha 6 inclui as probabilidades usuais naquela língua de uma palavra ser seguida por outra específi-

ca. Mesmo sem entrar nos significados das palavras como conteúdos ou representações, uma mensagem próxima do inteligível já emerge. Com

a adição de diferenças na frequência dos componentes e de sua relação de sequência em letras e palavras, temos diferenças de probabilidade de

ocorrência e um aumento da probabilidade de certas combinações. Na

prática, isso significa que os componentes da mensagem se tornam mais previsíveis e ela, mais inteligível. É a redução da entropia.

121

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

Figura 1 – Redução progressiva da entropia na construção de coerência na linguagem Fonte: Shannon (1948)

Mas como esse processo poderia ser rebatido na forma de en-

tropia social? Vimos que um sistema social é formado por ações e interações mediadas por significados e informação. É um sistema de comu-

nicação. As ações das pessoas são caracterizadas por seus conteúdos: ações possuem significados para os atores individualmente, i.e., pos-

suem sentidos pessoais (Weber) e possuem conteúdos informacionais (Luhmann) e práticos (Wittgenstein). Shannon afirma que signos têm

significado quando eles se referem a entidades físicas ou conceituais.

Os significados nas ações produzem diferenças entre elas: significados são produzidos como formas de diferenciação informacional, entre conteúdos e seus sentidos. Em outras palavras, podemos lidar com os sig-

nificados impressos às ações e reconhecer as ações individuais como diferenças de informação.

Quanto maior a diversidade de intenções e possibilidades da

ação, mais entropia. Uma alta entropia caracterizaria ações diversas,

122

Cidade e entropia social

em um estado potencial. Relacionando os insights de Shannon ao de Luhmann, o problema que sociedades enfrentam é exatamente lidar

com o aumento da produção da informação e da ação bem como das

possibilidades exponenciais de conexões entre ações (ou entre atores). O aumento da imprevisibilidade das ações e das possibilidades de es-

colha nos leva hoje a uma sociedade com maior entropia, e é isso que muitos de nós parecem sentir.

A mediação da comunicação se dá pela linguagem e por tecno-

logias da informação – mas serão somente esses os meios de mediação da informação? Quero propor agora tentarmos entender como o espaço urbano poderia ser parte de nossas trocas informacionais na trama de interações que constitui nossa vida coletiva, e que constitui sociedades

como sistemas de interação. Mas qual seria o papel do espaço nesse

sentido? O primeiro passo é entendermos que o espaço também pode ser informação.

O ambiente urbano como informação: cognição situada A ideia de o espaço concreto ser capaz de conter informação

cognitivamente útil para nossas ações vem ganhando grande força recentemente. Uma série de propriedades da cognição vem sendo relacionada ao ambiente espacial.

1. A cognição é situada. Nossa atividade cognitiva ocorre no

contexto de um ambiente real e envolve nossa percepção e ação inerentemente. Enquanto nossos processos cognitivos ocorrem, informação perceptiva continua a ser capturada, de forma a interferir em

nossas ações. Uma das marcas da cognição humana é que ela acontece dissociada de qualquer interação imediata com o ambiente. Nós podemos fazer planos para o futuro e pensar sobre o que aconteceu no passado. As formas em que mergulhamos na atividade cognitiva é ligada a

123

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

nossa interação contínua com o ambiente. A cognição espacial tende a ser situada (Wilson, 2002).

2. A cognição é pressionada pelo tempo. Nossas ações exigem

uma capacidade de resposta em tempo real às demandas do ambiente.

Mais complexidade cognitiva pode ser construída a partir de camadas

sucessivas de interação em tempo real com o contexto (Brooks, 1999; Clark, 1997; Pfeifer; Scheier, 1999). Decisões sobre nossas ações tam-

bém dependem do ambiente. Criamos modelos mentais complexos do ambiente, a partir do qual criamos planos de ação. A pressão do tempo

demanda nossas decisões espaciais. Formas sofisticadas de cognição situada em tempo real acontecem em qualquer atividade que envolva a atualização contínua dos nossos planos de ação, como resposta a con-

dições que mudam rapidamente.

3. Carregamos o ambiente construído com informação – e alivia-

mos nosso trabalho cognitivo com isso. Dependemos de representações

pré-carregadas no nosso contexto, como modo de reduzir nossa carga de trabalho cognitivo, fazendo uso do próprio contexto como informação (Wilson, 2002). Esse ambiente carrega informação sobre possibi-

lidades de ações, atividades e interlocutores existentes. Ele é acessado de acordo com nossa necessidade, de modo que não precisamos memo-

rizá-lo totalmente. Usamos ações epistêmicas para alterar o ambiente, a

fim de reduzir o trabalho cognitivo a ser feito durante nossas ativida-

des (Kirsh; Maglio, 1994). Ainda, esta informação serve como suporte a

inferências sobre a existência de atividades e interlocutores possíveis,

criadas a partir de nosso conhecimento sobre propriedades e padrões espaciais – como uma memória exterior à mente, projetada no espaço (Netto, 2008; 2014).

O carregamento de informação no ambiente pode ser visto

como forma de reduzir o esforço de memorização. Ao invés de tentar-

mos armazenar mentalmente e manipular todos os detalhes relevan-

tes sobre situações possíveis, nós armazenamos e manipulamos esses detalhes no próprio ambiente – algo distinto, mas complementar a um

124

Cidade e entropia social

carregamento feito apenas para evitar manter o que está no ambien-

te na nossa ‘memória de curto prazo’ o tempo todo. Nós recorremos ao ambiente como uma extensão de memória e fonte de informação. Ballard et al. (1997) encontraram traços empíricos de modos como nossos olhos capturam informações sobre conteúdo, forma e localiza-

ção de objetos como parte de uma estratégia de ‘memória mínima’ para tomarmos decisões. O movimento dos nossos corpos no espaço estenderia esse processo de captura de informação do ambiente: nos move-

ríamos fisicamente a fim de buscar soluções (como onde posicionar ou encontrar um objeto), manipulando cognitivamente relações espaciais.

E de modo ainda mais interessante para a presente abordagem, atores

construiriam instruções cognitivas sobre objetos no ambiente de modo indéxico (Glenberg; Robertson, 1999). Mais do que informações obje-

tivas, descarregamos nossas cognições ao carregarmos o ambiente de informação via significados (symbolic off-loading). Fazemos uma transferência semântica da cognição para o espaço, para futura recuperação

(retrieval) (Wilson, 2002). O mundo é usado como “o seu melhor mo-

delo” (Brooks, 1991, p. 139). Objetos e símbolos físicos e suas relações

espaciais podem ser usados para representar domínios abstratos e não espaciais de pensamento. Os objetivos dos atores podem assim estar diretamente ligados à sua situação espacial, apoiando os pensamen-

tos que tentam expressar (ver Iverson; Goldin-Meadow, 1998; Krauss, 1998). Manipulamos o ambiente como forma de pensar nossos problemas práticos (Wilson, 2002).1

4. A cognição serve à ação. A ‘cognição incorporada’, como parte

desta literatura tem chamado, nos leva a considerar mecanismos cog-

nitivos a partir de sua função de servir nossas atividades adaptativas

1 Alguns estudos afirmaram recentemente que a cognição não é uma atividade da mente isolada: a cognição seria distribuída ao longo da situação da interação, incluindo a mente, o corpo e o ambiente, e o ambiente construído seria parte do nosso sistema cognitivo. Portugali e Haken (2011; 2015) teorizam esse fenômeno como uma “rede sinergética inter-representacional”. Em geral, este é um argumento ainda disputado (ver Wilson, 2002).

125

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

(Franklin, 1995). Muitos argumentos sobre as formas nas quais nossa arquitetura cognitiva serve à ação cruzam aspectos antropológicos e

biológicos em nossa evolução. Nossa memória cognitiva “evoluiu a serviço da percepção e da ação em um ambiente tridimensional” (Glenberg

apud Wilson, 2002, p. 631). A memória de curto prazo, por exemplo, não é vista como um sistema alternativo de memória, mas como parte das habilidades específicas da ação. A memória semântica e a formação

de conceitos são igualmente relacionadas a padrões de memória incorporada, diferindo da memória episódica (definida por conteúdos e re-

gistros de eventos localizados espacialmente e temporalmente, como na lembrança) apenas na frequência dos padrões usados ​​em situações cotidianas.

Ainda, o comportamento adaptativo que teria promovido nossa

sobrevivência teria impulsionado a evolução da nossa arquitetura cog-

nitiva. No entanto, o grau de especificidade na relação entre memória

e ação é disputado. Wilson (2002) rejeita a ideia de que percepções

individuais, conceitos e memórias são baseados em padrões de ação particulares. Uma visão alternativa é que a cognição serve a ação mui-

tas vezes através de uma estratégia mais indireta, flexível e sofisticada, em que a informação sobre o mundo externo é armazenada para uso

futuro sem compromissos definitivos sobre o que o uso futuro poderá ser. A informação (espacial) pode ser absorvida por meio de uma varie-

dade de usos para os quais ela não foi originalmente codificada. Novos usos podem ser derivados a partir de uma representação armazenada

do espaço. Eles não precisam ser desencadeados por observação direta do ambiente e suas affordances (Gibson, 1979), enquanto atores pensam sobre uma nova ação ou objetivo.

Nossas representações mentais são muitas vezes escassas e in-

completas, especialmente para objetos (ou lugares) que experiencia-

mos apenas uma vez, ou que experienciamos brevemente. Representações, sejam elas novas e esquemáticas ou bem detalhadas, parecem

ser, em grande medida, livres de uma finalidade específica, ou pelo me-

126

Cidade e entropia social

nos contêm informações para além do necessário durante uma ação ou

propósito específico – “e esta é, sem dúvida, uma estratégia cognitiva adaptativa” (Wilson, 2002, p. 632). O fato de que humanos codificam o mundo usando modelos mentais espacialmente e semanticamente estruturados ofereceria uma enorme vantagem para a flexibilidade na resolução de problemas – mais do que se codificássemos o ambiente ape-

nas para atividades previsíveis. Na verdade, este argumento é chave para entendermos como nossas ações usam o espaço urbano informacional-

mente: codificamos o espaço urbano e construímos representações

mentais (como mostrado no estudo pioneiro de Lynch (1960/1988), entre outros). Este conhecimento não discursivo inclui o conhecimento

de propriedades e de heterogeneidades espaciais. Finalmente, ele nos torna capazes de construir inferências – por exemplo, quando tentamos imaginar uma rua provável onde encontrar certa atividade.2

5. A cognição off-line é baseada no corpo. Uma última condição da

cognição é a de ser profundamente ancorada no corpo, como na forma de habilidades senso-motoras. Estruturas mentais que teriam evoluído para servir a percepção e a ação parecem cooptadas e usadas ‘off-line’,

desconectada das ‘entradas de informação’ que lhes deram origem. A função desses recursos senso-motores é a de gerar simulações ou an-

tecipações de aspectos do mundo físico, como forma de representar informação ou dar suporte a inferências. Embora esse aspecto off-line da cognição tenha despertado menos atenção, evidências de sua exis-

tência vêm se acumulando. Recursos como imagens mentais, sonoras (Reisberg, 1992) e sinestésicas (Parsons et al., 1995) foram demonstrados como representações capazes de preservar funcionalmente pro-

priedades espaciais e semânticas do mundo externo (Kosslyn, 1994). Esse recurso imagético dinâmico em nossas mentes pode ser acionado 2 Diferentemente da explicação dos modos como buscamos o ambiente para derivar informação útil em nossas ações, o argumento sobre as origens evolucionárias da relação entre cognição, ação e ambiente parece encontrar mais dificuldades de demonstração.

127

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

cognitivamente mesmo na ausência de estimulação externa ou da percepção (Farah, 1995; Wilson, 2002).

A memória de trabalho, relacionando o senso-motor e a memó-

ria de curta duração, seria capaz de responder por grandes volumes de informação, incluindo a linguagem e nosso descarregamento simbólico no ambiente. No entanto, ao invés de descarregar totalmente no ambiente, a memória de trabalho também se faz valer dos sistemas per-

ceptivo e de controle motor. Outro recurso envolve a memória episódi-

ca, contando com registros de eventos espacialmente e temporalmente

localizados evocados na lembrança e capazes de recriar impressões

visuais, sinestésicas e espaciais, especialmente antes de organizadas como memória semântica.

A memória implícita, por sua vez, é uma forma incorporada de

conhecimento que nos dá suporte quando aprendemos novas habili-

dades. A automatização dessas práticas alivia a carga cognitiva e o que Wilson (2002) chama de gargalo representacional – o fato de que nos-

sa capacidade de memória enfrenta limites, o que nos leva a estender nossos recursos cognitivos e mnemônicos ao próprio ambiente. Wil-

son argumenta que este recurso envolve explorar a previsibilidade nas situações mais frequentes – o que ganha um sentido especial quando

lidamos com o problema da entropia social e minha proposição de uso

do espaço na sua redução. Mas esse recurso capaz de gerar um controle fino das nossas ações tem limitações frente a situações espacialmen-

te variadas, sendo, portanto, complementar aos recursos semânticos ligados a experiências corporais no ambiente, como as memórias de trabalho e episódicas. Finalmente, há evidências de que nosso raciocínio e resolução de problemas faz uso intenso de simulações senso-motoras. “Modelos mentais, particularmente aqueles espaciais, geralmente

melhoram a capacidade de resolver problemas relativos a abordagens abstratas.” (Wilson, 2002, p. 634.)

Outras tendências para entendermos as relações entre cognição

e ambiente fazem uso da linguística, amarrando sintaxe e semântica

128

Cidade e entropia social

a partir de esquemas imagéticos capazes de incorporar conhecimento

do mundo físico, como forma de codificar relações entre componentes. Lakoff e Johnson (1999), entre outros, argumentam que modelos men-

tais são baseados em uma modelagem do mundo físico e se amparam em analogias entre domínios abstratos e concretos. A própria comuni-

cação é entendida como transferência de matéria entre elementos, lu-

gares ou entidades distintas. O que teorias da cognição situada não fa-

zem é reconhecer o espaço como parte da capacidade de processamento

de informações ativo na própria emergência social das nossas ações: ou

seja, nos modos como nossos atos se conectam, formando sistemas de interação. Vejamos como este seria o caso.

O espaço como referência para a ação Minha hipótese inicial é a de que o espaço carregado de infor-

mação por nossas próprias práticas (Netto, 2008; 2014) tem um papel de aliviar o ‘gargalo representacional’, uma vez que os nexos de arranjo

semântico, projetado na forma da cidade e suas atividades e conteúdos,

são lidos antes e durante nossas ações e experiências em curso. Essa camada semântica do espaço é lida em lugares e suas relações espa-

ciais, simbólicas e funcionais, sendo derivada também de sua relação com padrões físicos, como a acessibilidade e centralidade. Essa informa-

ção pode ser evocada em nossas memórias e usada quando precisamos fazer inferências para agir, como a respeito de onde encontrar certas situações ou lugares.

Proponho explorar essa condição informacional do espaço ini-

ciando pelo posicionamento dos corpos nos espaços compartilhados até chegarmos às tramas das comunicações e da circulação das pala-

vras, que constroem conexões entre ações e relações entre eventos.

Estamos lidando aqui com processos parcialmente invisíveis – como 129

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

o geógrafo Derek Gregory (1978, p.  150) colocou em outro contexto, trata-se de fenômenos ou estruturas que estão além da observação. Afi-

nal, ações são voláteis e não deixam necessariamente traços no tempo

-espaço. Lembrando Andrew Sayer (1992, p. 288), essas relações ‘não

nos são dadas com transparência’. Para ‘vermos’ esses processos como ‘candidatos à existência’, precisamos da abstração, um modo de propor ideias sobre coisas ainda sem conteúdo empírico reconhecível, incluindo suas contingências e possíveis relações causais. Proponho imaginar-

mos as ações das pessoas como um grande emaranhado de linhas, com

imensa complexidade, ainda impossível de ser descrito com precisão. Precisamos de aproximações.

Sabemos que o espaço urbano é produzido para receber ativida-

des sociais. Mas as teorias da cognição situada evidenciam muito mais: o espaço seria semantizado por nossas práticas. Os lugares de nossas

atividades se diferenciam, adquirindo um nível de precisão informacio-

nal semelhante à definição de categorias das nossas ações, construídas como atividades socialmente reconhecidas – e localizadas. Este nível

de diferenciação se relaciona com a morfologia do espaço físico, para ir além dela: o espaço é diferenciado também de forma prática e informacional (Figura 2).

Figura 2 – Diferenciais semânticos: como um sistema de diferenças ou um código de instruções para a ação coletiva, o espaço urbano se diferencia sintaticamente a partir da acessibilidade (esquerda) e semanticamente a partir das nossas práticas nos lugares (centro e direita). [Imagem: Netto]

130

Cidade e entropia social

Como ocorre essa construção de significado no espaço? Como

ela se torna parte das nossas ações no tempo? A construção informa-

cional ocorre exatamente no momento da nossa apropriação do espaço.

Lemos nos espaços arquitetônico e urbano os significados que nossas ações neles produzem. O espaço não apenas representa a atividade: ele

é atuado e, assim, carregado de significados durante nossa atuação e

interação. Significados passam a ser associados àquele espaço como

traços nele deixados por nossos atos e comportamentos. Chamei essa dimensão do espaço arquitetônico de espaço semântico: espaços “que-

rem dizer” tanto quanto nossas ações, precisamente por estarem semantizados por nossas ações (Netto, 2014).

Um passo adiante: o espaço é produzido e atuado como informa-

ção estruturada; o espaço urbano forma um sistema heterogêneo, isto é,

definido por diferenças (físicas e cognitivas), chegando mesmo a gerar padrões, diferenças sistemáticas, reconhecíveis. Essa estruturação material da informação social é muito importante para nossas ações.

Primeiramente, a ação é temporalizada e espacializada – ancora-

da a um ponto temporal e espacial específico. Segundo, essa localização

permite a conectividade entre ações – a possibilidade de sua articulação. Espacializando Luhmann, a ação transcende sua elusividade tem-

poral através de ligações espaciais a outras ações – a ação escapa de sua “transitoriedade momentânea, para ir além de si mesma” (Luhmann,

1995, p. 289). Na prática, isso significa que escolhemos lugares e inter-

locutores para atuarmos cooperadamente por um período de tempo.

Como um filtro de vórtices, o espaço urbano tem os papéis de absorver

nossas linhas de ação, com suas motivações e conteúdos distintos, e de articulá-las entre si. Esses fluxos de ações convergentes e divergentes no espaço, portanto coordenados materialmente e informacionalmen-

te, ocorrem a cada momento, quando pessoas saem de suas casas para seus trabalhos, para buscar serviços e produtos em lugares, ou quan-

do saem para socializar, frequentemente sem conhecimento prévio da existência desses interlocutores ou lugares (Figura 3).

131

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

Figura 3 – Como um sistema de referências, o espaço urbano converge linhas de ação no tempo (tn) e espaço e seus lugares (Ln). [Imagem: Netto e Bernstein]

O espaço se torna um frame ou sistema de referências, parte

das conexões entre nossos atos, da sua articulação na forma de associações, na geração recursiva das estruturas momentâneas da ação social. Essa amarração espacial da ação é de absoluta importância

para o sistema social: sem o espaço urbano em seu balanço de complexidade e estrutura, heterogeneidade e padrão, nossas ações dificil-

mente atingiriam o estado de diferenciação e interdependência que nossas sociedades produziram historicamente. Em um cenário con-

trafatual, em um espaço não urbano, nossas ações poderiam se tornar

um emaranhado sem estrutura, dependentes de uma representação mental absolutamente completa desse espaço – dado que diferenças não seriam reconhecíveis na forma de estruturas heterogêneas fisica-

mente e informacionalmente. Inferências espaciais deduzidas através

do nosso conhecimento profundo das propriedades espaciais sobre onde é mais provável encontrar certas atividades seriam impossíveis.

132

Cidade e entropia social

Estaríamos imersos na fricção da distância em espaços sem padrões locacionais que emergem na forma de centralidades e reduzem nos-

sos esforços, amplificando o potencial de complementaridade entre

nossas ações. Em um mundo de espaços inteiramente caóticos, não estruturados, não urbanos, nossas ações estariam perdidas em en-

tropia. Mas como podemos explorar mais essa condição espacial da ação social?

Espaço e a redução da entropia social Vimos que tanto a dimensão semântica quanto a dimensão ma-

terial do espaço são fundamentais para o problema da conexão das

ações. A ação é selecionada dentro de um conjunto de possíveis ações, atores e lugares. O ambiente urbano a nossa volta precisa ser estrutu-

rado o suficiente para permitir essa seleção – e não apenas aquela que

será escolhida, uma vez que ela não é necessariamente conhecida antes da ação. Como coloca Shannon (1948) sobre a transmissão de mensagens, o problema fundamental da interação começa antes da interação

real: começa nas condições para que a interação aconteça. Os atores devem ser capazes de conhecer e selecionar entre os possíveis interlo-

cutores. Precisam estar espacialmente copresentes para grande parte dessas ações se realizarem – e, portanto, para essas conexões acontece-

rem. No processo de seleção e conexão, somos guiados pelos significados

no espaço. Como evento social, essa conexão é efetivada na forma da

comunicação. São os lugares e seus significados as peças conjuntivas que amparam a formação dessas tramas. O espaço é parte fundamental

do tecido da comunicação – parte do ambiente de sistemas sociais, mediando sua conectividade o tempo todo.

Naturalmente, nem toda ação precisa relacionar-se primeiro a

um espaço ou uma posição no espaço (um lugar) a fim de se relacionar

com outra ação (ou ator). Também interagimos através de outros meios 133

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

– por exemplo, chamando uma pessoa ao telefone, ou indo encontrá-la

diretamente, depois que a conhecemos. Existem diferentes níveis de presença do espaço em mediar a criação de encontros e comunicação. Antes da fase da relação social estar estabelecida em repetidas inte-

rações, o espaço participa ativamente, oferecendo as condições para

as primeiras trocas – como quando aprendemos sobre a existência de

situações sociais e participarmos delas em função do quão acessíveis espacialmente elas são. Uma vez que conhecemos nosso interlocutor, o espaço segue ativo – mais do que um pano de fundo: lugares para a

ação são definidos em função de sua localização, facilitando ações complementares entre atores.

Luhmann (1995, p. 285) nos ensina que a reprodução social

exige que a próxima ação ou o próximo ator esteja dentro do alcance,

por assim dizer, como uma resposta a uma expectativa. “Porque a interdependência completa [das ações] é inatingível, interdependências

só podem surgir por meio da seleção. Interdependências estabelecidas

servem como perspectivas e entraves para mais seleções que poderiam se ligar a elas.” (Luhmann, 1995, p. 284.) Na verdade, o espaço precisa ser estruturado materialmente e semanticamente de modo a permitir

que uma ação seja selecionada entre ações possíveis e seja viável em sua continuidade. E aqui, padrões de localização importam: padrões

urbanos significam que as atividades estão dispostas de maneiras que são reconhecíveis, acessíveis, quase pré-selecionadas. A própria ma-

terialização de atividades como oportunidades de interação em uma estrutura espacial como a cidade já é uma forma de seleção: as ativi-

dades distribuem-se como expressões de agências sociais, de acordo com níveis de acessibilidade, valores do solo, complementaridade, affordance ou alcançabilidade. Em um primeiro momento, a estrutura

urbana mantém o tempo todo uma gama de possibilidades de sele-

ção. Em um segundo momento, a estrutura define mais precisamente como atores se relacionam, superando a distância espacial e temporal

– ligando a comunicação à comunicação. Ao procurarmos por lugares,

134

Cidade e entropia social

nossas ações se alinhariam no lugar da interação. O espaço se torna parte da conversão de atos individuais em ação social – constantemente (Netto, 2014).

lugar como contexto para a comunicação

ação individual → lugar [contexto] → comunicação lugar como conexão entre ações ação individual → lugar [conexão] → outros atores e lugares no tempo Sem essa ligação temporal e espacial, o sistema social e até mes-

mo a ação correriam o risco de desaparecer com o último evento rea-

lizado – haveria o risco de desconexão dos cursos da ação. A estrutura urbana oferece informação para o sistema social produzir e reproduzir ações dentro de categorias existentes ou de novas categorias. A formação dessas estruturas espaciais permite aos sistemas sociais construí-

rem, a partir dela, tanto complexidade e novidade quanto previsibilidade e ordem.

Vimos que, para Luhmann (1995), nossas interações têm valor

estrutural porque representam uma seleção a partir de possibilidades

combinatórias. A estrutura da ação se define no modo como as interações são conhecidas, (pré-)selecionadas e conduzidas dentro do sistema. E essa restrição é construída pelo reconhecimento do significado

das ações e dos lugares da ação. O significado de uma ação e seu lugar de realização motivam e tornam a conectividade possível. Estruturas

espaciais guardam significados que a comunicação preserva – como verdadeiras estruturas semânticas. Atendendo a condição da informação em Shannon e seleção em Luhmann, a formação de estruturas urba-

nas elimina a situação em que todas as ligações entre ações individuais seriam igualmente possíveis ou prováveis (entropia). Linearizando na

teoria um processo que na realidade ocorre simultaneamente, o ciclo da entropia social teria a seguinte forma:

135

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

(a) Imaginemos as ações como linhas inicialmente em um estado livre de espaço – um estado potencial de alta entropia.

As cores das linhas na Figura 4 representam orientações

das ações.

(b) As ações potenciais convergem no sistema de conteúdos informacionais que é o espaço urbano (representado pela faixa vertical na Figura 4) e seu arranjo em lugares e edifica-

ções. As cores das linhas têm diferenças sutis em relação às cores dos lugares onde elas ‘encaixam’. A convergência se dá por aproximação.

(c) O emaranhado inicial de ações potenciais se converte em

um sistema coordenado momentaneamente: um sistema de interações.

(d) Após cada evento social realizado espacialmente, as linhas de ação mudam de acordo com novas intenções ou orientações dos atores. As cores das linhas se alteram e se trans-

formam em outras. Nossas ações entram novamente em um estado de imprevisibilidade e entropia...

(e) ...Até nos referirmos novamente ao espaço como forma de redução de entropia via conectividade das nossas ações, reiniciando o ciclo (Figura 4).

136

Cidade e entropia social

Figura 4 – O ciclo da entropia social e espaço: ações potenciais em um estado livre de espaço, em alta imprevisibilidade e entropia, convergem em lugares e transicionam para um sistema de interações momentaneamente ordenado – para então mergulhar novamente em entropia. [Imagem: Netto e Cacholas]

Esses momentos são teóricos, naturalmente: tudo isso ocor-

reria o tempo todo, simultaneamente, na realidade. Esse ciclo é uma metáfora do papel do espaço na redução de entropia da ação: de um

emaranhado complexo em direção a fluxos mais ordenados, conectados, onde as ações individuais convergem para se coordenar em interações em lugares urbanos. Em outras palavras, nossas ações em

estado potencial são naturalmente diversas entre si e imprevisíveis em suas conexões a outras ações e atores. Elas procuram lugares

como meio de selecionar e conectar-se – e os lugares efetivam essas conexões. Linhas distintas de ações potenciais convergem por aproximação em um lugar de atividade, para sua realização. A interação de-

137

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

manda níveis de cooperação que aproximam os conteúdos das ações e reduzem suas diferenças. Uma vez terminada a interação, novas intenções diferenciam as linhas de ação em direção a novas possibilida-

des. Conexões reais acontecerão somente se todas as outras conexões possíveis forem excluídas na seleção. Portanto, de todas as conexões

possíveis, algumas devem se tornar acessíveis, e isso ocorre devido a propriedades específicas dos lugares da ação: seus conteúdos práticos e semânticos e sua acessibilidade. A estrutura urbana, na forma

de uma distribuição heterogênea de atividades no espaço, traz tanto

possibilidades quanto níveis de restrição à conectividade das ações. Sem essa estrutura material e semântica, não poderíamos nem mes-

mo determinar se as ações estariam ou não em curso (cf. Luhmann, 1995). O espaço urbano em interface com o sistema de ações transfor-

ma complexidade desestruturada em complexidade estruturada, or-

denando recursivamente as ações variáveis no tempo. Interpretando Luhmann em outro contexto, apenas por meio de uma estruturação

que restringe as quase infinitas possibilidades combinatórias da intera-

ção, um sistema pode adquirir ‘orientação interna’ suficiente para sua própria reprodução.

Cidades como moduladores da ação Conectemos finalmente Shannon a Luhmann, interpretando

seus insights para entender como sociedades lidam com informação e complexidade – e qual seria o papel das cidades nesses processos.

A diferenciação entre possibilidades da ação, definida por motivações pessoais, acompanha a diferenciação da probabilidade de que certas

ações venham a ocorrer. Sugiro que a seleção da ação ocorre pela (i)

disponibilidade de ação similar (similaridade entre ações) no espaço; (ii) probabilidade de certa ação seguir outra no tempo a partir de sua

complementaridade social ou funcional; e (iii) probabilidade de uma

138

Cidade e entropia social

ação buscar outra a partir de sua proximidade a uma ação realizada an-

teriormente. Cidades são nexos de complementaridade, temporalidade e proximidade espacial que nos ajudam a definir seleções e a construir a transição entre ações potenciais (em enorme variedade e igual proba-

bilidade de ocorrência) e ações realizadas em sequências no tempo e lugares próximos no espaço.

Outro cenário contrafatual nos ajuda a entender esse papel da

cidade. Um espaço livre de estruturas e padrões apresentaria um fator de probabilidade inteiramente homogênea às conexões: ações pode-

riam ocorrer em qualquer lugar. Quando o espaço adquire conteúdos

práticos e cognitivos distintos, oferece diferenças de probabilidade para nossas sequências de ações. Quando esses conteúdos se relacionam temporalmente por complementaridade funcional, há o potencial

de uma nova ordem de probabilidades sugerindo cadeias. Quando o espaço é estruturado ao longo de padrões de acessibilidade e localização definidos por heterogeneidade física, prática e cognitiva (e.g., defi-

nindo espaços mais acessíveis e densos de conteúdos e atividades que outros), ele atinge uma ordem mais profunda na redução de entropia,

sugerindo e materializando conexões mais prováveis – i.e., informacionalmente mais inteligíveis, temporalmente menos custosas, prati-

camente mais fluidas. Atividades localizadas no sistema urbano são a

expressão e projeção de ações e suas probabilidades de relação. Como afirmei, padrões urbanos são fatores de seleção – eles criam diferen-

ciais de probabilidade de ações em um sistema social, aumentando a chance de certas ações serem escolhidas sobre outras.

O espaço urbano tem o efeito de uma espécie de modulação

temporal e funcional na passagem entre ações potenciais e conexões reais entre interlocutores fundamental na emergência das voláteis es-

truturas da ação social. Esse efeito é a capacidade de filtragem que o

espaço oferece, envolvendo redução da entropia e da imprevisibilidade da ação, e depende das condições urbanas: depende da própria diver-

sidade do sistema de atividades materializadas no espaço urbano. Ou 139

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

dito de modo mais simples, a capacidade de evitar perdas de variação

é função da diversidade das atividades. E a diversidade – assim nos mostra a economia urbana – é função do porte de cidades e densidade urbanas. Cidades maiores e mais bem articuladas internamente proces-

sariam e converteriam entropia em um sistema conectivo com menos

perdas do que cidades menores, transformando grande oferta de ações

em diferenças de probabilidade – uma aproximação entre potencial de

ação às ações disponíveis às conexões diversas. Cidades estão imersas em entropia e fazem parte do modo como sistemas sociais lidam com sua própria complexidade.

Uma conclusão momentânea sobre cidades e entropia social A intenção deste ensaio foi explorar uma presença inteiramente

ignorada do espaço na ação social – como um sistema de referências à ação, ativo na sua ordenação na forma de um sistema de interações.

O espaço é entendido aqui como um sistema de conexão entre nossas ações cuja materialidade é propícia para essa organização sucessiva, sem fim; um ambiente semântico para a produção e o controle da complexidade social. Sua durabilidade e moldagem em estruturas hetero-

gêneas garantem que o espaço esteja sempre ativo enquanto seus lu-

gares estiverem sendo atuados, semantizados como palco de práticas sociais. Suas estruturas propiciam inteligibilidade à nossa busca por conexões. O espaço se diferencia fisicamente e cognitivamente: reco-

nhecemos centralidades, lugares mais movimentados e diversos, áreas segregadas e socialmente homogêneas, espaços instrumentais para o consumo, lugares com forte papel para grupos e práticas, incluindo

simbólicas. Conseguimos ler essas diferenças no espaço e nos relacionar com elas para buscar atividades de interesse. O espaço passa as-

sim a orientar nossas ações – apontando posições onde elas poderão

140

Cidade e entropia social

se desenvolver e se conectar às ações de outros atores. O espaço passa

a ser constantemente parte da conversão da possibilidade de ações em interações sociais reais.

Essa articulação e conexão entre nossas ações, proporcionadas

pelo espaço urbano e suas estruturas, têm o efeito de traduzir a imensa

imprevisibilidade do emaranhado das ações, motivações e diferenças informacionais em fluxos de ação coordenada. A cada momento em que percorremos o espaço urbano realizando nossos atos, estamos partici-

pando dessa relativa coordenação da ação coletiva, reduzindo entropia. O espaço é produzido – lembrando Safatle (2015, p.  23) sobre a me-

táfora do corpo político – como uma forma de relacionar sistemas de

referências distintos que devem ser articulados de modo que um ato ou evento tenha desdobramento; isto é, ganhe existência e continuidade no mundo social. Em outras palavras, o espaço é um frame de referên-

cias que oferece nexos à prática e toma parte no ordenamento momentâneo das associações entre atores.

Esse frame de referências é produzido e atuado como um con-

junto de bits de informação semantizados no espaço, e termina indexando sequências de atos e interações em fluxos relativamente coe-

rentes dentro da perspectiva de cada ator, em suas associações a outros atores. A estruturação tanto física quanto informacional do espaço são

meios de expressar e atingir o ciclo da entropia social, viabilizando a própria reprodução social. Minha abordagem buscou entender como o

espaço se torna um tecido referencial, um ‘circuito de significados’ que articula eventos, amparando nossas ações também interpretativamen-

te. Para tanto, propôs os modos como o espaço é parte informacional da organização contínua de uma sociedade, gerando nexos entre even-

tos – uma visão do espaço urbano e da cidade como parte da semântica

generativa da ação –, e parte dos sistemas informacionais que estruturam a realidade social.

141

&

QUALIDADE do lugar CULTURA contemporânea

Referências BALLARD, D. H. et al. Deictic codes for the embodiment of cognition. Behavioral & Brain Sciences, v. 20, p. 723-767, 1997.

BERGSON, H. Duração e simultaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BROOKS, R. Cambrian intelligence: the early history of the new AI. Cambridge, MA: MIT Press, 1999.

______. Intelligence without representation. Artificial Intelligence Journal, v. 47, p. 139-160, 1991.

CASTELLS, M. The Information Age: economy, society and culture. v. 1. The rise of the network society. Londres: Blackwell, 1996.

CLARK, A. Being there: putting brain, body, and world together again. Cambridge, MA: MIT Press, 1997.

FARAH, M. J. The neural bases of mental imagery. In: GAZZANIGA, M.

S. (org.). The cognitive neurosciences. Cambridge, MA: MIT Press, 1995, p. 963-975.

FRANKLIN, S. Artificial minds. Cambridge, MA: MIT Press, 1995.

GIBSON, J. The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton-Mifflin, 1979.

GLENBERG, A. M.; ROBERTSON, D. A. Indexical understanding of instructions. Discourse Processes, v. 28, p. 1-26, 1999.

GREGORY, D. Ideology, science and human geography. Londres: Hutchinson University Library, 1978.

HARMAN, G. Tool-being: Heidegger and the metaphysics of objects. Chicago: Open Court, 2002.

IVERSON, J. M.; GOLDIN-MEADOW, S. Why people gesture when they speak. Nature, v. 396, p. 228, 1988.

KIRSH, D.; MAGLIO, P. On distinguishing epistemic from pragmatic action. Cognitive Science, v. 18, p. 513-549, 1994.

KOSSLYN, S. M. Image and brain: the resolution of the imagery debate. 142

Cambridge, MA: MIT Press, 1994.

Cidade e entropia social

KRAUSS, R. M. Why do we gesture when we speak? Current Directions in Psychological Science, v. 7, p. 54-60, 1998.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: the embodied mind

and its challenge to western thought. Nova York: Basic Books, 1999.

LUHMANN, N. Social systems. Stanford: University Press, 1995.

LYNCH, K. A imagem da cidade (1960). São Paulo: Martins Fontes, 1988. NETTO, V. M. Cidade & sociedade: as tramas da prática e seus espaços. Editora Sulina: Porto Alegre, 2014.

______. Entre espaços urbanos e digitais, ou o desdobramento da prática. Urbe – Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 3, n. 1, p. 11-26, jan./ jun. 2011.

______. Practice, space, and the duality of meaning. Environment and Planning D: Society and Space, v. 26, p. 359-379, 2008.

PARSONS, L. M. et al. Use of implicit motor imagery for visual shape discrimination as revealed by PET. Nature, v. 375, p. 54-58, 1995.

PFEIFER, R.; SCHEIER, C. Understanding intelligence. Cambridge, MA: MIT Press, 1999.

REISBERG, D. (org.). Auditory imagery. Hillsdale, NJ: Erlbaum, 1992.

SAFATLE, V. O circuito do afeto: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

SAYER, A. Method in social science: a realist approach. 2. ed. Londres: Routledge, 1992.

SHANNON, C. E. A mathematical theory of communication. Bell System Technical Journal, jul./out. 1948.

WILSON, M. Six views of embodied cognition. Psychonomic Bulletin & Review, v. 9, n. 4, p. 625-636, 2002.

143

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.