Cidade emoção: o ver e o viver urbano nas representações de um grupo de jovens do Rio de Janeiro

June 1, 2017 | Autor: Glauci Coelho | Categoria: Emotion, Territoriality, Territorio, Paisagem Urbana, Etnografia Urbana, Análise Urbana
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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CIDADE EMOÇÃO O VER E O VIVER URBANO NAS REPRESENTAÇÕES DE UM GRUPO DE JOVENS DO RIO DE JANEIRO

por

Glaucineide do Nascimento Coelho

Programa de Pós-Graduação em Urbanismo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo com vista à obtenção do grau de Doutora em Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo.

Julho, 2015

© COELHO, Glauci, 2015

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Exemplar submetido à banca com vista à obtenção do grau de Doutor em Urbanismo pelo Programa de PósGraduação em Urbanismo.

CIP - Catalogação na Publicação

C672c

Coelho, Glaucineide do Nascimento Cidade emoção: o ver e o viver urbano nas representações de um grupo de jovens do Rio de Janeiro / Glaucineide do Nascimento Coelho. -- Rio de Janeiro, 2015. 279 f. Orientadora: Luciana da Silva Andrade. Coorientadora: Vera M. R. de Vasconcellos. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de PósGraduação em Urbanismo, 2015. 1. conhecimento emocional. 2. paisagem urbana. 3. território. 4. análise urbana. 5. etnografia urbana. I. Andrade, Luciana da Silva, orient. II. Vasconcellos, Vera M. R. de, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pela autora.

Projeto Gráfico e Diagramação: Glauci Coelho Fotos da Capa: Arquivo pessoal da autora

CIDADE EMOÇÃO O VER E O VIVER URBANO NAS REPRESENTAÇÕES DE UM GRUPO DE JOVENS DO RIO DE JANEIRO por Glaucineide do Nascimento Coelho Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo com vista à obtenção do grau de Doutora em Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. avaliada por

Orientadora Luciana da Silva Andrade Arquiteta, prof.ª Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/PROURB/UFRJ

Coorientadora Vera M. R. de Vasconcellos Psicóloga, prof.ª Faculdade de Educação/PROPED/UERJ

Membro Interno Raquel Hemerly Tardin Coelho Arquiteta, prof.ª Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/PROURB/UFRJ

Membro Interno Maria Cristina Nascentes Cabral Arquiteta, prof.ªFaculdade de Arquitetura e Urbanismo/PROURB/UFRJ

Membro Externo Maria Laís Pereira da Silva Socióloga, prof.ª Escola de Arquitetura e Urbanismo/PPGAU/UFF

Membro Externo Denise de Alcântara Pereira Arquiteta, Prof.ª Departamento de Arquitetura e Urbanismo-IT/PPGDT/UFRRJ

Rio de Janeiro – julho de 2015

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CIDADE EMOÇÃO

RESUMO O que nos move é conjecturar como, a partir das emoções, indivíduos imersos em microgrupos são capazes de construir, em processos interacionais no e com o espaço público, o conceito sobre a cidade, ao aí territorializarem suas identidades. Para a caracterização desta cidade, que convencionamos chamar “cidade emoção”, buscamos coletar as representações sobre a mesma, expressas em desenhos e falas de um grupo de dez jovens entre 15 e 17 anos, moradores da comunidade da Carobinha localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Para isso, estabelecemos uma rotina teórico-metodológica que configura um método de análise urbana pautado na observação e apreensão das paisagens e das territorialidades no espaço-tempo da cidade como instâncias do ver e do viver. Partimos do entendimento que as imagens que representam um lugar são constituídas em interações com o outro, ou seja, elas são fruto de experiências que ficam na memória, as quais nos reportamos como recurso informacional para comunicarmos a cidade apreendida como real. Essas informações alimentam o imaginário coletivo dos habitantes, partícipes de microgrupos diversos. O objetivo central é, a partir de então, compreender o espaço percebido e vivenciado do Rio de Janeiro, através do pensamento reflexivo desenhado entre os trajetos físicos e cognitivos desses jovens, que apresentam e representam as ambiências urbanas à medida que revelam as identidades dos territórios de suas experiências. O método de análise proposto desvela ainda objetivos específicos que complementam o estudo, ao destacar os elementos estruturais que conformam a paisagem e os de significação do lugar que conformam as territorialidades. A aplicação do método deu-se em incursões etnográficas através de percursos comentados, que permitem revelar, via falas e representações gráficas, as emoções que emergem da memória coletiva desses jovens, nos ensinando um pouco sobre a sua cidade emoção. A relevância está em que o método de análise desenvolvido se coloque como um caminho alternativo na construção de propostas projetuais para a cidade, focadas nas relações que as coletividades estabelecem com seus territórios de origem, mas também com aqueles que lhes servem de referência e suporte para o delineamento das suas identidades, na perspectiva postulada de que tanto a materialidade da cidade como suas significações estão sujeitas às diversas intencionalidades, fazendo do conceito de cidade a expressão das coletividades que a percebem e vivenciam enquanto lugar. Palavras-chaves: conhecimento emocional; paisagem urbana; território; análise urbana; etnografia urbana.

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RÉSUMÉ Ce qui nous motive c’est d’imaginer comment, à partir des émotions, les personnes insérées dans des microgroupes sont capables de construire un concept sur la ville, en interagissant dans l’espace publique pour y marquer leurs identités. Afin de caractériser cette ville que nous avons décidé d’appeler “ville émotion”, nous avons collecté des représentations d’elle même exprimées par les dessins et les paroles d’un groupe d’une dizaine de jeunes entre 15 et 17 ans, habitant la “Comunidade da Carobinha” (un bidonville), dans la zone ouest de la ville de Rio de Janeiro. Pour cela, nous avons établi une routine théorique et méthodologique qui configure une méthode d’analyse urbaine basée sur l’observation et la saisie des paysages et territoires, dans le espace-temps de la ville comme des instances du voir et du vivre. Notre point de départ est que les images qui représentent un lieu sont constituées par des interactions avec l’autre; en d’autres termes, elles sont le fruit d’expériences qui restent en mémoire et auxquelles nous nous reportons comme un recours informationnel afin de transmettre la ville appréhendée comme étant réelle. Ces informations alimentent l’imaginaire collectif des habitants, participants de divers microgroupes. Par la suite, l’objectif principal sera de comprendre l’espace de la ville de Rio de Janeiro, tel comme il est perçu et vécu, à travers la pensée réfléchie tracée entre les trajets physiques et cognitifs de ces jeunes qui présentent et représentent les ambiances urbaines, dans la mesure où ils révèlent les identités des territoires de leurs expériences. La méthode d’analyse proposée dévoile encore les objectifs spécifiques qui complètent l’étude, en soulignant les éléments structurels qui configurent le paysage et ceux de la signification du lieu, qui configurent les territoires. L’application de la méthode s’est produite par des incursions ethnographiques à travers des parcours commentés, permettant de révéler par la parole et les représentations graphiques, les émotions émergeant de la mémoire collective de ces jeunes, en nous apprenant un peu sur leur ville émotion. L’importance de la méthode d’analyse développée est qu’elle se place comme une alternative dans la construction des propositions des projets pour la ville, focalisées pas seulement sur les relations établies par les collectivités avec leurs territoires d’origine, mais aussi sur ceux qui leur servent de référence et support pour la construction de leurs identités, dans la perspective que, aussi bien la matérialité de la ville comme leurs significations sont soumis à des intentions diverses, faisant du concept de ville l’expression des collectivités qui la perçoivent et la vivent en tant que lieu. Mots-clefs: connaissance émotionnelle; paysage urbain, territoire, analyse urbaine; ethnographie urbaine UFRJ I FAU I PROURB

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RESUMEN Lo que nos estimula es coyunturar cómo, a partir de emociones, indivíduos sumergidos en microgrupos son capaces de construir, en procesos de interacción dentro y con el espacio público, el concepto sobre ciudad, al territorializar sus identidades. Para la caracterización de esta ciudad, que convencionamos denominar “ciudad emoción”, buscamos reunir representaciones sobre la misma, expresadas en dibujos y frases dichas de un grupo de diez jóvenes entre 15 y 17 años, residentes de la comunidad Carobinha, ubicada en la zona oeste de la ciudad de Río de Janeiro. Para eso, establecimos una rutina teóricometodológica que configura un método de análisis urbano sobre la observación y aprensión del paisaje y territorialidades en espacio-tiempo de la ciudad como instancias del ver y del vivir. Partimos de un entendimiento de que las imágenes que representan un lugar son constituídas en interacciones del uno con el otro, o sea, son fruto de experiencias que permanecen en la memoria, las cuales nos reportamos como recurso informacional para comunicarnos la ciudad aprendida como real. Esas informaciones alimentan el imaginario colectivo de los habitantes, partícipes de diversos microgrupos. El objetivo central es, a partir de entonces, comprender el espacio percibido y vivenciado de Río de Janeiro, a través del pensamiento reflexivo diseñado entre trayectos físicos y cognitivos de esos jóvenes, que presentan y representan las ambiencias urbanas a medida que revelan las identidades de los territorios de sus experiencias. El método de análisis propuesto revela aún objetivos específicos que complementan el estudio, al destacar los elementos estructurales que conforman el paisaje y los de significado del lugar que conforman las territorialidades. La aplicación del método se dió en incursiones etnográficas a través de recorridos comentados, que permiten revelar, a través de frases dichas y representaciones gráficas, las emociones que provienen de la memoria colectiva de esos jóvenes, enseñándonos un poco sobre su ciudad emoción. La relevancia está en que el método de análisis desarrollado sea colocado como un camino alternativo en la construcción de propuestas proyectuales para la ciudad, focadas en relaciones que las colectividades estabelecen con sus territorios de origen, pero tambiém con aquellos que les sirven de referencia y soporte para el delineamiento de sus identidades, en la perspectiva postulada de que tanto la materialidad de la ciudad como sus significados están sujetados a las diversas intencionalidades, haciendo del concepto de ciudad la expresión de las colectividades que la perciben y la sienten como lugar. Palabras clave: conocimiento emocional; paisaje urbano; territorio; análisis urbano; etnografía urbana.

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ABSTRACT What move us it is just think how to start with emotions, persons in micro-groups are capable of construct interaction process, at and with public space the concept about the city, at there territorialize their identities. To characterization of this city we usually call “emotion city”, we collect representations about it same, express at drawings and speeches a group of ten teenagers (15-17 years old kids), residents in “Carobinha community1” localized in the West Zone of Rio de Janeiro city. To get that, we established a methodological-theory routine, it sets a method of urban analysis's based at observation and apprehension of landscapes and territorialities in time-space of the city as the decision to see and to live. We have started of understanding that images represent a place are established in interactions with another person, it means, they result of experiences kept at our memories, which we can use as information resources to communicate the city understood as real. These information feed the inhabitants' collective imagination, participants of various microgroups. The objective goal is understand the Rio de Janeiro's space that was noticed and was lived, through reflexive thought designed among these young people's physic and cognitive ways, those show and represent urban ambient as they revel territories identity of their experiences. The analysis method proposed still demonstrates the specific subjects which complete this study, at the put on stress the structural elements which make part of landscape and the other places that meaning constitute territorialities. The application of method happened on ethnographic incursions through commented ways, that allowed to revel, with speeches and graphic designs, the emotions come immediately to collective memory those teenagers' mind and teach us a bit about their emotion city. The importance is the analysis method elaborated will be as an alternative way to develop projectable proposals to the city, with focus at the relations the collectivities establish with their territory of origin, but also with those serve as reference and support to trial design their identities, on postulated perspective to which the materiality of city as it meanings are subject to intentionality various, doing of city concept the expression of collectivities which notice and experience while place. Key words: emotional knowledge, urban landscape, territory, urban analysis, urban ethnographic.

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Urban slum, as called community in Rio de Janeiro. UFRJ I FAU I PROURB

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SUMÁRIO RESUMO ________________________________________________________________ IV RÉSUMÉ _________________________________________________________________ V RESUMEN _______________________________________________________________ VI ABSTRACT _______________________________________________________________ VII SUMÁRIO ______________________________________________________________ VIII LISTA DE TABELAS ________________________________________________________ XII LISTA DE FIGURAS _______________________________________________________ XIII AGRADECIMENTOS ______________________________________________________ XVI Os meus trajetos na construção do conhecimento ______________________________________ xvi

CONSIDERAÇÕES INICIAIS __________________________________________________ 21 O tema e sua relevância ____________________________________________________________ 21 O percurso teórico-metodológico sobre representação e análise urbana a partir das emoções __ 22 A nossa proposta para uma análise urbana das representações emocionais __________________ 26 A operacionalização do nosso percurso teórico-investigativo ______________________________ 29

CAPÍTULO I ______________________________________________________________ 32 O CONHECIMENTO E A COMUNIDADE EMOCIONAL: PREÂMBULOS PARA UMA ANÁLISE DAS EMOÇÕES COLETIVAS __________________________________________________ 32 1.1

Considerações sobre a construção do conhecimento emocional _______________________ 32

1.1.1

Pensamento e linguagem: as recursões emocionais na construção de realidades _____ 37

1.1.2

O simbólico, o mítico e o mágico na mediação do pensamento ____________________ 44

1.1.3

O conhecimento emocional sobre cidade como conceito socialmente construído _____ 49

1.2

A comunidade emocional ______________________________________________________ 56

1.2.1

O paradigma estético _____________________________________________________ 58

1.2.2

O paradigma ético ________________________________________________________ 60

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1.2.3

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O paradigma do costume __________________________________________________ 62

CAPÍTULO II______________________________________________________________ 68 REPRESENTAÇÕES DO TERRITÓRIO E DA PAISAGEM: MANEIRAS DE VER E VIVER O ESPAÇO URBANO ________________________________________________________________ 68 2.1

O território e a desterritorialização nas constituições identitárias _____________________ 69

2.1.1

O território na interpretação de Haesbaert ____________________________________ 70

2.1.2

A desterritorialização na interpretação de Haesbaert____________________________ 74

2.2

A paisagem e a territorialidade: um discurso metodológico sobre o ver e o viver o espaço _ 78

2.2.1

A linguagem da paisagem __________________________________________________ 80

2.2.2

A linguagem da territorialidade _____________________________________________ 82

2.3

Língua e Território: caminhos metodológicos para a análise urbana ____________________ 86

2.3.1

Território do cotidiano ____________________________________________________ 89

2.3.2

Território de trocas _______________________________________________________ 91

2.3.3

Território referencial ______________________________________________________ 91

2.3.4

Território sagrado ________________________________________________________ 92

2.4

Apropriação: ler o espaço através das representações humanas ______________________ 94

2.4.1

2.4.1.1

As modalidades de apropriação no campo material ________________________ 99

2.4.1.2

As modalidades de apropriação no campo das ideias _______________________ 99

2.4.1.3

Marcação e Personalização: a apropriação emocional _____________________ 101

2.4.2

2.5

A construção da identidade a partir da apropriação _____________________________ 95

A representação como síntese do conhecimento sobre os territórios urbanos ______ 106

2.4.2.1

A representação das distâncias cognitivas e topológicas do espaço___________ 108

2.4.2.2

Os trajetos entre ser e devir nas representações das distâncias ______________ 110

Os elementos estruturais e os de significação sociocultural nas representações espaciais: a

definição de um método para a análise urbana ________________________________________ 113

CAPÍTULO III ____________________________________________________________ 120 ETNOGRAFIA DAS EMOÇÕES: O OLHAR DE DENTRO EM INTERAÇÕES PARTICIPANTES COM A JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE POBREZA ____________________________________ 120 3.1

A emoção como categoria antropológica e o percurso comentado como método de campo 121

3.1.1

A emoção como categoria antropológica para a prática da etnografia _____________ 122

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3.1.2 3.2

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O percurso comentado como método etnográfico no urbanismo _________________ 127

Aquele que constrói o conhecimento emocional: os jovens em situação de pobreza _____ 134

3.2.1

Projovem Adolescente: o jovem que nos informa a cidade do Rio de Janeiro ________ 137

3.2.2

Nossa atuação participativa ao observar os jovens crescendo com as cidades _______ 141

CAPÍTULO IV ____________________________________________________________ 146 O TERRITÓRIO DA CAROBINHA: O LUGAR DE PARTIDA PARA AS REPRESENTAÇÕES URBANAS DE UM GRUPO DE JOVENS ________________________________________ 146 4.1

A região de Campo Grande antes do surgimento da Carobinha _______________________ 147

4.2

O contexto urbano e a formação da Carobinha ____________________________________ 151

4.2.1

A produção da irregularidade jurídica e urbanística e as políticas de acesso à moradia que

conformam a realidade da Carobinha ______________________________________________ 153 4.2.2

Dados estatísticos da região _______________________________________________ 159

4.2.3

A visibilidade que o outro tem da Carobinha na atualidade ______________________ 164

CAPÍTULO V ____________________________________________________________ 176 A COMUNIDADE EMOCIONAL JOVENS DO PROJOVEM NA CAROBINHA: REPRESENTAÇÕES URBANAS DO SER E DO DEVIR COM E NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO _____________ 176 5.1

Os trajetos físicos e cognitivos observados nas escolhas dos percursos comentados pelos

jovens __________________________________________________________________________ 177 5.2

O território cotidiano representado pelos jovens __________________________________ 181

5.2.1

As perspectivas dos meninos do grupo ______________________________________ 185

5.2.2

As perspectivas das meninas do grupo ______________________________________ 190

5.3

O território de trocas representado pelos jovens __________________________________ 198

5.4

O território referencial representado pelos jovens _________________________________ 203

5.4.1

O território referencial real _______________________________________________ 205

5.4.2

Território referencial imaginário ___________________________________________ 212

5.5

O território sagrado representado pelos jovens ___________________________________ 217

CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________________ 227 CIDADE EMOÇÃO: O VER E O VIVER NAS REPRESENTAÇÕES URBANAS DE UM GRUPO DE JOVENS DO RIO DE JANEIRO _______________________________________________ 227 UFRJ I FAU I PROURB

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REFERÊNCIAS ___________________________________________________________ 236 ANEXO 1 ____________________________________________________________ CCXLVI DIÁRIO DE CAMPO ____________________________________________________ CCXLVI I.

Primeiro dia: 27 de abril de 2012 _____________________________________________ ccxlvi

II.

Segundo dia: 02 de maio de 2012 ________________________________________________ ccl a)

A entrada da comunidade por Romário _________________________________________ ccl

b)

A entrada da comunidade por Igor ____________________________________________ ccli

c)

Indo para a Carobinha ______________________________________________________ cclii

d)

A Carobinha na perspectiva dos meninos do grupo _______________________________ cclii

e)

A Carobinha na perspectiva das meninas do grupo _______________________________ cclv

f)

Organizando o retorno para a associação de moradores _________________________ cclix

III.

Terceiro dia: 07 de maio de 2012 ______________________________________________ cclix a)

Filmagem iniciada pelos meninos ____________________________________________ cclix

b)

Filmagem iniciada pelas meninas ___________________________________________ cclxiii

IV.

Quarto dia: 11 de maio de 2012 ______________________________________________ cclxix

V.

Quinto dia: 25 de maio de 2012 _____________________________________________ cclxxiii

VI.

Sexto dia: 27 de setembro de 2012 ___________________________________________ cclxxiii

ANEXO 2 ___________________________________________________________ CCLXXVII CADERNO DE VIVÊNCIAS URBANAS: TRANSCRIÇÃO_________________________ CCLXXVII

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LISTA DE TABELAS Tabela 1: Duplos elementos, exteriores e interiores, de construção de nossas representações. __ 114 Tabela 2: [reprodução] Rendimento mensal médio do responsável do domicílio por sexo do responsável, segundo as Regiões Administrativas (em R$ de 2000) - 2000. __________________ 161 Tabela 3: [reprodução] População Residente e Estimada - Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas do Município do Rio de Janeiro - 2000/2010/2013-2016/2020. ______________ 162 Tabela 4: [reprodução] Estimativas de domicílios e população residente em Favelas, segundo Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas - 2000 (ver notas). ___________________________ 163 Tabela 5: [reprodução] Área ocupada pelas favelas cadastradas segundo as Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas - Município do Rio de Janeiro - 2008-2010. ______________________ 164 Tabela 6: Elementos exteriores que estruturam a Carobinha nas representações dos jovens. ___ 184 Tabela 7: Elementos exteriores que estruturam a Cidade do Rio de Janeiro nas representações dos jovens: marcos e coordenadas simbólicas. ____________________________________________ 216 Tabela 8: Elementos de construção das representações dos jovens: estruturas espaciais do espaço urbano. _________________________________________________________________________ 221 Tabela 9: Elementos de construção das representações dos jovens: significações do espaço urbano (1/2). ___________________________________________________________________________ 222 Tabela 10: Elementos de construção das representações dos jovens: significações do espaço urbano (2/2). ___________________________________________________________________________ 223 Tabela 11: Transcrição do mural construído pelos jovens: “o que é bom, o que é ruim, o que falta na comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro”. ________________________________________ cclxx Tabela 12: Transcrição do “Caderno de Vivências Urbanas” com os desenhos feitos pelos jovens do Projovem Carobinha. ___________________________________________________________ cclxxvii

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LISTA DE FIGURAS Figura 1: Quadro síntese da eco-auto-organização do conhecimento a partir da comunidade emocional. _______________________________________________________________________ 67 Figura 2: Quadro síntese da eco-auto-organização do pensamento espacial a partir dos trajetos de ressignificação identitárias na territorialização-desterritorialização-reterritorialização. ________ 77 Figura 3: Quadro síntese do ver e do viver nas representações espaciais a partir da apropriação. 86 Figura 4: Quadro síntese do tetraglossema. ____________________________________________ 93 Figura 5: [reprodução] O marcador e a significação do espaço. ____________________________ 116 Figura 6: Quadro síntese das representações a partir do tetraglossema através das apropriações físicas e cognitivas dos territórios, e que eco-auto-organizam os pensamentos sobre a realidade. ________________________________________________________________________________ 119 Figura 7: [reprodução] Esquema de levantamento em campo e análise dos dados proposto por Thibaud. ________________________________________________________________________ 129 Figura 8: Capa do Caderno de Vivências Urbanas. ______________________________________ 144 Figura 9: Igreja Nossa Senhora do Desterro, Campo Grande, Rio de Janeiro (sd). _____________ 147 Figura 10: Igreja Nossa Senhora do Desterro, Campo Grande, Rio de Janeiro (2015). __________ 147 Figura 11: A estação ferroviária de Campo Grande, antigo ramal de Angra da RFFSA, posteriormente ramal de Mangaratiba (ap. 1930). _____________________________________ 149 Figura 12: Visão parcial do bairro a partir da estação ferroviária de Campo Grande (ap. 1958). _ 149 Figura 13: Empresas do novo Distrito Industrial de Campo Grande (Revisão: 21/10/2010). Implantado às margens da Avenida Brasil, cerca de 3,15 km da Carobinha. _________________ 150 Figura 14: Projeto Aprovado de Loteamento – PAL do Jardim Nossa Senhora das Graças. ______ 155 Figura 15: Mapa da APA Gericinó-Mendanha com os municípios confrontantes. _____________ 159 Figura 16: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. _ 165 Figura 17: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. _ 166 Figura 18: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. _ 167 Figura 19: Reportagem do Jornal O Globo evidenciando a Carobinha como território de violência. ________________________________________________________________________________ 168 Figura 20: Mapa da estrutura do lugar. 20-A: Relação dos espaços edificados e o sistema de espaços livres públicos e privados; 20-B: Estrutura das quadras; 20-C: Estrutura das vias de circulação; 20-D: Forma de ocupação horizontal do lugar. _______________________________ 171 Figura 21: Mapa das condicionantes físicas e ambientais. 21-A: Campos de futebol e quadras esportivas; 21-B: Corpos hídricos: FNA da rede de abastecimento d’água, rios, riachos e alagadiços; 21-C: FNA da rede de alta tensão; 21-D: Relevo. ________________________________________ 172 Figura 22: Mapa dos limites da Carobinha, loteamentos confrontantes e vias de circulação que definem o Lugar. _________________________________________________________________ 173 Figura 23: Mapa das Áreas sujeitas a Regularização Fundiária segundo o escopo do Programa Morar Carioca. ___________________________________________________________________ 174 Figura 24: Mapa com a localização da Carobinha dentro da Área de Planejamento 5 no Município do Rio de Janeiro. _________________________________________________________________ 175 Figura 25: Desenho do Franklynn em maio de 2012: campo de futebol como marco referencial._ 184 Figura 26: Desenho da Gabriela em maio de 2012: as áreas vegetadas como limite físico. _____ 184

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Figura 27: Desenho do Igor em maio de 2012: identificação de diversos marcos referenciais, e a rua da Carobinha como eixo e limite do lugar. ____________________________________________ 184 Figura 28: Desenho da Márcia em maio de 2012: o parque do Mendanha e a rua Guandu do Sena como limites físicos. _______________________________________________________________ 184 Figura 29: Ponto do moto-táxi da Carobinha. __________________________________________ 186 Figura 30: Quadra de futebol do Votorantin. ___________________________________________ 186 Figura 31: Desenho do Igor denominado campo do Flamengo. ____________________________ 187 Figura 32: Meninos jogando capoeira numa rua do conjunto Votorantin. ___________________ 190 Figura 33: Meninos jogando bola na quadra do conjunto Votorantin. ______________________ 190 Figura 34: O bar do Renato na Rua da Carobinha ponto referencial do baile dos finais de semana. ________________________________________________________________________________ 192 Figura 35: Desenho da Maria representando o baile e o bar do Renato na Rua da Carobinha ponto referencial do baile dos finais de semana. _____________________________________________ 192 Figura 36: Matagal e lixo à beira do canal que conforma a Avenida Canal 2. ________________ 197 Figura 37: Detalhe do leito do canal que conforma a Avenida Canal 2. _____________________ 197 Figura 38: Barracos de madeira no Ecoponto: apropriação de terreno, consentida pelo crime organizado, para habitação. ________________________________________________________ 198 Figura 39: Ocupação do “esqueleto” no Votorantin: apropriação de construção abandonada pelo poder público, para habitação. ______________________________________________________ 198 Figura 40: Posto Mendanha na entrada da Carobinha e em frente à Avenida Brasil. __________ 200 Figura 41: Camisa do Franklynn por ele mesmo (personalização). _________________________ 200 Figura 42: Detalhe da casa com antena de canais de TV: produto de consumo desejado pelos jovens ________________________________________________________________________________ 200 Figura 43: Detalhe da placa com preços das atividades: território de troca (in)acessível. _______ 200 Figura 44: Detalhe do mercado Pão Gostoso, ou Super Rede o barato do seu lado. ___________ 201 Figura 45: Detalhe do comércio ao longo da estrada da Carobinha entre a av. Brasil e o Pão Gostoso. ________________________________________________________________________ 201 Figura 46: Camisa do Franklynn por ele mesmo. ________________________________________ 202 Figura 47: Chinelo do Franklynn por ele mesmo. ________________________________________ 202 Figura 48: Bandeira do time de futebol. _______________________________________________ 202 Figura 49: Camisa do Romário por Franklynn. __________________________________________ 202 Figura 50: Escola Municipal Professora Enyr Portilho Avellar: pátio de brincar. ______________ 207 Figura 51: Escola Municipal Casimiro de Abreu: detalhe da fachada. _______________________ 207 Figura 52: Quadra “100”: antigo ponto do tráfico. ______________________________________ 210 Figura 53: Quadra “100”: detalhe do calçamento. ______________________________________ 210 Figura 54: Quadra “100”: moradora lavando a rua. _____________________________________ 210 Figura 55: Quadra “100”: crianças brincando. __________________________________________ 210 Figura 56: Palmeiras na entrada da Carobinha que remetem à praia de Copacabana. _________ 213 Figura 57: Bicicletário improvisado na passarela que remete a ideia de boa mobilidade. ______ 213 Figura 58: Sede do Parque Municipal do Mendanha. ____________________________________ 214 Figura 59: Parque Municipal do Mendanha. ___________________________________________ 214

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Figura 60: Desenho da Juliana em maio de 2012: Cristo Redentor olhando para o mar. ________ 216 Figura 61: Desenho da Gabriela em maio de 2012: Cristo Redentor em frente a uma trave de futebol. _________________________________________________________________________ 216 Figura 62: Desenho do Igor em maio de 2012: as praias do “seu” Rio de Janeiro. _____________ 216 Figura 63: Desenho da Adriana em maio de 2012: Cristo Redentor no alto da colina. __________ 216 Figura 64: Igreja evangélica “Deus é Amor” no Conjunto Votorantin: espaços cada vez mais observados em áreas com falta de infraestrutura. ______________________________________ 219 Figura 65: O filá do Professor capturado durante o percurso comentado: cultura tolerada pelos jovens pela presença do professor como autoridade. ____________________________________ 219 Figura 66: Milena sendo fotografada por Maria (sua irmã), enquanto simula ser a imagem do Cristo Redentor. Ao fundo, Mácia filmando a perfomance de Milena. ______________________ 220 Figura 67: Desenho da Milena em maio de 2012: Cristo Redentor no alto da colina. “[SIC] O Cristo Redentor porque ele que representa a parte mais forte do Rio de Janeiro”. ___________________ 220 Figura 68: Mapa de localização da Carobinha com os percursos comentados pelos jovens. _____ 224 Figura 69: Cruzamento dos percursos comentados com os marcos referenciados pelos jovens na Carobinha. ______________________________________________________________________ 225 Figura 70: Zonas que influênciam a construção do conhecimento emocional sobre cidade, a partir das apropriações materiais e imaginárias reveladas pelos trajetos físicos e cognitivos dos jovens do Projovem Carobinha. ______________________________________________________________ 226

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AGRADECIMENTOS Os meus trajetos na construção do conhecimento Eu poderia começar os agradecimentos de maneira previsível a uma tese, mas, motivada pelo questionamento da professora Maria Laís Pereira da Silva no final da apresentação da minha banca final resolvi refletir: “como construir um pensamento transdisciplinar”. Responder essa pergunta significa fazer uma revisão dos meus trajetos físicos e cognitivos na construção do meu conhecimento, fazendo emergir da minha memória interações e subjetividades que julgo relevante agradecer. Para que isto faça sentido, penso ser importante cumprir a ordem espaço-temporal dos fatos, mas sem tentar fazer desta a minha biografia. Com isso, é logico que os primeiros que devo agradecer imensamente são meus pais Miriam e Roberto, tanto pela paciência em aprender a conviver com uma filha pouco disciplinada, como também pela possibilidade interacional que me proporcionaram. Indivíduos com perspectivas distintas da vida, mas complementares. Por um lado, uma mulher típica da década de 1970 que abandona os estudos universitários para cuidar da família e lança sobre mim o ímpeto de que cada mulher deve conquistar seu lugar na vida; e por outro um homem sujeito às regras de sobrevivência na vida, que vê no trabalho seguro um caminho natural para o mesmo propósito. Através dessas intencionalidades iniciei o trajeto que me levou a lugares e conclusões diversas. Espacialmente falando, não posso deixar de citar as “longas” viagens de férias dentro de um fusquinha verde abacate que servia de mirante para mim e meu irmão Frederico à observação das diferenças territoriais que configuram o Brasil. Já cognitivamente falando, eu devo lembrar que essas viagens visuais eram embaladas pela minha curiosidade e atenção ao mundo dos adultos que me cercavam, e falavam sobre arte, música, matemática, literatura, antropologia e diáspora africana, religião em geral. Tais considerações sobre a vida e o mundo serviam de brinquedos mentais para as minhas reflexões silenciosas. Por isso, devo aqui um agradecimento mais que especial a esses adultos, “tios e tias” que contribuíram para despertar meu pensamento para as artes e para a humanidade de forma geral. Minhas descobertas me fizeram uma adolescente igualmente curiosa, divergente do senso comum, com predisposição para reunir tudo que sabia em um só lugar. Por isso, chegar na faculdade de arquitetura não foi um trajeto físico-cognitivo simples, pois

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querer estudar tudo e ter que escolher uma única maneira de perceber o mundo não é fácil para adolescente nenhum, muito menos para uma adolescente resistente às regras. Foi quando na faculdade, após idas e vindas entre permanecer ou partir, descobri a iniciação científica. Resolvi ficar, e agora motivada por interações conflituosas positivamente, e perceptíveis hoje na maneira como me expresso cientificamente. Isto eu devo a professora Rosângela Lunardelli Cavallazzi, que levou suas bolsistas da arquitetura ao convívio com os estudantes de direito no departamento de pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio de Janeiro. A atmosfera de aprendizado coletivo construída entre os bolsistas neste momento foi crucial para não só reorganizar mentalmente a minha percepção de mundo, como determinou, em certa medida, os caminhos profissionais que percorri. Contudo, a maturidade adquirida na pesquisa não cessou minha inquietude mental, com mania de construção de analogias. Convivendo entre a iniciação científica em direito urbanístico e as atividades projetuais direcionadas à habitação social e urbanismo, propiciadas pelo convívio com o arquiteto Demetre Anastassakis, a quem agradeço igualmente, eu construí um pensamento que acabou por resgatar os olhares etnográficos de Pierre Verger, Roger Bastide, entre outros com os quais convivo desde a infância através das presenças dos adultos que fizeram parte da minha infância. A associação entre o olhar a humanidade de forma sinestésica e simbólica à percepção jurídico-urbanística, mais a inclusão da visibilidade da infância e juventude é a consequência natural dos meus trajetos físicos e cognitivos até então. Isso me leva a conjecturar uma pós-graduação, o que foi outro grande salto no delineador dos meus pensamentos. No convívio com minha turma de mestrado no Proarq (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura), docentes e discentes, foram todos extremamente especiais pela sensibilidade relacional e compromisso teórico-metodológico que prima pela construção encorajadora do conhecimento sensível e mesmo transgressor das ordens clássicas. Neste momento eu tive o privilégio de conhecer minha coorientadora, a professora Vera Maria Ramos de Vasconcellos que de forma muito respeitosa a minha individualidade deixou pistas sutis sobre a maneira como me posiciono teoricamente. Como para bom entendedor, “pingo é letra”, agarrei as pistas e redirecionei meus trajetos à medida que ia descobrindo novas possibilidades de pensamento. Deixar aqui meu agradecimento é redundante, pois ainda espero agradecer a muitas outras pistas futuras.

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Das relações estabelecidas na pesquisa de mestrado, nasce a aproximação com minha orientadora de tese, a professora Luciana da Silva Andrade que participou da minha banca de mestrado. Esse agradecimento é especial, pois nossa relação nasce por afinidade à temática científica que trata das políticas habitacionais. Contudo, é também um processo de autoconhecimento recíproco, uma vez que eu cheguei ao doutorado muito certa daquilo que queria, ao mesmo tempo que era a sua primeira orientação de doutorado. Desconstruir verdades e estabelecer a reorganização do pensamento é sempre uma experiência constituída por trajetos cognitivos imersos numa sopa emocional que te leva a nadar exaustivamente como se você nunca fosse chegar à borda, mas eu cheguei, e agradeço imensamente à Luciana Andrade pelas provocações intelectuais propostas e, acredito eu, respondidas. Para esse trajeto físico-cognitivo ficar melhor, através dela eu tive a oportunidade de encarar novos desafios num intercâmbio de estágio doutoral na Université de Montréal, por meio da mediação que ela estabeleceu com a professora Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto, e o professor Carlos Vainer, aos quais eu devo de fato a oportunidade de ter sido contemplada com a bolsa canadense “Le programme des futurs leaders dans les Amériques” (PFLA) em 2010. Este é um daqueles outros momentos especiais, o de poder experimentar ser aquilo que acreditamos, mas fora das nossas zonas de conforto. Por isso, quero agradecer nominalmente a cada um que lá esteve comigo, num estar-junto solidário que nos levou por novas descobertas. Primeiramente agradeço às amizades construídas dessa experiência com Nelma Gusmão de Oliveira, Luciana Nicolau Ferrara, Rodrigo Moraes Rosa, Cinelli Tardioli e Morgana Martins Krieger, e um carinho mais que especial eu direciono aos professores e amigos que nos acolheram afetuosamente em Montreal, Juan José Michel Torres, meu orientador de pesquisa na Universidade de Montreal, Anne-Marie Broudehoux, Anne Latendresse, Jim Freeman e Geneviève Couillard Després. Retornar à realidade brasileira não foi fácil, e confesso que o estranhamento do regresso provocou certa inquietude físico-emocional. Aqui contei com intermináveis diálogos online com amigos queridos da turma de doutorado, que me conduziam aos poucos à realidade. O “Petit Comitê da turma de 2008” que se reunia tanto no amparo intelectual como emocional. Por entre risadas, a respeito dos comentários laboriosos e jocosos, sempre regados pela boa culinária de Marília e bons vinhos, eu nunca vou poder apagar a presença de pessoas tão especiais à construção da minha identidade. Por isso, singelas homenagens a Gilmar UFRJ I FAU I PROURB

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Siqueira Costa (in memória), Emika Apolonia de Campos Takaki, Marilia de Azevedo Dieb, Janne Almeida da Trindade, Eliel Américo Santana da Silva, Sergio Moraes Rego Fagerlande, e Mauricio Javier Sierra Morales. Até aqui parece que os trajetos foram calmos, mas é logico que crescer não é fácil. Conhecer o mundo e construir um pensamento reflexivo sobre a realidade é primeiramente tomar consciência do que somos, das nossas potencialidades e ter coragem para transpor nossas limitações. Para isso é preciso contar com a vontade que nos lança na direção do desconhecido, mas também com a vontade daquele que está fora, em nos receber e interagir através de novas descobertas. Por isso, um carinho especial aos professores do Departamento de Análise e Representação da Forma (DARF), que acreditaram e me acolheram na oportunidade de vencer mais um desafio, o de dar aulas na graduação, o que, em certa medida, me estimulou na conclusão do doutorado. Agradecimentos especiais _à equipe de professores de desenho de arquitetura, Jacques Sillos, André Orioli Parreiras, Gustavo d’Ávila Siqueira Neto e Tarciso Binoti Simas, que me apontam a cada encontro, novas possibilidades de visão de mundo. Penso que esses agradecimentos são os que não posso deixar de considerar ao remeter à minha construção emocional do conhecimento e como represento o mundo através da academia. É logico que existe muito mais, mas essa é outra história. Por agora, reforço meus agradecimentos, não esquecendo a acolhida do Prourb (Programa de PósGraduação em Urbanismo) através das presenças deliberantes e marcantes da então coordenadora do programa, a professora Margareth da Silva Pereira e da secretária Keila da Silva, bem como às professoras que compuseram as minhas bancas de qualificação e final. Encerro mais uma vez agradecendo à paciência da minha família. Muito obrigada pela oportunidade de estar e ser com todos vocês, Glauci Coelho

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Não aprendi apenas com aqueles que brilham dentro das molduras douradas, mas também com aqueles cuja foto de identidade não saiu muito boa. (...) Aprendi, com o Halem, a não considerar a pobreza pobre, (...) Sou um escritor criado pelos leitores, e os leitores são minha criação. (...) Aqui estou, seu criador e sua criação, (...) Não lhes quero ensinar nada. Quero é aprender com vocês. (IEVTUSHÊNKO, 2007, pp.321-324). La dicotomía entre conocimiento y conocimiento científico no tiene significado sino en el plano metodológico. Por lo demás, el segundo no vive sin el primero. (RAFFESTIN, 2011, p.190)

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS O tema e sua relevância Nesta pesquisa, o ver e o viver nos direcionam a conjecturar, como objeto central de nosso trabalho, sobre a construção do conceito de cidade a partir daquilo que percebemos na escala da paisagem e vivenciamos na constituição de nossas territorialidades através das interações no e com os territórios urbanos. Para observar como o conceito de cidade é construído, na relação dialógica paisagemterritorialidade, nós estabelecemos uma proposta de análise urbana que trata de considerar a apreensão do espaço tanto pelas especificidades que dizem respeito à forma urbana, ou seja, os elementos estruturais da paisagem, como pelas especificidades que tratam dos processos de significação e ressignificação dos territórios, a partir das constituições das identidades coletivas. Para isso, convencionamos chamar esta cidade de “cidade emoção”, entendendo que os conceitos são socialmente construídos em trajetos físicos e cognitivos de apropriação espacial, que deixam impressas em nossas memórias informações as quais nos referenciamos de forma emocional ou como marcos, físicos ou simbólicos, de denominação e significação dos territórios, no momento em que tecemos as representações espaciais. Dessa forma, consideramos que nosso referencial teórico nos autoriza a focar o olhar menos em conceitos predefinidos do que em conceitos que emergem dos indivíduos - e não objetos de pesquisa. Percebemos como relevante o estabelecimento de debates sobre o espaço da cidade que incorporem de forma complementar a relação dos aspectos estruturais com os simbólicos do lugar, orientando um pensamento projetual urbano consequente às intencionalidades que vivificam os territórios da cidade, uma vez que, (...) para se intervir qualitativamente [em] espaços urbanos, é preciso manter (conservar) o existente que guarda características marcantes das diversas fases da evolução urbana; identificar novas necessidades; e, oferecer novas perspectivas de crescimento com base nas necessidades cotidianas (COELHO, 2004b, p. 174).

Por isso, pensar a cidades através das representações emocionais, e nesta tese, especificamente, através de um grupo de jovens em situação de pobreza, se UFRJ I FAU I PROURB

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converte não somente em um exercício para a aplicação do método de análise urbana proposto, mas também nos leva à reflexão sobre as maneiras divergentes como cada grupo sociocultural se faz presente nos territórios da cidade, considerando que esta presença pode ser marcada também por distâncias sociais que tendem a desenhar paisagens urbanas pelos aspectos sociais e culturais que conformam as territorialidades humanas. Acreditamos que: A paisagem se compõe com base nos seus aspectos culturais e sociais, de onde se destacam valores, símbolos, ou meramente hábitos que imprimem caráter [identidade] a uma população (COELHO, 2004b, p. 174).

O percurso teórico-metodológico sobre representação e análise urbana a partir das emoções O que nos move é o exame de como, a partir das emoções, indivíduos imersos em microgrupos são capazes de construir, em processos interacionais no e com o espaço público, um conceito sobre a cidade ao localizarem nesta suas identidades. Pensamos que as configurações identitárias se fazem na relação com o outro, por isso caminhamos com autores que consideram que o pensamento emerge das relações sociais, alimentado por redes de sociabilidade que são unidas por sentimentos de empatia. (...) pode-se dizer que assistimos tendencialmente à substituição de um social racionalizado por uma socialidade com dominante empática. [§] Essa vai exprimir-se numa sucessão de ambiências, de sentimentos, de emoções (MAFFESOLI, 2010, p. 39).

O estudo das emoções na arquitetura e no urbanismo é algo corrente. Como há algum tempo nos lembrou Zevi (2010), a emoção entra neste campo de estudo por intermédio da simpatia ou teoria do Einfühlung (empatia), primeiramente relacionando arquitetura à arte, “segundo a qual a emoção artística consiste da identificação do espectador com as formas” (ZEVI, 2010, p. 161). Trata-se de considerar que o simbolismo das formas é capaz de suscitar reações empáticas no espectador, independentemente da intenção suscitada pelo artista, e isso é visto como um avanço na forma de perceber a arte e a arquitetura, pois coloca em conexão direta o objeto e o observador de maneira relacional independente.

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Mais recentemente, a partir da década de 1970, criou-se a rotina, em arquitetura e urbanismo, de abordar a categoria emoção através da leitura da apreensão da forma do lugar. O marco teórico zero deste tipo de abordagem metodológica foi o trabalho desenvolvido por Kevin Lynch2,3 em parceria com Appleyard e John Myer, publicado em 1962, de linha comportamental, mas que se inicia de fato por volta de 1958 no âmbito dos estudos de teoria da forma e da percepção humana da cidade, chamado The View from the Road (Cf. APPLEYARD et al, 1962). Os autores César e Cidade (2003) lembram que, Na perspectiva do urbanismo, os avanços mais específicos na compreensão das relações entre ambiente e comportamento foram reflexos de pesquisas desenvolvidas no campo da percepção urbana. M. Trieb4 (1974) tratou da análise da forma das cidades, enquanto Kevin Lynch5 (1960) descreveu a experiência perceptiva e emocional da paisagem no estudo de percursos. Donald Appleyard (1962) escreveu sobre a experiência de perceber e sentir prazer por meio da visão da paisagem. Gordon Cullen6 (1971), que desenvolveu um método para trabalhar com sequências de percursos, descreveu arquétipos urbanos, fazendo uma interface direta com o desenho urbano (CÉSAR & CIDADE, 2003).

Especificamente sobre o trabalho de Lynch nesse momento, seu foco era, resumidamente, identificar marcos visuais componentes da paisagem urbana como elementos significantes, aos quais nos reportamos para descrever o quanto conhecemos uma cidade a partir de “mapas mentais”, que destacam a nossa apreensão do traçado urbano e dos marcos referenciais que definem a identidade do lugar. Trata ainda da relação entre a beleza potencial da paisagem em contraposição àquilo que vemos de fato. Em 1970, este autor inaugura um trabalho em parceria com a UNESCO7, intitulado Growing up in Cities. Neste projeto Lynch tem oportunidade de aplicar vários de seus argumentos teóricos sobre a apreensão do espaço urbano. Seu

2

Cf. APPLEYARD, Donald; LYNCH, Kevin; e MYER, John R. The View from the Road. MIT Press: Cambridge MA, 1962. 3 Cf. APPLEYARD, Donald; LYNCH, Kevin; e MYER, John R. The environment as a social symbol: within a theory of environmental Action and Perception. Journal of the American Institute of Planners, nº 120, 1979. 4 [Citado] TRIEB, M. Stadtgestaltung: theorie und praxis. Duesseldorf: Bertelmann, 1974. 5 [Citado] LYNCH, Kelvin. A imagem da cidade. Lisboa: Arte e Comunicação, 1960. 6 [Citado] CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1971. 7 Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. UFRJ I FAU I PROURB

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objetivo era trabalhar com grupos de adolescentes que desenvolviam experiências com a cidade, onde tinha como eixo a relação com o meio ambiente. Os trabalhos de campo desenvolvidos na Argentina, Austrália, México e Polônia culminaram em uma publicação em 19778. Após a sua morte, em 1984, esse trabalho iniciado por Lynch continuou através da década de 1990 patrocinado pela UNESCO, como uma proposta mundial que visava dar respostas aos problemas com os quais as crianças urbanas são confrontadas. O objetivo central era que os jovens pudessem crescer em harmonia numa cidade melhor para eles. A partir desse momento Louise Chawla9 e David Drisdell10 passam a coordenar os trabalhos e ampliam o foco, que antes relacionava jovens e espaços urbanos através da percepção da paisagem, incorporando o protagonismo juvenil como forma de sensibilizar os governos locais para os problemas enfrentados pelas cidades. Como marco referencial, além de Kevin Lynch e outros autores, Chawla (2002) cita Paulo Freire, em sua obra “Pedagogia do oprimido11”, para balizar suas considerações dentro do discurso do protagonismo juvenil. Em parceria à tradição da análise da boa forma da cidade12 lançada por Lynch, outra proposta no campo da arquitetura e do urbanismo, a corrente cultural ligada à geografia humana e à antropologia, aborda os aspectos emocionais pela via da relação afetiva que somos capazes de estabelecer com os lugares dos quais nos apropriamos ao longo de nossas experiências. Com maior força, a partir da década de 1980, um dos seus principais precursores foi o geógrafo Yi-Fu Tuan, que publica nos anos 1970 duas obras relevantes, “Topofilia13” e “Espaço e Lugar14”.

8 C.f.

LYNCH, Kevin.Growing up in cities: studies of the spatial environment of adolescence in Cracow, Melbourne, Mexico City, Salta, Toluca, and Warszawa. MIT Press: Cambridge MA: UNESCO, Paris, 1977. 9 Cf. CHAWLA, L. (Org.) Growing Up in an Urbanising World. Paris/London: UNESCO Publishing / Earthscan, 2002. 10 Cf. DRISKELL, D. Creating Better Cities with Children and Youth. A Manual for Participation. Paris / London: UNESCO Publishing / Earthscan, 2002. 11 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12 Cf. LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. Lisboa: Edições 70, 2007. 13 Cf. 1. TUAN, Yi-Fu. Topophilia: a study of environmental perception, attitudes, and values. Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1974; Cf. 2. TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. 14 Cf. 1. TUAN, Yi-Fu. Space and place: the perspective of experience. University of Minnesota Press, Minneapolis, 1977; Cf. 2. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. UFRJ I FAU I PROURB

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Acompanhando a perspectiva geográfica, a antropologia dialoga com a arquitetura e o urbanismo, teoricamente, ao olhar para as relações afetivas como uma forma de criarmos laços com nossos lugares de pertencimento (AUGÉ, 1994). Conjugam-se, então, para a análise da forma do espaço, os conceitos antropológicos de “Lugar e não-Lugar” (AUGÉ, 1994), ou os geográficos de “Espaço e Lugar” (Cf. TUAN) ao conceito de apropriação espacial, pelo olhar culturalista da psicologia social e da arquitetura (FISCHER, 1994; Cf. RAPOPORT15), para descrever a apreensão da forma da cidade a partir da interação humana. Outros campos de estudos, como a psicologia e a filosofia nos convidam a tomar as emoções como categoria de análise. Nesta tese a intenção é não excluir nenhum dos estudos citados, mas considerar que as emoções estão além do campo comportamental, que na arquitetura e no urbanismo tendem a ser nomeadoras de lugares. Destacamos o processo de construção do conhecimento que está imbricado na apreensão e representação da cidade, qual seja a interação que indivíduos estabelecem com o ambiente e que, através de escapes emocionais, nos mostram a dimensão sensível desta percepção ampliada no conceito de ambiência urbana (MAFFESOLI, 2010; THIBAUD, 2008). Ambiência refere-se tanto aos aspectos da forma como aos psicológicos; ou seja, tanto é aquilo que vemos como o que vivemos. O que, no âmbito teórico da arquitetura e urbanismo significa pensar a cidade com aquilo que aprendemos sobre ela, institucionalmente, mas também por meio das nossas experiências, que podem criar imagens idealizadas sobre a mesma. Os aspectos psicológicos que compõem esse conhecimento levam em conta tanto as interações sociais que se desenrolam com o lugar, como as informações contidas nas memórias, individual e coletiva, ao longo do tempo. Ressaltamos que Vigotski (1998) nos aponta que o conhecimento é algo socialmente construído, em um jogo dialógico que transforma tanto indivíduo como ambiente no processo interacional. Morin chama isso de eco-auto-organização das

15 Cf.

1. RAPOPORT, Amos. Human Aspects of Urban Form: Towards a Man Environment Approach to Urban Form and Design. New York: Pergamon Press, 1977; Cf. 2. RAPOPORT, Amos. The Meaning of the Built Environment: A Nonverbal Communication Approach. University of Arizona Press, 1982. UFRJ I FAU I PROURB

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identidades das partes em um constante movimento entre ser e devir (MORIN, 1999) estabelecido no jogo comunicacional sociocultural. Entre o individual e o coletivo, o pessoal e o cultural. Ao fazer parte da memória individual, as palavras integram a memória coletiva que se perpetua reproduzindose e multiplicando-se nas memórias individuais (MORIN, 1999, pp. 133-134).

Trazendo essa argumentação teórica para o campo do urbanismo, passamos a postular que, ao perceber e representar algo estamos de fato expressando um conhecimento mediado por intencionalidades que apreendemos em nossos contatos socializantes. Ou seja, o que seria a “minha percepção” é de fato a “nossa percepção”, pois estamos sujeitos à coletividade. A intencionalidade coletiva é fruto de um processo sócio-histórico, presente à construção de conceitos que simbolizam as coisas no mundo (Cf. VIGOSTI, 1998). Assim, acreditamos que o conceito de cidade é socialmente produzido com outros sujeitos dos grupos a que pertencemos, levando em conta os contextos locais dentro do contexto urbano maior. Entendemos ainda, que isso ocorre em grupos que interagem e conformam comunidades emocionais, nos termos definidos por Maffesoli (2010). O que é dinâmico e pode ou não ser definitivo, pois acontece em determinados territórios, podendo reunir personas, indivíduos - atores sociais de grupos diversos, e tem na emoção os motivos para uma experiência coletiva em torno de algum tema. (...) quer seja pelo contato, pela percepção, ou pelo olhar, existe sempre algo de sensível na relação de sintonia [empatia] (MAFFESOLI, 2010, p. 129).

Por isso, a comunidade emocional tende a ser solidária, no sentido que o indivíduo passa a existir no estar-junto, no eu coletivo. Esta comunidade é capaz de edificar aquilo que apontamos como primordial para a análise dos espaços urbanos a partir da reunião dos aspectos formais e psicológicos, a ambiência. A nossa proposta para uma análise urbana das representações emocionais Com base na revisão teórica descrita, lembramos que esta tese compreende a cidade, tanto estruturalmente quanto simbolicamente, como resultante de processos interacionais que são mediados por intenções socialmente constituídas UFRJ I FAU I PROURB

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(VIGOTSKI, 1998). Tais processos contribuem para a composição de um conhecimento emocional dialógico que, segundo Morin (1999), não exclui, mas sim reúne todas as informações para a interpretação da realidade eco-auto-organizável das identidades indivíduo-meio (MORIN, 1999). O movimentar dialógico do conhecer/informar é possível por meio de trajetos físicos e cognitivos (BAILLY, 1990), que tanto nos apresentam como representam o espaço urbano (RAFFESTIN, 1977) através de ações e reações que, conforme aponta Haesbaert (2009), desterritorializam e reterritorializam indivíduos e grupos na constituição de suas identidades individuais e coletivas na cidade. Conceitualizamos cidade como algo socialmente construído dentro dos diversos grupos sociais e seus pertencimentos (VIGOTSKI, 1998), grupos estes enunciado por Maffesoli (2010) como uma comunidade emocional composta por personas, e que são capazes de organizar aquilo que apreendemos como real. Assim, a emoção desponta nesta pesquisa como parte preponderante, decorrente das relações humanas com e no espaço, que influi dialogicamente às construções de experiências vivenciadas nos territórios cotidianos, de trocas, referenciais e sagrados, que constituem um tretraglossema que nos possibilita a leitura da linguagem da paisagem e da territorialidade (RAFFESTIN, 1977, 1995). Para ponderar sobre as afirmações propostas, optamos por seguir as indagações teórico-metodológicas de Raffestin (1977, 1995), de que a paisagem urbana é uma sintaxe geográfica, uma frase que combina diferentes elementos, que responde a fins práticos e que concentra em si a experiência que serve à conservação e transmissão de informações (1977). O autor nos aponta com isso, uma linguagem da paisagem que trata de nos apresentar aquilo que vemos imerso no espaço-tempo, e uma linguagem da territorialidade que pode ser compreendida por meio das representações que indivíduos e grupos fazem sobre o real, a partir de suas experiências (RAFFESTIN, 1995). Perpassando tais conjecturas metodológicas, formulamos uma proposta analítica do espaço urbano que engloba tanto a sua imagem, como algo estruturado no espaço através do tempo, como principalmente as tensões e intenções de UFRJ I FAU I PROURB

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indivíduos imersos em intencionalidades coletivas que ressignificam dialogicamente os territórios urbanos, reconstruindo, eco-auto-organizando nossos pensamentos e formas de descrever a cidade. A nossa análise do espaço urbano considera os aspectos estruturais e simbólicos do lugar (BAILLY, 1990), ou seja, aquilo que vemos como linguagem da paisagem e aquilo que vivemos através da linguagem da territorialidade. Esta análise é possível por meio do que Raffestin chama de antropológica das relações, de onde faremos emergir as territorialidades de indivíduos e grupos, que conferem a visibilidade da existência humana (RAFFESTIN, 1977). Para efetuar a antropológica das relações, mediamos metodologicamente o tretraglossema de Raffestin (1995) que nos permite vislumbrar o território de maneira ampla. Por isso, a proposta de análise urbana se apoia na etnografia urbana, a partir de uma postura de pesquisadora-participante que observa as falas, filmagens e imagens fotográficas capturadas nos percursos comentados: caminhando com três pessoas, enunciados por Thibaud (2003, 2008). Acompanhamos dez jovens, seis meninas e quatro meninos entre 14 e 17 anos, moradores da comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro, integrantes do Programa Projovem do Governo Federal. Acreditamos que as emoções juvenis vêm à tona na medida em que eles se movimentam, física e cognitivamente, por entre apropriações físicas e mentais que lhes possibilitam desenhar suas territorialidades em relação às dos outros. O critério da escolha da comunidade foi o fato de ser um território “sensível” da cidade; “tensionado” por conflitos internos com o “crime organizado”, além de carecer de uma infraestrutura urbana que propicie salubridade aos espaços. Associar a juventude com tais territórios de “pobreza” nos aponta ainda para as redes de solidariedade tecidas na necessidade do estar-junto solidário de Maffesoli (2010), bem como para os mecanismos usados pelas comunidades emocionais que conformam estes espaços urbanos para subverter, em escapes emocionais, à realidade que lhes é imposta.

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A nossa postura investigativa é também consequência de trajetos físicos que nos conduziram em incursões etnográficas por áreas sensíveis da cidade, sujeitas à falta de infraestrutura urbana. Já a temática sobre “crianças, jovens e cidades” nos conduz por trajetos mentais que nos motivaram a partir da pesquisa de mestrado intitulada “Espaço vivido favela: brincadeiras infantis nos espaços livres da Rocinha” (COELHO, 2004), na qual constatamos a importância que a apropriação dada pela brincadeira confere à constituição identitária de crianças que se valem desta ação para subverter a todo instante sua situação de precariedade urbana. A operacionalização do nosso percurso teórico-investigativo Para estruturar o debate sobre as emoções como tecelãs de nossas representações sobre o espaço urbano, nós dividimos esta pesquisa em três partes. Na primeira parte discutimos, em dois capítulos, a postura teórico-metodológica. No capítulo 1 trazemos o debate sobre a construção do conhecimento e pensamento emocional, tecido a partir das considerações de Morin (op. cit.) e Vigotski (1998), bem como a organização da comunidade emocional gerada pelos processos interacionais socializantes, na contemporaneidade, e que tendem a organizar o que Maffesoli (2010) entende sobre tribos urbanas. O que isto evidencia é que nosso conhecimento de mundo, e de nós mesmos, está atrelado às relações sociais enquanto mediadoras das nossas intencionalidades no mundo, constituindo assim nossas ambiências. No capítulo 2 observamos que tais ambiências acontecem como resultado de processos de territorialização-desterritorialização-reterritorialização, trazidos por Raffestin (op. cit.) e Haesbaert (2009), além de apresentar nossa proposta metodológica de análise urbana, que é pensar os territórios por camadas, que formam um conjunto que nos permite visualizar as dimensões formais e psicológicas do espaço de maneira ampla, e que Raffestin (1995) chama de tretraglossema espacial, quais sejam: os territórios cotidianos, os territórios de trocas, os territórios referenciais e os territórios sagrados, tudo isto conjugado à dupla modalidade de construção de nossas representações espaciais que combinam elementos materiais e significações do lugar (BAILLY, 1985, 1990).

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Bailly demonstra ainda como, de fato, os indivíduos se relacionam com o território, quando consideramos as formas de apropriação e representação do espaço como modos de nos situarmos não só espacialmente, mas também subjetivamente em relação ao outro. Autores como Bailly (1985, 1990), Raffestin (1977, 1995), Ripoll e Veschambre (2005) nos apontam as possibilidades de olhares científicos. Tomando suas considerações acreditamos estar aptos a pensar o território por apropriações materiais e subjetivas, e isto nos possibilita vislumbrar a interação entre indivíduo-meio como uma relação emocional. A segunda parte tem como foco a apresentação de nossa conduta investigativa em campo. No capítulo 3 nos ocupamos em discutir brevemente as emoções como categoria de análise antropológica e os procedimentos de campo adotados pela etnografia urbana para melhor capturar as nuances das representações espaciais. Adiantamos que adotamos na investigação a perspectiva da observação participativa, que visa o entendimento das complexidades relacionais estabelecidas no e com o cotidiano urbano através do percurso comentado proposto por Thibaud (2004 e 2008). Nesse sentido, fazemos uma abordagem interdisciplinar entre arquitetura, urbanismo, psicologia, geografia, filosofia e antropologia como forma de reunir saberes para, depois, distingui-los em nosso objeto de conhecimento (Cf. MORIN, 2000). Na terceira parte tratamos de evidenciar o suporte físico que nos servirá de exercício investigativo sobre as representações emocionais através do método de análise proposto. A comunidade da Carobinha, situada no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, serve de ponto de partida para as nossas inquirições a partir do olhar de um grupo juvenil. No capítulo 4 fazemos uma breve revisão da história de ocupação da Carobinha, um processo “contingente” que terminou configurando a comunidade como lugar de pobreza. Apresentamos igualmente as relações de poder instaladas na comunidade pelo crime organizado, bem como a visão da sociedade, pelo viés do senso comum, que relaciona pobreza à violência.

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O capítulo 5 organiza as considerações preliminares, a partir da aplicação do nosso método de análise sobre as representações urbanas, ao tomarmos a cidade como um objeto apropriável emocionalmente. Com base no percurso teóricometodológico, incursões em campo e ponderações analíticas, nós relatamos nas considerações finais como os jovens com os quais trabalhamos se apropriaram e representaram, tanto o lugar em que moram como a cidade de uma forma geral, manifestado em suas falas proferidas nos passeios que nos conduziram pela Carobinha, nas fotografias que tiraram e nas respostas às dinâmicas internas que propusemos e que fizeram emergir, através do tretraglossema do território, os elementos estruturais e significativos socioculturais, os quais organizam emocionalmente a representação espacial. Nossa síntese do conhecimento aponta, nas considerações finais, as possibilidades de conjecturas críticas e projetuais sobre a cidade, a partir da análise urbana, que pondera tanto as nuances que significam os lugares, como as estruturas espaciais que constroem limites territoriais. Isso é possível pelo percurso analítico que propõe esmiuçar as constituições identitárias através dos trajetos físicos e cognitivos que estabelecemos no e com o mundo. Tais processos interacionais contribuem com isso para a construção do que conhecemos como cidade, por entre as tensões e afetividades territoriais percebidas e vividas a partir de nossas comunidades emocionais.

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CAPÍTULO I O CONHECIMENTO E A COMUNIDADE EMOCIONAL: PREÂMBULOS PARA UMA ANÁLISE DAS EMOÇÕES COLETIVAS 1.1

Considerações sobre a construção do conhecimento emocional O verbo conhecer tomado como transitivo direto, aquele que implica ação do

sujeito, significa, segundo o dicionário Aurélio (2004): “conhecimento, informação, saber, travar conhecimento com, ter relações, convivência com, ter experimentado, distinguir, reconhecer, apreciar, julgar, avaliar, aceitar, admitir, sentir”. É visivelmente um verbo que indica interação, reflexão e uma interpretação sensibilizada pela experiência, ou seja, conhecer é sentir, vivenciar. Cogitamos, com base nas palavras de Morin (1999), que é também, paradoxalmente, nascer para algo, pois para o autor “(...) nascer é conhecer” e “(...) a vida só é viável e passível de ser vivida com conhecimento” (1999, p. 58). Isso nos aponta que conhecer algo, na nossa pesquisa, as representações dos territórios expressas por um grupo de jovens para descrever o que é a cidade, envolve a construção de um saber. Entendemos que o conhecimento é sintetizado em representações16, que são sensibilizadas pelas emoções internas (subjetividades) e externas (coletividades) ao indivíduo. Desta forma, a construção do que é cidade para o eu está diretamente entrelaçada ao nós, na perspectiva de que o conceito de qualquer coisa é socialmente construído (VIGOTSKI, 1998). É importante ter claro que os territórios tendem a se conformar como lugares de segurança de indivíduos e grupos. Veremos, no capítulo 2, que as representações dos territórios estão diretamente associadas à língua (RAFFESTIN, 1995), tida aqui como forma de comunicar um conhecimento. A comunicação constitui a base das trocas de experiências vivenciadas por grupos que, através da linguagem, constroem representações variadas em escala crescente de complexidade.

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Este tema é abordado no capítulo 2.

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Então, na experimentação urbana de indivíduos e grupos, que é relacional, se conceitua, em um movimento dialógico, o que é a cidade de diversas formas. Tanto como guarda sua funcionalidade – que no caso é a cidade por si mesma, isto é, aquilo que ela foi pensada para ser; ela é, para cada indivíduo ou grupo que a experimenta como uma possibilidade de fixação de suas identidades, guardada por intencionalidades. Interessa-nos nesta pesquisa pensar os territórios urbanos por suas intencionalidades, mas sem negligenciar sua rotina funcional, que, no caso, são representações de cidades possíveis e imagináveis, ou seja, conhecimentos sensibilizados dentro daquilo que Maffesoli (2010) entende como comunidades emocionais. Maffesoli aponta a existência, na contemporaneidade, de grupos afetuais que se apropriam dos espaços e que tendem a desinvidualização. Em nossa visão, a desinvidualização acontece dentro de tais grupos, unicamente ao redor de um tema capaz de sensibilizar e unificar momentaneamente identidades distintas, e, mesmo através de um discurso consoante, esses grupos deixam claro que existem no seu seio tensões e conflitos, dando-se a união pelas intenções em torno do discurso sobre tal tema. A esse respeito observamos, a partir de nossas pesquisas anteriores, que (...) para que haja tensão no espaço é preciso que este tenha sido tencionado tendo sua função ou rotina alterada por aquele que o vivencia, [naquele momento] a criança na brincadeira. Entendemos ainda, que as tensões no espaço são ocasionadas por tenções daquele indivíduo ou grupo que o vivencia. Tenção do latim tentione, que é o intento a algo, uma intenção. E que é aqui uma finalidade, aquilo que o ser busca e pretende ao interagir com e no espaço e que antes é cogitado por sua imaginação para depois ser materializado (COELHO, 2004, pp. 78-79).

Cabe

destacar

que,

ainda

que

Morin

e

Vigotski

transitem

epistemologicamente em campos distintos ao de Maffesoli, o próprio pensamento enunciado por Morin nos permite aproximar ideias distintas através de um debate dialógico que pretende reunir possibilidades conjecturais sobre a construção do conhecimento, sem comprometer com isso nossa construção teórico-metodológica e considerações. A partir de tais entendimentos, é importante atentar para dois pensamentos de Morim (1999). Um que diz que o conhecimento “(...) é necessariamente: tradução, UFRJ I FAU I PROURB

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construção e solução de problemas” (p. 58) e que a solução de um problema implica uma ação, uma intenção, uma tomada de decisão que o autor interpreta como sendo uma aposta em que está presente a noção de risco, de incerteza; e o segundo onde Morin (2000) coloca que não temos controle dos resultados de nossas intencionalidades tão logo elas se tornam ação. Aqui intervém a noção de ecologia da ação17. Tão logo um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja, esta começa a escapar de suas intenções. Esta ação entra em um universo de interações e é finalmente o meio ambiente que se apossa dela, em sentido que pode contrariar a intenção inicial. Frequentemente a ação volta como um bumerangue sobre nossa cabeça (p. 87).

Ao trazer tais considerações para a perspectiva do conhecimento do que é a cidade emocional, constatamos que aquele ou aqueles que intencionam algo sobre ela não têm real controle sobre no que suas experiências poderão culminar, ou mesmo como as informações resultantes de suas vivências poderão ressoar na construção de suas identidades. Elas são possibilidades e não um conhecimento fechado em si, que determina a verdade sobre o “espaço urbano”, que é visto aqui como aquele que guarda a dimensão pública propícia à sociabilidade (SERFATY, 1988). Uma vez em interações neste, o indivíduo ou o grupo não “saberia refletir diretamente o real [dessa cidade], só podendo traduzi-lo e reconstruí-lo em outra realidade” (MORIN, 1999, p. 58); por isso representá-la. Pensamos então a cidade como um conceito múltiplo, entendendo que, a partir do campo científico, construir um conceito que delimite um objeto é tarefa complexa pela pluralidade de questões experimentais, metodológicas e mesmo culturais envolvidas no processo. No campo do urbanismo não é diferente quando se examina o conceito de cidade; sendo objeto de estudo nos mais diferentes campos teóricos, comporta diversas definições. Por isto, podemos considerar que o conceito de cidade é difuso, as suas diversas definições acabando por gerar ambiguidades, “(...) um conceito cujos contornos não estão nitidamente definidos” (SIEDENBERG, 2004, p. 11).

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Segundo Morin a “ecologia da ação é, em suma, levar em consideração a complexidade que ela supõe, ou seja, o aleatório, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência de derivas e transformações” (p. 87). E que a mesma nos convida “(...) não à inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos e à estratégia que permite modificar, até mesmo anular, a ação empreendida” (MORIN, 2000, p. 90). UFRJ I FAU I PROURB

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Queremos dizer com isto, que os “conceitos científicos18” são relativos a cada área de conhecimento pensada separadamente. Nesse sentido é importante ter em mente que cada área de estudo gera, conforme suas tradições investigativas, concepções do objeto de estudo que podem ou não negligenciar uma ou outra forma de pensar o mesmo objeto. Contudo, isto significa, ainda, que os conceitos estão em parte ancorados em uma maneira de observação clássica que separa o objeto do sujeito de conhecimento e mesmo do investigador científico, o que não é nossa intenção. Esse estudo também não pretende apreender a cidade em sua totalidade e, muito menos, debater os conceitos fechados do objeto, ofertados por dicionários ou qualquer teoria científica. Partimos daquilo que Morin & Le Moigne (2000) chamam de “auto-organização” (p. 203), ou seja, a conceituação ou delimitação de que um determinado objeto de conhecimento, no nosso caso a cidade, não deve ser orientado por postulados clássicos de disjunção entre sujeito de conhecimentoobjeto de conhecimento-sujeito investigador do conhecimento. A teoria da autoorganização compõe conjuntamente com as teorias da informação, da cibernética e de sistemas, sempre associados às ideias dos princípios dialógicos de recursão e hologramático. O pensamento complexo enquanto método de conhecimento científico (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 204) está pautado em três princípios: O princípio dialógico une dois princípios ou noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir simultaneamente, mas são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da mesma realidade. (...) [A ideia é] unir as noções antagônicas para pensar os processos organizadores, produtivos e criadores do mundo complexo da vida e da história humana (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 204). O princípio hologramático coloca em evidência esse aparente paradoxo de certos sistemas nos quais não somente a parte está no todo, mas o todo está nas partes. (...) o indivíduo é uma parte da sociedade, mas a sociedade está presente em cada indivíduo enquanto todo através da sua linguagem, sua cultura, suas normas (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 205). O princípio da recursão organizacional vai além do princípio da retroação (feedback); ela ultrapassa a noção de regulação para aquela de autoprodução e autoorganização. É um círculo gerador no qual os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz (...). Os indivíduos humanos produzem a sociedade em e mediante as suas interações, mas a sociedade, enquanto

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Neste caso não estamos nos referindo à ideia dos “conceitos científicos e cotidianos” enunciados por Vigotski e que será abordada mais adiante, mas usamos a palavra – “científico” - para designar campo de conhecimento. UFRJ I FAU I PROURB

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um ato emergente, produz a humanidade desses indivíduos trazendo-lhes a linguagem e a cultura (MORIN & LE MOIGNE, 2000, pp. 204-205).

Os três princípios estão diretamente relacionados à ideia de autoorganização. Quando Morin & Le Moigne (2000, pp. 203-204) os definem, eles estão considerando a possibilidade de o organismo vivo se manter ao autorregenerar-se; quer dizer, desenvolver-se ou organizar-se no e com o mundo exterior, a partir da desordem das informações, que uma vez no turbilhão do mundo interior (pensamento) encontrarão os caminhos através de antagonismos, mesmo na linguagem e na cultura. Os autores observam a esse respeito que (...) [as] organizações precisam ser alimentadas de energia, para consumir, “dissipar” a energia para se manter. No caso do ser vivo, este é bastante autônomo para tirar a energia do seu meio ambiente e até para extrair as informações e integrá-las na organização (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 204).

A essa autonomia na apropriação das informações e à sua reintegração na organização do pensamento chama-se “eco-auto-organização” (p. 204). O que é válido para tudo quanto é vida, em que está, “(...) de modo irredutível e inseparável, a ideia de indivíduo (ego)” (MORIN, 2002, p. 420). Morin & Le Moigne evidenciam através desses três princípios que o “pensamento científico clássico se edificou sobre três pilares: a ‘ordem’, a ‘separabilidade’ e a ‘razão absoluta’” (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 199). De uma forma geral, reduzem o objeto dizendo fazê-lo para a sua real inteligibilidade. Ao pensar um objeto de estudo em ciências sociais, deve-se também ter em mente as circunstâncias que o instituem e definem o que ele é. Tais circunstâncias tratam tanto da totalidade do objeto como daquilo que lhe é singular. A lente é de quem o interpreta; que o faz estimulado por intenções, por fatores ligados à sua subjetividade e que estão atrelados aos aspectos socioculturais e emocionais do indivíduo que o vive. Nossa intenção nesse estudo é olhar a cidade de dentro, tomando emprestadas algumas orientações etnográficas para a metodologia de trabalho de campo, através dos olhares de um grupo de jovens em interação com os UFRJ I FAU I PROURB

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pesquisadores, nós. O pensamento complexo nos possibilita interações dialógicas nas observações de campo, sempre num sentido de mediação e complementação, que tendem a “(...) unir dois princípios ou noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir simultaneamente, mas são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da mesma realidade” (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 204). Pensar o objeto separadamente daquele que o experimenta revela uma conduta determinista na construção do conhecimento que contribui para o “desaparecimento do sujeito” (MORIN, 2001, p. 117). Em um estudo que pretende a interpretação do que é cidade a partir do olhar crítico reflexivo de um grupo de jovens em situação de pobreza, tal conduta é impensável. Assim, para dar prosseguimento aos nossos propósitos investigativos cabe uma breve explicação do que é conhecimento como construção da consciência e do papel do sujeito no processo de construção do conhecimento. 1.1.1 Pensamento e linguagem: as recursões emocionais na construção de realidades Não é nossa intenção tratar o tema do conhecimento e das representações sobre a cidade como verdades absolutas e deterministas, que acabam por reduzir o conceito de cidade à visão de quem a olha e vivencia, mas queremos, sim, tratar o seu conhecimento como um processo reflexivo de tomada de consciência coletiva. Por isso consideramos que tal conhecimento acontece na interação com o mundo, no e com o qual o sujeito coconstrói seu conhecimento, se fazendo nascer para o mundo, seguindo Morin, que diz, paradoxalmente “(...) nascer é conhecer” (MORIN, 1999, p. 58). Enfim, se nascer é conhecer, conhecer implica estar vivo, o que para o existencialismo é óbvio. Para ter consciência do mundo é preciso estar no mundo, pois o ser só é ser no mundo. Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto (...). Toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto (...): tudo o que há de intenção na minha consciência atual está dirigida para o exterior, (...) todas as

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minhas atividades (...) ou práticas, toda a minha afetividade do momento, transcendem-se, visam [o objeto] e nele se absorvem (SARTRE, 2000, p. 22).

Chamamos a atenção para o fato de que nossa finalidade com esse discurso nada mais é, como proposto por Morin, senão considerar o cogitar como pensamento reflexivo, em que esse cogitar “formula-se pela linguagem” (MORIN, 1999, p. 129). Nesse sentido é que também destacamos a relação dialógica entre pensamento e linguagem formulada por Vigotski19 (1998). Este autor trata de discutir a construção do pensamento e da fala através das mediações culturais e do uso da língua. Ele se refere à língua enquanto idioma como conceito ou instrumento simbólico de uma cultura, concepção que nós utilizamos para estabelecer os trajetos20 de mediações emocionais com o outro, através das colocações que Raffestin (1977) tece sobre “língua e território”, no capítulo 2 desta tese. Vigotski se aproxima de Morin quando este último observa que “a linguagem dá à percepção a possibilidade de ser finamente analisada, descrita, comunicada, refletida, conscientizada” (MORIN, 1999, p. 129), o que é fundamental para captar as representações emocionais sobre os territórios da cidade tendo a língua como mediadora do discurso que comunica as realidades de culturas. Com isso, destacamos ainda que, ao fazer tais considerações, Morin toma referências da computação, associando o cérebro a uma máquina computante, como sinônimo de “pensante”. Segundo ele, “o repertório de palavras, a organização do discurso, a possibilidade de considerar palavras e discursos como objetos que podem ser reflexivamente considerados (...) e tratados”, organizam-se no circuito indissociável: computação ↔ cogitação (pp. 129-130). Esta relação entre computar (apreender) e cogitar (refletir) aponta para a elaboração dos conceitos científicos (institucionalizados) e cotidianos (vivenciados), assinalados por Vigotski (1998) como

19 Lev Semenovitch Vigotski foi um pensador bielo-russo de família judaica que viveu entre 1896 e 1934. Advogado

de formação interessava-se por filosofia da história e o papel do indivíduo no processo histórico, e era também profundo admirador das artes, literatura e teatro. Seus interesses o levaram a estudar mais tarde história e filosofia, nutrindo especial interesse pelos escritos de Spinoza conjuntamente com a sua irmã, Zinaida Vygodskaja que era linguista (VAN DER VEER e VALSINER, 1999, pp. 18-20). 20 O termo “trajeto” é empregado nesta pesquisa para se referir aos movimentos físicos de apropriação e cognição que retroalimentam a nossa construção do conhecimento e subsequentes representações sobre o real. Este tema é debatido no capítulo 2, no contexto das modalidades de apropriação e de tomada de consciência dos objetos no mundo. UFRJ I FAU I PROURB

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síntese da “conceituação” das coisas no mundo, ou seja, o conhecimento sobre as realidades representadas através do discurso. A palavra conceituação está entre aspas para que não seja pensada de forma determinista e fechada. O que seria contraditório e reducionista em um estudo com viés sociocultural e embasado no pensamento complexo de Morin. Como bem lembra Magiolino (2010), Vigotski não trabalha com a ideia de conceitos acabados, mas com “um movimento de elaboração conceitual” (p. 2), que nós acreditamos emergir dos trajetos dialógicos; movimentos interacionais que tanto consideram as nossas apropriações materiais ou fora de nós, como as subjetivas ou dentro de nós. A este respeito, Vigotski (1998) conjectura o domínio que a pessoa é capaz de ter do mundo fora de si e dentro de si como a questão central da psicologia (p. 28). Neste caso é a emoção que se coloca como um caminho para resolver os problemas de interpretação sobre realidades, e “encontrar uma saída [para isto] é simplesmente uma questão de esforço mental” (VAN DER VEER e VALSINER, 1999, p. 28). O esforço mental é no sentido de separar o que é sentimentos e ânimos. Como Vigotski (1998) assinala, a simples definição de um objeto negligencia a “dinâmica interna do processo, (...) uma vez que lida com o produto acabado. (...) Ao invés de trazer à tona, por instigação, o pensamento (...)” (VIGOTSKI, 1998, p. 65). No nosso caso, o pensamento reflexivo como construção coletiva de um grupo de jovens sobre a cidade que habitam. Por isso centramos não na reprodução de conceitos, mas na “elaboração mental do material sensorial que dá origem ao conceito” (pp. 65-66) de cidade, construído em trajetos emocionais – a interpretação e representação de cidade a partir de apropriações materiais e subjetivas por grupos culturais. Acreditamos que o ato de construção dos conceitos liga o desenvolvimento do pensamento ao da linguagem, o que ressalta a “função simbólica da palavra” (VIGOTSKI, 1998, pp. 53-54). Podemos dizer então que a construção dos conceitos comporta, em certa medida, aspectos artísticos, na perspectiva daquele que se apropria da arte, uma vez que “toda obra de arte é simbólica, e é infinita a variedade

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de interpretações que suscita21” (VIGOTSKI, 1999, p. XX). Assim, é bem provável, em nossa pesquisa, que o conhecimento sobre a cidade elaborado por um grupo de jovens se apresente de forma própria, configurando-a também como um campo de possibilidades imagináveis daqueles que dela se apropriam. Para Vigotski, a formulação dos conceitos é um ato complexo do pensamento que não pode ser ensinado por treinamento. Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização, o que modifica é o seu significado – o conceito – (VIGOTSKI, 1998, p. 104). Assim, (...) os conceitos se formam e se desenvolvem sob condições internas e externas totalmente diferentes, dependendo do fato de se originarem do aprendizado em sala de aula ou da experiência pessoal (...) (VIGOTSKI, 1998, p. 108).

Afirmamos então, que a constituição de um conceito é um processo cognitivo de construção de conhecimento, mediado pelas emoções. Por isto é multidimensional, “de maneira inseparável, simultaneamente físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural, social” (MORIN, 1999, p. 18), tanto relativamente às condições internas como às externas que se auto-organizam na inter-relação das identidades com os espaços vivenciados. A este respeito, lembramos que para Morin, (...) a máquina viva auto-organiza-se. [§] Ao mesmo tempo em que a máquina viva situa-se num meio que lhe é exterior, ela contém, de certa maneira, esse meio no interior do qual se situa. Com efeito, mesmo sendo singular e autônoma, a autoorganização viva integra a ordem e a organização do seu meio, a “eco-organização”, e constitui na realidade uma eco-auto-organização (MORIN, 1999, p. 51).

A linguagem neste caso é importante no processo de eco-auto-organização de alteridades e identidades, em que o pensamento reflexivo associa e posiciona sujeitos, grupos e objetos no mundo (MORIN, 1999, p. 130). (...) o pensamento dispõe doravante da possibilidade de objetivar-se, de reconhecer, de controlar-se formulando e precisando não somente as regras de gramática e da

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sintaxe, mas também os princípios categoriais22,23 e modalidades que dirigem a sua organização (MORIN, 1999, pp. 131-132).

Para Morin, o ser e a linguagem são construídos dialogicamente, onde a língua24 é computada pelo cérebro e cogitada em trajetos emocionais que tendem a organizar as coisas no mundo. O que ressalta que toda língua “deve ser aprendida dentro de uma cultura, e toda língua permite adquirir o conhecimento de uma cultura” (MORIN, 1999, p. 133). Ao dizer isso, Morin está afirmando que, através do discurso oriundo da organização de palavras refletidas, é possível vislumbrar como os sujeitos de uma determinada cultura se relacionam com os outros de outras culturas e como se relacionam entre si, em um sentido que aponta para a constituição das suas identidades, dentro e fora de seus limites25 de dominação. Ao mesmo tempo, a linguagem permite à cultura imprimir-se sob a forma de saberes, experiências, normas, injunções, interdições, na intimidade de cada espírito26, fornecendo-lhes possibilidades próprias de desenvolvimento enquanto exerce o controle social desse desenvolvimento. Ainda, ao mesmo tempo, a linguagem permite e garante a intercomunicação que, assegurando o funcionamento da maquinaria social, possibilita a transmissão, a correção, a verificação dos saberes e informações, assim como a expressão, a transmissão e a troca de sentimentos individuais (MORIN, 1999, pp. 133-134).

22

A propósito disto, consideramos novamente as noções sobre distâncias cognitivas, complementares às topológicas, abordadas no capítulo 2. 23 [Citado] As categorias são os predicados últimos e mais gerais que se pode atribuir a uma coisa (Aristóteles) e, para Kant, as categorias designam não mais o modo de ser da realidade, mas nosso modo de conhecimento. Exemplos de categorias aristotélicas: substância, quantidade, relação, lugar, tempo, posição, condição, ação, paixão. Para Kant, quatro tríades de 12 categorias: quantidade (unidade, pluralidade, totalidade); qualidade (realidade, negação, limitação); relação (substância e inerência, causalidade e dependência, ação recíproca); modalidade (possibilidade e impossibilidade, existência e não-existência, necessidade e contingência) (MORIN, 1999, pp. 268-269). 24 Importante deixar claro mais uma vez que abordaremos no capítulo 2 a relação entre língua e território na constituição de identidades. O termo “língua” se refere sempre aos diversos modus operandi de comunicação de uma cultura. 25 Ver capítulo 2. 26 A ideia de “espírito” presente na obra de Morin considera que cérebro e espírito devem ser pensados conjuntamente e que, “(...) além disso, não se pode isolar o espírito/cérebro da cultura” pois sem cultura, a linguagem, ou o patrimônio social da humanidade o espírito humano não teria atingido o grau de desenvolvimento em que se encontra (MORIN, 1999, p. 85). “(...) O espírito surge com a cogitação, (...) é, pois uma emergência (...), um complexo de propriedades e qualidades que, originário de um fenômeno organizador, participa dessa organização e retroage sobre as condições que o produzem. O espírito é uma emergência própria do desenvolvimento cerebral do homo sapiens, mas somente nas condições culturais de aprendizagem e de comunicação ligadas à linguagem humana; condições que só puderam existir graças ao desenvolvimento cerebral/intelectual do homo sapiens ao longo dessa dialética multidimensional que foi a hominização” (pp. 8889). Porém o espírito não é só emergência, ele é ao mesmo tempo produto e produtor de cogitações, possui assim uma capacidade auto-organizadora que integra corpo e espírito. “(...) O espírito, aqui, não significa nem emancipação de um corpo, nem um sopro divino vindo do alto. É a esfera das atividades cerebrais onde os processos computantes tomam forma cogitante, ou seja, de pensamento, linguagem, sentido, valor, sendo atualizados ou virtualizados fenômenos da consciência. (...) não é uma substância pensante, mas uma atividade pensante (...). O espírito subentende (...) sempre um indivíduo-sujeito e um cômputo ↔ cogito (...)” (MORIN, 1999, pp. 92-93). De maneira bem resumida, e em nossa interpretação, o espírito significa ser no mundo. UFRJ I FAU I PROURB

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Neste sentido é que consideramos que a linguagem é, para Morin como para Vigotski, dialógica, tanto individual como socialmente, e permite que as operações cognitivas e alegóricas sejam classificadas e nomeadas, enfim, transformadas em objeto de conhecimento. É graças às palavras que noções e conceitos “operam como fatores de discriminação, seleção, polarização relativas a todas as atividades do espírito” (MORIN, 1999, p. 134). Em um sentido mais amplo, a linguagem é uma representação que simplifica o real, mas uma simplificação que complexifica ao mesmo tempo, na medida em que possibilita o “construir/reconstruir [de] uma nova complexidade discursiva e assim dialogar com a complexidade do real” (MORIN, 1999, p. 135). A dialógica, operada recursivamente entre simplificação e complexificação por meio do discurso, possibilita ao sujeito reconstruir o real, ou seja, “permite traduzir o vivido, os sentimentos, emoções e paixões” (p. 135). Exatamente através da dialógica do pensamento foi que investigamos, em nossa pesquisa, as representações discursivas sobre cidade mediadas pelas emoções. Através do processo dialógico, “(...) as palavras, tornam-se noções e conceitos” (MORIN, 1999, p. 135) para o sujeito. Para Vigotski, o “pensamento não se exprime em linguagens: é por meio delas que ele passa a existir. A palavra designa objetos, generaliza e objetiva o pensamento” (p. 135). Morin (1999) observa ainda, a propósito da dialógica do pensamento com a linguagem, que esta última é capaz de propiciar não somente a complexificação pela simplificação, mas também a dialógica que se estabelece na relação: abstrato ↔ concreto ↔ vivido. No trajeto das cogitações entre abstrato e vivido emergirá a complexidade do pensamento, o que possibilitará ao ser humano “pensar o seu próprio vivido e a sua singularidade, enquanto se põe os problemas gerais relativos à sua situação na sociedade, na vida e no mundo” (p. 135). Outro ponto importante a ser considerado em Morin (1999) é o fato de que, para este autor, consciência e pensamento são inseparáveis. Uma vez que a linguagem abre caminho e viabiliza a reflexão “do sujeito sobre si mesmo”, o que

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permite ainda que “todas as operações do espírito tornem-se objetos de consciência” (p. 136). Para os dois autores, a consciência nada mais é do que a comunicação do sujeito com o mundo, produto da reflexão de si no mundo, em relação a si mesmo e ao outro. É a tomada de consciência que marca as identidades tanto do sujeito quanto dos outros e das coisas. No processo de tomada de consciência de si e do mundo, o sujeito se aproxima e distancia, fisicamente e cognitivamente, por meio dos trajetos topológicos e cognitivos na interpretação e representação de realidades (capítulo 2), a todo instante daquilo que ele é propiciando “o exame, a análise, o controle dos diversos componentes da unidade complexa do ato humano de conhecimento”, quais sejam: “a representação, a percepção, a linguagem, a lógica, o pensamento” (MORIN, 1999, p. 136). Acreditamos, com Morin, que o sujeito consciente é capaz de se transformar e, por consequência, transformar o seu próprio ser no processo de construção do conhecimento. Isso significa se reconhecer, assumir sua identidade e integrá-la ao processo. Embasado em Kant, ele afirma que, (...) todo ato organizador do conhecimento, enquanto síntese do múltiplo, pressupõe a obra unificadora do sujeito cognoscente, que incorpora a sua identidade nesse ato. A representação é sempre a ‘minha’ representação (MORIN, 1999, pp. 136-137).

Isto se deve ao fato de a consciência de algo emergir das cogitações sobre esse algo e do sujeito ser anterior a essa consciência (p. 137). O sujeito existe e sua consciência cogita, intenciona algo, por isso “(...) toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto” (SARTRE, 2000, p. 22). O que Morin acrescenta é que o cogito está diretamente relacionado ao cômputo. A ideia de computar, neste caso, considera que “processos cognitivos são de natureza computante” (FODOR27 apud MORIN, 1999, p. 138). É importante ter em mente que computar não é meramente quantificar algo, mas colocá-lo em

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[Citado] FODOR, J. A. The language of thought. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

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perspectiva ao compará-lo e confrontá-lo na relação abstrato ↔ concreto ↔ vivido, que é fundamental para se distinguir ou aproximar realidades. Assim, o pensamento é transformador, mas tem a capacidade de superar o computar no mesmo instante em que se transforma. Conhecer é um processo dialógico que emerge no comparar e confrontar algo e a si mesmo e transformar tanto o algo como o eu no mundo. (...) constitui-se de (...) uma metaesfera, a do espírito, um metanível, da consciência, um metaconhecimento em relação ao conhecimento cerebral, ao mesmo tempo cada vez mais abstrato (referente a noções, ideias, conceitos) e cada vez mais rico (capaz de construir uma fantástica esfera noológica28). Através do mito, e depois, nos tempos históricos, através da filosofia e da ciência, o conhecimento humano abriuse ao mistério do mundo e ao seu próprio mistério (MORIN, 1999, pp. 138-139).

1.1.2 O simbólico, o mítico e o mágico na mediação do pensamento Até então, consideramos o pensamento como expressão da linguagem ao mesmo tempo em que se organiza através da linguagem. É preciso ter em mente, que no âmbito da complexidade enquanto método tal pensamento comporta tanto a racionalidade na tomada de consciência quanto o mágico, pois, lembramos mais uma vez, o pensamento complexo não opera com a disjunção do pensamento. Afinal, (...) na vida cotidiana coexistem, sucedem-se, misturam-se crenças, superstições, racionalidades, tecnicidades, magias, e [mesmo] os objetos mais técnicos (...) estão impregnados de mitologia (MORIN, 1999, p. 170).

Morin afirma que, sob a perspectiva da racionalidade, o pensamento simbólico-mítico-mágico vê o símbolo como uma evocação poética; o mito como ilusão e puerilidade; e a magia como superstição e fraude. Contudo é preciso “(...) nos aventurar evitando o excesso de clareza, que mata a verdade, e a excessiva obscuridade, que a torna invisível” (1999, p. 170), iniciando pelo desvencilhamento das armadilhas que comportam as noções de “símbolo”, “mito” e “magia”. Para Morin o espírito humano mora e vive da linguagem, onde computar é tratar tanto dos signos-símbolos como “produzir representações que, na percepção, projetam-se sobre o mundo exterior e identificam-se à realidade percebida” (MORIN,

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Noologia é a ciência dos fenômenos considerados como puramente mentais em sua origem.

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1999, p. 171). Ele considera que signos e símbolos devem ser pensados de forma associada, uma vez que o signo distingue e o símbolo aproxima “a sua própria realidade e a realidade designada” (p. 171) de algo. Nesta junção entre signos e símbolos, destaca o fato de as palavras não só designarem algo como evocá-lo. É no sentido da evocação que a palavra expressa seu potencial simbólico. Nomeamos coisas que são signos concretos, presentes. Se o poder de evocação das coisas é mais forte que a própria materialidade da coisa, as evocamos “(...) ainda que esteja ausente, a sua presença concreta” (MORIN, 1999, p. 171). É importante pensar que ambos: nomeador e evocador estão presentes no nome. Experimentamos incessantemente esse duplo poder da palavra tornando-os indissociáveis. (...) o fio cotidiano das nossas palavras, ideias, pensamentos, utiliza com mais frequência a palavra na ambivalência destas, e nossas frases interferem com nossas representações, acompanhando-as, designando-as ou comentando-as, ou precedendo-as e suscitando-as. Mas quando o pensamento torna-se abstrato ou técnico, o poder indicativo das palavras comanda, recalca, controla, atrofia as suas potencialidades simbólicas (...) (MORIN, 1999, p. 172).

Neste ponto, chamamos atenção para o nosso objetivo neste estudo observar as representações sobre cidade, que, quando pensada de forma puramente técnica, tem a sua potencialidade simbólica atrofiada em nome da “conceituação científica” (VIGOTSKI, 1998). Porém, acreditamos que tal objeto, quando mediado pelos trajetos emocionais de quem o vivencia, pode evocar simbolismos diversos que irão operar na conscientização e transformação do sujeito que constrói a conceituação com o cotidiano, pois: (...) em contrapartida, o poder evocativo das realidades concreta e subjetivamente vividas expandem-se na linguagem poética e, sobretudo, no pensamento justamente denominado simbólico, pois suas noções essenciais são símbolos intensamente carregados da presença, da verdade e das virtudes simbolizadas (MORIN, 1999, p. 172).

Morin (1999) conclui que os sentidos nomeadores e evocadores ainda que opostos, conceitos científicos e cotidianos, são formas instrumentais existenciais de conhecer o objeto em que, UFRJ I FAU I PROURB

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(...) o primeiro é um modo instrumental de conhecimento exercendo-se sobre os objetos do mundo exterior; o segundo é um modo de participação subjetiva da concretude e do mistério deste mundo (MORIN, 1999, pp. 172-173).

Com base em tais considerações, diz que, no seu sentido evocador o símbolo possui entre as principais características: 1. (...) uma relação de identidade com o que simboliza (...); 2. O símbolo suscita o sentimento de presença concreta do que é simbolizado (...); 3. O símbolo está apto a concentrar (...) uma constelação de significados e de representações aparentemente estranhas, mas ligadas simbolicamente por contiguidade, analogia, imbricação, envolvimento (...); 4. A utilização do símbolo não depende das regras formais da lógica nem das categorias de pensamento empírico-racional; há, além disso, uma resistência “ontológica” do símbolo à conceituação, ou seja, à desconcretização; 5. O símbolo tem, com frequência, uma característica e uma função comunitárias e, no caso, “torna-se significante de uma estrutura social à qual pertence (ORTIGUES29 apud MORIN, 1999, p. 173)” (MORIN, 1999, p. 173).

Para Morin, o pensamento é também mitológico, pois símbolo e mito se atraem e um precisa do outro de forma complementar. Ele destaca ainda, que logos assim como mito30, em suas origens significam palavra, discurso, só depois assumindo significados distintos. Então, apoiado em Cassirer31, chama a atenção para o fato de o mito ser uma “forma simbólica autônoma”, uma vez que a “narrativa do mito comporta símbolos” (MORIN, 1999, p. 175). Assim como o símbolo, Contém uma forte presença singular e concreta; exprime relações analógicas e hologramáticas; contém um coagulum de sentidos; pode guardar verdades escondidas, ou mesmo vários níveis de verdade (...); resiste à conceituação e às categorias de pensamento racional/empírico (...) e exerce uma função comunitária (MORIN, 1999, p. 175).

O mito está para além da esfera do símbolo, pois é constituído por uma narrativa ou é uma fonte desta, e “enquanto o pensamento (...) simbólico decifra símbolos, (...) o pensamento mitológico tece um conjunto simbólico, imaginário, e eventualmente real” (MORIN, 1999, p. 175).

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[Citado] ORTIGUES, E. Le discours e le symbole. Paris: Aubier-Montaigne, 1962. Segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa, mito advém do [gr. m~thos, ‘fábula’], e do [lat. mythu.]. Tanto numa origem como noutra significa narração, sendo que em sua origem grega – fábula – é um nome fortemente ligado à ideia de uma “narração breve, de caráter alegórico, em verso ou em prosa, destinada a ilustrar um preceito”, enquanto que em sua origem latina – mythu – a força do nome está na ideia de representação, imagem simplificada de pessoas ou acontecimentos (AURÉLIO, 2004). 31 [Citado] CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques. T. II, La pensée mithique. Paris: Éd. De Minuit, 1972. 30

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Morin ressalta em tais considerações, que os mitos falam tanto da relação natureza–cultura, como também de tudo que se relaciona à identidade humana, “ao passado, ao futuro, ao possível, ao impossível, e tudo que suscita interrogação (...). Transforma a história de uma comunidade, cidade, povo; (...) e tendem a duplicar tudo que acontece no mundo real e no mundo imaginário” ligando-os e protegendoos no mundo mitológico (p. 175). Julgamos importante pensar também que do mesmo modo, para Morin, o discurso mitológico supera o simbólico nos seus princípios de organização, no caso os paradigmas32, uma vez que o pensamento mitológico é fortemente ligado à visão de mundo de uma determinada cultura. O autor faz distinção entre dois paradigmas que organizam o pensamento mitológico. O primeiro se refere à narrativa mitológica que explica as coisas sem recorrer às abstrações, mas através de referências às entidades vivas ou acontecimentos. O segundo assume que todos os acontecimentos ou coisas naturais são signos ou mensagens passíveis de interpretações. Contudo, sem nos alongarmos nas questões dos deuses, Morin observa que, ao analisar tais paradigmas, o que ocorre é o processo de projeção-identificação presente em toda mitologia, que projeta a subjetividade humana no mundo exterior. Este é o princípio da comunicação com o outro mítico sempre relacionado à ideia de divino e sacrifício (MORIN, 1999, pp. 177179), e que em certa medida também organiza territórios na cidade33. O mito tem a capacidade de emocionar, sensibilizar e está diretamente relacionado à subjetividade, pois “diz respeito ao temor, à angústia, à culpabilidade, à esperança e dá-lhes resposta” (MORIN, 1999, p. 180). Nesse âmbito é que nos interessa o pensamento mitológico. Ou seja, o da possibilidade de cogitar que uma parcela da juventude em condição de pobreza possa ou não, após computar e cogitar

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Paradigma, na acepção de Morin (1999) é um termo que “constitui-se de uma relação específica e imperativa entre as categorias ou noções mestras numa esfera de pensamento; ele comanda essa esfera determinando a utilização da lógica, o sentido do discurso e, finalmente, a visão de mundo (estando entendida que a ‘visão de mundo ’torna-se reflexivamente tanto a origem quanto o produto dos princípios que a organizam)” (MORIN, 1999, p. 176). 33 Ver sobre territórios sagrados no capítulo 2. UFRJ I FAU I PROURB

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a realidade em que vive se emocionar de alguma forma e buscar respostas para a sua realidade no pensamento mitológico. Entretanto, para tornar completa nossa construção teórica faz-se necessário, ainda, entender o pensamento mágico. Se o mito é a intenção de integração do mundano34 ao cosmo, cogitamos que o mágico surge da possibilidade de o cosmo atuar “divinamente” transformando o mundano. Neste ponto, Morin atenta para a sujeição do espírito, onde se encontra mais uma vez a ideia de sacrifício, mas desta vez pelo desejo do espírito, ou da atividade pensante que se move através do desejo. Isto abre possibilidade para a instalação do pensamento mágico que intervém por onde existe a emoção do desejo. Ele deixa claro, também, que essa noção de desejo não é suficiente para se cogitar o pensamento mágico (p. 181). Para o autor, devemos ter presente ainda, que a magia em nenhum momento impede o “princípio de realidade” e que o desejo também obedece às regras para realizar-se. Por um lado, a magia se submete à lógica do valor de troca, pelo sacrifício, pela oferta; e, por outro, é correspondente ao sistema de pensamento simbólicomitológico, pois, “(...) baseia-se na eficácia do símbolo, que é o de evocar (...). [§] (...) [e] na eficácia mitológica dos duplos e dos espíritos35” (MORIN, 1999, 181). Morin conclui que as noções de símbolo, mito e magia estão “subentendidas umas nas outras” (p. 183). Por isso devemos pensá-las em um macroconceito, (...) para que cada uma atinja a sua plena realização; em contrário, o espírito permanece um estado de espírito; o mito, uma narrativa lendária; a magia, um abracadabra (Morin, 1999, p. 183).

Em um sentido mais amplo, o pensamento simbólico-mitológico-mágico também participa da organização do conhecimento, e mais, situa-nos e identifica-nos no tempo-espaço como sujeitos pertencentes a uma determinada cultura. Como vimos, as noções de símbolo, mito e magia estão atreladas não só entre si, mas diretamente à cultura. Isto possibilita que o sujeito computante ↔ cogitante,

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“Mundano” não é empregado aqui no sentido de prazer, mas sim se refere àquilo que é pertinente ao mundo, considerado pelo lado material e transitório; terreno. 35 Neste caso, quando Morin fala de “duplos”, se refere ao poder sobrenatural do mágico (feiticeiro) sobre os duplos que representam o sujeito, e que podem ser um fantoche, boneco ou avatar. Igualmente, o nome “espírito” se refere ao sobrenatural que será evocado para realizar desejos (MORIN, 1999, p. 182). UFRJ I FAU I PROURB

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sensibilizado e emocionado, seja um espírito (ser) dialógico, hologramático e recursivo no mundo, que, a partir do pensamento simbólico-mitológico-mágico, constrói o conhecimento emocional. 1.1.3 O conhecimento emocional sobre cidade como conceito socialmente construído O pensamento complexo, dito por nós emocional, propõe então que a ecoauto-organização se faz na interação do sujeito com o objeto que dialogicamente, hologramaticamente e recursivamente se organizam. E a organização é eco porque depende das condições da exterioridade e de como as percebemos interiormente para construir o conhecimento36. Com isso, chamamos a atenção para o fato de que na teoria do conhecimento no âmbito da complexidade, tal conhecer une os “eventos” tanto abstratos ou racionalmente construídos, mas, sobretudo, coloca em evidência, e chama para o diálogo, a força que as emoções exercem na construção do conhecimento. Morin observa que o conhecimento não é a expressão exata das coisas no mundo, pois é fruto de uma percepção que nada mais é do que a interpretação de um sujeito ou sociedade, ou a resolução de um problema, tal como já colocado por Vigotski (1998), sobre determinado acontecimento ou coisa (MORIN, 2000, p. 20), qual seja, uma representação. Por isso, o conhecimento é relacional e, (...) sob forma de palavra, de ideia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento. Daí os numerosos erros de concepção e de ideias que sobrevêm a despeito de nossos controles racionais. A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro (MORIN, 2000, p. 20).

Apesar de reconhecer que a carga emocional pode induzir a “erros” de interpretação do mundo real, constata que o desenvolvimento da inteligência é indissociável do mundo da afetividade, e que, portanto, “(...) a afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode também fortalecê-lo” (MORIN, 2000, p. 20). Não

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Tais condições de exterioridade serão abordadas mais adiante através do termo “ambiência”.

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existe, segundo ele, um estágio superior da razão, mas sim uma relação intelecto ↔ afeto (p. 20). Trata, pois, de elucidar tal questão afirmando que na construção do conhecimento se deve identificar “erros, ilusões e cegueiras” (MORIN, 2000, p. 21), que são relativos aos erros mentais, intelectuais, da razão e cegueiras paradigmáticas. No erro mental, cada sujeito é capaz de mentir para si mesmo (selfdeception) ao construir autojustificativas que projetam sobre o outro a causa de um mal. Já no erro intelectual, correspondente ao nosso sistema de ideias, a tendência é resistir aos argumentos contrários ou que não nos convêm (p. 21). Acreditamos, no entanto, que o pensamento reflexivo deve existir também através do simbólico-mitológico-mágico para a construção da realidade, sem medo de indução ao erro, pois cremos que o conhecimento sobre algo, no nosso caso, sobre a cidade, é resultado das mediações reflexivas que também levam em conta os escapes emocionais via símbolos, mitos e magias que não racionalizam o estar e o vir a ser daquele que interpreta e representa em interações com e no mundo. Assim, quando se refere ao erro da razão, Morin diz que este erro se manifesta quando a racionalidade se perverte em racionalização (MORIN, 2000, p. 23). (...) A racionalização se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta. A racionalização nutre-se nas mesmas fontes que a racionalidade, mas constitui uma das fontes mais poderosas de erros e ilusões (MORIN, 2000, p. 23).

Um estado de racionalidade pressupõe o diálogo entre a lógica e a empírica, pois “o racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida é irracional” (p. 23). Morin deixa claro que a racionalidade de fato considera a afetividade, a emoção, que é inerente à formação do sujeito. Contudo, a racionalidade não é suprema uma vez que é frágil: “pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade (...)” (MORIN, 2000, p. 53). Embasados em tais considerações, ponderamos que o pensamento emocional pretende usar o discurso da racionalidade em suas cogitações, mas, por ser um pensamento simbólicomitológico-mágico, não se deixa dominar por esta e busca a todo instante suporte UFRJ I FAU I PROURB

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nas vivências gravadas nas memórias individual ou coletiva, como um território referencial capaz de eco-auto-organizar “realidades”. Entendemos que o conhecimento emocional, construído através de processos interacionais eco-auto-organizadores de realidades, acontece na cultura e na história no que Morin (1999) chama de condições da exterioridade. Em nossa perspectiva, tais condições de exterioridade são traduzidas em “ambiências” que ancoram espaços-tempos pelos movimentos físicos e cognitivos que constroem os sentidos das coisas. O conceito de ambiência é amplamente explorado nas ciências sociais da contemporaneidade. O termo significa, dentro do campo em que atua o urbanismo, o mesmo que é especificado como sendo, Um meio material ou moral onde se vive; meio ambiente: ambiência poluída; ambiência mística. O espaço, arquitetonicamente organizado e animado, que constitui um meio físico e, ao mesmo tempo, meio estético, ou psicológico, especialmente preparado para o exercício de atividades humanas; ambiente (AURÉLIO, 2004).

Assim, as representações da cidade que emergem dos trajetos físicos e cognitivos de um determinado grupo de jovens se colocam, em nossa pesquisa, como uma possibilidade de observação da interpretação emocional de uma cultura temporalizada, onde, cada um dentro do grupo coconstrói sua identidade a partir de experiências singulares que são coletivizadas. Lembramos, nesse sentido, que Vigotski (1998) considera que um conceito é estruturado dialogicamente entre aspectos cotidianos e científicos. Afirmando que a ideia de cidade formulada pela juventude não é um conceito fechado, relembramos que a construção do conhecimento é um processo de transformação dialógica que eco-auto-organiza o sistema simbólico do indivíduo e do coletivo. Assim sendo, é fundamental não impor a separabilidade entre os aspectos cotidianos e formais da construção do conhecimento do que é cidade, mas, antes, entendê-los como uma unidade, compreendida conforme enunciado no pensamento complexo de Morin.

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Nós já tecemos nossas argumentações sobre a construção do conceito no caminho da dialógica. Vigotski não exclui a definição da palavra, o seu significado partilhado, mas ressalta que esta é parte indissociável do material sensorial à formação do conceito e aos sentidos próprios que cada sujeito lhe oferece. Para ele, o conceito não se constitui isoladamente, fóssil e imutável, é parte do processo intelectual, a serviço tanto da comunicação/inter-relação como na resolução de problemas singulares ou grupais (VIGOTSKI, 1998, pp. 66-67), ou seja, é um processo de construção tanto coletiva quanto pessoal. Vigotski resgata estudos de autores do início do século, como Ach37,38, para ir além deles e destacar que “a formação de conceitos é um processo criativo, (...) que surge e se configura no curso de uma operação complexa, voltada para a solução de um problema” (p. 67), que ele qualifica de “tendência determinante”. No entanto, naquele momento da história da Psicologia acreditava-se que até os 12 anos os jovens não tinham capacidade de formular conceitos. Outro exemplo, baseado nos estudos de Dmitry Uznadze39,40, destaca que “uma criança aborda os problemas exatamente da mesma maneira que o adulto faz ao operar com conceitos, mas o modo de resolvê-los é completamente diferente” (p. 69). Vigotski põe em diálogo as considerações de Ach e Uznadze e afirma que as definições desses autores não são

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[Citado] ACH, Narziss. Uber die Begriffsbildung. Bamberg: Buchner, 1921 (VIGOTSKI, 1998, p. 191). [Nota da Autora] Narziss Ach (1871-1946) foi um psicólogo alemão, membro da Escola de Wurzburg, que se tornou reconhecido por suas experiências sobre processos mentais, incluindo a formação de conceitos. De um ponto de vista metodológico, Ach (1935) preconiza a sistemática experimental da introspecção. Cunhou o termo tendência determinante para denotar a ideia de que os processos mentais tendem a ser determinados consciente ou inconscientemente pela experimentação e não determinados pelas associações. Segundo Ach “(...) nenhum conceito novo se forma sem o efeito regulador da tendência determinante criada pela tarefa experimental. [§] A formação de conceitos não segue o modelo de uma cadeia associativa, em que um elo faz surgir o seguinte; tratase de um processo orientado para um objetivo, uma série de operações que servem de passos em direção a um objetivo final. A memorização de palavras e a sua associação com os objetos não leva, por si só, à formação de conceitos; para que o processo se inicie, deve surgir um problema que só possa ser resolvido pela formação de novos conceitos” (VIGOTSKI, 1998, p. 68). 39 [Citados] UZNADZE, Dmitry. Die Begriffsbildung im vorschulpflichtigen Alter. Ztschr. F. angew. Psychol., 34, 1929; et, UZNADZE, Dmitry. Gruppenbildungsversuche bei vorschulpflichtigen Kindern. Arch. ges. Psychol., 73, 1929 (VIGOTSKI, 1998, p. 193). 40 [Nota da Autora] Dmitry Nikolaevich Uznadze (1886-1950) foi um famoso psicólogo georgiano, filósofo e benfeitor público, fundador da escola de Psicologia da Geórgia, cofundador da Universidade Estadual de Tbilisi, acadêmico e cofundador da Academia de Ciências da Geórgia. Foi um dos mais notáveis valores em história cultural georgiana durante a primeira metade do século XX. Seu nome é relacionado com a criação da teoria – the psychology of set (Einstellung em alemão; atitude em francês), uma importante conquista da moderna ciência psicológica, publicada em 1966 nos Estados Unidos da América. Em termos gerais, este estudo diz que a personalidade tem como base três tipos: dinâmico (equilibrado, pessoas bem adaptadas); estático (comportamento que não é impulsivo, mas, pelo contrário, totalmente baseado em objetivação e vontade e caracterizado por constante reflexão e insegurança); e variável (pessoas com fortes desejos, mas com um caráter conflituoso) constituídos por dois grupos: estáveis e instáveis (KETCHUASHVILI, 2002, pp. 1-9). 38

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insuficientes na descrição da formação de conceitos, pois não revelam a natureza do processo (ontológica). Para Vigotski (1998), Ach adota uma posição teleológica, imaginando que o objeto por si só determina a atividade adequada ou que o problema traz em si a sua solução. Contudo, não entendemos que a cidade e suas partes determinem por si só a resolução das tensões que ocorrem no espaço urbano. É preciso pensar os significados de cidade de uma forma ampla e contextualizada nas culturas que a conformam ao longo do tempo. Por isso temos a cidade como um material sensorial dinâmico que alimenta o processo intelectual para o seu conhecimento através da organização do pensamento tanto coletivo como pessoal. Destacamos a respeito disso que Vigotski (1998) aponta para a importância de perceber como os seres humanos aprendem a organizar e a dirigir seus pensamentos, quando afirma que a formação de conceitos41 é uma atividade complexa que está diretamente relacionada ao uso da palavra enquanto signo mediador, ou seja, um signo que movimenta possibilidades de significação. Através deste processo de significações, acreditamos que a complexidade espaço-temporal dos espaços da cidade se coloca como um mundo de culturas que estimulam a produção de novas respostas aos novos problemas sobre o urbano. Como Vigotski, entendemos a cultura como parte integrante do processo que significa o que é cidade, quer dizer, deve-se considerar “a formação de conceitos [sobre cidades] como uma função de crescimento social e cultural global” (VIGOTSKI, 1998, p. 73). No processo de formação e apropriação de conceitos, a palavra ocupa lugar central como ponto de partida para a interpretação do que seja a cidade. Apesar disso, ela não é um produto acabado, o nome não revela a verdadeira natureza da coisa nomeada – a cidade, uma vez que ela nunca é um conceito quando aparece

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Para Vigotski (1998, pp. 72-73) “a formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à associação, à atenção, à formação, à inferência ou às tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o uso do signo, ou palavra, como meio pelo qual conduzimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução do problema que enfrentamos”. UFRJ I FAU I PROURB

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pela primeira vez no tempo. Somente com o transcorrer das interações sociais e através de “experimentações”, o nome, originalmente criado no pensamento por complexos42, se transforma em conceito e passa a representar o objeto (VIGOTSKI, 1998). No nosso caso, somente em interações que se apropriam dos territórios da cidade (como partes de um todo), que podem significá-la por meio de um conjunto de imagens percebidas. O que caracteriza a relação indissociável entre aquilo que percebemos como imagem àquilo que vivenciamos. A palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceito, mas sim uma imagem, uma figura, um esboço mental de um conceito, um breve relato dele – na verdade, uma pequena obra de arte (VIGOTSKI, 1998, pp. 92-93).

Aqui, chamamos a atenção para a associação que o autor faz da palavra primitiva enquanto obra de arte, onde a mesma é que inicia a descrição de um processo. Faremos uma pequena digressão que nos leva ao início de nossas argumentações, quando o mesmo autor coloca a função simbólica da palavra. Tal nos permite afinar o discurso sobre as representações urbanas, não apenas como “obra de arte”, mas também como produto da criação simbólica daquele que se apropria fisicamente e/ou cognitivamente da cidade43, que pode representar em certa medida um mito, no sentido anteriormente proposto por Morin (1999). Valemo-nos para tanto dos primeiros estudos de Vigotski, materializados na tese “A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca” escrita em 1916. Nesse trabalho, que analisa a obra de Shakespeare, o autor introduz um debate sobre a criação simbólica. Para ele, o verdadeiro traço é enunciado por VyatcheslavIvánov44 ao dizer que:

42 [Nota da Autora] O pensamento

por complexos predomina na idade pré-escolar, contudo os adultos conservam esta forma de pensamento. Caracteriza-se por ser um pensamento objetivo, mas que não reflete relações objetivas. Nele, os objetos agrupam-se em famílias e não em conceitos, a organização não é hierárquica (todos os atributos são iguais) e as ligações entre estes são concretas e factuais, fruto da experiência direta. Vigotski divide o pensamento por complexo em cinco estágios: complexo associativo, complexo por coleções, complexo em cadeia, complexo difuso e pseudoconceitos. 43 Ressaltamos que, ao relacionar cidade à arte o estamos fazendo pela ótica daquele que se apropria da arte, e não daquele que simplesmente a produz com intencionalidades muitas vezes distintas da forma como é apropriada. Por isso este estudo trata das significações de cidade através da verificação dos escapes emocionais expressos nos discursos e/ou comunicação de uma determinada cultura. 44 VyatcheslavIvánov (Rússia, 1866-1949) um dos grandes pensadores do simbolismo russo, foi professor de filosofia, poeta e tradutor de autores antigos, e também um linguista, sendo atualmente considerado um culturalista. Ingressou na Faculdade de Filologia e História da Universidade Estadual de Moscou e após estudou UFRJ I FAU I PROURB

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(...) o símbolo só é o verdadeiro símbolo quando é inesgotável e ilimitado em seu significado, quando articula na sua linguagem secreta (hierática e mágica) da insinuação e da sugestão algo inefável e inadequado à palavra externa. É multifacetado, polissêmico e sempre obscuro na sua maior profundidade... É uma formação orgânica como o cristal. É até uma espécie de mônada, e com isso se distingue da composição complexa e decomponível da alegoria, da parábola ou da comparação... Os símbolos são inefáveis e inexplicáveis, e somos impotentes perante seu integral sentido secreto (IVÁNOV45 apud VIGOTSKI, 1999, pp. XXVI-XXVII).

Pela primeira vez, em “A Tragédia de Hamlet”, Vigotski adota como ponto de partida para a interpretação crítica a inexplicabilidade da relação entre as vivências e a própria imagem da coisa estudada, qual seja: a relação entre ver e viver a coisa, numa tentativa de interpretação da coisa enquanto mito, uma realidade que corresponde à primeira evidência estética, de onde se tira, por conclusão, “as imagens, caracteres, ideias etc. (...) [onde], o símbolo não é uma alegoria, mas uma realidade” (VIGOTSKI, 1999, p. XXIX). Por consequência, Vigotski diz que a percepção do mito é um fato artístico. Para ele, neste momento da sua produção científica, o que importa de fato não é a apreensão (o desvelamento), mas a sensação daquele que percebe a arte como objeto dado (pp. XXIX-XXXIV). Não queremos discutir aqui a ideia de mito na construção do conhecimento, que já foi longamente apresentada anteriormente, mas evidenciamos a possibilidade daquilo que entendemos como cidade, algo dado, se revelar para alguns, jovens e adultos, como uma sensação, representável por fatos imagéticos, entre a sua realidade cotidiana e aquilo que eles sonham a partir das noções de cidade ideais que lhes são transmitidas. Nesse sentido, podemos dizer que o conceito de cidade pode ser percebido das mais diversas formas, e nem por isso deixa de ser uma realidade para quem a vivencia. Muito pelo contrário, é resultante de abstrações, que recriam simbolicamente realidades. Observamos que o próprio Vigotski diz que para, (...) formar um conceito é necessário abstrair, isolar elementos, e examinar elementos abstratos separadamente da totalidade da experiência concreta de que fazem parte. Na verdadeira formação dos conceitos, é igualmente importante unir e separar: a síntese deve combinar-se com a análise (VIGOTSKI, 1998, p. 95).

na Alemanha e na Itália. Como muitos de sua geração, ele tem forte embasamento na filosofia de Nietzsche (ALEXANDROVA, 2013). 45 [Citado] IVÁNOV, Vyatch. Bórozdí i miéji. Ópiti estetítcheskie i kritítcheskie (Sulcos e limites: experiências estéticas e críticas). M., ed. Musaget, 1916. UFRJ I FAU I PROURB

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A partir disto, propomos que a abstração na formação dos conceitos sobre cidade é dialógica, une e separa a transgressão do próprio conceito, entendendo que “quanto mais se progride, mais se transgride” (MORIN, 1999, p. 30). Relembramos a este respeito, que na construção do conhecimento não se exclui a lógica, mas ela se combina dialogicamente “entre sua utilização segmentos por segmentos e a sua transgressão” (MORIN e MOIGNE, 2000, p. 123). Assim, a formulação dos conceitos, de uma forma geral, é uma operação intelectual que une diferenças e similaridades, e tem como mediador central o significado da palavra, que centraliza a atenção, abstrai traços, sintetiza-os e simboliza-os através de um signo (VIGOTSKI, 1998, p. 101). Vigotski acredita que o desenvolvimento dos conceitos ocorre tanto de maneira espontânea como intencional, ou seja, de forma instrucional. O que ficou conhecido, respectivamente, como conceitos cotidianos e conceitos científicos. Eles se relacionam e se influenciam mutuamente e são mutuamente estimulados (VIGOTSKI, 1998, p. 107). É importante balizar que, quando ele usa a palavra espontânea, e aqui utilizamos “cotidiano”, referindo-se à formação de conceitos, (...) é sinônimo de não-consciente, [uma vez que] ao operar com conceitos espontâneos, a criança não está consciente deles, pois a sua atenção está centrada no objeto (...), nunca no próprio ato do pensamento (VIGOTSKI, 1998, p. 115).

De forma brevemente conclusiva, a produção dos conceitos sobre cidade através da mediação do discurso é um processo relacional, que é possível pelas interações sociais que cada qual vivencia nas circunstâncias que escolheu viver. Desta forma, mesmo a identidade individual – o eu, somente é possível em um processo sócio-histórico através da identidade coletiva – o nós. Assim, é pertinente pensar que o conhecimento emocional ocorre imerso em uma comunidade também emocional.

1.2

A comunidade emocional A ordem social complexa expressa anteriormente por Morin é enunciada por

Maffesoli (2010) como orgânica. Maffesoli trata tal organicidade como um retorno ao vitalismo, ou seja, a vida universal presente em pequenos grupos contemporâneos, capaz de esclarecer a “(...) emoção e a dimensão afetual” (2010, p.

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27) que estruturam as realidades. Maffesoli (2010, p. 31) chama de “tribos” “o vaivém constante que se estabelece entre a massificação crescente e o desenvolvimento dos microgrupos” que, no nosso entendimento, movimentam-se através dos trajetos físicos e cognitivos que constroem o conhecimento, e, através da visibilidade de suas identidades, marcam suas presenças no mundo. Para esse autor, na contemporaneidade, a lógica das identidades compartimentadas, estanques e que reduzem indivíduos está diluída na “(...) metáfora das tribos” (p. 36). Para ele, isso contribui para o entendimento do processo de desinvidualização, quando os indivíduos passam a ter uma atuação coletivista dentro de diversas tribos, e não estão restritos a uma única identificação tribal. Podem transitar entre uma tribo e outra, passando a ter múltiplas identidades “(...) como nebulosas de pequenas identidades locais” (MAFFESOLI, 2010, p. 36). O que pode ser entendido como identidades coletivas, por isso, sócio-históricas (VIGOTSKI, 1998). Observamos que tal desinvidualização ocorre no momento interacional em que a dialógica das relações reúne intencionalidades ao redor de um determinado discurso, capaz de mobilizar subjetividades distintas. Esse movimentar-se das pessoas é percebido através da nova ordem social, que Maffesoli diz ser fruto do deslocamento e tensão das intenções. Parte da antiga ordem, calcada em uma estrutura mecânica do social, à atual estrutura complexa ou orgânica da sociabilidade. A primeira considera a função dos indivíduos em grupos contratuais, enquanto a segunda toma o papel das pessoas em tribos afetuais (MAFFESOLI, 2010, p. 31). Com base em tal entendimento, sustenta que as novas experiências de sociabilidade podem ser analisadas pelo viés do conceito de tribalismo, presente na comunidade emocional. No nosso discurso, a comunidade emocional se apresenta no campo teórico-metodológico como uma “subjetividade coletiva”, um corpo que constrói o conceito de cidade, tanto cotidiano como científico (VIGOTSKI, 1998), segundo os trajetos físicos e cognitivos que se apropriam e representam os territórios

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urbanos. E o que é esta comunidade emocional para Maffesoli? Resumidamente, uma dialógica que relaciona três paradigmas: o estético, o ético e de costumes. 1.2.1 O paradigma estético O paradigma estético faz alusão ao teatro de Beckett, em que este destrói a ilusão de um indivíduo senhor de si mesmo e de sua história, pois o individualismo é um encarceramento que deve ser abandonado (MAFFESOLI, 2010, p. 36). Maffesoli reconhece nesta postura de Beckett a “(...) ideia de persona, da máscara que pode ser mutável e que se integra, sobretudo, numa variedade de cenas, de situações que só valem porque são representadas em conjunto” (MAFFESOLI, 2010, p. 37). Trata-se ainda, da multiplicidade do eu; o que serve para a reflexão sobre as múltiplas identidades é a ambiência de fundo em que se instalam os eventos históricos e não somente a vida vivida. Não podemos perder de vista que, (...) a arquitetura não é apenas arte nem só imagem da vida histórica ou vivida por nós e pelos outros; é também, e, sobretudo, o ambiente, a cena [que olhamos e] onde vivemos a nossa vida (ZEVI, 2011, p. 28).

Isto é o que Maffesoli considera como “paradigma estético”, “(...) o sentido de vivenciar e sentir em comum” (MAFFESOLI, 2010, p. 37), pois a persona somente existe na relação com o outro. Conforme compartilhado por Morin e Vigotski, neste sentido a dicotomia entre sujeito e objeto é diluída. Assim, Maffesoli propõe uma ciência que una o sujeito ao objeto e não que os separem de maneira racional e redutora. O que coincide com o princípio dialógico enunciado por Morin & Le Moigne (2000). A sociabilidade deixa de ser um contrato e passa a ser um mito, do qual participamos como comunidade. Não nos esqueçamos que o mito, neste caso, é visto como uma forma de pensar, já articulado por Morin, quando diz que os mitos falam tanto da relação natureza–cultura, como também de tudo o que se relaciona à identidade humana (MORIN, 1999, p. 175). Isso é o que Maffesoli chama de aspecto dionisíaco, que evoca tipos sociais com os quais uma comunidade é capaz de se identificar e construir uma estética

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comum. Ao mesmo tempo “(...) servem de receptáculo à expressão do ‘nós’” (MAFFESOLI, 2010, p. 37). Em um sentido mais amplo, (...) o tipo mítico tem uma simples função de agregação (...). Exprime o gênio coletivo num momento determinado. [§] Inúmeros exemplos da vida cotidiana podem ilustrar a ambiência emocional que emana do desenvolvimento tribal. Além disso, podemos notar que esses exemplos não espantam mais, já fazem parte da paisagem urbana (MAFFESOLI, 2010, p. 38).

Tais exemplos, aos quais Maffesoli se refere e que estão presentes nas megalópoles, dizem respeito à imagem passada pela aparência do corpo de um determinado grupo (personalização como apropriação46). As relações de simpatia entre grupos, fragilidade de distinção entre sujeito e objeto, a extensibilidade do eu (MAFFESOLI, 2010). Por isto, é importante afirmar a associação do estudo da contemporaneidade trazido por Maffesoli (2010) ao pensamento complexo de Morin & Le Moigne (2000), ainda que com epistemologias distintas, uma vez que ambos não consideram a noção de distinção, que separa através de uma lógica binária os eventos sociais e pessoas. Tratamos na atualidade de uma socialidade focada na empatia, que por definição é “a tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa” (AURÉLIO, 2004). Essa [empatia] vai exprimir-se numa sucessão de ambiências, de sentimentos, de emoções. (...) para descrever as relações que imperam no interior de microgrupos sociais, ora para especificar como esses grupos se situam nos seus contornos espaciais (ecologia, habitat, bairro) (MAFFESOLI, 2010, p. 39).

Com base em tais aspectos, Maffesoli se vale da análise sócio-histórica de M. Weber47 (1971) sobre “comunidade emocional”, que tem como principais características: “o aspecto efêmero, a composição cambiante, a inscrição local, a ausência de uma organização e estrutura cotidiana” (MAFFESOLI, 2010, p. 40). Isto quer dizer, que a comunidade emocional acontece em um instante, quase que “por acaso”, que pode, mas não tem a obrigatoriedade de se instalar como algo definitivo. Ela acontece ainda em uma determinada localidade, em um território. Pode reunir

46 47

Para o debate sobre apropriação ver capítulo 2. [Citado] Cf. WEBER, M. Économie et société. Paris: Plon, 1971, por exemplo, pp. 475-478.

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personas de grupos diversos que emanam algo em comum ligado pela emoção coletiva, que por sua vez pode ser motivada por diversas temáticas sociais. Importante sublinhar que nas palavras do autor a emoção, por esse aspecto, não é tida como uma simples afetação social, mas como uma atitude, pois significa “(...) o dispêndio, o acaso, a desinvidualização” (MAFFESOLI, 2010, p. 40), não se inserindo de forma linear nos processos sócio-históricos, mas simplesmente ilustram aspectos da vida cotidiana, (...) a partir da qual se cristalizam todas as representações: trocas de sentimentos, discussões de botequim, crenças populares, visões de mundo e outras tagarelices sem consistência que constituem a solidez da comunidade de destino (MAFFESOLI, 2010, p. 41). (...) a emoção ou a sensibilidade devem, de algum modo, ser consideradas como um misto de objetividade e de subjetividade (MAFFESOLI, 2010, p. 43).

A comunidade emocional é uma experiência vivida em conjunto e produz uma sociedade complexa e dialógica, por isso, entendemos conveniente considerar o grupo de jovens que nos comunica o que é cidade uma comunidade emocional formada por personas. A emoção ainda, neste sentido, tem a função de um conhecimento sobre algo que é composto por uma pluralidade de elementos, mas em uma determinada ambiência (MAFFESOLI, 2010, pp. 41-42). Confirmando nossas indagações iniciais, a estética da emoção não é algo vivido individualmente, está em relação com o outro, que tanto pode ser uma persona, como o território em que se instalam as interações, é a ambiência que está ligada a emoção como experiência ética. 1.2.2 O paradigma ético O paradigma ético na comunidade emocional não é visto como um moralismo imposto. Para Maffesoli, deve ser tratado como algo que emana a partir de um grupo empático, pois, no território, as ambiências favorecem diversas estéticas e produzem a ética, uma moralidade diferente (MAFFESOLI, 2010, p. 44). O autor observa que por mais dinâmica ou efêmera que seja uma comunidade emocional, ela estabelece uma espécie de conformismo entre seus membros, uma “aceitação” dos fatos, ou seja, “a lei do meio” que fundamenta a ética comunitária UFRJ I FAU I PROURB

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(MAFFESOLI, 2010, pp. 45-46). O que é tratado neste âmbito é o estar-junto solidário, que nasce quando existe a interação entre personas em uma situação sociocultural, com a partilha de um mesmo território, quer seja real ou simbólico (p. 46), pois, neste caso, (...) todo [o] conjunto social possui um forte componente de sentimentos vividos em comum. São esses que suscitam essa procura de uma “moralidade diferente”, (...) uma experiência ética (MAFFESOLI, 2010, p. 47).

A comunidade volta sua energia para a sua criação-recriação-recreação (MAFFESOLI, 2010, p. 47), que constrói a imagem que faz de si. Através deste processo estabelece laços entre a solidariedade e a ética comunitária como uma experiência “ritualizada”. Neste sentido, Maffesoli (2010) aponta que o ritual é uma prática cotidiana que ressalta as multiplicidades gestuais de um dado grupo e faz este grupo lembrar que ele constitui um corpo (p. 48). Assim, a solidariedade se configura como a base de construção dessa comunidade capaz de viver sentimentos em comum. Maffesoli esclarece esta relação solidária se valendo de exemplos que justificam o porquê de uma comunidade ocultar um criminoso, ou da lei do silêncio imposto pela máfia não ser transgredida. O que tem em comum um criminoso e o restante da comunidade? Aquilo que foi enunciado no início, a proximidade e a partilha de um mesmo território cotidiano (MAFFESOLI, 2010, p. 49). A experiência emocional e a ética solidária decorrem do fato de uma determinada comunidade participar de e satisfazer a, o que por si só corresponde a uma identificação de grupo que está ligada a uma emoção (sensibilidade) local (MAFFESOLI, 2010, p. 50). Com isto podemos vislumbrar, através das suas palavras, que (...) O ideal comunitário de bairro ou aldeia age mais por contaminação do imaginário coletivo do que por persuasão de uma razão social. (...) a sensibilidade coletiva originária da forma estética acaba por constituir uma relação ética (MAFFESOLI, 2010, p. 50)48.

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Maffesoli constrói esta ideia com base nas reflexões sobre obra de arte empregada por W. Benjamin.

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Especulamos analiticamente que, a representação que um determinado grupo tece sobre o que seja a cidade, em determinados casos pode ser fruto de um ideário, uma sensibilidade coletiva, e que é instada, pelo contexto no qual está inserida (localismo), a interpretar a realidade de uma determinada maneira. Maffesoli ressalta, neste aspecto, que vivemos realidades diversas, em que a realidade será dada pelo que ele chama de aura, mas que em essência significa o que Morin denomina de espírito (MORIN, 1999), que nada mais é do que constituir cultura, e que serve de fonte para a construção do pensamento simbólico-mitológicomágico que conforma a realidade. 1.2.3 O paradigma do costume Maffesoli se refere ao costume como um habitus49, ou ao banal vivido no dia a dia. O costume é a maneira de fazer de uma comunidade, e é “(...) uma das formas mais típicas da vida social, (...) que determina a vida social” (SIMMEL50 apud MAFFESOLI, 2010, pp. 53-54). Trata-se quase de um código genético que limita e delimita a maneira de estar com os outros muito mais do que poderia fazê-lo a situação econômica ou política. É nesse sentido que depois da estética (o sentir em comum) e da ética (o laço coletivo), o costume é seguramente, uma boa maneira de caracterizar a vida cotidiana dos grupos contemporâneos (MAFFESOLI, 2010, p. 54).

Ele considera, nesse sentido, o costume como algo implícito a uma sociedade e que fundamenta as redes de solidariedade, ou o estar-junto. Os termos empregados pelo autor para se referir ao costume são, primeiramente, o de centralidade subterrânea, e que faz alusão a forma de poder emanada pelo centralismo democrático, o outro é potência social em oposição ao poder. O que essas expressões pretendem sublinhar é que uma boa parte da existência social escapa à ordem da racionalidade instrumental, não se deixa finalizar e não pode se reduzir a uma simples lógica de dominação (MAFFESOLI, 2010, p. 54).

49

Segundo Setton (2002), habitus é um conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu (1992) que pretende mediar a aparente oposição entre a realidade individual e coletiva. “Hábito é então concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano” (SETTON, 2002, p. 63). 50 [Citado] SIMMEL, Georg. Problèmes de la sociologie des religions. In: Archives de sociologie des religions, n° 17, 1964. pp. 12-44. UFRJ I FAU I PROURB

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O que está em questão neste caso são os aspectos rituais, as experiências que, para Maffesoli, desenham um espaço de liberdade, pois o cotidiano é fundamentado por ações livres e relativas (MAFFESOLI, 2010, pp. 54-55). O autor especula ainda que os costumes se aproximam do sagrado por serem, para a vida cotidiana, o que o ritual é para o sagrado, ou seja, alguma coisa que acontece quase sem explicação e de uma forma inquietante. Neste aspecto é praticamente impossível separar costume de rito, no que pese o esforço das ciências sociais para fazê-lo. Maffesoli, então, trata o costume como um processo de comunicação, que bem dialoga com os elementos natural e cultural, e guarda um aspecto “trajetivo”, nos termos dados pela Escola de Palo Alto51,52 (MAFFESOLI, 2010, p. 56), qual seja: relacionar dialogicamente objetividade e subjetividade, os trajetos físicos e cognitivos que constituem o conhecimento. Seguindo a mesma linha de pensamento de Palo Alto coloca, ainda, que tal processo é parte essencial na observação socioespacial do ambiente urbano, no caso, o bairro. Essa Escola embasa seu processo de observação espacial nos aspectos afetivos, por isso é importante atentar que a conotação afetiva é um termo que ressurge nas ciências sociais do século XXI, (...) sob a pena de diversos observadores sociais, sinal de que ela já existe em várias cabeças. Esse “bairro” pode assumir matizes bem diversos. Ele pode, delimitado por um conjunto de ruas, designar uma área libidinalmente investida (bairro “quente”, do “vício” etc.), fazer referência a um conjunto comercial, a um ponto nodal dos transportes coletivos, isso pouco importa. Na verdade, trata-se de um espaço público que conjuga uma certa funcionalidade com uma inegável carga simbólica. Inscrevendo-se profundamente no imaginário coletivo, ele é, entretanto, constituído pelo entrecruzamento de situações de momento, de espaço e de gente comum; e, por outro lado, na maior parte das vezes, ele é falado por meio dos estereótipos mais banais. O square, a rua, a tabacaria da esquina, o jornaleiro etc. Aí estão, conforme os centros de interesse ou de necessidade, outras tantas pontuações triviais da socialidade. Entretanto, é essa pontuação que suscita a aura [o espírito] de tal ou tal bairro. E é de propósito que emprego este termo, na medida em que ele traduz muito bem o movimento complexo da atmosfera que emana dos lugares, das atividades, e 51

A Escola de Palo Alto é uma corrente de pensamento que surgiu na Califórnia dos anos 1950. Seus estudos são correntes em psicologia, psicossociologia, ciências da informação e da comunicação em relação aos estudos que abordam a cibernética. 52 [Citado] “A Escola de Palo Alto é agora bastante conhecida na França, encontramos geralmente as obras de Bateson, Watzlawick, (...) o termo “trajetivo” [considera a relação entre objetivo e subjetivo] é utilizado por A. Berque em seu artigo “Expressing Korean mediance” (...). Sobre o bairro cf. K. Noschis, La signification affective du quartier, Paris, Librairie des Méridiens, 1983; e F. Peletier, Lecture anthropologique du quartier. In : Espace et societé, Paris, Anthropos, 1975, nº 15 (MAFFESOLI, 2010, p. 264). UFRJ I FAU I PROURB

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que E. Morin fala poeticamente a propósito de certo bairro de Nova Iorque, que desfila talento, ainda que apoiado na “ausência de talento dos indivíduos”. E estende esse talento à cidade inteira, que se torna obra-prima, ao passo que “as vidas são lamentáveis”. Porém prossegue ele, “... se você se deixa possuir pela cidade, se você se agarra aos fluxos de energia, se as forças da morte que estão aí para triturar você lhe despertam a vontade de viver, então Nova Iorque psicodeliza você”53 (MAFFESOLI, 2010, pp. 56-57).

Maffesoli trata essa metáfora de Morin como uma forma de exprimir os trajetos constantes entre real e imaginário, entre “(...) o estereótipo consuetudinário e o arquétipo fundador” de um ambiente urbano, fundamentado pela sociabilidade nos espaços públicos, território propício às emanações das emoções (MAFFESOLI, 2010, p. 57). Cabe aqui um parêntese, para expor de maneira mais direta o nosso entendimento sobre espaço público. Acreditamos que tais espaços são produtos da história em constante movimento, “uma construção social” (SERFATY, 1988, p. 116) produzida por intenções e representações de um contexto. Os espaços públicos urbanos podem ser então percebidos como territórios coletivos, interiores e exteriores, de sociabilidade, em função da existência ou não de limites físicos e/ou simbólicos de controle. Os muros, tetos e portas colocam a questão do controle de acesso [aos espaços públicos urbanos interiores], mas também das regras de utilização do lugar (...). [§] Trata-se de uma dupla questão, que considera não somente a abertura social de um lugar, mas também a definição dos usos sociais possíveis deste lugar (...). [§] Esta dupla questão pode ser pensada a propósito dos diversos territórios onde o proprietário é a comunidade, tais como: escolas, universidades, teatros e museus nacionais54 (SERFATY, 1988, p. 112).

Já os espaços públicos exteriores são por excelência os territórios urbanos do coletivo, onde observamos as práticas dos costumes de uma comunidade em interação com as ambiências que animam esses territórios, e desenham o sistema de espaços livres de uma cultura.

53

[Citado] E. Morin e K. Appel, New York, Paris, Galelée, 1984, p.64. Sobre o “trajeto antropológico” penso naturalmente no livro clássico de G. Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire, Paris, Borbas, 1969. (MAFFESOLI, 2010, pp. 264-265). 54 [Tradução livre da Autora] «Les murs, les toits et les portes posent la question du contrôle de l'accès, mais aussi des règles de jouissance du lieu (…). [§] Il s'agit là d'une double question, qui porte non seulement sur l'ouverture sociale d'un lieu, mais aussi sur la définition des usages sociaux possibles de ce lieu (…). [§] Cette double question peut être posée à propos de beaucoup de territoires dont le propriétaire est en fait la communauté: écoles, universités, théâtres et musées nationaux» (SERFATY, 1988, p. 112). UFRJ I FAU I PROURB

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Os espaços públicos urbanos são os territórios coletivos exteriores, com limites físicos claramente definidos (por edifícios, por exemplo, ou jardins e praças, e ruas) e facilmente acessíveis (por diversas ruas, ruelas, escadarias etc.). Nesse sentido, são lugares escolhidos e abertos, que favorecem o estar tanto quanto a passagem. Devido ao seu caráter de espaço fisicamente e socialmente aberto, o seu papel e as práticas que lhes são próprias são influenciadas pelo contexto urbano no qual eles se inserem. Sua situação, arquitetura e funções simbólicas de muitos desses espaços, faz com que eles desempenhem, por outro lado, um papel estrutural no tecido urbano como um todo55 (SERFATY, 1988, p. 120).

Ao fundamentar o espaço público como território de sociabilidade, destacamos, ainda, que ele é um importante suporte material para o desenrolar dos “trajetos” físicos e cognitivos que contribuem na construção do conhecimento da comunidade emocional. O debate sobre os trajetos, entre o ser e o devir, é aprofundado no capítulo 2, através do discurso de que tais trajetos cimentam a vida cotidiana da cultura vivida no dia a dia e constituem a significação emocional do que é a cidade representada. Existem possibilidades infinitas de trajetos que respondem às sensibilidades coletivas. A observação de base etnográfica é uma forma investigativa das ciências sociais que nos auxilia na identificação desses trajetos sensíveis. As sensibilidades são vividas no presente, e “(...) se inscrevem num espaço dado” (MAFFESOLI, 2010, p. 58), um território. Por isso, o costume é considerado essencial para o autor, pois mantém a vitalidade das tribos metropolitanas, costura teias de amizade através do que tratamos como solidariedade (experiência ética), que constrói o corpo coletivo da comunidade emocional. Maffesoli observa, ainda, que o corpo coletivo é estimulado e mantido por uma espécie de sacralidade presente nas relações sociais, expressa principalmente pela “circulação das palavras” nos territórios vivenciados (MAFFESOLI, 2010, p. 60). Desta forma, “(...) o costume, como expressão da sensibilidade coletiva, permite,

55

[Tradução livre da Autora] «Les places publiques urbaines sont des territoires collectifs extérieurs, aux limites physiques clairement définies (par de bâtiments par exemple, ou des jardins, des rues) et aisément accessibles (par plusieurs rues, ruelles, escaliers etc). En ce sens, ce sont des lieux à la fois élus et ouverts, qui favorisent le séjour autant que le passage. Du fait de leur caractère d'espace physiquement et socialement ouvert, leur rôle et les pratiques qui leur sont propres sont influencés par le contexte urbain dans lequel elles s'insèrent. Leur situation, l'architecture et les fonctions symboliques de nombre d'entre elles font qu'elles jouent, d'autre part, un rôle structurant du tissu urbain dans son ensemble» (SERFATY, 1988, p. 120). UFRJ I FAU I PROURB

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stricto sensu, um ex-tase no cotidiano” (p. 61) que cria o “espírito” ou “aura” para o tribalismo. O que o autor julga importante captar é que o dionisíaco nem sempre está ligado à festa, ele também permite compreender o senso comum e ressaltar o que é vivido, “as correntes de experiências” (p. 61). As experiências coletivas constroem o conhecimento, mediado pela palavra, entre os conceitos científicos e cotidianos enunciados por Vigotski (1998), o que nas palavras de Maffesoli significa que, (...) ao lado de um saber puramente intelectual, existe um conhecimento que também integra a dimensão sensível, um conhecimento que, mais de acordo com sua etimologia, permite [tal como enunciado por Morin no início deste capítulo] “nascer junto” (MAFFESOLI, 2010, p. 61).

Ele deixa clara que uma das formas de investigação da emoção é a observação da palavra expressa por novas formas de oralidade. No caso, Maffesoli se refere principalmente à palavra informatizada, mas que se aplica a observação de qualquer diálogo, pois a interação mediada pela palavra cumpre o papel de estabelecer vínculos e “(...) confirma o sentimento de participar de um grupo mais amplo, de sair de si” (MAFFESOLI, 2010, p. 63). Nesse sentido, estamos mais atentos ao continente, que serve de pano de fundo, que cria a ambiência e que, por isso une. Em todos os casos, trata-se, antes de tudo, daquilo que permite a expressão de uma emoção comum, daquilo que faz com que nos reconheçamos em comunhão com o outro (MAFFESOLI, 2010, p. 63).

Estudar a comunidade emocional é, portanto, voltar o olhar para a comunicação estabelecida e a construção de um conhecimento emocional representado pela relação do mundo “experimentado” com o mundo “dado” [Figura 1]. O fenômeno das emoções ou sensibilidades das multidões que se fragmentam em grupos tribais, ou as tribos emocionais que se aglutinam nas multidões, deve ser entendido, conforme citado por Maffesoli, como o “reencantamento de um mundo” (MAFFESOLI, 2010, p. 65) que toma como referência cotidiana a vida vivida em comum. A percepção que temos do conhecimento construído pelas comunidades emocionais nos impele a fazer uma pequena etnografia das emoções, analisando as territorialidades desenhadas nos trajetos entre o ser e o devir, individual e coletivo, UFRJ I FAU I PROURB

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com o objetivo de melhor apreender o sentido do estar-junto solidário daqueles que partilham a apropriação de um mesmo território urbano interligado por emoções comuns.

Figura 1: Quadro síntese da eco-auto-organização do conhecimento a partir da comunidade emocional. Fonte: MORIN & LE MOIGNE, 2000; VIGOTSKI, 1998; MAFFESOLI, 2010.

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CAPÍTULO II REPRESENTAÇÕES DO TERRITÓRIO E DA PAISAGEM: MANEIRAS DE VER E VIVER O ESPAÇO URBANO Nossas reflexões neste capítulo giram em torno das representações dos territórios urbanos enquanto construção de um conhecimento coletivo dentro de comunidades emocionais que se apropriam dos espaços da cidade. Para Maffesoli (2010), na comunidade emocional a edificação do conhecimento é coletiva, por isso, as representações dos territórios urbanos são manifestações das territorialidades de diversos grupos. Nesse sentido, consideramos, de início, os territórios urbanos como suportes para as representações, que desenham territorialidades, percebidas por Haesbaert (2009) como lugares de partida para a construção do pensamento sobre a configuração de fronteiras de domínio e estabilidade das identidades, por aqueles que veem e vivenciam os espaços públicos da cidade por diversos filtros culturais. Esta reflexão traz à cena um dos nossos principais referenciais teóricometodológicos que é o geógrafo Raffestin (1977, 1995), que entende os territórios urbanos como compostos por movimentos de territorialização-desterritorializaçãoreterritorialização (RAFFESTIN, 1977) de identidades. Tais movimentos estão explícitos no que ele chama de linguagem da territorialidade, e, a partir deste discurso, Raffestin (1997) estabelece uma fortuita aproximação entre linguagem e constituição identitária da relação indivíduos-territórios. Concepção que nos é pertinente, uma vez que acreditamos que a representação do espaço urbano é uma forma de conhecimento, organizado pelo pensamento e a linguagem, tal como vimos no capítulo 1. Para tornar possível a análise do discurso sobre língua e território, na perspectiva do que Raffestin (1977) chama de “antropológica das relações construídas de territorialidades56” (p. 132), investigamos as ações e intenções de comunidades emocionais estabelecidas no interior dos territórios cotidianos, de trocas, referenciais e sagrados. O autor sugere que tal análise é possível pela

56

O capítulo 3 trata da metodologia de coleta de dados em campo.

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observação das relações de dominação e posse, perceptíveis através das diversas formas de apropriação que indivíduos e grupos fundam para “limitar” suas territorialidades, ou delas escapar. Nesse movimento (ação) de apropriação está em questão a afirmação de identidades que intencionam pertencer ao todo urbano. É possível detectar, então, que no seio deste processo de identificação, indivíduos e grupos significam lugares quando os representam, através do que Bailly (1985) chama de trajetos marcados por distâncias topológicas e cognitivas. Para Bailly (1990), isto aponta “os elementos de construção de nossas representações estruturais; e os de significações socioculturais do lugar” (p. 266), que irão compor nossa proposta de método da análise da paisagem e da territorialidade, fazendo emergir, daí, as nuances da “cidade emoção”.

2.1

O território e a desterritorialização nas constituições identitárias Nossa intenção aqui é pensar o território como um “limite” que acomoda

identidades, mas um “limite” que também pode ser rompido por ações intencionais de determinados grupos que buscam se identificar com outras realidades. Convém deixar claro que o entendimento acadêmico sobre o que é território é vasto e admite variadas interpretações de origem epistemológica, em função da área de conhecimento (HAESBAERT, 2009). Segundo Haesbaert (2009), as áreas da geografia, economia, sociologia, antropologia e psicologia têm suas perspectivas aproximadas, na medida em que entendem que o “(...) território diz respeito à espacialidade humana” (HAESBAERT, 2009, p. 37), como nos localizamos e com quem nos identificamos no espaço-tempo sociocultural. Aponta, ainda, que o território comporta: por um lado, o binômio materialismo-idealismo que evoca a visão “parcial” do território e que trata das dimensões econômicas, política, cultural e natural, numa perspectiva “integradora”. Por outro, o binômio espaço-tempo, que tanto diz respeito ao seu caráter absoluto, ou relacional que incorpora a dinâmica temporal que distingue a “coisa” ou o objeto e o coloca em relação ao processo sócio-histórico, como realça a historicidade e a geograficidade (HAESBAERT, 2009). UFRJ I FAU I PROURB

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Dessa forma, partilhamos com Haesbaert que o território é relacional nos processos histórico-sociais57, por incluir uma “(...) relação complexa entre processos sociais e espaço material” (HAESBAERT, 2009, p. 82). Isto não implica necessariamente uma percepção reducionista “(...) do espaço como enraizamento, estabilidade, delimitação e/ou fronteira” (p. 82), pois o mesmo autor diz que o território é um processo oriundo de um “movimento, fluidez, interconexão”, quer dizer, envolve temporalidade (p. 82). Em nossa perspectiva, tal movimento interacional no tempo-espaço é fundamental para tecermos o conhecimento sobre as sobreposições temporais dos diversos territórios que compõem a complexidade estrutural e da vida urbana. Refletimos, a partir de então, de forma interrogativa, e ainda com base nas considerações que Haesbaert tece sobre a obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2007, p. 90): (...) como cada um, em toda idade, nas menores coisas, como nas maiores provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterritorializações, e se reterritorializa quase sobre qualquer coisa, lembrança, fetiche ou sonho [?]

Mas sem ignorar que a procura por um território próprio é um processo que organiza o sujeito, situando-o e identificando-o no binômio tempo-espaço (HAESBAERT, 2009, p. 41) como um sujeito pertencente a uma ambiência específica, ou seja, a uma determinada cultura que acontece em uma situação socioespacial, que funda uma “comunidade emocional” (MAFFESOLI, 2010). 2.1.1 O território na interpretação de Haesbaert O pensamento sobre territorialidade e desterritorialização apresentado por Haesbaert (2009), embasado nas obras de Deleuze e Guattari58, considera o território não como algo permanente, mas, sim, como algo que está em devir, em movimento interacional de “(...) constante fazer-se” (HAESBAERT, 2009, p. 100). Assim, um território é fruto de “agenciamentos” (DELEUZE apud HAESBAERT, 2009), uma forma

57

Cf. VIGOTSKI, 1998. Capítulo 1.

58 A análise sobre o conceito de desterritorialização feita por Haesbaert (2009) é centrada nas obras: O Anti-Édipo:

capitalismo e esquizofrenia (DELEUZE e GUATTARI, s/d; publicação original, 1972), Dialogues (DELEUZE e PARNET, 1987), Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (DELEUZE e GUATTARI; obra completa), e O que é a filosofia? (DELEUZE e GUATTARI, 1991) (HAERSBAERT, 2009, p. 100). UFRJ I FAU I PROURB

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de desejo, as intencionalidades, também abordadas por Morin e Vigotski no capítulo 1, e que, em Haesbaert, se constituem pelos eixos da territorialidade e desterritorialização (p. 123). Para melhor apreender a ideia de território, o autor propõe ainda, que pensemos o conceito a partir do que é enunciado por Guattari e Rolnik59 na obra “Micropolítica: Cartografia do Desejo”. A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos [grifo nosso] (GUATTARI e ROLNIK60, apud HAESBAERT, 2009, pp. 121-122).

Esta concepção aponta que, para a construção de um pensamento sobre a cidade, na perspectiva das relações e representações, não podemos negligenciar a forma como sujeitos e grupos se apropriam dos espaços, significando-os, ou seja, é fundamental considerar as subjetivações que ocorrem a partir das apropriações socioculturais, estéticas e cognitivas dos espaços material ou imaginário intencionados. Essencial, portanto, é compreender o que Haesbaert chama de agenciamento, reiterando que este é interpretado por nós como uma vontade, uma intencionalidade, termo que assumiremos daqui por diante para facilitar a leitura através da nossa construção teórica. Seguindo Deleuze e Guattari, o autor afirma que o “território cria o agenciamento [intencionalidade]” (HAESBAERT, 2009, p. 122) ao ultrapassar o simples comportamento e por extrapolar, ao mesmo tempo, o organismo e o meio e a relação entre eles. Assim, as intencionalidades são “moldadas nos movimentos concomitantes de territorialidade e desterritorialização” (p. 123), que são vislumbrados por nós como uma relação dialógica, que articula, na percepção do autor, “campos de interioridade” e “linhas de fuga” (pp. 122-123). Haesbaert

59 60

[Citado] Cf. GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. Ibidem.

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anuncia, pois, que constituir territorialidades não é meramente fruto do comportamento61, mas sim de intencionalidades movidas pelos desejos ou paixões. Os “campos de interioridade” referem-se à territorialidade na qual a intencionalidade se articula em torno de um conteúdo que é composto de componentes não discursivos e sistemas pragmáticos (paixões e ações). Estes resultam em “agenciamentos maquínicos do corpo” (ou de desejo), qual seja também, de forma redundante, as intencionalidades desejadas de um indivíduo, pois agenciar algo é almejá-lo. Por sua vez, esta expressão, que é constituída por componentes discursivos e sistema semiótico (regime de signos), resulta nos “agenciamentos coletivos de enunciação” (HAESBAERT, 2009, pp. 123-124); isto é, as intenções desejadas coletivamente que anunciam alguma coisa por representações. (...) A construção do território, ou seja, o processo de territorialização, diz respeito, assim, ao movimento que governa os agenciamentos [intencionalidades] e seus dois componentes: os agenciamentos coletivos de enunciação e os agenciamentos maquínicos de corpo (ou de desejo) (HAESBAERT, 2009, pp. 123-124).

Portanto, a territorialização tanto é organizada por intencionalidades individuais como coletivas. Lembramos que a disjunção entre corpo social e individual é um pensamento que não encontra eco no debate dialógico, pois a lógica é unir ideias aparentemente distintas – individual↔coletivo– e a partir de então apreender suas singularidades expressas por representações. Haesbaert (2009, p. 124) concorda, do mesmo modo, que as intencionalidades individuais “dizem respeito a um estado de mistura entre os corpos [indivíduos] em uma sociedade” e que as intencionalidades coletivas concernem. (...) a um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam os usos dos elementos da língua” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 3262). Os agenciamentos coletivos de enunciação não dizem respeito a um sujeito, pois sua produção só pode se efetivar no próprio socius, já que dizem respeito a um regime de signos compartilhados, à linguagem, a um estado de palavras e símbolos (HAESBAERT, 2009, p. 125).

61

Cabe aqui observar, mais uma vez, que estamos embasados epistemologicamente por um pensamento interacionista e sócio-histórico, que não entende os mecanismos de constituição das identidades unicamente através do comportamento (behaviorismo), e que tende a identificar as territorialidades, de forma quantitativa, pelos aspectos topológicos de localização dos indivíduos e grupos. 62 [Citado] Cf. DELEUZE e GUATTARI. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1980. UFRJ I FAU I PROURB

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Nós relembramos que nossa argumentação teórica busca destacar a construção de conceitos trazida por Vigotski (1998). Para este autor, a construção de um conceito é uma operação intelectual que reúne representações distintas, sendo mediada pela palavra, que sintetiza e simboliza algo através de um signo (VIGOTSKI, 1998, p. 101). No nosso caso, o conceito de cidade por representações distintas através da mediação comunicacional. Interpretamos então, que o papel mediador da palavra, que sintetiza a representação, também se produz entre o que Haesbaert (2009) diz sobre intencionalidades individual↔coletivo. Respectivamente, pela sua característica relacional entre as coisas, as vivências pura e simplesmente, ao que Vigotski (1998) dá o contorno de conceito cotidiano; pela ideia de coletividade, um signo socialmente construído e que é entendido por todos, ao que o mesmo autor chama de conceito científico. É importante afirmar que um não se submete ao outro, mas eles se complementam no entendimento amplo e contextualizado do objeto de conhecimento pela dialógica, recursividade e hologramática do pensamento complexo. Igualmente, Haesbaert sustenta que nas intencionalidades um não reduz o outro, pois “(...) trata-se de um movimento recíproco e não hierárquico” (HAESBAERT, 2009, p. 125), movimento mútuo onde se constituem os territórios (p. 126). Para o autor, é evidente que Deleuze e Guattari articulam o desejo ao pensamento, o que para nós equivale a aproximar o desejo à “emoção de almejar algo”, uma vez que este almejar aflora da localização e transgressão de um indivíduo ou grupo dos limites daquilo que nos é ensinado como nosso território próprio. Conhecemos movidos pela vontade, por uma intencionalidade que é também impulsionada pela emoção, que se forma na conjunção de sentimentos distintos. No momento em que nos asseguramos da possibilidade de existências territoriais diversas, que tanto podem ter materialidades conhecidas por nós, como serem intangíveis, desejamos ou repelimos emocionalmente as realidades por nossos mecanismos de identificação. Nesse sentido é que se criam territórios emocionais, pois “podemos nos territorializar em qualquer coisa” (HAESBAERT, 2009, p. 126) que se articula entre o

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conhecimento espontâneo e científico (VIGOTSKI, 1998), entre as intencionalidades individuais e coletivas. Conforme destaca Haesbaert (2009, pp. 126-127) sobre o conceito de território, em Deleuze e Guattari, este, (...) diz respeito ao pensamento e ao desejo – desejo entendido sempre como uma força “maquínica”, ou seja, produtiva. (...) Muito mais do que uma coisa ou objeto, o território é um ato, uma ação, uma relação, um movimento (de territorialização e desterritorialização), um ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle.

A partir de tais considerações, o autor propõe a ampliação da ideia de território ao considerar que sua produção é potencializada pela relação entre intencionalidades, por isso, comporta dentro de si a ideia de des-re-territorialização (HAESBAERT, 2009, pp. 126-127). 2.1.2 A desterritorialização na interpretação de Haesbaert A desterritorialização diz respeito às linhas de fuga63, nas quais a intencionalidade não apresenta mais conteúdo nem expressão distintos (HAESBAERT, 2009, p. 123). Em consonância com os teoremas propostos por Deleuze e Guattari64, o autor conclui que a desterritorialização é o abandono do território articulado pelas intencionalidades, ou seja, “é a operação da linha de fuga” (HAESBAERT, 2009, p. 127). Da mesma forma que reterritorializar é reconstruí-lo com novas

intencionalidades,

porém

fazendo

uso

das

intencionalidades

de

desterritorialização para criar novas territorialidades, em um movimento que é expresso pela complementariedade entre intencionalidades de desterritorialização e reterritorialização.

63 O termo “linha de fuga” é comumente utilizado por Deleuze e Guattari em Mil Platôs. Interpretamos que a

ideia está associada às possibilidades de existência que afloram de um indivíduo, grupo ou nação, associadas aos seus desejos, vontades ou crenças, e que se encontram fora de seu território estabelecido e aparentemente seguro (seja um território físico ou subjetivo). Por isso, ao falar sobre desterritorialização, é conveniente associar esta ideia como um processo de linhas fugidias, em outras palavras, são possibilidades de devires que reterritorializam, e que podem ser segmentadas, bloqueadas e limitadas o que ressalta o seu aspecto negativo, ou podem ser ativas, contínuas o que ressalta o seu aspecto positivo. Deleuze e Guattari observam que é na linha de fuga que se cria o novo, “(...) no homem, a fuga lhe parece ligada a valores do imaginário destinados a aumentar a ‘informação’ do mundo” (LABORIT apud DELEUZE e GUATTARI, 1996). 64 [Citado] Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Vol. 5. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. UFRJ I FAU I PROURB

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Haesbaert observa ainda que a ideia de desterritorialização de Deleuze e Guattari, além de estar associada ao movimento de complementariedade entre desterritorialização e reterritorialização, traz outro elemento no segundo teorema65, a velocidade. Em nossa interpretação integra, da mesma forma que a complementariedade, o princípio dialógico apresentado por Morin & Le Moigne, (2000, p. 204), a saber: a simultaneidade e a ideia de trajetórias debatidas ao longo desta pesquisa. Assim, (...) A intensidade da desterritorialização não deve ser confundida com a velocidade de movimento ou de desenvolvimento. De forma que o mais rápido conecta sua intensidade com a intensidade do mais lento, a qual, enquanto intensidade, não o sucede, mas trabalha simultaneamente sobre um outro estrato ou sobre um outro plano (DELEUZE e GUATTARI, 1996 apud HAESBAERT, 2009, pp. 128-129).

No terceiro teorema66, Deleuze e Guattari relacionam a intensidade como componente do processo de des-reterritorialização e propõem pensar a “desterritorialização relativa” e a “desterritorialização absoluta”67 (HAESBAERT, 2009, p. 129). A primeira relaciona-se ao socius, que culmina no abandono do território e sua consequente reterritorialização. A desterritorialização absoluta diz respeito ao pensamento (p. 130), que chamamos de conhecimento ou à possibilidade dele, e que se vincula ao ato criativo, porém sempre no intercruzamento entre o desterritorializar relativo e absoluto. A partir de então, Haesbaert deixa claro que a desterritorialização relativa é mais conectada ao saber do geógrafo (p. 130), afinal, esta constrói uma geografia da sociedade, e por isso centra aí suas observações. Porém, nosso estudo se refere à construção de um conhecimento, representação de cidade através das apropriações humanas nos diversos espaços públicos, os interiores e os exteriores68 (SERFATY, 1988). Um pensamento, a construção de um conhecimento sobre essa

65

Ibidem. Ibidem. 67 O termo “absoluto” enunciado por Deleuze e Guattari (1997) e trazido por Haesbaert é delimitado da seguinte forma: “o absoluto nada exprime de transcendente ou diferenciado, nem mesmo exprime uma quantidade que ultrapassaria qualquer quantidade dada (relativa). Exprime apenas um tipo de movimento que se distingue qualitativamente do movimento relativo” (DELEUZE e GUATTARI, 1997 apud HAESBAERT, 2009, pp. 225-226). “O termo absoluto, portanto, é um atributo que vai diferenciar a natureza deste tipo de desterritorialização; ela não marca uma superioridade ou uma dependência da desterritorialização relativa em relação à absoluta, ao contrário, (...) os dois movimentos perpassam um ao outro” (HAESBAERT, 2009, p. 130). 68 Conceitos balizados no Capítulo 1. 66

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ação material, a cidade, mas que tende a ser emocionalmente representada quer, digamos, como um conceito cotidiano↔científico (VIGOTSKI, 1998), quer por intencionalidades individuais↔coletivas (HAESBAERT, 2009), sempre na perspectiva da relação indivíduo-coletivo-território. Dessa forma, trataremos brevemente de explicitar a desterritorialização absoluta, sem ignorar que ela mantém contínuo diálogo e se faz com sua forma relativa. Pois, como diz Haesbaert, “(...) [o] pensamento trabalha buscando identificar os encontros” (HAESBAERT, 2009, p. 140), ou seja, o fundamental é entender que tanto o pensamento subjetivo como o socius se constituem em encontros trajetivos de identidades, construídas dialogicamente (p. 140). Tal como na construção do pensamento complexo de Morin, o conhecimento de algo é uma combinação que dialoga a localização de diversas identidades e que culmina em suas transgressões (MORIN e MOIGNE, 2000, p. 123), ou desterritorializações. E nós observamos, exatamente, nestas transgressões as representações como ato criativo da construção do conhecimento emocional sobre alguma coisa ou alguém, onde encontramos as possíveis re-territorialidades das identidades69. Reafirmamos dessa forma que, A desterritorialização absoluta refere-se ao pensamento. Para Deleuze e Guattari, o pensamento se faz no processo de desterritorialização. Pensar é desterritorializar [transgredir]. Isto quer dizer que o pensamento só é possível na criação, e para se criar algo novo, é necessário romper com o território existente, criando outro (HAESBAERT, 2009, p. 130).

Antes, somente as intencionalidades operavam a desterritorialização, agora, as “linhas de fuga” nos apontam o pensamento transgredido como sinônimo da desterritorialização. Assumimos, então, que pensamento também se desterritorializa e reterritorializa, como um processo de (re)criação das realidades. A “reterritorialização é a obra criada, é o novo conceito, é a canção pronta, o quadro

69

Chamamos a atenção para o fato de que o pensar, a construção do conhecimento é um processo relacional entre o sujeito no mundo na sua tomada de consciência, igualmente entendido por Morin (1999, p. 136) e por Deleuze e Guattari (1992, p. 113), uma vez que “pensar não é nem um fio estendido entre o sujeito e o objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território [pensar] e a terra [mundo]” (DELEUZE e GUATTARI, 1992 apud HAESBAERT, 2009, p. 131). UFRJ I FAU I PROURB

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finalizado” (HAESBAERT, 2009, p. 131). Tais analogias entre intencionalidades e pensamentos como (re)criadores de territórios, nos permitem capturar o que é a cidade, através do ser (viver) e perceber (ver) esta, ambos como intenção e pensamento de um socius, no nosso caso, um grupo de jovens em situação de pobreza, que transgride, dialogicamente, os limites de suas territorialidades operadas por apropriações. É importante ter presente que quando falamos de transgressão dos “limites” de um território para se reterritorializar através de um processo criativo, estamos pensando também a possibilidade de um indivíduo ou grupo transgredir, desterritorializar os significados do que Raffestin chama de “(...) espaço socialmente apropriado, produzido, dotado de significado” (HAESBAERT, 2009, p. 84), o que seria ultrapassar suas fronteiras formais e significativas para se reterritorializar. Esse movimento de ressignificação espacial, que ressignifica as identidades de indivíduos e grupos com o espaço é convencionado como movimentos de territorializaçãodesterritorialização-reterritorialização ou T-D-R [Figura 2].

Figura 2: Quadro síntese da eco-auto-organização do pensamento espacial a partir dos trajetos de ressignificação identitárias na territorialização-desterritorialização-reterritorialização. Fonte: MORIN & LE MOIGNE, 2000; VIGOTSKI, 1998; HAESBAERT, 2009.

A partir destas considerações, tecemos uma breve análise sobre a relação entre paisagem e territorialidade, que dialoga com o “sistema apresentado” ao “sistema representado” como forma de ver e viver o território pelas experiências, com o objetivo de mostrar que as “realidades” representadas são relacionais à UFRJ I FAU I PROURB

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cultura e à memória daquele que interpreta o território como objeto de conhecimento.

2.2

A paisagem e a territorialidade: um discurso metodológico sobre

o ver e o viver o espaço Partimos do senso comum, enunciado por Raffestin, de que é óbvio que a realidade do mundo é o reflexo das relações complexas que são tecidas entre coletividades e lugares, porém, o que não é trivial é a questão de como passamos do sistema apresentado ao sistema representado. O autor associa a ideia de “apresentação” à palavra inglesa “acquaintance” (RAFFESTIN, 1977, p. 123), que resumidamente significa conhecimento direto, uma forma de afirmar que o objeto de conhecimento é dado. Já a ideia de “representação” é associada à palavra “knowledge” (p. 123), o conhecimento por descrição, que tem um sentido abstrato e teórico, e nada mais é do que o conhecimento reflexivo mediado pelo pensamento70. Temos uma apresentação desta ou daquela coisa sem ter uma representação porque não temos uma concepção geral e um sistema de conceitos que nos permitiriam passar de um conhecimento imediato ao conhecimento teórico e abstrato. O que é este conhecimento teórico e abstrato? “Não é aderir ao mundo real, mas fazer uma leitura desta realidade, um esforço de inteligibilidade, no sentido etimológico da palavra” (GREIMAS71 apud RAFFESTIN). Este conhecimento é “linguagem na medida em que é entendido como um lugar de mediação, como uma tela sobre a qual se desenham as formas inteligíveis do mundo” (GREIMAS 72 apud RAFFESTIN, 1977, p. 123)73.

70

Raffestin baseia-se nos textos de Ernest Cassirer, “Essai sur l’homme” (1975) e Algirdas Julien Greimas, “Du sens, essais sémiotiques” (1970), para construir a ideia de apresentação (acquaintance) e representação (knowledge). Conferir igualmente as fontes: 1. RUSSELL, Bertrand. The Problems of Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1912; 2. SOSA, Ernest. Privileged Access. In: Consciousness: New Philosophical Essays. Ed. Quentin Smith. Oxford University Press, pp. 273-92, 2003; 3. SOSA, Ernest and LAURENCE BONJOUR. Foundations vs Virtues. Blackwell, 2003; 4. SOSA, Ernest and LAURENCE BONJOUR.Theory of Knowledge: The 1913 Manuscript. E. Eames, ed. London: Allen and Unwin Ltd, 1984. 71 [Citado] GREIMAS, A.J. Du sens, essais sémiotiques. Paris, Seuil, 1970. p. 22. 72 Ibdem. 73 [Tradução livre da Autora] «Nous pouvons avoir une présentation de telle ou telle chose sans en avoir une représentation parce qu'il nous manque une conception générale et un système de concepts qui nous permettraient de passer de la connaissance immédiate à la connaissance théorique et abstraite. Quelle est cette connaissance théorique et abstraite? Elle «n'est pas une adhésion à la réalité du monde, mais une prospection de UFRJ I FAU I PROURB

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A apresentação difere da representação por não ser dotada de um sistema de conceitos mediados pela linguagem, exatamente como enuncia Vigotski no capítulo 1. A representação é tida como um desenho de formas inteligíveis, em que Raffestin denomina “geograma” “a representação através de uma linguagem ou metalinguagem do sistema real ou geoestruturado” (RAFFESTIN, 1977, p. 123), onde a “geoestrutura” é a organização inteligível do espaço (um bairro, uma cidade ou uma rua, por exemplo). Especulando, ainda, que a representação de um objeto depende do sistema de signos da linguagem de quem a traduz. No nosso caso, a representação da cidade e do território que um determinado grupo de jovens em situação de pobreza habita vai depender dos simbolismos das coisas que, primeiramente são dadas, apresentadas, as quais, mediadas pelo pensamento, eles traduzirão em representação. A passagem do objeto apresentado ao representado, geograma, é uma simples questão de linguagem (p. 124). Raffestin conclui, com isto, que a geografia é a representação de uma geoestrutura condicionada por escolhas feitas levando em conta: “a vontade, o saber e o poder” (1977, p. 124) intrínsecos a uma cultura, sendo este tripé o lugar de mediação da linguagem que opera a transição entre geoestrutura e geograma. No entanto, ressalta que o modelo vontade-saber-poder é reflexo da geografia clássica, que privilegia os signos que permitem representar a morfologia funcional da geoestrutura. Então ele lembra que, na nova geografia o que prevalece é o esquema vontade (organizar-dominar) - saber (organizar-dominar) - poder (organizardominar) que usa os signos correspondentes aos conceitos como preço, distâncias e custos, e tenta explicar suas construções. Ele “brinca” dizendo que, no primeiro caso, o que existe é um “espetáculo” embasado na forma e na função e no segundo uma vontade de “refazer o espetáculo” embasado no ponto de vista da sua dinâmica, mas sem reformular a problemática (RAFFESTIN, 1977, pp. 124-125).

cette réalité, un effort d'intelligibilité, au sens étymologique de ce mot». Cette connaissance «est langage dans la mesure où celui-ci est compris comme un lieu de médiation, comme un écran sur lequel se dessinent les formes intelligibles du monde» (RAFFESTIN, 1977, p. 123). UFRJ I FAU I PROURB

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A partir de tais considerações, ele remete-se à atualidade e sinaliza que existe um novo esquema em gestação: vontade (existir) - saber (existir) - poder (existir). Salientando que o primeiro esquema deu origem à linguagem da paisagem e que o terceiro tende a expressar a territorialidade, e que existe uma relação semiológica entre o primeiro e o terceiro, passando é claro pelo segundo. Trata-se então de observar o quão conveniente é apreender a linguagem da paisagem em conjunto com a linguagem da territorialidade para melhor compreender o território, entendendo que “a linguagem da paisagem é aquela das formas e das funções e a linguagem da territorialidade é aquela das relações”74 (RAFFESTIN, 1977, p. 125), porém ambas relativas às interações espaços-temporais. 2.2.1 A linguagem da paisagem Raffestin deixa claro que a ideia de paisagem surge da necessidade de representação pictórica do mundo, na Idade Clássica. Neste sentido, a paisagem é qualquer coisa que é visualizada ou espetacularizada. Já a descrição desta paisagem é originária na literatura, stricto sensu, e nos cadernos de anotações de viajantes, que tratavam de colocar em cena uma totalidade espetacular, não conhecida, e que comunica a cultura exterior ou alteridade a partir de uma visão autocentrada (RAFFESTIN, 1977, p. 126). Contudo, à medida que se localiza o fato para compreender as diferenciações do espaço e comparar ao conjunto de dinâmicas internas e de suas relações de reciprocidade, surge o sentido de diferenciação dos espaços, entendido como paisagens, ressaltando suas formas e funções; o que antes era algo simplesmente “visto”, agora incorpora o aspecto “vivido”. Raffestin desenvolve algumas considerações sobre a construção do conceito de paisagem, mas o que nos importa é destacar que ele delimita a geografia da paisagem como uma representação possível da geoestrutura (RAFFESTIN, 1977, p. 127). Assim a paisagem é um sistema que arranja elementos variados, ou, de uma maneira muito teórica e elementar, a paisagem é uma combinação de unidades que

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[Tradução livre da Autora] «Le langage du paysage est celui des formes et des fonctions alors que le langage de la territorialité est celui des relations» (RAFFESTIN, 1977, p. 125). UFRJ I FAU I PROURB

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possibilita diversas morfologias no tempo. Milton Santos destaca de forma similar que a paisagem é um palimpsesto (1997, p. 70), (...) um conjunto de formas heterogêneas, de idades diferentes, pedaços de tempos históricos representativos das diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o espaço (SANTOS, 1997, p. 68).

Entendemos a partir das ponderações do autor, que a paisagem deve ser pensada como um conjunto de formas, que congeladas no tempo descrevem a história, mas somente se ficarmos atentos às relações sociais produzidas em tal paisagem. Esta paisagem congelada serve ainda de “suporte” para a ação humana, que constrói paisagens por meio do movimento que a transforma, relativo a cada cultura segundo os aspectos sociais, econômicos e simbólicos de uma sociedade75. Trata-se, pois, de uma sintaxe geográfica, uma frase que combina diferentes elementos, que responde a fins práticos e que concentra em si a experiência vivida através do tempo, que serve à conservação e transmissão de informações, mas que em geral pode mascarar a territorialidade (RAFFESTIN, 1977, pp. 127-129). Isto se deve ao fato de cada indivíduo ou grupo construir essa síntese com base nas suas impressões sobre a realidade percebida. Por isto a paisagem é a materialização da presença de uma determinada cultura no espaço, onde a sua representação depende da perspectiva daquele que olha a paisagem, ou seja, depende diretamente da percepção. É nesse sentido que Milton Santos se refere à dimensão da paisagem como sendo a “dimensão da percepção”76, daquilo que os sentidos são capazes de interpretar. Um pensamento “em que pessoas diferentes apresentam diversas versões do mesmo fato” (1997, p. 62). Em poucas palavras, nós vemos a linguagem da paisagem como a síntese estrutural e funcional (geoestrutura) percebida e

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Milton Santos (2006) se refere à relação entre as formas como suporte para as funções sociais realizadas no espaço, através das colocações de C. A. F. Monteiro (1991), quando este autor trata de considerar tal relação como uma espécie de “um funcionamento da paisagem” (SANTOS, 2006, p. 69). [Citado] Cf. MONTEIRO, Carlos Augusto F. Clima e excepcionalismo. Florianópolis: Editora da UFST, 1991. (1991). 76 Na perspectiva de Milton Santos (1997), “a percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado. A percepção não é ainda o conhecimento, que depende de sua interpretação e esta será tanto mais válida quanto mais limitarmos o risco de tomar por verdadeiro o que é só aparência” (SANTOS, 1997, p. 62). UFRJ I FAU I PROURB

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representada (geograma) por determinado grupo ou indivíduo localizado espaçotemporalmente em uma cultura marcada por aspectos sociais, econômicos e simbólicos. Ressaltamos que, nesse sentido, é importante compreender que “(...) a paisagem não é [somente] uma soma de elementos, mas uma escolha coerente, condicionada por uma intencionalidade”77 (FAFFESTIN, 1998, p. 113), um desejo que movimenta a relação indivíduo-coletivo-natureza. Assim, o “visto”, que conferia maior ou menor grau de espetacularidade à paisagem, não basta para descrevê-la, a partir do momento que as diversas possibilidades de escolha, que criam a geoestrutura, também são representadas como diversos geogramas, tantos quantas sejam as intencionalidades que percebam a paisagem. As intencionalidades que percebem a paisagem fazem emergir os aspectos vividos das relações humanas, no e com os espaços, pelos processos experienciais. Nesse sentido, a paisagem passa a estar carregada de simbolismo, tanto no que tange à sua percepção como à sua representação, tornando visível a identidade de uma determinada cultura. Quando as nuances vividas espacialmente incorporam a construção da paisagem, temos o entendimento que a linguagem da paisagem como síntese é uma construção coletiva, que integra dialogicamente o discurso sobre as territorialidades humanas. Por isso, faz-se necessário também captar uma linguagem da territorialidade que irá nos permitir perceber as relações vividas no e com o espaço e que, em geral, são ocultas pela geoestrutura que lemos com a linguagem da paisagem (RAFFESTIN, 1977, p. 129). 2.2.2 A linguagem da territorialidade Sabemos de início que o conceito de territorialidade concerne ao comportamento animal. A definição de partida apresentada por Raffestin é a mesma enunciada por Edward Hall de que “(...) a territorialidade é geralmente definida como

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[Tradução livre da Autora] «(...) le paysage n'était pas une somme d'éléments mais un choix cohérent conditionné par une intentionnalité qui est au centre de la relation homme-nature» (FAFFESTIN, 1998, p. 113). UFRJ I FAU I PROURB

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o comportamento característico adotado por um organismo para tomar posse de um território, defendendo-o contra os membros de sua própria espécie” (HALL78, 1986, p. 19). Raffestin está de acordo com Hall ao admitir que existam distâncias entre os seres humanos e através de diferentes culturas, e que isso nos informa, de uma maneira preciosa, sobre a significação cultural do objeto de conhecimento a partir da posição que ocupa perante o outro, sobre o significado cultural a partir das distâncias relacionais. Portanto, é entendida uma territorialidade “situacionista” (RAFFESTIN, 1977, p. 130). Contudo, para Raffestin, somente a territorialidade situacionista não basta para criar a geografia, ou a linguagem da territorialidade, pois o mais importante na territorialidade é a relação de alteridade (p. 130). E a relação de alteridade não diz respeito somente ao que é do outro, mas a tudo que é exterior a si mesmo, o que define a territorialidade como “(...) um sistema de relações que mantém uma coletividade, [ou] um indivíduo com o exterior”79 (RAFFESTIN, 1977, p. 130). Tal exterior podendo ser um lugar no sentido de localidade de outra coletividade, como outro ser, ou, ainda, algo abstrato. Assim, a linguagem da territorialidade trata de uma relação, um movimento dialógico de territorialização-desterritorialização-reterritorialização (T-D-R), definida, sobretudo, como um processo de troca ou de comunicação que se desenrola numa rede complexa como uma interface biossocial. Com isso, apontamos que Raffestin (1977) atenta que toda relação, qualquer que ela seja, se inscreve dentro de um espaço e também dentro de um arco de tempo, cercados de fatores constitutivos, que no nosso caso é dado pela noção de limite, conforme enunciado por Haesbaert (2009) ao considerar a desterritorialização. Dessa forma, entendemos limite, tanto no sentido definido por Raffestin (1986), de filtro que interpreta e que transforma a cultura externa em interna, como no sentido que lhe atribui Claval (2007), que compartimenta o território em espaços desiguais no que diz respeito ao seu simbolismo, dado pelo seu aspecto vivido

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Edição citada por Raffestin (1977): HALL, Edward T. La dimension cachée. Paris: Seuil, 1971, p. 22. livre da Autora] «Elle peut être définie comme le système de relations qu' entretient une collectivité, partant un homme, avec l'extériorité» (RAFFESTIN, 1977, p. 130). 79 [Tradução

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(linguagem do território), e também no que diz respeito à sua forma e função, determinadas pelo seu aspecto visual (linguagem da paisagem). Para Raffestin, a linguagem da territorialidade é tanto um processo de relações biológicas como sociais em que tais relações, tidas como bilaterais e multilaterais, não se desenvolvem espontaneamente, mas são conduzidas por códigos, que Maffesoli (2010), no capítulo 1, chama de paradigma de costumes. Por isso, elas podem ser simétricas ou dissimétricas (RAFFESTIN, 1977, p. 130). Elas são simétricas, quando, no final do processo relacional (caso bilateral) ambas as partes, consentindo respectivamente com um custo, atingiram um ganho de energia e/ou a informação que lhes permitiu satisfazer a ou as necessidades para manter a sua estrutura. Elas são dissimétricas, quando uma das partes deve concordar com um custo maior do que o ganho obtido pondo assim em perigo a sua própria estrutura80 (RAFFESTIN, 1977, pp. 130-131).

Evidentemente, nem sempre existem concessões de ambas as partes e os ganhos nem sempre são os mesmos, assim, a maioria das relações em nossa sociedade são dissimétricas. Com base em tais considerações, Raffestin afirma aquilo que é uma das coisas mais importantes para o nosso estudo sobre representação do espaço pela juventude - que as relações que irão construir as representações do território ocorrem diferentemente para “(...) os homens, as mulheres, as crianças, os adultos, [os jovens], os idosos” (RAFFESTIN, 1977, pp. 130-131), que instituem não uma, mas diversas territorialidades por não se tratar de um, mas de diversos sistemas de relações (p. 131). (...) Existe uma territorialidade da criança, como uma territorialidade do adulto ou do idoso, como existe também uma territorialidade feminina e uma territorialidade masculina. Em uma palavra, a territorialidade é diferencial81 (RAFFESTIN, 1977, p. 132).

Assim, a territorialidade não é apenas situacionista, como entendida por Hall (1986), mas ela também é diferencial em função dos códigos culturais de quem os

80 [Tradução livre da Autora] «Elles sont symétriques lorsque, à la fin du processus relationnel (cas simple bilatéral)

les deux parties, tout en consentant respectivement un coût, ont obtenu un gain en énergie et/ou information qui leur a permis de satisfaire le ou les besoins pour maintenir leur structure propre. Elles sont dissymétriques lorsque l'une des parties doit consentir un coût supérieur au gain qu'il fait et par là-même mettre en danger sa propre structure». (RAFFESTIN, 1977, pp. 130-131) 81 [Tradução livre da Autora] «(…)il y a une territorialité de l'enfant comme une territorialité de l'adulte ou du vieillard, comme il y a aussi une territorialité féminine et une territorialité masculine» (RAFFESTIN, 1977, p. 132). UFRJ I FAU I PROURB

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medeia. Apesar disso Raffestin (1977) observa que é importante diferenciar, espacialmente e temporalmente, as escalas das coletividades humanas que contêm a relação de ganho ou perda de energia e/ou informação, pois sem uma perspectiva diferencial, o “vivido” não pode ser verdadeiramente validado. O que, para o autor, implicando numa antropológica das relações construídas de territorialidades, explicita a existência humana como método de análise. (…) nossa existência é tecida de relações múltiplas que se criam, depois desaparecem, que são substituídas por outras, algumas são permanentes ao longo de toda existência, outras ao contrário, são temporárias e caracterizam somente um momento da existência, mas todas contribuem para a realização do nosso território que é, portanto, não estático, mas dinâmico82 (RAFFESTIN, 1977, p. 132).

Raffestin conclui que a paisagem tende a dissimular a territorialidade e que a mesma paisagem pode dissimular vários territórios, ou seja, pode-se dizer que a paisagem é a estrutura da superfície que é vista, já a territorialidade é a estrutura do profundo que é vivido, e que as duas, a paisagem e a territorialidade, constituem o que entendemos e trataremos como ambiência. Nesse sentido, nós observamos que na construção das coletividades territoriais urbanas, o visto e o vivido estão diretamente ligados aos indivíduos que os vivem segundo suas espacialidades, temporalidades e culturas, que se movimentam entre o exterior e o interior perpassando os limites territoriais para se reterritorializar em novas realidades representadas. Num sentido mais amplo, é preciso pensar a territorialidade através do movimento de T-D-R, que ressignifica dialogicamente no espaço-tempo as identidades humanas, e que ficam impressas no espaço através da paisagem, que percebida e representada conforme a velocidade informacional e técnica que cada sociedade estabelece, comunica para o mundo uma determinada realidade cultural, impregnada de simbolismos e mediada, também, pelas relações sociais e econômicas.

82 [Tradução livre da Autora] «(…) notre existence est tissée de relations multiples qui se créent, puis disparaissent,

qui sont remplacées par d'autres, certaines sont permanentes tout au long de l'existence, d'autres au contraire sont temporaires ne caractérisant qu'un moment de l'existence mais toutes contribuent à réaliser notre territorialité qui n'est donc pas statique mais dynamique» (RAFFESTIN, 1977, p. 132). UFRJ I FAU I PROURB

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Daí a importância de cogitar que os fenômenos culturais, que para Raffestin (1995) estão presentes na língua e no território, de certa forma também o estão no pensamento geográfico cultural, tecido a partir de uma análise não globalizante e não determinista. Isto nos orienta no sentido de um conhecimento da realidade material oferecida para satisfazer as necessidades humanas, que se constituem em uma parte das necessidades vividas (RAFFESTIN, 1995, pp. 88-89).

Figura 3: Quadro síntese do ver e do viver nas representações espaciais a partir da apropriação. Fonte: MORIN & LE MOIGNE, 2000; VIGOTSKI, 1998; RAFFESTIN, 1977.

2.3

Língua e Território: caminhos metodológicos para a análise

urbana Conjecturamos, com base em Raffestin, que as necessidades vividas são articuladas por uma relação triangular entre um sujeito ou uma coletividade, um ou vários mediadores e um ou vários ecossistemas (RAFFESTIN, 1995, p. 89). Raffestin define isto como uma relação triangular mão-cérebro-matéria que resume as relações de produção, troca e consumo, que tanto abarcam fenômenos materiais como imateriais, ou seja, uma produção literária ou artística não é diferente de uma produção industrial, da mesma forma que um processo de comunicação ou conhecimento. Por isto, nos fenômenos culturais, independentemente da sua natureza observa-se esta relação triangular (p. 89).

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Convém deixar claro que a relação triangular proposta por Raffestin não tem uma intenção reducionista de todos os eventos humanos, mas sim a de evidenciar que a geografia cultural se ocupa de qualquer assunto da humanidade. Do ponto de vista cultural, tal sistema de relação é traduzido pela interioridade/exterioridade83/ alteridade, e, desta forma, Raffestin aproxima língua e território ao considerar que ambos são simultaneamente materiais e imateriais (pp. 89-90). Língua e território estão igualmente presentes em todas as ações coletivas e individuais: é difícil imaginar situações nas quais língua e território não estão envolvidos de uma maneira ou de outra, nas quais esses “mediadores” não joguem um papel qualquer, como um meio e um fim84 (RAFFESTIN, 1995, p. 90).

Contudo, afirma que a relação entre língua e território não é uma relação funcional imposta, pode ou não ocorrer, mas, de qualquer forma, é uma relação que, quando existente, é assegurada por quem nela habita, uma vez que são produtores tanto da língua como do território. Ou seja, estas são projeções das necessidades dos habitantes, e através destas necessidades é que devemos abordar seus aspectos culturais. O importante a ser destacado nesse pensamento é que ele parte da combinação da energia dispendida/adquirida, e é a informação como técnica que impele as relações humanas à satisfação das necessidades, onde emerge a rede de territorialidades, no “(...) coração da qual se descobre a incontornável necessidade de habitá-la (...)”85,86 (RAFFESTIN, 1995, p. 91); necessidade esta a que retornaremos mais adiante. As necessidades são dinâmicas, à medida que afetam e transformam a interioridade/exterioridade/alteridade. Portanto, a territorialidade não é algo

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A interioridade remete-se à coletividade, comunidade, ao passo que a exterioridade se remete à sociedade. Autora] «Langue et territoire sont présents dans toutes les actions collectives et individuelles également: il est difficile d'imaginer des situations dans lesquelles langue et territoire ne sont pas partie prenante d'une manière ou d'une autre, dans lesquelles ces "médiateurs" ne jouent pas un rôle quelconque, en tant que moyens ou fins» (RAFFESTIN, 1995, p. 90). 85 [Tradução livre da Autora] «(…) au coeur duquel on découvre l'incontournable nécessité de ‘l'habiter’ (…)» (RAFFESTIN, 1995, p. 91). 86 Raffestin baseia-se na noção que Heidegger propõe sobre o sentido de habitar a partir do seu conceito de quadripartido que entrelaça céu, terra, deuses e mortais. O autor observa, ainda, que Heidegger habitou a Grécia Antiga toda sua vida através da língua grega (1995, p. 99), por isso, a ideia de Vitrúvio sobre qualidade do espaço relacionada à saúde física marcou a construção do autor. Esta ideia é trabalhada por Raffestin em um artigo intitulado “Abitare la città” (1988). Sobre o sentido da ideia de “habitar” conferir também as fontes: STOCK, 2007; STOCK, 2004; PAQUOT, 2005; SERFATY-GARZON, 2003b. 84 [Tradução livre da

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estanque, congelado no tempo-espaço, mas um sistema de relações constantemente mediado pelos elementos constitutivos, por isso uma relação dialógica. O que existe em comum entre língua e território é que ambos são produtos ubíquos87 da humanidade, partes que compõem o todo, dialógica e recursivamente, constituído em níveis de complexidade crescente, sendo que o tempo de produção linguística é bem mais rápido que o tempo de produção territorial. Outra necessidade fundamental para a construção do ponto de vista de Raffestin, afora habitar, é a segurança. A partir daí, ele estabelece algumas noções sobre território que irão culminar na ideia que “toda representação é habitada” (p. 93), no sentido em que ela é alimentada pela memória e pela cultura que se enraíza88, e que o território, materializado pelo seu desenvolvimento, contribui para a segurança do vivido (habitado), pois assegura a estabilidade do lugar frente às ameaças externas, além de fixar limites. Desta maneira, “nós não habitamos o nome território, mas habitamos a memória do território através das palavras de uma língua” (RAFFESTIN, 1995, p. 93). Língua e território constituem, portanto, em matéria de segurança, universos complementares que permitem a integração do tempo e do espaço: a língua contribui no controle do tempo enquanto que o território contribui no controle do espaço. Neste sentido, eles são instrumentos da cultura que dividem o mundo: sendo cada cultura uma ‘máquina’ a fabricar limites, ela é assim um sistema orientado, pelo menos em parte, para a produção da segurança, para a satisfação da necessidade de segurança89 (RAFFESTIN, 1995, p. 93).

A noção de limite, que já debatemos através de Claval (2007), aparece, novamente, reafirmando a sua importância na constituição tanto da língua quanto do território como “(...) expressão original da territorialidade” (RAFFESTIN, 1995, p. 94). Deste ponto de vista, Raffestin considera que o limite funda a produção material e imaterial através da necessidade de segurança do e no território. Assim, sempre

87

Raffestin (1995, p. 92) usa “ubíquo” enquanto um termo característico tanto da língua como do território para designar que ambos estão em todas as partes ao mesmo tempo. 88 O termo s’enraciner utilizado por Raffestin tem o mesmo sentido proposto por Francis George Steiner, em “Dans le château de Barbe-bleue. Notes pour une redéfinition de la culture” (1986). 89 [Tradução livre da Autora] «Langue et territoire constituent donc, en matière de sécurité, des univers complémentaires qui permettent l'intégration du temps et de l'espace: la langue contribue à maîtriser le temps tandis que le territoire contribue à maîtriser l'espace. En ce sens, ils sont bien des instruments de culture qui découpent le monde: toute culture étant une "machine" à fabriquer des limites, elle est donc un système orienté, en partie du moins, vers la production de sécurité, vers la satisfaction du besoin de sécurité» (RAFFESTIN, 1995, p. 93). UFRJ I FAU I PROURB

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haverá língua e território como invariantes estruturais, mas suas manifestações enquanto fenômeno são teoricamente infinitas e podem assumir representações variadas em uma escala de complexidade crescente. Após algumas considerações, Raffestin

propõe

pensar

a

interface

língua-território

a

partir

de

um

“tetraglossema”90,91 territorial: território do cotidiano, território de trocas, território referencial e território sagrado (RAFFESTIN, 1995, p. 96). Adiantamos que essas quatro menores partes que compõem o todo do território podem ser subdivididas, ao pensarmos as possibilidades diversas de apropriações materiais e ideais do espaço. 2.3.1 Território do cotidiano O território do cotidiano é aquele no qual se desenrola a vida corrente, a vida de todos os dias (...)92 (RAFFESTIN, 1995, p. 96).

Nesse território se produzem as necessidades cotidianas, fisiológicas, de segurança, pertencimento, afetividade entre outras. Raffestin salienta que este território é mais descontínuo que contínuo, configurando-se como um arquipélago de lugares. Tais lugares são isolados uns dos outros por vãos, os espaços intercalares que são atravessados por nós, mas que não são necessariamente vividos. Os espaços intercalares entre os lugares são os não-lugares de Marc Augé, da mesma forma que o território cotidiano é o lugar. Augé desenvolve a sua ideia de lugar e não-lugar baseado no texto de Michel de Certeau “L’invention du quotidien”93 e apresenta sua argumentação da seguinte forma: Se um lugar pode ser definido como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar (AUGÉ, 1994, p. 73).

Advertimos que quando Augé se refere ao não-lugar, ele quer dizer que este não é um lugar antropológico e simbolizado como ‘o lugar’, em que a noção de lugar 90

O termo “tetraglossema” é uma tradução livre da autora para “tétraglossie”, onde glossema significa a menor unidade linguística que pode servir de suporte a uma significação. 91 Quanto ao “tetraglossema” da língua, Raffestin indica a proposição de Gobard: uma língua vernácula, uma língua veicular, uma língua referencial e uma língua sagrada [Citado]. Cf. GOBARD, H. L'aliénation linguistique, analyse tétraglossique. Paris: Flammarion, 1976. 92 [Tradução livre da Autora] «Le territoire du quotidien, celui dans lequel se déroule la vie courante, la vie de tous les jours (…)» (RAFFESTIN, 1995, p. 96). 93 [Citado] Cf. CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. 1. Arts de faire. Gallimard, «Folio – Essais», 1990. UFRJ I FAU I PROURB

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antropológico é intrínseca à possibilidade de trajetos espaço-temporais, tanto físicos como cognitivos, discursivos e da linguagem que o caracterizam (p. 77). Porém, isto não significa que o espaço intercalar (não-lugar) tenha um aspecto negativo, e sim, como bem apresenta Raffestin (1995) de acordo com Augé (1994), é um espaço de mobilidade, de permanência breve, transitório que serve de ponte para atingir o objetivo que é o território cotidiano (lugar) (RAFFESTIN, 1995, p. 96). Raffestin ressalta ainda que o espaço cotidiano é aquele da “(...) tensão e do relaxamento, aquele de uma territorialidade imediata e por vezes trivial e singular, previsível e imprevisível (...)”94 (pp. 96-97). Entretanto, é importante ficarmos atentos ao que Raffestin tem como central, a conexão língua-território, observando que as línguas correspondentes ao território cotidiano são a vernácula e a cotidiana95. Isto tem um propósito, que é trabalhar a ideia de comunhão e comunicação que são noções úteis para a compreensão tanto da função da língua como do território. A comunicação é inerente à língua, utilizamos certo número de palavras que irá comunicar nossas necessidades de maneira operacional, mas na convivialidade (socialidade), já ressaltada por Maffesoli (2010) no capítulo 1, a aproximação íntima se estabelece na comunhão desencadeada no processo de comunicação. Já a comunicação do território se dá através dos símbolos encarregados de comunicar a imagem relacionada ao poder, ou uma ideologia, podendo existir comunhão ou não (RAFFESTIN, 1995, p. 97). Rapidamente nos damos conta que o cotidiano é vivido simultaneamente territorial e linguisticamente. Ele é o habitado por excelência, é riqueza e pobreza ao mesmo tempo, banalidade e singularidade, poder e impotência96 (RAFFESTIN, 1995, p. 97).

Resumidamente, para nós, o território cotidiano é eco-auto-organizável tanto pelos seus níveis de complexidade relacionais (RAFFESTIN, 1995, p. 91), como pelo

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[Tradução livre da Autora] «Le territoire du quotidien est tout à la fois celui de la tension et du relâchement, celui d'une territorialité immédiate à la fois banale et singulière, prévisible et imprévisible (…)» (RAFFESTIN, 1995, pp. 96-97). 95 Raffestin diz que a língua vernácula pode ser um dialeto, uma língua falada por um pequeno grupo de indivíduos; são geralmente idiomas e por isso mais difíceis de serem compreendidas por estrangeiros (RAFFESTIN, 1995, p. 97). 96 [Tradução livre da Autora] «(…) On se rend vite compte que le quotidien est vécu simultanément territorialement et linguistiquement. Il est l'habiter par excellence, il est richesse et pauvreté en même temps, banalité et singularité, puissance et impuissance» (RAFFESTIN, 1995, p. 97). UFRJ I FAU I PROURB

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seu peculiar aspecto não simplificador, percebido nas relações organizacionais que se estabelecem naquilo que Morin considera como sendo uma relação, já citada por nós, que transita entre o abstrato ↔ concreto ↔ vivido, em que “pensar o seu próprio vivido e a sua singularidade” é pensar em certa medida “(...) os problemas gerais relativos à sua situação na sociedade, na vida e no mundo” (MORIN, 1999, p. 135) de todos os dias. 2.3.2 Território de trocas O que podemos referir sobre o território de trocas é que ele articula níveis diferenciados em um sistema e interessa, igualmente, à escala da região, da nação e do mundo. É um território fluido, tanto previsível como imprevisível, pois é aberto e fluido, construído e desconstruído nas relações cotidianas, sendo por isso um território em movimento que não deve ser cartografado na escala do lugar, mas sim do planeta (RAFFESTIN, 1995, p. 98). A natureza da troca é caracterizada pelo descontínuo, tanto espacial como temporalmente e também linguisticamente. Apesar das colocações de Raffestin, acreditamos que o território de trocas na escala da localidade acontece nas sutilezas das relações estabelecidas pelo poder de troca e consumo cotidiano de uma cultura. Por isso citamo-lo brevemente, por fazer parte da construção do pensamento que relaciona língua e território de Raffestin. 2.3.3 Território referencial Sinteticamente, o território referencial ou de referência nada mais é que o território ancestral, dizendo respeito à memória de um povo ou grupo. Em geral, cada sociedade tem um território referencial diferente e que pode mudar com o tempo. Neste ponto, Raffestin invoca a diferença entre território referencial e território real, fazendo alusão ao que ele chama de visão ingênua e infantil de Heidegger97 sobre o tema, pelo fato deste autor construir uma visão idealizada da Grécia Antiga.

97

[Citado] Cf. HEIDEGGER, Martin. Séjours Aufenthalte. Paris: Editions du Rocher, 1992.

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A sua leitura não tem um viés irônico, mas trata de confrontar a imagem mental, por vezes idealizada, à imagem real. Tomemos como exemplo a leitura de um livro que descreve um determinado lugar fora do nosso tempo. Nesse processo, construímos uma ideia mental sobre um lugar que acreditamos ser real e que não mais existe, ou seja, uma realidade que na verdade mudou ao longo do tempo pelos aspectos vividos. Os territórios referenciais são observados não somente nas produções literárias ou cinematográficas, mas também pelo urbanismo utópico, que toma como referência modus vivendi e operandi que não condizem com o contexto trabalhado, pois o fator sociocultural é preponderante na construção do projeto urbano tanto quanto a espessura de sua historicidade. Esses territórios, “(...) não podem ser habitados no sentido material do termo, mas eles podem sê-lo no sentido ideal, pela e através da língua”98 (RAFFESTIN, 1995, p. 99). Nesse sentido é que Raffestin diz que Heidegger habitou a Grécia Antiga, quer dizer, pelo conhecimento da língua, que lhe permitiu idealizar um cotidiano vivido através da leitura de antigos textos que retratam situações vividas e que não mais existem. Sob este mesmo aspecto, ressaltamos que os indivíduos ou grupos podem idealizar situações em seus territórios cotidianos que não condizem com sua realidade, mas que são apreensíveis por estes como possibilidades do real ao observarem a presença de ícones que remontem a imagens idealizadas no imaginário social. Afinal, como citado por Raffestin, “os objetos de referência (…) pertencem ao passado e/ou ao presente, e em certos casos, ao futuro se nós considerarmos as referências utópicas”99 (RAFFESTIN, 1995, p. 100). 2.3.4 Território sagrado O território sagrado é, para Raffestin, onde melhor se manifesta a junção entre língua e território. Exemplifica com a ocorrência espaço-temporal de judeus e

98

[Tradução livre da Autora] «(…) Ces territoires de référence ne peuvent pas être habités au sens matériel du terme mais ils peuvent l'être au sens idéal dans, par et à travers la langue ou mieux les langues» (RAFFESTIN, 1995, p. 99). 99 [Tradução Livre da Autora] «Les objets de référence, si l'on me passe l'expression, appartiennent au passé et/ou au présent et même dans certains cas à l'avenir si l'on considère les références aux univers utopiques» (RAFFESTIN, 1995, p. 100). UFRJ I FAU I PROURB

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árabes, entre outros, que fusionam literalmente língua-território como lugar habitado no sentido pleno do termo (RAFFESTIN, 1995, p. 100). As ideias de comunicação e comunhão são praticamente perfeitas dentro do sagrado, assim como sua demarcação de fronteiras. O território sagrado é importante por seu aspecto abstrato que organiza o real, e onde dificilmente se verifica a transgressão, pois esta é punida, quando não fisicamente, pela falta de alteridade entre os diversos grupos sagrados, psicologicamente, na construção mental da culpa. Tal como Morin enunciou no capítulo 1 sobre a construção do conhecimento com base no mitológico, que é capaz de emocionar, sensibilizar e está diretamente relacionado à subjetividade, pois “diz respeito ao temor, à angústia, à culpabilidade, à esperança e dá-lhes resposta” (MORIN, 1999, p. 180). Raffestin conclui, dizendo que esse tretraglossema nos permite visualizar qualquer sistema cultural e quaisquer instrumentos territoriais. No que pese focarmos mais em uns aspectos que em outros, eles funcionam como um órgão, que tem na força motriz do trabalho humano o denominador comum de tradução e transformação. Assim, nós podemos falar de elementos linguísticos e territoriais que constituem uma territorialidade, independentemente da sua cartografia. A partir do tetraglossema estabelecemos nossa metodologia de análise do ver e do viver urbano, embasados pelas linguagens das paisagens e das territorialidades [Figura 4].

Figura 4: Quadro síntese do tetraglossema. Fonte: MORIN & LE MOIGNE, 2000; VIGOTSKI, 1998; RAFFESTIN, 1995.

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A construção desse método considera ainda as modalidades de apropriação como uma informação, ou seja, um conhecimento sobre uma realidade. Dentro desta perspectiva, as apropriações nos apontam metodologicamente modalidades de apropriação, materiais e simbólicas do espaço, em que ambas “limitam” categorias analíticas no que tange às estruturas morfológicas e simbólicas do lugar [Figura 5].

2.4

Apropriação: ler o espaço através das representações humanas Examinamos até então a importância de captar a territorialidade, em se

tratando de um estudo que se debruça em esmiuçar o conhecimento emocional produzido na relação indivíduo e território, onde a territorialidade é constituída mediando-se aquilo que está externo (eco-; exo-) ao que está interno (ego-) ou a uma cultura ou a um indivíduo especificamente. Assim, a territorialidade é definida como um “(...) sistema de relações que uma comunidade mantém – e, portanto, um indivíduo que a ela pertença – com a exterioridade e/ou alteridade utilizando mediadores” (RAFFESTIN, 1986, p. 183). Contudo, é importante reter que para constituir territorialidades é necessário que tenha havido apropriações, pois é através do processo de “posse” de algo ou lugar que construímos o conhecimento sobre alguma coisa, ou seja, a sua representação como processo de comunicação e a tomada de consciência deste algo ou lugar (RAFFESTIN, 1977). Nesse sentido, a apropriação se coloca como um mecanismo de construção identitária, tanto do indivíduo como do coletivo, que se manifesta através das suas modalidades de marcações, que podem ser materiais ou ideais. Acreditamos, então, que se apropriar de algo é representar este algo (RAFFESTIN, 2011, p. 102), seja pelos processos perceptivos a partir da materialidade do mundo, seja pelos processos mentais que trazem à tona nossas emoções, referenciadas em memórias individuais e coletivas. Sabendo que, no trajeto entre a interioridade do indivíduo e a exterioridade do mundo, nós criamos imagens mentais do que é o mundo que nos cerca em intermitentes processos espaço-temporais de coconstruções das identidades, ou movimentos de T-D-R.

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Isso atesta que estamos imersos em processos descontínuos, instáveis e probabilísticos de construção do conhecimento que tendem a criar momentos de estabilidades emocionais, constantemente desorganizados e reorganizados na relação com o outro e com o mundo social que nos envolve. 2.4.1 A construção da identidade a partir da apropriação A noção de apropriação é vasta e o que apresentamos aqui são algumas considerações que levam em conta a apropriação como um dos mecanismos possíveis de construção identitária do indivíduo, da coletividade e do seu território na relação estabelecida. Por isso, partimos da concepção mais dinâmica de apropriação vislumbrada, primeiro, por Veschambre, que toma os espaços coletivos (comunidades) de desigualdade social, e, à medida que formos construindo nossas argumentações, autores como Fischer (1994) e Perla Serfaty-Garzon (2003) entrarão com os seus contrapontos. Pensamos que a apropriação não é apenas uma qualificação do espaço encerrado em si mesmo, mas evidencia as relações de poder, os conflitos e, mais amplamente, a dimensão espacial das relações sociais (VESCHAMBRE, 2005, p. 115). Não é algo centrado unicamente na constituição do sujeito, mas também participa na construção da identidade comunitária, o que é facilmente percebido no movimento de apropriação que emerge da necessidade de habitar que irá mediar diversas modalidades de marcação espacial à construção da territorialidade de uma cultura (RAFFESTIN 1995, p. 91). O objetivo da argumentação de Ripoll e Veschambre é destacar que a apropriação do espaço deve ser ressaltada por qualquer estudo que pretenda relacionar espaço e sociedade, que é chamado por eles de “dimensão espacial das sociedades” (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 7), e é o que nos permite não perder de vista as desigualdades sociais e espaciais através das relações de força e poder que atravessam todas as sociedades (p. 7). Ripoll e Veschambre (2005) afirmam que, de maneira sucinta, nós podemos dizer que o território é uma porção do espaço apropriado. Raffestin se refere a isto

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como sendo a semiotização do espaço pelos processos organizacionais, resultante de práticas sociais de apropriação do espaço (RAFFESTIN, 1986, p. 181). O que Ripoll e Veschambre destacam como diferencial é o fato da apropriação como processo organizacional se relacionar com os usos (forma e função) que, no caso, equivale à linguagem da paisagem, e às representações, (relações multilaterais de construção do conhecimento) que no caso é a linguagem da territorialidade, mas também as hierarquias sociais, as desigualdades e relações sociais que são perceptíveis em relação ao espaço, tanto através dos usos como das representações (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 8), e apontam as distâncias sociais entre os grupos de uma sociedade, a partir das apropriações espaciais. Para nosso estudo, pautado sobre a territorialidade de um grupo de jovens que habita, ou seja, se apropria de um território de pobreza, tal ideia é fundamental, pois as representações do espaço urbano feitas por grupos distintos tendem a explicitar essas nuances sociais, por vezes conflituosas, de desigualdades que hierarquizam as sociedades. Neste caso chamamos a atenção para o fato de a apropriação exaltar as necessidades individuais, coletivas e institucionais, como já observamos com Raffestin (2005) e, agora, como bem observa Fischer (1994). (...) Tal como o espaço ganha um significado diferente em culturas diferentes, também ele varia segundo o nível social dos indivíduos, o seu tipo de aspirações, as modalidades de influência própria do seu meio e os símbolos sociais, eles próprios definidos socialmente (...): a apropriação pode traduzir os tipos de necessidades exaltadas-proibidas num dado contexto; por isso toda a apropriação é função de todos esses fatores: individual, institucional, social (FISCHER, 1994, p. 82).

Esse autor destaca ainda que a apropriação jamais é determinada, ela é um mecanismo humano de adaptação, em que um indivíduo ou grupo ao agir sobre o espaço “(...) afeta ou reafeta símbolos e valores culturais que dele estavam excluídos” (FISCHER, 1994, p. 82) e, neste mecanismo, constitui suas afetividades. São ações físicas que partem de uma intencionalidade que é não só a alteração organizacional, mas, acima de tudo, a possibilidade de alteração de significados das coisas ou lugares como meio de acomodar a afetividade do indivíduo ou grupo conferindo-lhes uma identidade.

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Cabe observar que o termo adaptação empregado por Fischer deve ser tratado com cuidado na perspectiva de Leontiev, ainda que, para o autor, exista um senso comum no uso do termo. Leontiev entende que a adaptação ao meio é própria do animal, e o que o ser humano na realidade faz é se apropriar das coisas, para, a partir de então, se adaptar, no sentido em que está apto a dominar o ambiente (LEONTIEV, 2004, pp. 178-179). Dada a diversidade e complexidade interpretativa do termo, Ripoll e Veschambre consideram preponderante apreender a apropriação a partir do campo lexical100 até sua construção dentro da “dimensão espacial das sociedades” (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, pp. 8-9). A esse respeito, citam Serfaty-Garzon que coloca que o conceito de apropriação tem sua origem na “antropologia de Marx” (2003, p. 2), na medida em que esta nada mais é que uma ação sobre o mundo, o trabalho e a práxis que constroem a materialidade do mundo. Apoiada em Marx, Serfaty-Garzon (2003) conclui que a apropriação é um processo relacional entre indivíduo e natureza com o risco de alienações, espaço de estabilidade, ou onde se busca novas formas de estabilidade que correspondam à identidade individual. Assim, pode-se considerar que a apropriação é por natureza “(...) uma experiência socialmente mediada, que implica, portanto na existência de modelos transmissíveis, em particular pela educação”101 (SERFATY-GARZON, 2003, p. 3). A autora continua no campo lexical e distingue o discurso de Alexis Leontiev (2004), já referido aqui, que, embasado em Vigotski desenvolve estudos que relacionam linguagem- brincar na infância, e nos quais destaca que a apropriação é uma oportunidade para a construção do sujeito, mesmo que estejamos dentro de um contexto de continuidade histórica. Leontiev observa assim, que o desenvolvimento humano se inscreve na esfera da necessidade de conhecimento, embasado nas

100 Ripoll e

Veschambre observam, com base em Serfaty-Garzon (2003), que o termo apropriação surge no século XIX. O que eles acrescentam além do fato de que o termo é amplamente empregado na antropologia, psicologia ou sociologia, é também ser foco de estudo no direito e na economia com ênfase na propriedade do solo, valor do patrimônio (Cf. BERGEL, 2005) e o acesso à propriedade habitacional consagrado aos movimentos sociais de invasões dos sem-terra e sem teto (Cf. FOURNIER, 2010). (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, pp. 8-9). 101 [Tradução livre da Autora] «(…) une expérience socialement médiatisée, qui implique donc l’existence de modèles transmis, en particulier, par l’éducation» (SERFATY-GARZON, 2003, p. 3). UFRJ I FAU I PROURB

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representações do mundo que são praticadas pelo ser “(...) no decurso do desenvolvimento histórico da humanidade” (LEONTIEV, 2004, p. 182). O processo de construção do conhecimento, para este autor, é mediatizado entre indivíduo e coletivo como um ato comunicador com o mundo desde a infância de um indivíduo, que toma como base a cultura e a sua transmissão. Isto constitui a base inicial sobre a qual se dá a aquisição da linguagem, a apropriação da comunicação verbal (LEONTIEV, 2004, p. 183). [§] A linguagem é aquilo através do qual se generaliza e se transmite a experiência da prática sócio-histórica da humanidade; por consequência, é igualmente um meio de comunicação, a condição de apropriação dos indivíduos desta experiência e a forma de sua existência na consciência (LEONTIEV, 2004, p. 184).

Como dissemos, o conceito de apropriação é múltiplo, e sempre está relacionado ao da língua e do território, porém Serfaty-Garzon tenta restringi-lo ao convocar para o debate outros nomes importantes em diferentes campos de conhecimento, entre os quais, H. Lefèbvre102 e Paul-Henry Chombart de Lauwe103 (SERFATY-GARZON, 2003, p. 3). O primeiro acaba por constituir o alicerce do direito à cidade dando suporte as lutas urbanas e movimentos sociais urbanos dos anos 1970, que privilegiavam o cidadão como protagonista na configuração dos espaços da cidade. O segundo, como sociólogo urbano, propôs o termo “desapropriação” para descrever as relações de domínio ligado às conquistas e defesas da propriedade urbana e ao sentimento experimentado pelos cidadãos de que a cidade não lhes pertence (SERFATY-GARZON, 2003, p. 3). O fundamental em todos os casos apresentados é compreender que a “dimensão espacial das sociedades” se constitui pela relação entre maneiras possíveis de afirmação da identidade que se valem das apropriações e das representações. Com isso, consideraremos que a apropriação é um mecanismo de construção identitária, que opera tanto o mundo material como o mundo das ideias no que chamamos de modalidades. O objetivo é evitar confusões paradigmáticas e

102 [Citado] Cf.

1. LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne II, Fondements d'une sociologie de la quotidienneté. Paris: L'Arche, 1961; 2. LEFEBVRE, H. Le Droit à la ville. Paris: Anthropos: Ed. du Seuil, Collection Points, 2e ed, 1968; 3. LEFEBVRE, H. La Révolution urbaine. Paris: Gallimard, Collection Idées, 1970. 103 [Citado] Cf. CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry. Des hommes et des villes. Paris: Payot, 1965; 2. CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry. La Culture et le pouvoir. Paris: Stock, 1975; 3. CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry. La fin des villes: mythe ou réalité. Paris: Calmann-Lévy, 1982. UFRJ I FAU I PROURB

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designar possíveis conceitos utilizáveis operacionalmente para a leitura da relação indivíduo-coletividade-território. 2.4.1.1 As modalidades de apropriação no campo material As considerações que os autores tecem sobre o termo nos conduzem por um caminho que se inicia ao pensar a apropriação a partir de relações práticas e materiais sob três ordens de significações operativas, quais sejam: o espaço de uso exclusivo, o espaço de uso autônomo e o espaço de controle (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 9). O espaço de uso exclusivo pode ser individual ou coletivo, porém um coletivo restrito à família ou a uma categoria social, que se dá por razões puramente funcionais, materiais e também sociais. É o caso, por exemplo, dos condomínios fechados, encerrados nos limites do muro, mas também de zonas sensíveis da cidade como loteamentos irregulares e favelas que se cerram muitas vezes pelo simbolismo negativo da pobreza e /ou violência, e que, no caso, é definido pelos autores como um espaço de uso exclusivo não autônomo (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, pp. 10-11). O espaço de uso autônomo é aquele usado a princípio livremente ou sem um contrato social explícito. Não se trata de uma autonomia absoluta, ela é mais ou menos tênue conforme a relação entre indivíduos e espaço. É como transgredir a finalidade de um uso determinado para um espaço, ou seja, quando o vivido se sobrepõe ao concebido104. A terceira modalidade de apropriação material diz respeito ao espaço de controle. Próxima do uso autônomo, deste se difere pelo fato de o vivido ser mediado pela interposição de algo ou alguém que representa um poder de domínio, exercido por instituições ou aparelhos como um vetor de controle na apropriação do espaço. 2.4.1.2 As modalidades de apropriação no campo das ideias Quanto às modalidades no campo das ideias, elas operam entre a inseparabilidade das intenções concernentes ao processo de percepção e

104

[Citado] LEFEBVRE, Henri. La Production de L’Espace. Paris: Éditions Anthropos, 2000, 4ª ed.

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representação. Os autores propõem duas modalidades gerais de análise: interiorização cognitiva e relação afetiva (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, pp. 11-12). Na interiorização cognitiva o que está em questão são os processos de conhecimento e familiarização que se adquire sobre as práticas e códigos de um determinado território e que são competências indispensáveis para se apropriar do espaço de forma estratégica. Em um território de pobreza, por exemplo, que tem seus espaços de uso autônomo submetidos ao controle de terceiros, como o tráfico de drogas ou o poder de milícia, esta estratégia se evidencia na forma como os espaços são usados, deixando claro que certos espaços são consentidos, ou ainda, está calcado no que Maffesoli (2010) chama de paradigma ético na constituição da comunidade emocional. A relação afetiva, ou “apropriação existencial” (p. 12) como os autores também a denominam, se refere à tendência de transformação de tais espaços em territórios cotidianos (RAFFESTIN, 1995), em um sentido que remete à ideia de “lar”, o que leva ao sentimento de pertencimento. Esta é uma relação de reciprocidade com o território, tido por nós com eco-auto-organizável, pois “(...) um lugar é nosso porque nós somos desse lugar, ele faz parte de nós porque nós fazemos parte dele”105 (CAVAILLE106 apud RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 12). A partir da relação afetiva com o espaço, eles propõem ainda a ideia de “apropriação simbólica” ou “identitária”, quando uma porção do território é geralmente ligada a um determinado indivíduo ou grupo social ao ponto de se tornar um de seus atributos. É o caso de bairro representativo de classes abastadas ou pobres, ou, ainda, tal categorização pode se reportar a algum tipo de apropriação por gênero, idade, religião, ou a alguma outra ligação identitária. Referindo-se à identidade coletiva, os autores citam como exemplo a produção arquitetural ou patrimonial que constitui vetores de afirmação simbólica de grupos sociais ou do poder instituído. O importante é que, qualquer que seja o

105

[Tradução livre da Autora] «(…) un lieu est à nous parce qu’on est à lui, il fait partie de nous parce que nous faisons partie de lui» (CAVAILLE apud RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 12). 106 [Citado] CAVAILLÉ, F. L’expérience de l’expropriation. Paris: ADEF, 1999. UFRJ I FAU I PROURB

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caso de apropriação, material ou das ideias, individual ou coletiva, tal conceito parte primeiro do uso material do espaço, no que concerne à sua produção e transgressão. A pergunta que se faz neste caso é: Qual é a sua marca? A ideia de marca através do conceito de marcação tende a explicitar os graus de valorização ou mesmo a estigmatizacão do território, e isto nos revela a apropriação simbólica (p. 13) que é feita de um lugar. A apropriação simbólica/identitária de um lugar supõe sua prática concreta, regular e demonstrativa. Por outro lado, mesmo no processo de apropriação por uso exclusivo, o uso de simbolismo é óbvio, em busca de legitimidade que a força e até mesmo o direito não são suficientes para garantir107 (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 13).

O que os autores afirmam é que a produção do signo é que reivindica a apropriação do espaço e por isso é designado de marcação. No espaço urbano está associado diretamente aos movimentos de T-D-R que ressignificam objetos e territórios e explicitam tanto a apropriação material como a das ideias. E é neste contexto que Ripoll e Veschambre teorizam sobre a apropriação dos espaços de desigualdade social, que tendem a valorizar ou estigmatizar tanto tais territórios como os indivíduos que os vivenciam. Assim, o mecanismo de marcação e personalização, enquanto ações de apropriação do território por indivíduos e grupos, constitui-se em importante elemento para o desenvolvimento de uma “teoria das emoções”. 2.4.1.3 Marcação e Personalização: a apropriação emocional Nós vimos no primeiro capítulo que a emoção está diretamente ligada ao mundo do conhecimento, quer dizer, ao modo como interpretamos e representamos o mundo (MORIN, 2000, p. 20). Veremos, mais adiante, que se apropriar é representar a realidade e, para nortear nossa análise, acrescentamos que os mecanismos de marcação e personalização são as formas utilizadas por nós humanos, movidos por nossos estados emocionais de alteridade, para nos

107

[Tradução livre da Autora] «L’appropriation symbolique/identitaire d’un lieu suppose sa pratique concrète, régulière et démonstrative. Inversement, même dans les processus d’appropriation par usage exclusif, le recours au symbolique est patent, dans une recherche de légitimation que la force et même le droit ne suffisent pas à garantir» (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, p. 13). UFRJ I FAU I PROURB

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posicionarmos no espaço, apossando-nos dele, garantindo nossa existência na sociedade, contudo, sem necessariamente garantir nossa visibilidade. Podemos nos apropriar emocionalmente de diversas maneiras, mas, para sermos breves, partimos de três definições sucintas sobre marcação e que dialogam entre si: A marcação simbólica destina-se a assinalar uma apropriação108 (BRUNET109 apud VESCHAMBRE, 2004, p. 73). A marcação por disposição dos objetos ou por intervenções no espaço habitado é o aspecto material mais importante da apropriação110 (SEGAUD111 apud VESCHAMBRE, 2004, p. 73). A marcação (...) é uma maneira de sinalar um espaço com inscrições que o identificam com o eu do usuário; representa um sistema de extensão psicológica do indivíduo, cujos indícios têm por função a tomada de posse material ou psicológica [ideal] de um espaço e por esse meio a definição de um lugar [territórios cotidiano e relacional] (FISCHER, 1994, p. 83).

O que podemos assinalar é que não existe apropriação sem intervenção no espaço, em que a marcação “(...) acompanha todas as formas de apropriação” (VESCHAMBRE, 2004, p. 73), seja ela no campo material ou no campo das ideias. Veschambre observa que esta marcação pode ocorrer pela reutilização ou fabricação de objetos, com uma marca ou indícios significantes capazes de deixar um rastro no espaço e no tempo, definida por ele como “marcação de traços” (deixar pistas). Outra maneira de marcação espacial, segundo ele, diz respeito à presença do corpo e os sinais que ele carrega, enunciada como sendo a “marcação presencial” (marcar presença), sendo que as duas podem se verificar ao mesmo tempo (p. 73). Assim, a marcação é, de fato, a materialização de uma apropriação espacial, ou um vetor material de legitimação da apropriação e consequentemente da identidade, que deve ter sua análise aprofundada a partir dos termos traços, marcas e presença (VESCHAMBRE, 2004, p. 73). Trata-se em primeiro plano da possibilidade

108

[Tradução livre da autora] «Le marquage symbolique de l’espace est destiné à signaler une appropriation» (BRUNET apud VESCHAMBRE, 2004, p. 73). 109 [Citado] BRUNET, Roger et ali. Les mots de la géographie. Paris: La documentation française, 1992. 110 [Tradução livre da autora] «Le marquage, par la disposition des objets ou les interventions sur l’espace habité, est l’aspect matériel le plus important de l’appropriation» (SEGAUD apud VESCHAMBRE, 2004, p. 73). 111 [Citado] Cf. SEGAUD, Marion; BRUN, Jacques; DRIANT, Jean-Claude. Dictionnaire de l’habitat et du logement. Paris: A. Colin, 2002. UFRJ I FAU I PROURB

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da marcação dar visibilidade, ou seja, ser capaz de tornar visível a existência social dos indivíduos ou grupos, o que é um tema discutível. O que importa aqui é compreender a apropriação como um mecanismo de afirmação identitária, que Veschambre considera que é operada através da projeção dos gostos, valores e normas que indivíduos e grupos projetam espacialmente (p. 74). Quando falamos que os gostos operam a apropriação, Fischer entende isso como personalização, na medida em que se refere à possibilidade de transformação do espaço diretamente pelo utilizador, é mais individual que coletiva. Como constata o autor, a personalização do espaço expressa um índice de liberdade, a relação de autonomia que cada um tem com o lugar. A personalização é ainda determinada por um conjunto de variáveis pessoais e espaciais. As espaciais dizem respeito especificamente à forma e características físicas do lugar, mas são as variáveis pessoais que tratam de colocar em evidência os gostos, preferências, opiniões e atitudes “(...) que vão revelar de uma maneira ou outra, com mais ou menos força, a identidade de uma pessoa que ocupe tal e tal território” (FISCHER, 1994, p. 84). Marcação ou personalização, a relação entre gostos e normas permeia, igualmente, a relação indivíduo↔coletividade. Por isto, a apropriação coletiva é entendida aqui como um somatório de diversas apropriações, marcações individual e coletiva, e personalizações. E, como referência de objetos coletivos de marcação capazes de descrever a identidade coletiva, Veschambre (2004) destaca a força dos monumentos arquitetônicos e/ou urbanos ou os suvenires de uma cultura, e afirma mais uma vez que o que está em jogo neste processo que valoriza a identidade coletiva é a existência de um grupo social através da sua visibilidade para além dele, ou seja, um movimento que identifica uma comunidade emocional. Acreditamos nesse sentido, que a língua de um povo, o dialeto, ou até mesmo a forma coloquial de um grupo também é uma forma de identificação coletiva, observada pela marcação discursiva que um grupo faz de si mesmo e do outro. Muitas vezes as marcações, traços-presença-discurso, não têm apenas a intenção de confirmar a existência, mas, acima de tudo, cumprem um papel de “resistência” a uma cultura exterior, ou poder de dominação pelo outro, o que está diretamente

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relacionado à ideia de exercício de poder. O pensamento sobre exercício de poder é especulado por Veschambre no que ele chama de violência simbólica112. A marcação funciona como violência simbólica, quando inscreve no tempo formas de apropriação do espaço, cujo caráter socialmente arbitrário termina por não ser mais percebido, evitando assim o uso contínuo da força para impor um poder em um determinado espaço113 (VESCHAMBRE, 2004, p. 74). O autor chama a atenção que esse tipo de marcação (por violência simbólica) diz respeito tanto às formas de poder instituído e ideologias dominantes que não são questionadas, mas também pode ser signo de um micropoder que se manifesta através da ilegalidade da sua presença, mas que se julga pertinente (p. 74), como é o caso das milícias no Rio de Janeiro. Nesse caso, o que percebemos também é a marcação de projeção, por seu caráter ilegal e transitório, que projeta no espaço, por impulso, os conflitos internos que ocasionam no exercício de poder, porém colocando a culpa desse exercício na ausência do outro, no caso da nossa pesquisa, o exercício do poder das milícias como resposta a uma suposta ausência governamental. Existem também os signos de contestação que são estabelecidos dentro do Estado democrático, que observamos através dos movimentos de resistência social. Estes sim, chamados de marcação contestatória por salientar a fragilidade ideológica do poder dominante. Nesse mesmo caminho, Fischer atenta para os TAGS, uma variedade particular de sinalização que funciona como uma insígnia no espaço público, que é o caso das pichações. Para o autor, esta manifestação é uma forma de desapropriação social, pois “no tag, a referência territorial está bem presente, não como reivindicação do espaço físico (...), mas como uma marcação de um espaço social de

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Veschambre baseia-se nas definições de Pierre Bourdieu para construir a ideia de violência simbólica. [Citado] Cf. BOURDIEU, Pierre. Effet de lieu. In: BOURDIEU, Pierre (dir.). La misère du monde. Paris: Seuil, Collection Points, 1993. 113 [Tradução livre da Autora] «Le marquage fonctionne comme violence symbolique lorsqu’il inscrit dans la durée l’affirmation de formes d’appropriation de l’espace, dont le caractère socialement arbitraire finit par ne plus être perçu, en évitant donc le recours permanent à la force pour imposer un pouvoir sur un espace donné» (VESCHAMBRE, 2004, p. 74). UFRJ I FAU I PROURB

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que alguém se sente excluído” (FISCHER, 1994, p. 88), e é visível, sobretudo, nos espaços intercalares, que em geral não são enraizados ou sociabilizados. Fica claro, então, que existem diversas formas de marcação, todas em prol de visibilidade e garantia social de existência identitária, seja ela aceita ou não socialmente. A marcação participa da construção ou mesmo da des-re-construção de uma identidade, quando o que está em jogo é o direito de ir e vir, o direito de ser, estar e o vir a ser de um indivíduo ou grupo. Com a marcação temos a possibilidade de controle do território e, consequentemente, de determinar os seus limites, separando o que lhe é próprio do que está fora. O limite aqui é exatamente aquilo que vimos anteriormente com Raffestin (1986) e Claval (2007), qual seja: “o filtro que interpreta e transforma a cultura”, que se manifesta no sentido físico e ideal da apropriação, e que desenha de fato a representação de um dado território evidenciando a sua “distância cognitiva e distância real” (BAILLY114, 1985, p. 201). Entendendo que a distância real, tanto marca as distâncias territoriais na apropriação dos espaços da cidade como as distâncias sociais115 dos grupos que compõem uma sociedade. As distâncias sociais são praticadas por grupos que constroem suas identidades pautadas na diferença e estigma negativo do outro. Em contrapartida, este outro estigmatizado cria “estratégias identitárias”116 (Cf. CAMILERRI, 1996) para a qualificação positiva que afirmam sua presença na sociedade. Frequentemente, as distâncias territoriais na apropriação do espaço refletem também as distâncias sociais, entendendo que classes médias e/ou abastadas toleram com certa dificuldade a presença do outro estigmatizado próximo ou no seu território cotidiano.

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Importante observar que a produção intelectual inicial de Bailly tem características behavioristas. Contudo, ele se posiciona como materialista ao aproximar suas obras às de Raffestin e ao ter em Paul Claval uma de suas referências, a partir do final da década de 1980, e são tais obras que nos servem de referências. 115 Importante deixar claro que a noção de distância social atravessa esta tese através dos mecanismos de apropriações espaciais; esta tem aqui uma natureza analítica conclusiva do trabalho de campo e não formativa do método de análise como indicado pelas distâncias cognitivas e topológicas no item 2.4.2.1. 116 Segundo Amin (2012), o termo “estratégias identitárias” é desenvolvido a partir de Camilerri (Cf.), com base na teoria da identidade social de Tajfel e Turner (1979, 1986). «Ces auteurs partent du postulat selon lequel tout individu est à la recherche d’une estime de soi positive (identité positive) et que son appartenance à des groupes sociaux en dépend. Quand cette identité est dévalorisée ou remise en question, l’individu recourt à des stratégies identitaires pour la restaurer. Camilleri (1990) reprend cette idée comme base de sa théorie des stratégies identitaires en situation interculturelle, telle la situation des populations migrantes» (AMIN, 2012, p. 104). UFRJ I FAU I PROURB

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2.4.2 A representação como síntese do conhecimento sobre os territórios urbanos Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, um domínio, um controle, inclusive se permanece dentro dos limites do conhecimento. Qualquer ação no espaço, que se expressa como uma representação revela a imagem desejada do território como lugar de relações117 (RAFFESTIN, 2011, p. 102).

Tal colocação de Raffestin serve-nos para relembrar que a representação parte das intencionalidades e revela, ainda, o que Raffestin enunciou como “imagem desejada do território como lugar de relação” (RAFFESTIN, 2011, p. 102). O autor argumenta com base nisto que a representação, por sua origem, é capaz de proporcionar um suporte egocêntrico à própria representação, uma vez que é “(...) uma manifestação do eu em relação ao não-eu” (p. 104) que evidencia a relação entre interioridade e exterioridade, que como vimos antes perpassa a lógica da construção do conhecimento emocional. Raffestin propõe através da “geografia do poder” pensar a representação como um conjunto definido a partir da relação que um indivíduo mantém com seus objetos. Não se trata “do espaço”, mas sim de um espaço construído pelo ator que comunica, através da interpretação de um sistema semântico, suas intenções e a realidade dos objetos. O espaço representado já não é mais o espaço, mas sim a imagem do espaço, melhor ainda, do território visto [linguagem da paisagem] e/ou vivido [linguagem do território]. O espaço se converte em território de um ator a partir do momento em que este se insere em uma relação social de comunicação118 (RAFFESTIN, 2011, p. 104).

A imagem do território visto e vivido é mais do que perceber o espaço, para Bailly, e faculta o que ele chama de “geografia da representação” (BAILLY, 1985, p. 197),

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[Tradução livre da Autora] “Producir una representación del espacio es ya una apropiación, un dominio, un control, inclusive si permanece dentro de los límites de un conocimiento. Cualquier proyecto en el espacio que se expresa como una representación revela la imagen deseada del territorio como lugar de relaciones” (RAFFESTIN, 2011, p. 102). 118 [Tradução livre da Autora] “No se trata ‘del espacio’ sino de un espacio construido por el actor que comunica, a través de la interpretación de un sistema semántico, sus intenciones y la realidad material. El espacio representado ya no es más el espacio, sino la imagen del espacio o, mejor aún, del territorio visto y/o vivido. El espacio se convierte en territorio de un actor desde el momento en que éste se inserta en una relación social de comunicación” (RAFFESTIN, 2011, p. 104). UFRJ I FAU I PROURB

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(...) porque a percepção é reduzida à “função pela qual o espírito é representado a partir dos objetos em sua presença” (cf. LE PETIT ROBERT119) não permitindo abordar o papel da imaginação e conceituação. Estudar as relações representaçõescomportamento espacial é uma das tarefas da geografia das representações 120 (BAILLY, 1985, p. 197).

Mesmo Bailly considerando, a priori, que não existam nem conceituação nem imaginação no ato de perceber, nós entendemos que, ainda quando as coisas são dadas elas podem despertar o interesse ou uma intenção capaz de motivar a imaginação, e consequentemente colocar o indivíduo em um estado criativo que irá transgredir a ordem estabelecida para a coisa percebida, simplesmente pelo fato de a percepção também ser motivada por intencionalidades capazes de des-re-construir realidades. Porém isto não nos distancia de Bailly, pois ele versa sobre ferramentas aplicáveis ao estudo das representações que são elementos importantes a considerar. Por isso, vamos continuar pensando, com Bailly, a ideia de que o sujeito imagina o espaço através dos processos de mediações (1985, p. 200), já afirmados por Leontiev e Vigotski. Primeiramente, ele se apropria do conhecimento apresentado por Appleyard121 para dizer que a experiência associada à aprendizagem (social) é que constrói a representação, com especial atenção sobre as relações topológicas, ou seja, relações de vizinhança e alteridade mensuráveis e qualificáveis processadas entre “distância cognitiva – distância real [topológicas]” (BAILLY, 1985, p. 201). Afigurasse-nos importante, então, parar para compreender o que a ciência humana discute atualmente como sendo distâncias cognitivas e topológicas.

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Observamos que o dicionário Le Petit Robert da língua francesa (2011) apresenta algumas definições para a ideia de percepção. A que Bailly se apropria diz respeito à definição que o dicionário apresenta sobre a percepção em relação à sensação. No dicionário Aurélio da língua portuguesa (2004), a percepção é a faculdade de perceber pelos sentidos, o que engloba também a ideia de apoderamento sensorial das coisas, o que presume a sua materialidade. 120 [Tradução livre da Autora] «(…) car la perception qui se réduit à la ‘fonction par laquelle l’spirit se représente des objets en leur présence’ (cf. LE PETIT ROBERT) ne permet pas d’aborder le rôle de l’imaginaire et de la conceptualisation. Étudier les liens représentations-comportement spatial, telle est l’une des tâches de la géographie des représentations» (BAILLY, 1985, p. 197). 121 [Citado] APPLEYARD, D. Styles and methods of structuring a city. Environment and Behaviour, 2, 1970, pp. 101– 117. UFRJ I FAU I PROURB

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2.4.2.1 A representação das distâncias cognitivas e topológicas do espaço Bailly atenta para o fato que não devemos reduzir o conceito de distância a uma relação puramente geométrica entre indivíduo e espaço. A ideia de distância puramente geométrica existe e possui uma característica qualificativa. Ele cita os exemplos da distância métrica, que é a distância entre dois pontos; da distânciatempo, entendida como o intervalo de duração da mobilidade entre dois pontos; da distância afetiva, que é a carga emocional que separa dois pontos; e, mesmo, da distância ecológica que é a distância necessária para responder às necessidades ecológicas de uma sociedade (BAILLY, 1985, p. 201). Além da noção geométrica qualificativa, é fundamental também voltar o olhar para o problema da “organização mental do deslocamento [trajetos]”122 (p. 201) físico e mental que se processa no campo tanto das certezas como das possibilidades e, por isso, tidas como distâncias físicas e distâncias cognitivas. Coloca o exemplo da representação do trajeto em correspondência à organização mental que fazemos ao nos deparar com “(...) marcadores cronológicos [indícios temporais, marcos referenciais], interseções, itens significativos (...)”123 (p. 201) como elementos de interferência, eventos interacionais, que nos levam a distinguir coisas. Distinção no sentido em que também organizamos o mundo associando e separando coisas124, 125.

122

[Tradução livre da Autora] «L’organisation mentale du déplacement» (BAILLY, 1985, p. 201). [Tradução livre da Autora] «(…) repères chronologiques, carrefours, éléments marquants (...)» (BAILLY, 1985, p. 201). 124 Bailly faz as pontuações sobre trajetória, separação e associação, baseado na ideia de organização mental que Appleyard, Lynch e Meyer tecem sobre a percepção de referências espaciais de proximidade e distantes que indivíduos têm em uma trajetória automobilística. Cf. APPLEYARD, D; LYNCH, K. e MEYER, J. The view from the road. MIT Press: Cambridge, 1962. 125 Sobre Lynch ter servido de base para os estudos iniciais de Bailly é importante demarcar que o mesmo não exclui a lógica dos conceitos fechados de mensuração qualificável do ambiente através da dicotomia lynchiana que trata da boa forma ou não de uma cidade, mas ele se vale desta visão para esclarecer que isto não é suficiente, se o que se pretende é a apreensão sensível do território. A questão central de Lynch era entender como é que se constrói a boa forma da cidade. O autor estava teoricamente alicerçado no behaviorismo, palavra de origem inglesa, que se refere ao estudo do comportamento: “behavior”, em inglês. O behaviorismo surgiu no começo do século XX como uma proposta da psicologia, para tomar como seu objeto de estudo o comportamento, ele próprio, e não como indicador de alguma outra coisa, como indício da existência de alguma outra coisa que se expressasse pelo ou através do comportamento. Dentro desta escola, que tomou várias vertentes, a obra de Lynch é de fácil aproximação com o Behaviorismo Metodológico, que tem um caráter puramente operacionista. Com base no operacionismo behaviorista, Lynch propõe três pressupostos para explicar a cidade como fenômeno espacial observável: Teoria do Planejamento, Teoria Funcional e Teoria Normativa. A estes princípios ele agrega conceitos operativos, que se definem a partir da categoria de análise “comportamento” (MATOS, 1993). 123

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O “conceito de separação-associação” se aplica ao da representação, uma vez que a distância entre dois pontos é formada por séries de sequências descontínuas. É preciso também prestar a atenção ao “conceito de ordem e de posição”, uma vez que o cidadão organiza suas referências; a “conexão” resulta, então, das relações topológicas percebidas entre referências próximas e as possibilidades de junção em função do objetivo desejado [organização mental]126 (BAILLY, 1985, p. 201). A intenção de Bailly com esse discurso é demonstrar que a representação da distância conjuga certezas e possibilidades, pois não depende unicamente do indivíduo ou do seu ambiente psicossocial, no que tange ao processo de construção do conhecimento sobre o ambiente urbano. E que nos fala das distâncias cognitivas, mas também da sua prática, pois percebemos mais ou menos referências espaciais conforme nossa posição (geográfica), à medida que nos deslocamos espacialmente (a pé ou mecanicamente). Resumidamente, o autor aponta para a consideração das distâncias espaciais, que partem de uma ação ou um movimento (mundo real, aquele visto, percebido), mas também para as cognitivas que partem de interações (mundo das ideias, aquele vivido, interagido). Precisamos então fazer uma nova pausa e compreender como a ideia de trajetória

e,

consequentemente,

de

distância

entram

nesta

construção

metodológica. É fato que estamos fundamentados na teoria da complexidade proposta por Morin e que esta trata, essencialmente, das organizações a partir de processos interacionais. Dizemos também que é uma teoria da complexidade das emoções, quando tomamos como referência as representações do território (visto e vivido), pois consideramos que esta não seja composta somente por atributos qualificáveis e de certeza que dizem respeito à forma (uso e função), mas também por atributos aleatórios de cognições possíveis (movimentos relacionais que territorializam-desterritorializam-reterritorializam ou simplesmente T-D-R).

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[Tradução livre da Autora] «Le concept de séparation–association s’applique à cette représentation, puisque la distance entre deux points est formée de séries de séquences discontinues. Il faut aussi faire appel au concept d’ordre et de position puisque le citadin organise ses repères; la connexité résulte alors des rapports topologiques perçus entre repères proches et des possibilités de jonction en fonction de l’objectif souhaité» (BAILLY, 1985, p. 201). UFRJ I FAU I PROURB

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Quando assim pensamos, nos reapropriamos de alguns conceitos, já largamente naturalizados pelas ciências humanas em Morin, Deleuze e Guattari, e mesmo Raffestin e Bailly, quais sejam: certezas – probabilidades; ações – interações; espaço – tempo (trajetórias e movimentos); estabilidade – instabilidade (no nosso caso, no campo das emoções). Todos esses conceitos, mesmo quando citados pelos autores mencionados, são extraídos ou inspirados na construção teórica que embasa as leis do caos da teoria quântica. Sem entrar nas questões matemáticas, é pertinente entender como tudo isso é operado no campo das ideias. Assim, usaremos como referência unicamente as enunciações de Ilya Prigogine (2002), pois o nosso intuito neste momento é somente esclarecer conceitos que mudaram o paradigma da ciência. 2.4.2.2 Os trajetos entre ser e devir nas representações das distâncias Prigogine argumenta que o problema que circunda a discussão acadêmica sobre certezas e probabilidades se deve à forma como as ciências exatas e humanas apreendem a ideia de tempo e não-tempo, onde a possibilidade do não-tempo nos leva ao “paradoxo do tempo”, e é neste ponto que surge a noção de instabilidade (caos). Tal debate, na perspectiva do autor é extremamente difícil, pois incorpora termos científicos específicos à matemática, e, por isso, propõe não pensarmos diretamente sobre tempo e não-tempo e sim contrapor as ideias de “ser” e de “devir” (PRIGOGINE, 2002, pp. 13-14). O que ele preconiza, então, é não tratar as coisas no mundo de forma tão determinista. Cita Popper127 para ilustrar que as ciências das certezas se interessam por relógios (distâncias topológicas), ao passo que as ciências das possibilidades se interessam por nuvens (distâncias cognitivas), da mesma forma que observa que uma não é indissociável da outra (PRIGOGINE, 2002, p. 20). Quando falamos em possibilidades, estamos dizendo que eventos interacionais aleatórios ocorrem no que entendemos como tempo, quebrando, assim, o equilíbrio das estruturas espaçotemporais, e são tais eventos que fazem com que os comportamentos não sejam totalmente previsíveis e que ocorram de diversas formas, tantas quantas forem

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[Citado] POPPER, K. R. Of clouds and clocks. Washington, 1965.

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possíveis128,129. Ou seja, trabalhar somente no âmbito comportamental130 tende a ser limitador, além de excluir possibilidades na análise da relação ser-espaço. Assim, nos parece lógico que a imprevisibilidade está diretamente ligada à ideia de interações, dentro e fora de culturas, as quais criam as possibilidades, e é aqui que tratamos da ideia de distâncias através do discurso sobre trajetórias. Quando Prigogine explicita as leis do caos, ele afirma que o método do simples cálculo das trajetórias (distância entre dois oponentes) deve ser substituído pelo da “análise das propriedades do operador de evolução” (PRIGOGINE, 2002, p. 39) ou de projeção. No nosso caso, as apropriações individual ou coletiva, sobre as quais discorremos anteriormente, e que tendem a construir a memória, por isso, as chamaremos de “operador de projeção cultural”131. Não vamos nos dispersar aqui em discussões matemáticas, mas este pensamento considera que a projeção de um operador é periódica, instável, descontínua e por isso probabilística, entendida dessa forma como “complexa”. E é complexa por comportar “(...) uma parte real [ser] e outra imaginária [devir]. A imaginária descreve um comportamento amortecido” (PRIGOGINE, 2002, p. 41, pp. 49-50), o que é perfeito para associarmos à ideia de representação, a partir das relações vividas, através da análise das apropriações materiais e imaginárias de uma cultura. Assim, ao invés de descrever unicamente as distâncias topológicas, mensuráveis e qualificáveis, nos estudos interacionais complexos nós descrevemos, também, possibilidades relacionais ou distâncias cognitivas, que agem em complementaridade às topológicas como em um sistema eco-auto-organizado. Por isso, temos sempre conjuntos de trajetos, que criarão a possibilidade da estabilidade

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Prigogine chama esse sistema de não-equilíbrio de estrutura dissipativa e diz que o exemplo mais simples que ele pode evocar, por analogia, é a cidade. “Uma cidade é diferente do campo que a rodeia; as raízes dessa individualização estão nas relações que ela mantém com o campo adjacente: se estas fossem suprimidas, a cidade desapareceria” (PRIGOGINE, 2002, pp. 21-22). 129 Outra observação importante feita por Prigogine é que a matéria em um sistema de equilíbrio é “cega”, pois ela só procura o que está ao seu lado diretamente. Já a matéria no sistema de não-equilíbrio “vê” todas as possibilidades ao redor (PRIGOGINE, 2002, p. 22). 130 Proposta pelo behaviorismo. 131 Temas associados: princípio da incerteza de Heisenberg; mecânica hamiltoniana; a representação de Schrödinger; a representação da interação ou representação de Dirac (intermediação entre a representação de Schrödinger e a representação de Heisenberg). UFRJ I FAU I PROURB

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tanto territorial como emocional. Existe, no entanto, a faculdade de escolha entre a trajetória comum ou distância topológica, que corresponde a uma ação, ou a distância cognitiva que corresponde a uma interação. A ação parte de uma intenção que não considera a instabilidade causada por eventos aleatórios; ou seja, sabemos onde estamos e aonde queremos ir. Já a interação leva em conta a instabilidade, a desordem temporária, causada por eventos aleatórios que motivam escolhas no decorrer do trajeto, na relação do indivíduo com a natureza e que, no processo interacional, alteram a estrutura identitária dos envolvidos. Escolhas estas que materializam nossos operadores de projeções culturais na representação e que também passam a estar caracterizados no espaço no momento de nossas ações (PRIGOGINE, 2002, p. 63). Dessa forma voltamos ao que Prigogine propôs anteriormente, que é relacionar “ser” e “vir a ser”. Isto é, afirmar a presença do “eu sou” ou “nós somos” como certeza presente e a probabilidade daquilo que virá a ser e que dependerá tanto das intencionalidades individuais ou sociais como das interferências causadas por outras intencionalidades. O que fica como resultado das interações são as memórias residuais, e, portanto, nas ciências sociais, a história que é transmissível e comporta um tempo passado que é o tempo comum a todos, mas que é distinto tanto do tempo intencional da certeza como do tempo das interações que cria as possibilidades, pois estes últimos são relacionais a quem os vive ou simplesmente os vê. Isso dito por Prigogine equivale a falar que o resultado das interações é a possibilidade de decompor o operador de projeções culturais em sobreposições de devires diversos e independentes, e que correspondem ao que é complexo, tanto real como imaginário, que é o que cria a possibilidade de estabilidade do “ser” e do “vir a ser” no espaço–tempo (PRIGOGINE, 2002, p. 70). Contudo, não podemos perder de vista o tempo comum, pois: (...) é só graças à existência do tempo comum que podemos comunicar-nos com a natureza. Quando efetuamos uma medição, devemos ter uma ideia de ‘antes’ e ‘depois’, e essa ideia deve corresponder ao desenvolvimento dos fenômenos que observamos. (...). Não poderíamos comunicar-nos com uma pessoa para a qual o UFRJ I FAU I PROURB

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nosso futuro fosse o seu passado e o seu futuro, o nosso passado (PRIGOGINE, 2002, p. 75).

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Os elementos estruturais e os de significação sociocultural nas

representações espaciais: a definição de um método para a análise urbana Vivemos e percebemos intervalos de tempo no espaço de referências relacionais das culturas. Os eventos que ocorrem comportam propriedades projetivas, simbólicas e temporais no espaço-tempo e marcam tanto os aspectos organizacionais dos territórios cotidianos como dos indivíduos ou grupos, onde são observadas as coconstruções de suas identidades. Bailly iniciou este debate apresentando as distâncias topológicas e cognitivas no espaço mental e suas representações, e, dada a complexificação do debate, ele sugere organizarmos a análise baseados em três aspectos: “estrutural, funcional e simbólico” (BAILLY, 1985, p. 203). O aspecto estrutural da representação está ligado ao estabelecimento de redes de acessos, referências e limites físicos que posicionam e deslocam um indivíduo ou grupo. O aspecto funcional é a prática do espaço, relação entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Já os aspectos simbólicos são exatamente aqueles que correspondem às interações, por isso de caráter relacional à representação e às variedades experienciais de um indivíduo ou grupo. Contudo, em um artigo de revisão sobre a ideia de representação da distância e do espaço visto e vivido, Bailly (1990) propõe uma análise a partir de dois aspectos: estruturais e de significações culturais e sociais do lugar. Esses aspectos nos permitem melhor associar à ideia que apresentamos de distâncias topológicas e distâncias cognitivas. O nível estrutural corresponde ao conjunto de referências ou marcos físicos tidos como eixos estruturantes a que um indivíduo se reporta para se orientar e deslocar em um determinado espaço, e as relações entre estes. O nível das significações analisa as relações sociais, pois considera que todos os lugares são carregados de significações diversas: coordenadas simbólicas; limites culturais, UFRJ I FAU I PROURB

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históricos e simbólicos; imagens mentais; e propriedades simbólicas e/ou funcionais atribuídas por outros. Tabela 1: Duplos elementos, exteriores e interiores, de construção de nossas representações. Elementos exteriores Elementos interiores Linguagem da paisagem Linguagem da territorialidade ESTRUTURAS DO LUGAR SIGNIFICAÇÕES SOCIOCULTURAIS DO LUGAR O VER O VIVER  Eixos estruturantes (vias e/ou lugares);  Coordenadas simbólicas;  Relações entre os eixos (vias e/ou lugares);  Limites culturais, históricos e simbólicos;  Referências (marcos físicos);  Imagens e representações simbólicas e/ou funcionais;  Limites físicos.  Características simbólicas (marcações e personalizações);  Territorialidades (espaço significado). Fontes: Duplos elementos de construção “exo- e ego- cêntrico” de nossas representações: estruturas e significações socioculturais do lugar (BAILLY, 1990, p.266); língua e território (RAFFESTIN, 1995); linguagem da paisagem e da territorialidade (RAFFESTIN, 1977, pp.126-130).

Esta proposta de Bailly evidencia entre outros aspectos, a ideia de construção emocional que estabelecemos com o espaço ao colocar em destaque a distinção do que é espaço intercalar de mobilidade e o espaço cotidiano e referencial que nós significamos. O autor observa que a representação das distâncias, topológicas e cognitivas, não é algo simples, pois, de um lado, sempre estão os elementos da ordem e, do outro, os da desordem, o que mostra que “(...) a distância não é jamais um objeto autônomo, mas parte integrante das representações sociais”132 (BAILLY, 1990, p. 266). Isto está diretamente ligado à ideia de organização das informações e do conhecimento, que tratamos no capítulo 1 (MORIN & LE MOIGNE, 2000, pp. 203204), e que é fruto daquilo que apreendemos pelos processos perceptivos, entre aspas, do que é visto e aquilo que nos serve de suporte, ou seja, a memória que é resultante das nossas vivências. Em ambos os casos, é a experiência humana que trata de combinar “ordem física” e “(des)ordem mental” nos nossos processos de construção do conhecimento, levando em consideração, é claro, que o “(...) homem baseia-se na imaginação para encontrar os meios de transcender a distância do deslocamento... até que possa refazer em sentido inverso a rota da vida”133 (BAILLY, 1990, p. 267). Esta é uma

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[Tradução livre da Autora] «(...) la distance n’est jamais un objet autonome, mais partie intégrante des représentations sociales» (BAILLY, 1990, p. 266). 133 [Tradução livre da Autora] «L’homme puise dans l’imaginaire les moyens de transcender la distance par le déplacement… jusqu’à pouvoir refaire en sens inverse la route de la vie» (BAILLY, 1990, p. 267). UFRJ I FAU I PROURB

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analogia literária feita por Bailly que trata de colocar em perspectiva o sonho de imortalidade do indivíduo, mas, para que este seja alcançado, é necessário que ele migre do ostracismo da periferia até o centro das questões onde as tensões serão resolvidas134. A ideia é muito simples. Para que possamos construir nossas representações, temos que nos movimentar no mundo, construir trajetos topológicos e cognitivos, em um dialógico deslocar-se física e mentalmente, e isto implica ação, interação e retroação (MORIN & LE MOIGNE, 2000). Sair primeiro da zona de conforto, da bolha de estabilidade e confrontar-nos no centro das tensões constituídas pelas mais diversas intenções, para só então encontrar o caminho de volta que nos acomodará, nos deixará estáveis, que afirmará aquilo que somos e onde somos. O simbolismo do movimento permite suportar a distância, pois para empreender qualquer deslocamento, quer dizer, atravessar as barreiras físicas e sociais o homem deve provar que é capaz de ter controle sobre os lugares135 (BAILLY, 1990, p. 267).

Mas, para o autor, indispensável, mesmo nos dias atuais, para garantir nossos deslocamentos é decifrar os códigos sociais e suas propriedades simbólicas construindo, assim, nossas imagens mentais. Através das imagens mentais imaginamos nossos trajetos da terra mitológica à terra real que habitamos (p. 267), sempre rompendo fronteiras, pois, habitar, para Bailly, é antes, na adolescência, “constituir raízes, ter domínio sobre o lugar, mas, para se tornar um adulto é necessário saber sair desse meio e das regras da sua infância”136 (BAILLY, 1990, p. 267). Neste ponto, observa que a compreensão sobre nossos trajetos será mais clara se nos reportarmos aos marcadores que deixamos no espaço ao longo de nossas experiências, ou seja, nos reportarmos às nossas memórias.

134

O autor faz referência à busca do mundo ideal nas obras “Odisseia” de Homero, “Eneida” de Virgílio e “O Senhor dos Anéis” de J. R. R. Tolkien. 135 [Tradução livre da Autora] «La symbolique du mouvement permet ainsi de supporter la distance, car pour entreprendre tout déplacement, c’est-à-dire franchir les barrières physiques et sociales, l’homme doit prouver qu’il est capable de maîtriser les lieux» (BAILLY, 1990, p. 267). 136 [Tradução livre da Autora] «Habiter, c’est prendre des racines, apprivoiser un lieu, mais pour devenir homme, il faut savoir quitter ce milieu de son enfance et ses règles (…)» (BAILLY, 1990, p. 267). UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 5: [reprodução] O marcador e a significação do espaço. Fonte: (BAILLY, 1990, p.268).

Bailly constata, assim, que as significações sociais ligam a ideia de simbolismo do movimento à estrutura dos lugares, e a marcação ou a personalização nos informará e veiculará objetos, nos permitindo compreender o verdadeiro valor simbólico do lugar (p. 268). Com base nisto, sugere ainda um esquema gráfico [Figura 5]

baseado nas interpretações que MacCannell137 faz sobre a representação do

espaço construída pelo turista, mas que ilustra da mesma forma o processo pelo qual constituímos nossas representações mentais e espaciais. Dessa forma, podemos conjecturar como os símbolos se tornam uma experiência a partir do momento em que temos contato visual direto com eles. O exemplar tomado é o de uma imagem marcante que represente uma cidade. O autor dá o exemplo da estátua da liberdade, mas nós vamos usar um exemplo mais próximo da nossa realidade, como é o caso da estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Neste caso, pós- visita, quando não somos do lugar, nós nos tornamos íntimos e passamos a demonstrar maior conhecimento do ambiente. Além da possibilidade de domínio do lugar a partir do contato visual, consideramos que aquele que mora na cidade ou em outra região do mesmo país, e mesmo que nunca tenha tido contato visual direto, pode se reportar ao símbolo para afirmar sua identidade, por ser algo que aprendeu que lhe pertence através da transmissão cultural; afinal, ser desta cidade ou deste país implica ser um pouco dono da estátua que é seu ícone. Isso porque a imagem do símbolo é forte o suficiente para transcender a experiência visual direta, ou seja, transcende os processos perceptivos tais como os conhecemos: visão, tato, audição, paladar e olfato. A este respeito,

137

[Citado] Cf. MacCANNELL. The tourist: a new theory of the leisure class. New York: Schocken Books, 1976.

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Leontiev sublinha as considerações que interpreta de Marx138 sobre o fato de a rica objetividade humana criar e cultivar a sua rica sensibilidade subjetiva. Na realidade, não são apenas os cinco sentidos, mas também os sentidos ditos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra, a sensibilidade humana e o caráter humano dos sentidos, que se formam graças à existência da cultura, através da natureza humanizada, natureza apropriada pelo ser humano por meio da técnica ao longo do tempo e do espaço. A formação dos cinco sentidos é obra de toda a história passada (LEONTIEV, 2004, p. 179). A imagem aloja-se na experiência mental, por transmissão de informação ou memória de uma cultura, “(...) fruto de um processo de apropriação (...)” (LEONTIEV, 2004, p. 179), que é igualmente vivido pelos desejos dentro da nossa imaginação, fazendo parte do processo de construção do conhecimento e, consequentemente, da identidade, pois, mesmo Bailly afirma que “(...) esses lugares dizem o que nós somos e nós deixamos aos racionalistas, o prazer de acreditar que eles os podem reconstituir com exatidão”139 (BAILLY, 1990, p. 269) na nossa memória afetiva. Os lugares simbólicos se ligam em uma teia de relações que está diretamente vinculada aos nossos sentimentos, e assim construímos nossa relação emocional com o território, entre aquilo que conhecemos como “conceitos científicos” e aquilo que interpretamos como “conceitos espontâneos” (capítulo 1). Não esquecendo que as representações são tantas quantas são possíveis as vivências. A este respeito, Bailly recorda a advertência de Lévi-Strauss de que devemos observar que cada relação indivíduo-espaço irá constituir conotações de quais são os aspectos positivos e negativos no seu ambiente, e à medida que o indivíduo se relaciona em um campo de possibilidades constitutivas de identidades, essa conotação converte-se na identidade coletiva (BAILLY, 1990, p. 269) da comunidade emocional.

138

[Citado] Cf. MARX, karl. Manuscrits de 1844. Présentation, traduction et notes d’Émile Bottigelli. Paris: Les Éditions Sociales, 1972, pp. 87-99. http://dx.doi.org/doi:10.1522/cla.mak.man1 (Acessado: 27 jan. 2013). 139 [Tradução livre da Autora] «Ces lieux disent ce que nous sommes et nous laissons aux rationalistes le plaisir de croire qu’ils peuvent les retranscrire dans leur exactitude» (BAILLY, 1990, p. 269). UFRJ I FAU I PROURB

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As organizações mentais são, assim, parte de um esquema social que conecta o campo topológico ao imaginário, entendendo que é nas representações que elaboramos esquemas mentais, que são um (...) tipo de estrutura, com base em representações que podem organizar as experiências com o ambiente. Padrões são empregados de forma inconsciente, o que os diferencia da imagem que necessita sempre uma concentração para ser restituída140 (BAILLY, 1985, p. 200).

Estamos dizendo com isso que a imagem do objeto, pura e simplesmente, não tem a mesma força dos esquemas mentais que são nutridos por nossas emoções, expectativas, desejos, enfim, nossas intencionalidades ao tomar conhecimento, ao ver e viver objetos e lugares. A riqueza das representações está em compreender as incontáveis relações entre o movimento ou a distância entre interioridade e exterioridade nas estruturas cognitivas de significação, pois, como bem lembra Leontiev sobre as hipóteses de Vigotski, “(...) as funções psíquicas do homem são de caráter mediatizado; [e] os processos interiores intelectuais provêm de uma atividade inicialmente exterior ‘interpsicológica’” (LEONTIEV, 2004, p. 164), e por isso é possível compreender “(...) a origem social (...) [da nova representação] que não surge do interior, não se inventa, mas se forma necessariamente na comunicação (...)” (p. 165), no movimento entre interioridade e exterioridade. Por isso, consideramos que para o exame dos processos interacionais mediados pelo conhecimento complexo eco-auto-organizador do pensamento, que representa os territórios vistos e vividos em um movimento dialógico de construções identitárias por apropriações, o mais lógico é conjugar os discursos tanto da análise topológica dos elementos estruturais do espaço, que trata da linguagem da paisagem, como da análise cognitiva das significações socioculturais que trata da linguagem da territorialidade, às partes territoriais mínimas e indicadas pelo tetraglossema (território cotidiano, de trocas, de referência e sagrado) que, quando aproximados, nos permitem vislumbrar a interpretação do mundo real por aquele que nele está e o intenciona [Figura 6].

140

[Tradução livre da Autora] «(…) Sorte de charpente, reposant sur des représentations, qui permet d'organiser et de structurer les expériences de l'environnement. Les schémas sont employés de manière inconsciente, ce qui les différencie de l'image qui nécessite toujours une concentration pour être restituée» (BAILLY, 1985, p. 200). UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 6: Quadro síntese das representações a partir do tetraglossema através das apropriações físicas e cognitivas dos territórios, e que eco-auto-organizam os pensamentos sobre a realidade. Fontes: Duplos elementos de construção “exo- e ego- cêntrico” de nossas representações: estruturas e significações socioculturais do lugar (BAILLY, 1990, p. 266); língua e Território (RAFFESTIN, 1995); linguagem da paisagem e da territorialidade (RAFFESTIN, 1977, pp.126-130); eco-auto-organização do pensamento (MORIN & LE MOIGNE, 2000; VIGOTSKI, 1998).

É importante assinalar que o tetraglossema indica quatro partes mínimas para a análise da paisagem e da territorialidade. Contudo, ele pode ter as quatro partes desdobradas segundo as necessidades de cada contexto, ou ainda segundo as modalidades de apropriação no campo material e no campo das ideias. O que irá determinar o “glossema”, para a análise, é a incursão e entendimento de cada realidade analisada. Por isso, Raffestin (1977) apontou no início que as relações entre os indivíduos e destes com o espaço “implica numa antropológica das relações construída de territorialidades que explicita a existência humana, como método de análise” (p. 132). Assim, a nossa postura é combinar o método de análise proposto aos métodos de campo de base etnográfica que nos possibilitam olhar os contextos urbanos de dentro. Consideramos para isso, a interpretação da emoção como categoria analítica na antropologia, a partir da qual o método de observação do “percurso comentado” (THIBAUD, 2004) implica a interação de todos os envolvidos no processo de pesquisa.

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CAPÍTULO III ETNOGRAFIA DAS EMOÇÕES: O OLHAR DE DENTRO EM INTERAÇÕES PARTICIPANTES COM A JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE POBREZA Após tecer longas considerações acerca do nosso arcabouço teóricometodológico, a saber: as nuances emocionais que representam o espaço urbano, nos referenciamos em Raffestin (1977), que aponta a abordagem da antropologia como a melhor para uma aproximação e organização do conhecimento sobre as representações territoriais. Assumimos, então, a perspectiva antropológica para pavimentar nossas aproximações de campo, valendo-nos da prática etnográfica para observar de maneira participativa a constituição de “comunidades emocionais” (MAFFESOLI, 2010) que se apropriam dos diversos territórios, que podem ou não ter seus limites físicos rompidos pelos “percursos comentados” (THIBAUD, 2004), indicados pelo entrelace dos trajetos entre o ser e o devir que emergem nas representações das distâncias topológicas (estruturas do espaço) e cognitivas (significação sociocultural do espaço). Portanto, na área de conhecimento da antropologia, nos voltamos para a “antropologia das emoções”, ao entender que é pelas emoções, expressas principalmente pela oralidade, que construímos as representações espaciais, também chamadas de imagem do lugar. Cabe delimitar que a emoção tratada na antropologia diz respeito às impressões que qualificam uma determinada relação, que são também expressas, principalmente, nas falas daqueles que nos informam – as personas da comunidade emocional. Compreender isto foi fundamental, pois alicerçamos nossas análises nas falas de um grupo de jovens, moradores da Comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro, os nossos informantes, que emocionalmente nos revelam as nuances das suas identidades articuladas às identidades territoriais da cidade.

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3.1

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A emoção como categoria antropológica e o percurso comentado

como método de campo A emoção como categoria de análise dentro da antropologia surge nos anos 1970, nos Estados Unidos, com as abordagens interpretativas que tomam como ponto de partida a definição de cultura e a contextualização de culturas, para então desenvolver os conceitos de pessoa e emoções como experiências afetivas (REZENDE & COELHO, 2010, p. 14). Coelho (LUTZ, 2012, p. 213) observa, nas notas introdutórias à entrevista que lhe concedeu a antropóloga Catherine Lutz, um dos expoentes deste campo disciplinar, que o estudo das emoções foi definitivamente impulsionado na cena antropológica norte-americana nos anos 1980. Segundo Coelho, encontra-se na obra de Lutz (2012) uma das mais importantes contribuições no campo das emoções, pois esta autora faz uma “(...) investigação minuciosa dos eixos em torno dos quais se organiza a percepção da vida emocional predominante no Ocidente, em vários planos – senso comum, discurso acadêmico, obras de ficção” (p. 214). Embora, na sua construção teórica ela oponha “emoção versus pensamento e emoção versus distanciamento” (p. 214), que é o inverso do que nós propomos. Iniciamos nossa pesquisa deixando claro que tratamos aqui de uma teoria do conhecimento sobre as representações do espaço. Ao considerar que a representação é uma das formas de tomada de consciência sobre alguma coisa ou relação (capítulo 2), assumimos também que as representações estão diretamente ligadas às construções dos conceitos estruturados pelo pensamento e pela linguagem (VIGOTSKI, 1998), tema este debatido no capítulo 1. Temos, então, dois aspectos importantes: os simbolismos dos diversos territórios que dão organicidade à cidade, que emergem da “função simbólica da palavra [fala emocional do pensamento]” (VIGOTSKI, 1998, pp. 53-54); e as distâncias (trajetos recursivos) topológicas e cognitivas (BAILLY, 1985) que igualmente significam o território e que são determinadas dentro de “comunidades emocionais” (MAFFESOLI, 2010), uma vez que estamos sempre inseridos em um contexto. UFRJ I FAU I PROURB

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Com base em tais considerações, entendemos que para uma antropologia das territorialidades, conforme mostrado por Raffestin (1977), e que considera os movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização de comunidades emocionais, a emoção não se contrapõe ao pensamento e nem tampouco às distâncias que nos levam a construir a realidade percebida e representada do mundo, mas, antes, elas se complementam como um corpo dialógico. Nesta dialógica o que está em questão é a tomada de consciência de “si” e do “nós” no mundo, de identidades que emergem “[na] representação, [na] percepção, [na] linguagem, [na] lógica, [no] pensamento” (MORIN, 1999, p. 136), todos “eco-auto-organizados” através do acesso e apropriação de informações reintegradas no pensamento (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 204). 3.1.1 A emoção como categoria antropológica para a prática da etnografia O tema da emoção na antropologia e na sociologia é antigo e, como bem dizem Rezende & Coelho (2010) e Koury (2009), já se percebia nas obras de Durkheim e Georg Simmel o esboço do que mais tarde se tornaria a antropologia das emoções. Estes autores viam a emoção como algo construído socialmente. E ainda, como lembra Koury (2009), “a categoria emoções, (...), seria vista como o palco por onde se expressariam os processos relacionais de uma sociabilidade específica” (p. 13). Koury observa que Durkheim tinha como pressuposto marcar a diferença entre “(...) os campos científicos da fisiologia, da psicologia e da sociologia” (2009, p. 13), dando ênfase à ciência sociológica, para a qual a sociabilidade é produto não de uma experiência individual, mas social141 (p. 14). Durkheim coloca as emoções como um produto da sociedade, submetida, mas negociada por processos mentais e fisiológicos no processo de vivência de cada sujeito particular socialmente formado (KOURY, 2009, p. 14).

Nesse caso, o indivíduo é pensado a partir de sua totalidade social, considerado como um sujeito, ou melhor, uma persona, tal como tratado por Maffesoli (2010), pois “(...) não existe o eu, o indivíduo e sim, o nós, a coletividade”

141

Análise feita com base nas considerações de BOUDON, Raymond. A ideologia. São Paulo, Ática, 1989.

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(p. 16). No trabalho mencionado, Koury traça uma breve aproximação entre os pensamentos de Durkheim e Marx e de como estes autores tratam as emoções. A partir disso, é importante ressaltar a relevância da emoção como categoria de análise, que se estrutura não apenas como algo da subjetividade, mas, sobretudo, como algo “(...) que tem efeitos significativos para as interações e a coletividade de modo amplo” (REZENDE & COELHO, 2010, p. 13), pois, na nossa perspectiva, é o ingrediente que agrega as “comunidades emocionais” (MAFFESOLI, 2010). É oportuno observar ainda, e agora com base nos estudos de Rezende & Coelho (2010), que a percepção da emoção nem sempre foi esta. Antropólogos da escola britânica como das escolas americana e francesa, “(...) como A. R. RadcliffeBrown, Ruth Benedict e Marcel Mauss” (REZENDE & COELHO, 2010, p. 13), exploraram o papel do sentimento e suas formas de expressão, ora por seu papel ou função social, “(...) ora comparando padronizações culturais distintas das emoções” (2010, pp. 13-14). À exceção de Marcel Mauss, a visão sobre as emoções é ambígua, oscilando entre algo subjetivo ou resultante de situações sociais (p. 14). Tais ponderações nos impelem a uma breve reflexão sobre as considerações que Mauss tece a respeito das relações entre antropologia, sociologia e psicologia. Como menciona Lévi-Strauss, na Introdução à obra “Sociologia e Antropologia” de Mauss, este autor coloca em conexão, nos seus estudos sobre o mágico e a morte, os aspectos fisiológicos e o social “(...) para a justa interpretação das relações entre indivíduo e grupo (...) já em 1926” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 12). Mauss também foi um dos pioneiros no estudo das técnicas do corpo. (...) Ao afirmar o valor crucial, para as ciências do homem, de um estudo da maneira pela qual cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo (...). [Em que] é por intermédio da educação das necessidades e das atividades corporais que a estrutura social imprime sua marca nos indivíduos: “As crianças são treinadas... a controlar reflexos... inibir seus medos... selecionar paradas e movimentos”. Essa pesquisa da projeção do social sobre o individual deve investigar o mais profundo dos costumes e das condutas; nesse domínio, não há nada de fútil, nada de gratuito, nada de supérfluo: “A educação da criança é repleta daquilo que chamamos detalhes, mas que são essenciais” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 12).

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Segundo Lévi-Strauss, Mauss chama a atenção para o fato de o ser humano em qualquer cultura “(...) fazer de seu corpo um produto de suas técnicas e de suas representações” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 15), o que nós entendemos através dos mecanismos de apropriação por trás das marcações e personalizações que discutimos no capítulo 2. Ao pensar tal tema, Mauss afirma, em 1924, que a vida social é como “um mundo de relações simbólicas” (MAUSS, 2008, p. 15). Estabelecese então ao redor deste assunto um intenso debate entre o que seria cultura do grupo e psiquismo individual (p. 16). Esta discussão também permeia a obra de Vigotski e nos leva a retomar a ideia desenvolvida no primeiro capítulo que ressalta, na atualidade, a tendência à desinvidualização, na medida em que, na relação indivíduo-sociedade, o que existe de fato é a persona, que atua em favor do grupo (MAFFESOLI, 2010). Contudo, devemos destacar e esclarecer, entre parêntesis, que a desinvidualização é uma prática que ocorre ao redor de um tema mobilizador suscitado por um grupo no espaço-tempo, que conforma uma comunidade emocional. Quando as relações de compromisso social que mantêm o grupo se dissolvem, a desinvidualização cede lugar às identidades individualizadas. Retomando o pensamento, Lévi-Strauss sabiamente antecipa, no mesmo texto, que tal questão, aparentemente sem saída, deve analisar a relação socialindividual não pela lógica causa e efeito, “(...) mas que a formulação psicológica não é senão uma tradução, no plano do psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociológica” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 16). A maneira como Lévi-Strauss relaciona sociedade e indivíduo expressa a reciprocidade na constituição tanto de um como de outra. Esta forma de pensar aproxima-se, fortuitamente, do que entendemos sobre construir conhecimento mediado por interações (VIGOTSKI, 1998). Presumimos que todo o processo de constituição do mundo real, simbolicamente apresentado e representado, é fruto de uma relação dialógica entre indivíduo e sociedade, e que a emoção, igualmente, se coloca de forma relacional e complementar ao mundo que é dado.

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É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em seus costumes e em suas instituições; ao contrário, as condutas individuais normais142 jamais são simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 17).

Não cabe aqui, nos alongarmos em considerações sobre os processos da saúde mental em uma determinada cultura ou sobre o conceito de fato social total143 postulado por Mauss. A sua importância está em ser um dos precursores do pensar a emoção como uma categoria de análise na antropologia, por sua dimensão coletiva. Tal expressão fica evidente na obra “L’expression obligatoire des sentiments”, de 1921, que trata dos rituais orais funerários australianos, em “(...) que considera não só o choro, mas todos os tipos de expressões orais dos sentimentos, que são essencialmente, não apenas fenômenos psicológicos, fisiológicos, mas fenômenos sociais, marcados pela não espontaneidade...” 144 (MAUSS, 1921, 2002, p. 3).

O interessante desta obra é que demonstra que a emoção nem sempre é espontânea, sendo, antes, a expressão de um contexto sociocultural. De maneira bem ampla, significa dizer que algumas falas ou expressões corporais servem apenas para compor o que Mauss chama de caráter coletivo do sentimento, geralmente obrigatório, mas que em nada interfere nos sentimentos individuais (p. 7). Isto confirma o que ele já anunciara - que a vida social é “um mundo de relações simbólicas” (MAUSS, 2008, p. 15)145.

142

Quando Lévi-Strauss se refere às “condutas individuais normais”, e as coloca em relação “às condutas anormais” que considera, com base nos estudos psicanalíticos, serem “dissocializadas e de certo modo abandonadas a si mesmas, tais condutas realizam, no plano individual, a ilusão de um simbolismo autônomo” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, p. 17). 143 Como cita Lévi-Strauss, no fato social total “não significa apenas que tudo o que é observado faz parte da observação; mas também e, sobretudo, que, numa ciência em que o observador é da mesma natureza que seu objeto, o observador é ele próprio uma parte de sua observação (...). Para apreender convenientemente um fato social é preciso apreendê-lo totalmente, isto é, por fora como uma coisa, mas como uma coisa da qual é parte integrante a apreensão subjetiva (consciente e inconsciente) que dela faríamos se, inelutavelmente homens, vivêssemos o fato como indígena em vez de observá-lo como etnógrafo” (LÉVI-STRAUSS in MAUSS, 2008, pp. 2526). 144 [Tradução livre da Autora]: « Ce ne sont pas seulement les pleurs, mais toutes sortes d'expressions orales des sentiments qui sont essentiellement, non pas des phénomènes exclusivement psychologiques, ou physiologiques, mais des phénomènes sociaux, marqués éminemment du signe de la non-spontanéité, et de l'obligation la plus parfaite. Nous resterons si vous le voulez bien sur le terrain du rituel oral funéraire, qui comprend des cris, des discours, des chants » (MAUSS, 1921, 2002, p. 3). 145 Importante destacar que, segundo Koury (2005), a antropologia das emoções no Brasil iniciou-se recentemente, principalmente a partir dos anos 1990. Contudo, o discurso sobre a “emoção social” é mais antigo e está presente nas obras de “Gilberto Freyre, com o ensaio inovador sobre a cultura e as relações sociais durante UFRJ I FAU I PROURB

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Tais observações nos são pertinentes, pois, nas nossas análises traçamos considerações sobre as territorialidades de comunidades emocionais que dão visibilidade às identidades que de alguma maneira procuram se inserir no todo urbano. Então, para tornar factíveis tais análises, nós fazemos uma descrição etnográfica de um grupo de jovens que habitam uma região de pobreza na cidade do Rio de Janeiro, cujo objetivo é expor aquilo que é sensível à percepção destes jovens, através de representações, como interpretações possíveis dos simbolismos urbanos, a partir das interações com os espaços públicos da cidade. Lembramos que, nesta interpretação, o sensível é uma dimensão perceptiva na construção do conhecimento que não tem o intuito de confirmar ou delimitar nenhuma realidade através de certezas, pois, (...) não existem fatos no estado puro à espera de significados para confirmá-los. Nenhum pesquisador tem que se perguntar: a) quais são os fatos? b) onde está o sentido? Por outro lado, (...) apercebemo-nos que o sentido não é separável do sensível (LAPLANTINE, 2004, p. 111).

Assim, a nossa postura etnográfica é dialógica, pois, com base nas palavras de Laplantine, não tem o objetivo de estabelecer verdades ou impor nosso ponto de vista, “(...) é uma atividade que se reforma e se reformula permanentemente através do contato com determinada cultura” (LAPLANTINE, 2004, p. 126). Por isso, a interação com os atores é participativa. A nossa participação dialoga com a experiência daquele que observa com um olhar sensível o espaço e as relações nele estabelecidas, num movimento que nos conduz à compreensão da ambiência vivenciada por aquele que se apropria do espaço. Isto complementa o que entendemos como ver e viver o espaço, e que é explicitado, na abordagem de campo, pelas ambiências construídas na interação, percebidas e representadas pelos atores.

o processo de colonização brasileira; Sérgio Buarque de Holanda com a sua teoria do homem cordial; Roger Bastide; Oracy Nogueira; Roberto DaMatta que levanta hipóteses onde o sentimento e sua forma de expressão no social perpassa a constituição do público e do privado brasileiro; Gilberto Velho em seus estudos e pesquisas que enfatizam a cultura emocional, principalmente das classes médias no Brasil urbano contemporâneo; Luís Fernando Dias Duarte, entre outros” (KOURY, 2005, pp. 240-243). UFRJ I FAU I PROURB

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Assumiremos, então, a perspectiva antropológica como caminho para as aproximações de campo, utilizando a prática etnográfica como forma de observação participativa da constituição de “comunidades emocionais” (MAFFESOLI, 2010) que se apropriam dos diversos territórios, que podem ou não ter seus limites físicos rompidos pelos “percursos comentados”, teorizado por Thibaud (2003), e que tem na ambiência o ponto de partida a ser observado para desvendar as territorialidades manifestadas estruturalmente e/ou socioculturalmente. 3.1.2 O percurso comentado como método etnográfico no urbanismo O caminhar é uma forma etnográfica de leitura das representações sociais. Thibaud (2003) trata este método como de aproximação sociológica via descrição, que analisa os gestos, posturas, olhares e falas ordinárias enquanto etapas de um trabalho de campo (THIBAUD, 2003, p. 2). Para este autor, entre os recursos que levam a aceder a tais informações as captações por áudio e vídeo nos permitem voltar várias vezes ao lugar através das imagens e palavras registradas. (...) assistir a um filme sem som, em câmera lenta ou acelerada, congelar a imagem ou utilizar o primeiro plano favorece o exame dos fenômenos que não poderiam ser capturados facilmente a olho nu. Ao nível sonoro, a escuta sistemática e repetida das conversações registradas permite analisar a formação das interações verbais, quer se trate da prosódia da língua articulada (vocalizada) ou do encadeamento de palavras (sequencialidade) (...)146 (THIBAUD, 2003, p. 2).

Para ele, este tipo de observação, por descrição, destaca a natureza contextual do comportamento social (p. 2) e só faz sentido se for apreendida pela imagem e pela fala que a representa, através dos trajetos topológicos e cognitivos daquele que informa, constituindo o que Thibaud chama de “método do percurso comentado” (THIBAUD, 2003, p. 3). Este método tem como objetivo central captar a experiência sensível, em outros termos, e para nós, a experiência emocional, através

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[Tradução livre da Autora] «(…) Visionner un film sans le son, au ralenti ou en accéléré, pratiquer l'arrêt sur image ou user du gros plan favorise l'examen de phénomènes qui ne pourraient être saisis que très difficilement à l'œil nu. Au niveau sonore, l'écoute systématique et répétée de conversations enregistrées permet d’analyser la mise en forme des interactions verbales, qu'il s'agisse de la prosodie du langage articulé (vocalité) ou de l'enchaînement des tours de parole (séquentialité) (…)» (THIBAUD, 2003, p. 2). UFRJ I FAU I PROURB

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da percepção e representação em movimento, por meio de três atividades ao mesmo tempo: “caminhar, perceber e descrever” (p. 3). O percurso comentado envolve três hipóteses principais. A primeira trata da “percepção no contexto” (THIBAUD, 2003, p. 3) que considera que a percepção não é puramente abstrata, mas também está sujeita às intencionalidades presentes no contexto. A maneira como se percebe é em geral indissociável da conjuntura em que se insere aquele que percebe. A segunda hipótese se refere ao “inevitável movimento da percepção [trajetos topológicos e cognitivos]” (p. 4), pois, para Thibaud, toda percepção implica em movimento, ou seja, a ideia de deslocamento tanto físico como psíquico, e que não se reduz à dualidade entre interioridade e exterioridade, indivíduo-objeto, mas é um movimento que os coloca em relação (BAILLY, 1985), tal como em um sistema de coparticipação (MORIN & LE MOIGNE, 2000). Desse ponto de vista, o movimento não é comparável a uma simples mudança de lugar ou ao deslocamento de um ponto para outro, ele mobiliza as qualidades sensíveis [emocionais], ao mesmo tempo em que as revela: “é, portanto, o mesmo que dizer que a fenomenalização deriva do mundo em que o sujeito está engajado por seus movimentos, ou que é o sujeito motor que, ao querer o mundo, o faz aparecer”147 (BARBARAS148 apud THIBAUD, 2003, p. 4) (THIBAUD, 2003, p. 4).

A proposta de Thibaud é integrar a ideia de movimento ao trabalho de campo, ao tratar de considerar não somente a percepção situada, mas também aquela em movimento. Já a terceira hipótese, o “entrelaçamento entre o dizer e o perceber” (p. 5), postula que a percepção do espaço urbano é passível de ser apreendida a partir do que pode ser relatado verbalmente. Assim, nós nos referimos neste capítulo à abordagem etnográfica enunciada por Thibaud que entende que a vivência só encontra sentido na linguagem (THIBAUD, 2003, p. 5), o que também é preponderante no pensamento de Vigotski (1998).

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[Tradução livre da Autora] «De ce point de vue, le mouvement n'est pas assimilable à un simple changement de lieu ou au déplacement d’un point à un autre, il mobilise les qualités sensibles en même temps qu'il les révèle: «il revient donc au même de dire que la phénoménalisation procède du monde dans lequel le sujet est engagé par ses mouvements, ou que c'est le sujet moteur qui, en se portant vers le monde, le fait paraître»» (THIBAUD, 2003, p. 4). 148 [Citado] Cf. BARBARAS R. Motricité et phénoménalité chez le dernier Merleau-Ponty. In: Merleau-Ponty, phénoménologie et expériences. Grenoble : Jérôme Million, 1992, pp. 27-42. UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 7: [reprodução] Esquema de levantamento em campo e análise dos dados proposto por Thibaud. Fonte: (THIBAUD, 2003, p. 6).

Em consonância com estas considerações, o autor propõe uma inserção em campo, adotada em nossa pesquisa, que se aproprie do movimento dos corpos “caminhantes” e “pensantes” nos revelam as nuances relacionais emocionais desenroladas no território - e toma como base um protocolo de pesquisa [Figura 7], que sintetiza os procedimentos de entrada em campo e as interpretações do caderno de campo, partindo da caminhada registrada em áudio e vídeo como processo etnográfico (Anexo I). Advertimos, no entanto, que usamos de início uma pesquisa estruturada que serviu para nos aproximar dos nossos informantes, cuja intenção era despertar os jovens para o debate sobre o urbano, tema agregador da comunidade emocional, através do que convencionamos chamar “Caderno de Vivências Urbanas” (Anexo II), e que coloca algumas questões que foram respondidas ora por meio de textos ora por desenhos. Este procedimento foi livre, cada um optou por participar em dias distintos e outros se abstiveram149.

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Tratamos sobre os protocolos de campo no próximo item.

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Já no que se refere à caminhada, esta sim foi organizada a partir de visitas guiadas pelos jovens, que tiveram autonomia para escolher os percursos, embora mediados pela figura de um professor. Cabe acentuar ainda que a caminhada, de acordo com Thibaud (2008), pode ser encarada sob três aspectos: conjugar a caminhada no plural, compreendê-la através do meio, colocar a marcha em prática. No primeiro caso, nós reconhecemos que existem várias maneiras de fazê-la. No segundo caso, voltamos o olhar para as formas como os corpos se expandem no espaço; diz respeito aos corpos em movimento ou, em outros termos, como nos apropriamos e posicionamos nos espaços das relações sociais. E o terceiro é o caminhar propriamente dito (p. 1). O autor sugere um dispositivo de enquete urbana com viés etnográfico baseado no voltar o olhar para os movimentos, que traduzimos como trajetos e distâncias150 que percorremos no ambiente. O objetivo é que o pesquisador, ao se colocar em campo, relacione a prática da caminhada à experiência das ambiências urbanas construídas pelos informantes, a partir da perspectiva enunciada por Thibaud do informante como “Eu, Tu, Ele: caminhando com três pessoas” (THIBAUD, 2008, p. 1). É importante sublinhar que, quando fala em ambiência, ele se refere primeiro à sua definição a partir da perspectiva arquitetônica, já citada no capítulo 1, um “espaço, arquitetonicamente organizado e animado, que constitui um meio físico e, ao mesmo tempo, meio estético, ou psicológico, especialmente preparado para o exercício de atividades humanas” (AURÉLIO, 2004). Ou seja, um pensamento que se aproxima ao de Zevi (2011), ao tratar a arquitetura como a cena construída pelas relações humanas, onde a ambiência se faz no contato, na presença, na apropriação do ambiente. (...) a noção de ambiência trata-se não de estudar a composição de um conjunto de fenômenos perceptíveis emergidos em determinado lugar (fenômenos sonoros, luminosos, térmicos, olfativos etc.), e sim de dar conta dos incessantes processos de mobilização corporal e solicitação motora do mundo circundante. Em outras palavras, (...) observar as condutas motoras dos passantes como reveladoras e geradoras de uma ambiência. (...) Trata-se de pôr em primeiro plano o papel da 150

Verificar no capítulo 2 desta tese.

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motricidade na constituição de uma ambiência e, desse modo, fazer valer a vertente pré-reflexiva do vivido cotidiano151 (THIBAUD, 2013, pp. 101-102).

Consideramos, por isto, a ambiência urbana, como resultante das práticas cotidianas, constituinte do que Raffestin (1995) chama de território cotidiano, território das trocas, território referencial e território sagrado (ver capítulo 2). Contudo, ressaltamos que entendemos, também, que a ambiência representada por falas e desenhos pode constituir-se, em alguns casos, imageticamente, nos termos anteriormente propostos como uma apropriação no campo das ideias. Neste caso, a interação não é material e sim subjetiva, como uma espécie de presença idealizada. Assim, para efetuar as incursões em campo, julgamos fundamental a nossa integração ao espaço↔comunidade emocional que nos informa, a partir dos percursos escolhidos pelos jovens. Neste processo de conhecimento cada parte, o “Eu, Tu, Ele”, cumpre um papel que irá expor as relações afetivas estabelecidas através das territorialidades reveladas. O “Eu” neste caso somos “nós” pesquisadores, mas, de qualquer forma, a primeira pessoa que experimenta a descoberta de um novo território urbano através do caminhar; é “[o] primeiro contato com um espaço não conhecido e de novas ambiências”152 (THIBAUD, 2008, p. 2). No entanto, é importante acentuar que Thibaud trata esse primeiro contato como uma caminhada livre, sem destino definido ou intencionalidade. De fato, para nós pesquisadores esta é uma caminhada livre, porém com um destino e uma intencionalidade mediadas pelo outro que informa. Mesmo assim, neste processo foi possível fazer aquilo que o autor observa como próprio da caminhada livre de primeiro contato com o território, que é deixar-se impregnar pelo lugar, tomando notas de campo que registram as impressões e sensações, gradualmente, na medida do caminhar (p. 2). É o que ele chama de uma espécie de deriva pessoal em que o pesquisador, através de suas impressões escritas

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[Citado] “Reconhecemos aqui o aporte fundamental da fenomenologia em sua tematização da vertente corporal, imediata e antepredicativa da experiência vivida. Retenhamos em particular, o aporte fundamental de Erwin Straus (1989), ao evidenciar o par sentir/mover-se, e o de Maurice Merleau-Ponty (1945), com sua noção de intencionalidade motora” (THIBAUD, 2013, p. 102). Cf. 1. STRAUS, Erwin. Du sens des sens. Grenoble: Jérôme Million, 1989; 2. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. 152 [Tradução livre da Autora] «L’expérience est ici celle de la découverte d’un nouveau territoire urbain que je rencontre à même les pas. Premier contact avec un espace inconnu et de nouvelles ambiances» (THIBAUD, 2008, p. 2). UFRJ I FAU I PROURB

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e preferencialmente por meio de fotos, posiciona-se perante o objeto de pesquisa. Nessa perspectiva, fica evidente a nossa observação de campo participativa e que organizamos, tanto quanto os nossos informantes, nossas identidades nas interações cotidianas que estabelecemos (MORIN, 2000). Já o “Tu” volta-se para a fala do outro e (...) consiste em escutar os habitantes, chamando os pedestres que se encontram no lugar (em diferentes pontos do território estudado), quer eles sejam residentes de longa data, usuários regulares ou visitantes pontuais153 (THIBAUD, 2008, p. 3).

Quer dizer, não são mais as nossas impressões ao caminhar livremente, mas as impressões daquele que nos conduz ou dos que são entrevistados no decorrer do percurso. Não é mais apenas o nosso ver e viver a experiência urbana, mas o ver e o viver urbano do outro, que nos indica sobre a sociabilidade do lugar. (...) para ilustrar uma descrição, interagindo com um encontro fortuito de um conhecimento (...). Os interlocutores que propõem a caminhada podem também dizer onde parar quando eles demandam e mobilizam toda a atenção da pessoa interrogada154 (THIBAUD, 2008, p. 3).

Thibaud (2008) acrescenta que as falas irão comunicar, alternadamente, impressões do momento presente; descrições do cotidiano, evidenciando o território cotidiano; evocar o passado, ressaltando o território referencial, apreciações e impressões pessoais do informante, comentários sobre relações de vizinhança; os problemas e os hábitos de deslocamentos espaciais (p. 3). Esta sequência, acompanhada de eventos, traçada pelo outro, difere da deriva do pesquisador que nos dá somente instantes experienciais in loco. Para o autor, “(...) as sequências acompanhadas permitem aceder às representações sociais e ao imaginário coletivo do território estudado”155 (THIBAUD, 2008, p. 3).

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[Tradução livre da Autora] «Cela consiste à se mettre à l’écoute des habitants en faisant appel aux piétons rencontrés sur place (en différents points du territoire étudié), qu’ils soient résidants de longue date, usagers réguliers ou visiteurs ponctuels» (THIBAUD, 2008, p. 3). 154 [Tradução livre da Autora] «Les propos mettent parfois à profit la situation de marche en prenant la forme d’une petite visite guidée, en s’appuyant sur le trajet pour illustrer une description, en interagissant avec la rencontre fortuite d’une connaissance… Les commentaires peuvent aussi se dire à l’arrêt quand ils requièrent et mobilisent toute l’attention de la personne interrogée» (THIBAUD, 2008, p. 3). 155 [Tradução Livre da Autora] «(…) les séquences accompagnées permettent d’accéder aux représentations sociales et à l’imaginaire collectif du territoire étudié» (THIBAUD, 2008, p. 3). UFRJ I FAU I PROURB

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As escolhas dos percursos propostos pelos informantes dependem de circunstâncias diversas, que levam em conta tanto as experiências pessoais como as impressões da coletividade em que estão inseridos, ou emoções coletivas. Assim, a escolha do caminhar e do não caminhar por ali ou por aqui é uma forma de comunicar, conjuntamente com o discurso adotado, as tensões relacionais próprias ao território e o que elas representam para as relações no lugar. O caminhar por “Ele” não foi incluído na metodologia de campo pelo fato de o território em questão estar sujeito ao “controle” de agentes que impõem regras ao direito de ir e vir, conforme se verá no próximo capítulo. Porém, é um olhar sobre o território igualmente importante e por isso devemos pontuá-lo brevemente. A aproximação etnográfica a partir da terceira pessoa, o “Ele”, consiste em se colocar ao ritmo dos passantes, pura e simplesmente, em diversas horas do dia, aos quais observamos à distância, nos posicionando em um ponto específico do território. Para Thibaud, “esta aproximação ajuda a colocar em evidência as inclinações do caminhar, ou seja, as tendências motoras conforme as situações do ambiente”156,157 (THIBAUD, 2008, p. 4). Corresponde, para Thibaud, à captura e como os corpos em movimento se inscrevem no contexto e são pontuados pelos trajetos topológicos (linear, circular, ziguezague...), e pelos momentos de interações sociais, nomeados por nós trajetos cognitivos, ao se reportarem ao ambiente construído com movimentos e gestos. Observando-se com isto que, gradualmente, o lugar é qualificado pelas maneiras individuais de se deslocar (THIBAUD, 2008, p. 4). Segundo Thibaud esta é uma forma de enquete sobre o espaço urbano leve, que torna o trabalho de campo econômico. Não interessa se a pesquisa aborda as emoções ou regras de uma sociedade, o importante é que considera tais objetos de

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[Tradução livre da Autora] «Cette approche aide à mettre en évidence les inclinations de la marche c’est-àdire des tendances motrices en situation» (THIBAUD, 2008, p. 4). 157 Ressaltamos que, quando citamos as “tendências motoras” através das considerações de Thibaud, estamos passando atravessadamente pelos discursos de Le Boulch e Henry Wallon sobre as relações entre movimento do corpo e afeto. Cf. 1. LE BOULCH, Jean. A educação pelo movimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983; Cf. 2. WALLON, Henry. Origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989. UFRJ I FAU I PROURB

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análise através do “como”, sob quais condições o caminhar como processo é capaz de se atualizar, modular e alterar (p. 5). “Este tipo de investigação nos revela sem dúvida que a caminhada não procede somente de uma experiência ‘na’ cidade ou mesmo ‘da’ cidade, mas também ‘com’ ela”158 (THIBAUD, 2008, p. 5). Com base nesses comentários sobre a etnografia através do percurso comentado como forma de capturar as representações de grupos que se territorializam, desterritorializam e reterritorializam, apresentamos a seguir, como proposta de exercício, um ensaio analítico embasado em nossas considerações que tem como protagonistas um grupo de jovens que habitam a Comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro, dando visibilidade aos trajetos emocionais de construção do conhecimento, na perspectiva da juventude.

3.2

Aquele que constrói o conhecimento emocional: os jovens em

situação de pobreza Não é nossa intenção definir historicamente o que é juventude, nós partimos das considerações que Cassab tece no estudo “(Re) Construir utopias: jovem, cidade e política” (2009) sobre o conceito de “jovem pobre”, em que logo de início ele sinaliza que, Não é possível falar dos jovens urbanos sem pensar nas suas condições de vida, suas atuais e futuras oportunidades e nos sonhos passíveis de se realizarem nessa cidade. Dividindo-se entre a necessidade de estudar e trabalhar, em querer ter lazer e não ter acesso a ele, de querer acompanhar a velocidade do mundo digital e não ter acesso a um computador, esses jovens vivem cotidianamente a cidade sem a ela pertencerem de fato (CASSAB, 2009, p. 42).

Esse viver a cidade sem a ela pertencer, nos levou a interrogar sobre os territórios cotidianos, de trocas, referencial e sagrado da cidade (RAFFESTIN, 1995), vivenciados e representados por um grupo de jovens em situação de pobreza. Discutir sobre essa juventude é primordial, mas, antes, há que se deter, ainda que

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[Tradução livre da Autora] «Enquêter de cette manière nous apprend sans doute que la marche ne procède pas seulement d’une expérience « dans » la ville ou même « de » la ville mais aussi au moins autant « avec » elle» (THIBAUD, 2008, p. 5). UFRJ I FAU I PROURB

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brevemente, na sua configuração que, segundo Cassab, pode ser vista sob três principais vertentes. Uma primeira, que procurará definir juventude a partir de um recorte etário – entre 15 e 24 anos, no caso da Organização Mundial de Saúde (OMS). A segunda relaciona a juventude a uma fase de transição – a passagem da infância à vida adulta. Por fim, uma última acepção, que associa a juventude a um eterno devir, a um projeto de futuro, sendo, portanto, negado o presente (CASSAB, 2009, p. 15).

Segundo a autora, a definição da juventude por corte etário tende a neutralizar sua noção, uma vez que esta concepção é uma criação social (p. 16). Por isto, o entendimento desta fase da vida atravessa diversos contextos socioculturais que devem ser referenciados em seu tempo. Contudo, a mesma observa que, no Brasil, o jovem somente começa a ser visto como sujeito no século XIX, mas, (...) também é nesse século que se procura institucionalizar a infância e a juventude pobre sob o olhar da justiça e da filantropia [através de práticas higienistas]. Há uma clara preocupação dirigida aos jovens pobres (CASSAB, 2009, p. 28).

Nesta mesma época, Cassab constata ainda que começa a se fazer distinção entre pobre trabalhador e pobre vicioso, em que este último passa a ser estereotipado como uma ameaça social ligada à violência. De uma forma geral, “o jovem pobre personificava o perigo e a ameaça por suas características intrínsecas de perversão e criminalidade. Mesmo quando não realizadas havia sempre o perigo potencial de sua realização futura” (CASSAB, 2009, p. 29). A autora segue tecendo considerações, que passam pela entrada dos jovens pobres nos arsenais de guerra, na segunda metade do século XIX, pela criação do Código de Menores de 1927159 e por outras formas de percepção da juventude, no período do pós-guerra, a partir de 1950, e que vislumbravam nesta categoria um ímpeto contestador e rebelde.

159 Segundo

Cassab, esse Código procurava “legislar sobre as crianças e jovens entre zero e 18 anos em diferentes situações – abandono, moradia incerta, pais falecidos, desaparecidos, declarados incapazes, presos há mais de dois anos, vagabundos, mendigos, de maus costumes, que exercessem trabalhos proibidos ou que fossem economicamente incapazes de suprir as necessidades de sua prole –, o Código procurou construir um aparato legal que controlasse os perigos iminentes de um grupo social potencialmente delinquente. Para esses jovens e crianças era reservado o espaço jurídico da reeducação, internação e preparação para o trabalho” (CASSAB, 2009, p. 32). UFRJ I FAU I PROURB

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A mudança de paradigma sobre o conceito de juventude emerge na década de 1980, com a tendência de olhar a juventude pelo viés dos aspectos culturais, quando “procurou-se identificar e analisar o que seriam uma ‘cultura juvenil’ e uma ‘sociabilidade juvenil’” (CASSAB, 2009, p. 39). Os jovens se tornam produtores de cultura capazes de articular sociabilidades, por isso, organizarem-se em “tribos” (MAFFESOLI, 2010). Cassab destaca que este processo é estabelecido em “(...) práticas democráticas e participativas, com ênfase na comunidade, solidariedade e companheirismo” (p. 40). Isto é exatamente o que é dito por Maffesoli (2010) sobre as comunidades emocionais como comunidades solidárias, que agem em pequenas tribos por processos de empatia, e por isso são capazes de se articularem em redes de sociabilidade. No que pese tal vitalismo da juventude, Cassab constata que a separação por classes ainda é imperativa na nossa sociedade. Observamos que este grupo de jovens, em situação de pobreza, está incluído precariamente no sistema, e para estes a falta de perspectivas profissionais ou de equipamentos socioculturais é um fato (CASSAB, 2009, p. 42). Infelizmente, para estes jovens, é corrente a sua associação à delinquência e violência (p. 42). Citando Castro e Abramovay, Cassab destaca que para os meios de comunicação “os jovens, principalmente se pobres e negros, são os sujeitos perigosos, perigo este ligado à sua classe e idade” (CASTRO e ABRAMOVAY, 2003, p. 7). Cassab salienta ainda, que para tais autoras, (...) a adoção desse paradigma conceitual sobre juventude seria um forte complicador na elaboração de políticas públicas de/para/com juventude. Essas políticas seriam pensadas a partir de uma imagem preexistente dos jovens e como políticas fragmentadas e não realizadas pelos jovens (CASSAB, 2009, p. 42).

Este é um aspecto que atravessa substancialmente a nossa construção, pois no que pese termos feitos uma etnografia com um grupo de jovens da Carobinha, tais jovens estavam inseridos em um Programa Governamental intitulado Projovem Adolescente, portanto, em parte, sujeitos à intencionalidade de um orientador social

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que cumpria o papel de “professor” e, mesmo, sujeitos à proposta política do programa. 3.2.1 Projovem Adolescente: o jovem que nos informa a cidade do Rio de Janeiro O Projovem Adolescente é um programa do Governo Federal que integra a Política Nacional de Assistência Social, que é uma política pública de proteção social de caráter universalizante e que se materializa por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O Projovem foi regulamentado através do Decreto nº 6.629, de 4 de novembro de 2008, como um programa de inclusão de jovens e que tem como foco “executar ações integradas que propiciem aos jovens brasileiros reintegração ao processo educacional, qualificação profissional em nível de formação inicial e desenvolvimento humano” (Lei nº 6.629, 2008, art. 2º), finalidade expressa da forma abaixo. Art. 2º. O Projovem tem por finalidade executar ações integradas que propiciem aos jovens brasileiros reintegração ao processo educacional, qualificação profissional em nível de formação inicial e desenvolvimento humano. Parágrafo único. Nos currículos dos cursos oferecidos nas modalidades de que trata o art. 1º deverão ser incluídas noções básicas de comunicação oral e escrita em língua portuguesa, de matemática, de informática, de cidadania e de língua estrangeira, observadas as especificidades de cada modalidade do Projovem. Art. 3º. São objetivos do Projovem: I - complementar a proteção social básica à família, criando mecanismos para garantir a convivência familiar e comunitária; II - criar condições para a inserção, reinserção e permanência do jovem no sistema educacional; III - elevar a escolaridade dos jovens do campo e da cidade, visando à conclusão do ensino fundamental, integrado à qualificação social e profissional e ao desenvolvimento de ações comunitárias; e IV - preparar o jovem para o mundo do trabalho, em ocupações com vínculo empregatício ou em outras atividades produtivas geradoras de renda (Lei nº 6.629, 2008, Seção I).

Os objetivos visados pelo Decreto nº 6.629/2008 são alcançados por meio do desenvolvimento de atividades que estimulam a convivência social, a cidadania e uma formação geral para o mundo do trabalho. Os beneficiados são jovens entre 15 e 17 anos de idade,

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(i) pertencentes a família beneficiária do Programa Bolsa Família – PBF; (ii) egressos de medida socioeducativa de internação ou em cumprimento de outras medidas socioeducativas em meio aberto, conforme disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente; (iii) em cumprimento ou egressos de medida de proteção, conforme disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; (iv) egressos do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI; ou (v) egressos ou vinculados a programas de combate à violência, ao abuso e à exploração sexual (MDS, 2009, p. 20).

Os jovens são organizados em grupos, denominados coletivos160. O coletivo é acompanhado por (...) um profissional de nível superior – necessariamente vinculado ao CRAS ao qual o coletivo estiver referenciado –, um Orientador Social, Facilitadores de Oficinas Culturais e de Esporte e Lazer e um Facilitador da Formação Técnica Geral para o Mundo do Trabalho (MDS, 2009, p. 36).

Numa perspectiva mais ampla, os coletivos juvenis são pensados pelo Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, como “capital social”161,162, vetores de transformação social do território em que estão inseridos (MDS, 2009, p. 25). Compreender isso é fundamental para situarmos tais coletivos como uma comunidade emocional comprometida através do estar-junto solidário (MAFFESOLI, 2010), no sentido de não só destacar o potencial proativo dos jovens, mas também o

160

A noção de coletivo juvenil é essencial não apenas à compreensão da concepção metodológica do Projovem Adolescente, mas das intencionalidades que lhes são subjacentes. Sua proposição, por um lado, baseia-se numa leitura crítica da estrutura social brasileira, das raízes histórico-estruturais das nossas desigualdades e dos valores hegemônicos – o individualismo exacerbado, por exemplo, – que dão sustentação a um certo modelo de desenvolvimento, altamente concentrador e excludente. Por outro lado, o coletivo persegue uma visão estratégica de enfrentamento destas mesmas desigualdades, a partir de um movimento, em escala, de empoderamento da juventude, potencializando a sua energia vital, a partir de um processo de resgate cultural, de uma proposta de ação reflexão baseada nos direitos de cidadania, da geração de tempos e espaços socioeducativos para a apreensão crítica da realidade do seu território e dos desafios que este lhes apresenta, enquanto superação de limites, determinantes do chamado “ciclo transgeracional de reprodução da pobreza” (MDS, 2009, p. 25). 161 “O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e inter-reconhecimento; ou, em outras palavras, à participação em um grupo, como um coletivo de atores, que não são apenas dotados de aspectos comuns (que podem ser percebidos pelo observador, por outras pessoas, ou por eles próprios), mas são unidos por laços permanentes de reciprocidade. Esses laços não são redutíveis às relações práticas de proximidade no espaço físico (geográfico) ou mesmo no espaço econômico e social, porque eles são baseados em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas, de onde criação e perpetuação pressupõe o reconhecimento dessa proximidade” (BOURDIEU, 1980, p. 2). 162 [Tradução livre da Autora] «Le capital social est l’ensemble des ressources actuelles ou potentielles qui sont liées à la possession d’un réseau durable de relations plus ou moins institutionnalisées d’interconnaissance et d’intereconnaissance; ou, en d’autres termes, à l’appartenance à un groupe, comme ensemble d’agents qui ne sont pas seulement dotés propriétés communes (susceptibles d’être perçues par l’observateur par les autres ou par eux-mêmes) mais sont aussi unis par des liaisons permanentes et utiles. Ces liaisons sont irréductibles aux relations objectives de proximité dans l’espace physique (géographique) ou même dans l’espace économique et social parce qu’elles sont fondée sur des échanges inséparablement matériels et symboliques dont l’instauration et la perpétuation supposent la re-connaissance de cette proximité» (BOURDIEU, 1980, p. 2). UFRJ I FAU I PROURB

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de “socializar os saberes construídos pelos Coletivos de jovens sobre a realidade dos territórios” (p. 58). O coletivo juvenil da Carobinha que socializou os saberes sobre a realidade dos territórios da cidade, funcionava, no momento da pesquisa de campo, na sede da Associação de Moradores do bairro com 15 jovens, cuja participação não era constante. As ausências eram justificadas, pela maior parte, porque ficavam retidos na escola em atividades extras. O Programa dispõe ainda de uma metodologia que aborda sete dimensões com foco no desenvolvimento integral dos jovens. 













Dimensão dialógica – o alargamento da percepção e da aprendizagem se produz em diálogo entre iguais. Significa considerar a todos como portadores de saberes e favorecer ações socioeducativas que se realizem na troca de ideias e de experiências, na socialização de conhecimentos, no trato de conflitos e na negociação e construção de consensos, facilitados pela convivência e pelo trabalho coletivo. Dimensão reflexiva – o desenvolvimento de postura crítica a partir da reflexão sobre o cotidiano, sobre as experiências pessoais, coletivas e comunitárias e sobre as práticas socializadoras vivenciadas pelos jovens em suas diversas redes. A dimensão reflexiva está voltada para a elaboração do que é vivido – assim como o projetado na ordem imaginária – e para a sistematização dos novos conhecimentos adquiridos. Dimensão cognitiva – a ampliação da capacidade de analisar, comparar, refletir, não só sobre o que se aprende, mas sobre como se aprende; capacidade de acessar informações e conhecimentos, de apropriar-se das aprendizagens, reproduzir e criar novos saberes e transformá-los em novas experiências. Dimensão afetiva – o desenvolvimento e ampliação de relacionamentos interpessoais, envolvimento e comprometimento, construção de interesses comuns, cumplicidades e criação de vínculos afetivos que proporcionam alegria e prazer na participação das ações socioeducativas. Dimensão ética – o exercício da participação democrática, da tolerância, da cooperação, da solidariedade, do respeito às diferenças nas relações entre os jovens e entre estes e a equipe de profissionais, para o desenvolvimento de princípios e valores relacionados aos direitos, à dignidade humana, à cidadania e à democracia. Dimensão estética – o estímulo ao desenvolvimento das sensibilidades estéticas na perspectiva da percepção do outro em suas diferenças, independentemente dos valores e padrões impostos como mecanismos de exclusão e invisibilidade social. A valorização e legitimação das diferentes expressões artísticas, culturais, de condições físicas, origem étnica, racial, de opção religiosa e de orientação sexual. Dimensão lúdica – o estímulo ao espírito de liberdade, à alegria de viver, ao desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, valorizando o

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jogo e a brincadeira no jeito de ser jovem e favorecendo a livre expansão das individualidades, base para uma real emancipação humana (MDS, 2009, p. 29).

As dimensões acima, articulam-se para a construção do conhecimento por meio do estímulo perceptivo e reflexivo sobre a realidade, a partir dos processos interacionais dos jovens, à medida que se apropriam e representam os territórios físicos e simbólicos da cidade. Com foco nesse processo de construção do conhecimento, o Projovem articula ainda princípios orientadores das ações socioeducativas, que balizam não somente conceitos e teorias, mas principalmente orientam a práxis que compreende o jovem como sujeito desse processo, e são expressos da seguinte forma: 

 









Criação de espaços socioeducativos pautados pela liberdade de expressão e pelo desenvolvimento de práticas democráticas que instiguem a participação dos jovens e a manifestação de seus posicionamentos e visões de mundo. Construção de um ambiente de efetivo diálogo, de incentivo ao debate de ideias, de negociação de conflitos, de mútuo aprendizado e respeito entre os jovens e os profissionais do Serviço Socioeducativo. Corresponsabilidade dos jovens no planejamento, na execução, no monitoramento e avaliação das ações socioeducativas do Projovem Adolescente, bem como na sistematização das aprendizagens construídas. Valorização do saber e da vivência dos jovens como o ponto de partida e de chegada das ações socioeducativas, ao mesmo tempo em que se valorizam contextos que favoreçam a efetiva interação entre saberes e a apropriação crítica de conhecimentos e linguagens dos mais diversos grupos sociais e as trocas intergeracionais. Construção e produção coletiva de conhecimentos por meio de métodos e técnicas participativas que estimulem a reflexão, a criatividade e a ampliação da compreensão sobre o que é vivido e o que é percebido pelos jovens, ao mesmo tempo em que se valorizam os conhecimentos historicamente acumulados, tornando os jovens sujeitos ativos de sua formação. Articulação entre os projetos pessoais e coletivos, entre o privado e o público, o local e o global, o particular e o geral como condições de ampliar e qualificar as experiências individuais e coletivas e o comprometimento dos jovens com o seu meio social. Participação e protagonismo com o permanente incentivo à construção da autonomia do jovem e ao desenvolvimento de capacidades que deem sustentação ao exercício de sua independência e a autodeterminação na sua vida pessoal, na convivência social e profissional e em sua participação na vida pública. Reflexão crítica permanente sobre todas e quaisquer formas de discriminação e preconceito em relação a questões de gênero, etnia, culturas, religiões, condições sociais e econômicas, preferências sexuais, capacidades físicas, mentais e cognitivas, como condição de crescimento pessoal no convívio social e de aprendizagem de valores de respeito e tolerância (MDS, 2009, pp. 30-31).

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O impacto social esperado pretende a “redução da pobreza e da desigualdade, a erradicação da fome e a promoção da autonomia e da inclusão social das famílias brasileiras em situação de vulnerabilidade” (MDS, 2009, p. 1). O eixo central que organiza o Projovem parte do pressuposto que os jovens, principalmente os inseridos em centros urbanos, interagem em redes de socialidade, como apresentamos através das considerações de Maffesoli (2010) no capítulo 1, e que na perspectiva juvenil constituem-se em formações de grupos “por vezes autogestionárias de estar juntos” (MDS, 2009, p. 32). O objetivo aparente na formação desses agrupamentos é o de questionar relações sociais institucionalmente constituídas e imprimir uma marca de independência em relação às organizações formais da sociedade. Enquanto muitas das instituições sociais privilegiam o que tem sido conceituado como “sociabilidades” – indivíduos e suas associações – “a socialidade vai acentuar as dimensões afetiva e sensível, onde se cristalizam agregações de toda ordem, tênues, efêmeras, de contornos indefinidos” (MAFFESOLI, 2010, pp. 126-127) (MDS, 2009, p. 32).

3.2.2 Nossa atuação participativa ao observar os jovens crescendo com as cidades Sendo a observação de campo participativa, a leitura das interações dos jovens com o urbano através das falas, desenhos, fotografias e percursos dentro da comunidade se compõem como um conhecimento que relaciona acontecimentos dentro do seu espaço experiencial e que se soma à experiência do pesquisador. Tudo isto reafirmando o caráter recursivo e dialógico da pesquisa, sob o qual todos experimentam e reorganizam as identidades em interações cotidianas com os outros. Ponderamos, mais uma vez, que o pensamento complexo nos permite reunir, “contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo reconhecer o singular, o individual, o concreto” (MORIN e MOIGNE, 2000, p. 213). O primeiro dia em campo foi a 27 de abril de 2012 e retornamos oficialmente durante mais cinco dias, o que totaliza seis dias de atividades. Nosso facilitador foi o contato com o orientador social Sérgio Alves, a que de agora em diante nos reportaremos como “Professor”. No entanto, não nos ocorreu a presença do papel de mediador de um adulto, que foi o papel desempenhado pelo Sérgio, o qual daqui por diante nos referiremos como o “Professor”.

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No início tentamos atenuar a interferência dele naquilo que os jovens expressariam através de falas, ressaltando que o importante era a opinião deles, os jovens, mas percebemos que seria em vão tentar conter a atitude de um adulto comprometido com ideais políticos e culturais, pois no momento em que desenvolvia as atividades com os jovens sobre seus espaços de morar e lazer ele era também um sujeito emocionado (ANEXO I, PRIMEIRO DIA).

As atividades internas realizadas no primeiro e quarto dias foram destinadas ao debate sobre a interpretação da representação dos espaços da cidade e do bairro em que moram. Entretanto, entendendo que a presença do Professor era fato dado, deixamos em aberto para que ele atravessasse a conversa com os temas que julgasse pertinentes às finalidades que pretendia. Propusemos o “Caderno de Vivências Urbanas” (ANEXO II) como suporte estimulador, em que questionávamos os seguintes pontos:     

Como é o lugar que você mora; Para você, qual a imagem que melhor representa o seu bairro; Quais os espaços para lazer que você usa na cidade; Habitualmente, como você se desloca na cidade; Qual a imagem que melhor representa a Cidade do Rio de Janeiro.

O roteiro, tendo como base esses questionamentos, tomou como referência a abordagem metodológica já utilizada pela UNESCO163 no projeto “Crescendo com as Cidades”. A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura lança, em 1993, o “Programa Gestão de Transformações Sociais”, que tem como objetivo central favorecer a pesquisa internacional em ciências sociais. Sob essa ótica, retomase neste programa o projeto “Crescer com as cidades”, “(...) que procura entender o ambiente urbano a partir da perspectiva das crianças e incentiva os jovens a fazer mudanças em sua comunidade164” (UNESCO, 2002, p. 5). Este projeto ressurge através do discurso do “projeto participativo”, próprio dos anos 1970, lançado no campo da percepção ambiental por Kevin Lynch (1977). Já naquele momento, Lynch trabalha pautado por vários objetivos para o projeto “Growing up in Cities”, tais como:

163

Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. [Tradução livre da Autora] «(…) qui vise à comprendre l’environnement urbain du point de vue des enfants et incite des jeunes à apporter des changements dans leur collectivité» (UNESCO, 2002, p. 5). 164

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(...) mostrar como as crianças usam seus lugares e avaliar as infraestruturas que lhes são negadas; usar essas informações para entender como o ambiente urbano afeta a vida das crianças; implementar as medidas baseadas nas prioridades identificadas pelos jovens; identificar os indicadores que assinalam os “ambientes favoráveis” no desenvolvimento de políticas urbanas voltadas para crianças165 (UNESCO, 2002, p. 5).

Relembramos que a proposta do projeto “Crescendo com as Cidades” era estimular a infância e a juventude a construírem o protagonismo juvenil, através de suas participações como agentes urbanos transformadores. O trabalho foi coordenado por Louise Chawla166, entre 1996 e 2006, e além dos objetivos propostos à época de Lynch, Chawla amplia o discurso ao incluir: “(...) a definição de indicadores de qualidade ambiental com foco na infância, melhorias físicas para a comunidade e as mudanças na política e na gestão pública167” (UNESCO, 2002, p. 5). A partir de um discurso que tinha como foco a construção de uma agenda internacional para o planejamento participativo das cidades, a proposta do “Crescendo com as Cidades” fornece um modelo que procura criar políticas públicas para as áreas de pobreza, através da identificação dos indicadores de “qualidade de vida urbana” apontados acima. O projeto adotou uma metodologia ativa que estimulava crianças e jovens a trazerem à tona suas realidades estruturais e simbólicas, mediante a construção de mapas mentais e discursos sobre o espaço da cidade que habitavam (CHAWLA, 2002, pp. 15-34). Dentro da mesma premissa, Vogel, Vogel e Leitão (1995, pp. 9-10), na pesquisa “Como as crianças veem a cidade”, elaboram um trabalho de conscientização dos problemas urbanos para o mundo da infância, através da sua participação comunitária. A metodologia de campo adotada pelos autores, parte da

165

[Tradução livre da Autora] «Le projet GUIC poursuit plusieurs buts à la fois: montrer comment les enfants utilisent leur environnement local et évaluent les ressources et les interdits de leur collectivité; mettre à profit cette information pour comprendre comment l’environnement urbain influe sur la vie des enfants; mettre en œuvre des mesures en fonction des priorités cernées par les jeunes; déterminer les indicateurs attestant d’« environnements favorables » dans l’élaboration de politiques urbaines axées sur les enfants» (UNESCO, 2002, p. 5). 166 Louise Chawla é professora do Programa “Environmental Design” na Universidade de Colorado Boulder. Ela é diretora associada da “Infância, Juventude e Ambientes, Centro de Engajamento Comunitário (CYE Center), e coeditora da revista “Crianças, Jovens e Ambientes”. Como Coordenadora Internacional do programa “Crescendo com as Cidades” da UNESCO de 1996-2006, ela reviveu uma iniciativa que envolveu jovens em cidades ao redor do mundo na avaliação e melhoria de suas comunidades urbanas. 167 [Tradução livre da Autora] «(…) figurent la définition d’indicateurs de qualité environnementale axés sur les enfants, des améliorations matérielles à la collectivité et des modifications aux politiques et à la gestion publique» (UNESCO, 2002, p. 5). UFRJ I FAU I PROURB

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identificação das representações via cartas e desenhos que debatem nove temas, que também nos serviram de orientação para estruturar o “Caderno de Vivências Urbanas”, quais sejam: moradia, poluição, lazer e diversão, paisagem – cartão-postal, serviços e equipamentos, violência e segurança no bairro e na cidade, centro, governo e associação de moradores, e atividades e trabalho (VOGEL, VOGEL & LEITÃO, 1995). VIVÊNCIAS URBANAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE CIHABE Laboratório Cidade, Habitação e Educação UFRJ – FAU – PROURB

Conhecendo, debatendo e propondo ideias sobre cidade.

C AD E R NO D E V I V Ê NC I A S U R B AN A S Quem Eu Sou... Nome: (não obrigatório) Idade: Eumoro: (localidade)

( ) Feminino

( ) Masculino

Que dia é hoje?

Figura 8: Capa do Caderno de Vivências Urbanas. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Acreditamos com isto inspirar, ainda que em menor escala do que a ambicionada por estes autores, os jovens a refletirem sobre a cidade em que moram e os problemas urbanos que os afetam cotidianamente, e onde, por consequência, fazem emergir representações, as quais descrevem a linguagem da paisagem e da territorialidade da cidade do Rio de Janeiro. Nessa perspectiva, reforçamos que nosso campo de pesquisa aborda os processos de constituição de territorialidades, tal como debatido no capítulo 2, capazes de reorganizar no cotidiano as identidades juvenis e dos pesquisadores, em interações no e com os espaços da cidade entre os seus usos públicos, exatamente como proposto por Thibaud (2008), ao considerar que a experiência espacial é pertinente se considerada como uma relação de constituição de ambiências, envolvendo dialogicamente indivíduo-ambiente. Participaram das atividades dez (10) jovens entre 14 e 17 anos, sendo quatro meninos e seis meninas. Todos os meninos com 17 anos, enquanto as meninas UFRJ I FAU I PROURB

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distribuíam-se entre 14, 16 e 17 anos na relação 2:3:1. Importante destacar que uma das meninas de 16 anos estava grávida, e que a diminuição da gravidez precoce é um dos impactos sociais pretendido pelo Programa Projovem. Com foco nas análises e conclusões, observamos que os percursos comentados propostos pelos jovens nos segundo e terceiro dias de campo ocorreram “espontaneamente” (sem nossa orientação), em grupos definidos por gênero. No segundo dia os grupos mantiveram-se separados até atingir o marco referencial escolhido como ponto de chegada, e que foi o mesmo para ambos, mas no terceiro dia, tal divisão, entre meninas e meninos, ocorreu somente na condução da filmagem, porém o percurso foi o mesmo. Por último, é primordial esclarecer que no quinto dia de trabalho fomos surpreendidos pela interferência do crime organizado local, os milicianos, que tornaremos visível no próximo capítulo, e que deu por encerrada nossas atividades, bem como as atividades do Projovem na comunidade, ao dissolver a gestão da Associação de Moradores e todos os projetos que se desenvolviam em seu espaço físico. Por isso, para concluir nossas atividades de campo, julgamos necessário solicitar que um adulto local nos acompanhasse a algumas localidades da Carobinha que foram citadas pelos jovens, mas em relação às quais eles preferiam guardar distância física, embora deixando evidente a aproximação cognitiva que mantêm com tais lugares. Isto foi fundamental para estabelecermos nossas conexões sobre as relações emocionais que os jovens mantêm com a cidade do Rio de Janeiro, a partir da ambiência, representada ao se apropriarem da comunidade da Carobinha e do bairro de Campo Grande, no qual ela está inserida. Os percursos selecionados pelos jovens serão objeto de análise no capítulo 5. Antes de seguir com nossas análises, julgamos pertinente então, apresentar, com dados históricos e socioeconômicos, a Comunidade da Carobinha em relação à cidade do Rio de Janeiro, para melhor compreender as complexidades relacionais que atravessam as representações urbanas dos jovens do lugar, e que tornam evidente a distância física e cognitiva nas constituições de suas territorialidades. UFRJ I FAU I PROURB

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CAPÍTULO IV O TERRITÓRIO DA CAROBINHA: O LUGAR DE PARTIDA PARA AS REPRESENTAÇÕES URBANAS DE UM GRUPO DE JOVENS Jardim Nossa Senhora das Graças Loteamento de nome lindo, De apelido curioso, De gente laboriosa, De origem rural Mas destinado a corrigir mazelas Do relento urbano. Carobinha. Raridade Fitoterápica Destinada a curar Mazelas epidérmicas, Curar mazelas homeopáticas, Enfim, curar, curar, curar... Ah, Carobinha Se pudesses curar também Mentes e corações Politicamente corroídos, de ética desprovidos, imbuídos, tão somente, da vontade de iludir incautos... Povo livre, tu podes curá-los com mais eficácias que as ervas. Mobiliza-te, não te disperses, Que a saúde política fará bem a todos. (BETO MACHADO, 09/02/2011)

A Carobinha é um loteamento pertencente à localidade do Mendanha que se situa no bairro de Campo Grande, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Considerado na atualidade área urbana, o loteamento Nossa Senhora das Graças, mais conhecido como Carobinha, tem como imagem referencial a marca das suas características rurais que remontam aos primórdios de sua conformação. Não existe uma literatura formalizada que conte a história do lugar, por isso, para sua reconstituição nos baseamos em depoimentos dos moradores encontrados em vídeos na internet, sites e documentos institucionais que fazem menção à origem da formação urbana do Mendanha.

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A região de Campo Grande antes do surgimento da Carobinha Strucchi (2010) realizou, em 2010, uma oficina de vídeo com moradores da

Carobinha com o objetivo de registrar aspectos ambientais relativos ao maciço do Gericinó-Mendanha. Nas observações introdutórias, o autor destaca que tal localidade está inserida no bairro de Campo Grande, e que “(...) era habitada por índios Picinguaba” (STRUCCHI, 2010). Com a fundação da Cidade, em 1565, o território passou a pertencer à sesmaria de Irajá (2010). Em 1673, a área foi desmembrada e doada pelo governo colonial a Barcelos Domingos, e no mesmo ano foi criada a paróquia de Nossa Senhora do Desterro[Figuras 9-10],

marco da ocupação territorial da região de Campo Grande. Ainda segundo

Strucchi, o desenvolvimento da região se deve em parte ao núcleo formado (...) no entorno da Igreja de Nossa Senhora do Desterro, cuja atração era a oferta de água do poço que existia perto da igreja. Em Campo Grande, a exemplo do que ocorreu em toda a cidade, o abastecimento público de água foi um fator de atração e desenvolvimento (STRUCCHI, 2010).

Figura 9: Igreja Nossa Senhora do Desterro, Campo Grande, Rio de Janeiro (sd). Fonte: http://www.panoramio.com/photo/71734865

Figura 10: Igreja Nossa Senhora do Desterro, Campo Grande, Rio de Janeiro (2015). Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Porém, Lamego (2006) afirma que a transformação da então Freguesia Rural de Campo Grande foi influenciada pela antiga Fazenda dos Jesuítas em Santa Cruz. Os jesuítas cultivavam cana-de-açúcar e carne bovina e as escoavam “(...) através da Estrada da Fazenda dos Jesuítas, posteriormente Estrada Real da Fazenda de Santa Cruz, que ia até São Cristóvão e se interligava com outros caminhos e vias fluviais que chegavam até o centro da Cidade” (LAMEGO, 2006). Este fato é confirmado por Lessa

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(2001) ao relatar que o gado chegava à Cidade, vindo da região de Santa Cruz “(...) pela Estrada dos Jesuítas, que passava por São Cristóvão, pelo conhecido Largo da Cancela” (LESSA, 2001, p. 150). Do final do século XVI até meados do XVIII, a ocupação territorial da Região foi lenta, apesar do intenso trabalho dos jesuítas, encerrado quando foram expulsos do País pelo Marquês de Pombal, em 1759. Para avaliar sua importância econômica, no ano da expropriação de suas terras, em Santa Cruz, os padres possuíam 22 currais com aproximadamente 8.000 cabeças de gado e 1.200 cavalos. Os religiosos deixaram obras de engenharia de vulto como estradas, pontes e inúmeros canais de captação de água para irrigação, drenagem e contenção da planície, sempre sujeita às enchentes dos rios Guandu e Itaguaí (LAMEGO, 2006).

Entre 1760 e 1770, na antiga Fazenda do Mendanha, o padre Antônio Couto da Fonseca plantou as primeiras mudas de café. Segundo Lamego (2006), “(...) os historiadores apontam a partir daí o desenvolvimento que a cultura cafeeira teve em todo o Estado no século XIX, espalhando-se pelo Vale do Paraíba aos contrafortes da Serra do Mar (...)” (LAMEGO, 2006). Contudo, o desenvolvimento da região foi lento dado as suas características rurais, desenhando um vasto território com alguns povoados, principalmente nos pontos de encontro das vias de acessos (LAMEGO, 2006). Com a chegada da família real em 1808, as regiões rurais voltaram-se para o abastecimento da Cidade do Rio de Janeiro, porém, não houve “(...) uma aceleração do desenvolvimento da região, que continuou a manter suas características rurais” (LAMEGO, 2006). Foi com a implantação da estação Campo Grande da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1878, que a região tomou seu primeiro grande impulso de transformação e crescimento

[Figuras 11-12].

Para Lessa, “o trem seria o elemento de

estratificação social” (LESSA, 2001, p. 226) sonhado por Pereira Passos e que baniria para os subúrbios o povo pobre. (...) O transporte ferroviário foi, então, o vetor que transformou esta região tipicamente rural em urbana, ao facilitar o acesso e, consequentemente, seu povoamento (...) (LAMEGO, 2006).

Realmente, a linha de carris que levava ao subúrbio alterou a região, mas somente ao longo do século XX. Em 1915, com a substituição desses carris por bondes elétricos, assentou-se definitivamente a pedra da mobilidade urbana para o território UFRJ I FAU I PROURB

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de Campo Grande que, aos poucos, adquire características urbanas. A região desenvolve um próspero comércio ao redor da estação e vive praticamente independente do centro da Cidade, uma vez que era autossuficiente na produção de subsistência.

Figura 11: A estação ferroviária de Campo Grande, antigo ramal de Angra da RFFSA168, posteriormente ramal de Mangaratiba169 (ap. 1930). Acervo Claudio Marinho Falcão. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br

Figura 12: Visão parcial do bairro a partir da estação ferroviária de Campo Grande (ap. 1958). Acervo dos trabalhos geográficos de campo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Fonte: http://biblioteca.ibge.gov.br/417174

Com a crise do café volta-se para a citricultura e, “desde os primeiros anos do século XX e até os anos 1940, Campo Grande foi considerada a grande região produtora de laranjas, o que lhe rendeu o nome de Citrolândia” (LAMEGO, 2006). Na segunda metade do século XX, sofre outra transformação, quando o Brasil começa a se configurar como uma economia voltada para o setor industrial. (...) Embora desde o começo do século XX a Região Campo Grande - até hoje zona de plantio, principalmente de coco, chuchu, aipim, batata doce e frutas - ainda fosse voltada para a plantação de laranjas, nessa época já se delineava a vocação industrial do lugar. Na última década do século XIX, a instalação da Fábrica Bangu e a implantação de unidades militares em Bangu e Realengo afetaram toda a Região, inclusive Campo Grande (LAMEGO, 2006).

168

Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.

169 Segundo o site “O Rio de antigamente”, “o ramal de Angra, posteriormente chamado de ramal de Mangaratiba,

foi inaugurado em 1878, partindo da estação de Sapopemba (Deodoro) até o distante subúrbio de Santa Cruz. Somente foi prolongado em 1911 até Itaguaí, e em 1914 chegou a Mangaratiba, de onde deveria ser prolongado até alcançar Angra dos Reis, onde, em 1928, a E. F. Oeste de Minas havia atingido com sua linha vinda de Barra Mansa. Tal nunca aconteceu, e o ramal, com trechos belíssimos ao longo da praia, muito próximo ao mar, transportou passageiros em toda a sua extensão até por volta de 1982, quando foi desativado. Antes disso, em 1973, uma variante construída pela RFFSA e que partia de um ponto próximo à estação de Japeri, na Linha do Centro, permitia que trens com minério alcançassem o porto de Guaíba, próximo a Mangaratiba, encontrando o velho ramal na altura da parada Brisamar. A variante, entretanto, deixava de coincidir com o ramal na altura da ponta de Santo Antônio, onde desviava para o porto; com isso, em 30/06/1983, o trecho original entre esse local e Mangaratiba foi erradicado e os trens passaram a circular somente entre Deodoro e Santa Cruz, de onde voltavam. Hoje, esse trecho ainda é usado pelos trens de subúrbio, o trecho entre Santa Cruz e Brisamar está abandonado e o restante, Brisamar-porto, é utilizado pelos trens de minério apenas” http://oriodeantigamente.blogspot.com.br/ (Acessado: 25 jul. 2015). UFRJ I FAU I PROURB

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Importante destacar ainda que, segundo Lamego (2006), durante o governo do presidente Washington Luís (1926 a 1930), a Estrada Real foi incorporada à antiga Estrada Rio-São Paulo, sendo o seu marco zero localizado na região central de Campo Grande. Esse fato ajudou a integrar Campo Grande ao tecido urbano da Cidade, da mesma forma que a abertura da Avenida Brasil, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1946. Nesta mesma época surge outra atividade industrial na região, a avicultura, “(...) atividade introduzida por Bartolomeu Rabelo, precisamente na Estrada do Mato Alto, em Guaratiba” (LAMEGO, 2006)170.

Figura 13: Empresas do novo Distrito Industrial de Campo Grande (Revisão: 21/10/2010). Implantado às margens da Avenida Brasil, cerca de 3,15 km da Carobinha. Fonte: ADEDI, 2015.

Os distritos industriais de Campo Grande e Santa Cruz começam a se estruturar a partir da década de 1960, com a instalação de grandes empresas na região como a antiga Companhia Siderúrgica do Estado da Guanabara (Cosigua), atual Gerdau, a Tupperware, a Michelin, entre outras, consolidadas ao longo das décadas

170 O autor observa, ainda, que a região descobre sua vocação turística nesta mesma época, e que esta foi surgindo

de forma natural devido à beleza das praias locais. “(...) a riqueza vinda do mar fez desenvolver a atividade pesqueira, com entrepostos em Barra e Pedra de Guaratiba. Em função disso, os dois bairros desenvolveram uma importante gastronomia típica, vocação localizada surgida espontaneamente” (LAMEGO, 2006). Vale lembrar ainda que, em 1949, Roberto Burle Marx e seu irmão, Guilherme Siegfried Marx, escolhem a região para abrigar uma coleção botânica e adquirem o sítio Santo Antônio da Bica, na vertente oeste do Morro do Capim Melado, pertencente ao maciço da Pedra Branca. Em 1973, Burle Marx muda-se definitivamente para o local. UFRJ I FAU I PROURB

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de 1970 e 1980, mesma época em que a Carobinha começa a existir como loteamento. Hoje, o distrito industrial de Campo Grande [Figura 13] é “responsabilidade da CODIN171, desde 1976, tendo se expandido, em 2002, em área situada de frente para a Avenida Brasil” (CODIN, online).

4.2

O contexto urbano e a formação da Carobinha O Mendanha172 é hoje um sub-bairro de Campo Grande, originariamente sede

da fazenda Mendanha, uma das primeiras fazendas produtoras de café do Vale do Paraíba. Segundo Lopes (2007, p. 57), além do café, outro fato que tornou notória a fazenda do Mendanha, e consequentemente a região do Campo Grande, é ter pertencido a Francisco Freire Allemão de Cisneiros173, médico particular de D. Pedro II e também botânico, (...) que por herança a repassará a seu sobrinho também médico e político senador Augusto de Vasconcelos (...). Vasconcelos de Campo Grande, Filipe Cardoso Pires de Santa Cruz e Raul Barroso de Guaratiba comporiam o “grupo triângulo”174 e

171

Companhia de Desenvolvimento Industrial. Segundo Lopes, o “nome Mendanha tem sua origem vinculada ao primeiro proprietário daquela fazenda, o Sargento-Mor Luiz Vieira Mendanha, poderoso senhor de escravos e grande produtor de açúcar e aguardente. A fazenda Mendanha ganhou notoriedade devido ao fato de ter sido uma das primeiras terras cariocas a desenvolver o cultivo do café e, principalmente, porque de lá saíram grande parte das matrizes dos maiores cafezais fluminenses. As primeiras mudas de café chegaram a Campo Grande através do Padre Antônio Couto da Fonseca, então proprietário da fazenda Mendanha, que as recebeu do Bispo Justiniano, um dos primeiros a cultivar o café no Rio de Janeiro” (LOPES, 2007, p. 57). 173 Segundo Lopes, “Francisco Freire Allemão de Cisneiros, (...) nasceu na Fazenda Mendanha, em 24 de junho de 1797, iniciou sua vida pública como sacristão, na capela da Fazenda Mendanha, onde aprendeu os primeiros rudimentos de latim com o Padre Antônio Couto da Fonseca. Formou-se médico pela Academia Médico Cirúrgica e completou seus estudos na Santa Casa, em Paris. Voltando ao Brasil, foi diretor da Academia Militar e diretor do Museu Nacional. Presidente duas vezes da Academia Imperial de Medicina e fundador da Sociedade Velosiana para estudos botânicos, foi o pioneiro na avaliação do grave problema do bócio endêmico no Brasil (...). Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico. Autor de dezenas de publicações e desenhos sobre plantas brasileiras (...). Contribuiu para a notável obra de raridade de Von Martius – Minervas Brasileiras, escrevendo em latim. Integrou a comissão científica que fez a exploração do Ceará (Comissão das Borboletas) (...). Recebeu condecorações de “Oficial da Ordem das Rosas” e “Cavalheiro de Cristo”. Foi comissionado para ir à Itália buscar Teresa Cristina, noiva do Imperador D. Pedro II”. Já no final de sua vida retornou à Fazenda do Mendanha onde faleceu em 11 de novembro de 1874 (LOPES, 2007, p. 58). 174 Segundo Santos (2011), o grupo Triângulo era formado por representantes do Terceiro Distrito Eleitoral da Cidade do Rio de Janeiro – a zona rural. “(...) Essas lideranças exerciam grande influência na região desde o Império, o que se fortaleceu e se consolidou nos anos iniciais da República. (...) Esta formação do Triângulo, de maior destaque, composta por Augusto de Vasconcellos, Felipe Cardoso e Raul Barroso (...), teve seu auge nas eleições de dezembro de 1896. (...) O termo Triângulo foi uma denominação de caráter pejorativo, atribuída ao grupo pela imprensa da época, que tinha como seus principais representantes os jornais Correio da Manhã e Cidade do Rio. (...) As críticas da imprensa ao Triângulo eram baseadas no fato de seus membros ou de seus indicados garantirem presença no Conselho Municipal, na Câmara dos Deputados e no Senado por meio de práticas eleitoreiras consideradas suspeitas e questionáveis” (SANTOS, 2011, pp. 76-78). 172

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exerceriam forte influência na política local e federal por ocasião da Primeira República (LOPES, 2007, p. 57).

Atualmente, o Mendanha está subdividido em outras áreas: no centro, os loteamentos Jardim Mendanha, o Novo Mendanha e os Conjuntos Votorantin e o Campo Belo; a leste, os loteamentos Caminho do Ceará e o Jardim Nossa Senhora das Graças (também conhecido como “Carobinha”); a noroeste, a Serrinha-Mendanha que é tipicamente rural. O restante da área do sub-bairro é composto por aglomerados residenciais e sítios rurais [Figura 22]. A região está localizada na franja do maciço Gericinó-Mendanha [Figura 15] que, além do relevo acidentado, possui ainda um número expressivo de rios e córregos que nascem na Serra de Lá, compondo a microbacia da baía de Sepetiba. Entre os rios da região, destaca-se o Rio Guarajuba que corta a Carobinha e conforma urbanisticamente a Avenida Canal, e o Rio Guandu do Sena ao norte do loteamento, que deveria funcionar como limite de crescimento [Figura 22]. Os loteamentos no Mendanha têm início com o fim do ciclo da laranja e após a abertura da Avenida Brasil. O aparecimento do primeiro loteamento foi no início da década de 1960 (Jardim Mendanha). Apareceram também três conjuntos residenciais construídos pelo Governo do Estado: o "Votorantin", em 1983, o "caminho do Ceará", em 1993 (ocupado por invasores antes mesmo da construção das residências) e o "Campo Belo" de 1999 (LOPES, 2007, p. 60).

A partir das décadas de 1980 e 1990 começa a se delinear aquilo que se tornaria um dos grandes problemas urbanísticos na região de Campo Grande e parte da zona oeste da cidade e Baixada Fluminense - a presença cada vez mais recorrente dos loteamentos irregulares e clandestinos. Este é o caso da “Carobinha”, que foi um loteamento abandonado pela empresa loteadora e ocupado inicialmente por 115 famílias oriundas da Favela Barreira do Vasco, no final dos anos 1980.

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4.2.1 A produção da irregularidade jurídica e urbanística e as políticas de acesso à moradia que conformam a realidade da Carobinha É importante sublinhar que a produção da irregularidade jurídica e urbanística fere o princípio da função social da propriedade urbana prevista tanto na Constituição Federal de 1988, como no Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. O direito à propriedade é enunciado pelo artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988, onde, no inciso XXII garante-se o direito à propriedade e no inciso XXIII se afirma que tal propriedade deva cumprir sua função social. Segundo Takoi (2012), para José Cretella Júnior175, a propriedade privada urbana predial, (...) cumpre, por inteiro, sua função social, quando adequadamente utilizada. O solo urbano cumpre sua função social sempre que tenha aproveitamento racional e adequado. Quem reside, em prédio próprio ou locado, está fazendo com que a propriedade cumpra sua função social. Prédio próprio, vazio, assim conservado para efeitos de especulação imobiliária, está afastado de sua função social, que é a de abrigar pessoas (CRETELLA JÚNIOR apud TAKOI, 2012).

A afirmação de Cretella Júnior expressa o preconizado no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, 2001), que é baseado no artigo 182176 da Constituição Federal de 1988, e diz que a função social da propriedade urbana existe quando esta, (...) atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei (Lei nº 10.257 de 2001, art. 39).

Consideramos então o artigo 2º que delimita que A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; (...) VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

175

[Citado] Cf. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. V. VIII, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 3975. 176 “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (CF, 1988, art. 182, § 2º). UFRJ I FAU I PROURB

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(...) c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana; (...) f) a deterioração das áreas urbanizadas; (...) XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais (Lei nº 10.257, 2001, art. 2º, I; VI, alínea f; XIV).

A irregularidade urbana observada no loteamento da Carobinha se enquadra no citado na alínea f do inciso VI, artigo 2º do Estatuto da Cidade - a deterioração das áreas urbanas, mas pelo fato de o loteamento ter sido implantado em área urbana sem consolidação de infraestrutura, conforme referido na alínea c do mesmo inciso. Isto fere tanto a Constituição como o Estatuto da Cidade no que diz respeito à função social no controle do solo urbano orientada pela garantia do direito às cidades sustentáveis (Lei nº 10.257, 2001, art. 2º, I). Apoiados em Reschke (2009) podemos concluir, ainda, que a Carobinha está enquadrada, por definição, como um loteamento177 irregular, embora tenha se constituído como um parcelamento do solo desmembrado em lotes e ruas, registrado pela Companhia Imobiliária Jardim Nossa Senhora das Graças, sob o Projeto Aprovado de Loteamento (PAL) número 24.477 [Figura 14]. Entretanto, uma vez que a loteadora não foi capaz de cumprir o que determina a Lei nº 6.766 de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, qual seja, a implantação de infraestrutura urbana que assegura a função social do solo urbano, ao abandonar as terras tornou este loteamento irregular, pois, por loteamento irregular entende-se:

177

Segundo Reschke (2009) o loteamento “é uma das formas de parcelamento do solo urbano, com desmembramento da área em lotes e abertura de novas vias de circulação. Pela Lei Federal nº 6.766/79, o loteador é obrigado a elaborar projeto de loteamento, aprová-lo perante os órgãos municipais e depois registrálo no cartório imobiliário, além de ser obrigado a realizar as obras de infraestrutura. Somente após o cumprimento destas etapas é possível iniciar a comercialização dos lotes. A Lei Federal nº 6.766/79 define lote como terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor. Infraestrutura básica, por sua vez, são os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação” (RESCHKE, 2009, pp. 31-32). UFRJ I FAU I PROURB

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Aquele que possui algum tipo de registro no Município. O responsável pode ter dado entrada com a documentação, mas não chegou a aprovar o projeto. Também é considerado irregular o loteamento que tem projeto aprovado, mas o loteador deixou de atender as outras etapas previstas na Lei Federal nº 6.766/79, como a realização das obras de infraestrutura ou registro do loteamento no cartório de imóveis (RESCHKE, 2009, p. 32).

Figura 14: Projeto Aprovado de Loteamento – PAL do Jardim Nossa Senhora das Graças. Foto: Glauci Coelho, maio de 2013.

Podemos afirmar, portanto, que a Carobinha, por sua origem, é um loteamento irregular e, quando tem seus limites físicos extrapolados no momento em que os moradores do local expandem e constroem novas habitações sobre os terrenos lindeiros, entra em um processo também de “favelização”. Não cabe aqui fazer uma revisão teórica do que é favela ou mesmo do que é um loteamento irregular, o que nos importa é compreender que a Carobinha é fruto de um processo histórico, que torna visível a falta de controle e a ausência de propostas de política habitacional para a cidade. UFRJ I FAU I PROURB

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Em 1994, parte da Carobinha foi declarada Área de Especial Interesse Social (AEIS), para fins de regularização fundiária, com base na Lei Municipal nº 2.120178. Esta lei tratou de declarar AEIS as áreas ocupadas por loteamentos e vilas inscritos no Núcleo de Regularização de Loteamentos, pelo Decreto nº 10.962, de 24 de abril de 1992. Convém destacar que a Lei nº 2.120 somente reconhece como AEIS às áreas que constem “(...) nos respectivos registros imobiliários, plantas aprovadas no loteamento (PAL) ou documentos definindo os limites da área apresentada pelo adquirente” (Lei nº 2.120, 1994, art. 2º). Ou seja, ficou de fora, neste primeiro momento, toda a área de expansão para além dos limites do loteamento [Figura 23]. A partir do ano 2000, o processo de regularização fundiária da Carobinha179 passa a fazer parte do escopo do Programa de Urbanização de Assentamentos Populares II (PROAP - II), já no âmbito da aplicação da garantia da função social do solo urbano, pensada através do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 2001, art. 2º, XIV), que cria as circunstâncias para o direito à cidade. O PROAP – I e II considerou, neste aspecto, que ao “proceder à regularização urbanística e fundiária e complementar ou construir a infraestrutura” (LAZO, 2005, p. 64) alcançava-se “padrões de salubridade e de desenvolvimento sustentável nos loteamentos irregulares de baixa renda” (p. 64). O PROAP surge em 1995, instituído pelo Decreto nº 14.332 de 07 de novembro de 1995 que unifica dois programas de política habitacional para a Cidade do Rio de Janeiro, o “Programa Regularização de Loteamentos (hoje Programa Morar Legal) e o Programa Favela-Bairro” (LAZO, 2005, p. 59). O PROAP – I beneficiou 55 favelas e oito loteamentos juridicamente irregulares. Os investimentos do programa abrangiam a implantação de rede de abastecimento de água, esgotamento sanitário, sistema viário, drenagem, coleta de lixo, iluminação

178

A publicação desta lei vem acompanhada da publicação do Decreto n.º 12.683 de 09 de fevereiro de 1994 que cria “(...) o Programa de Urbanização e Regularização Fundiária dos parcelamentos irregulares e clandestinos inscritos no Núcleo de Regularização de Loteamentos, previsto nos artigos 156 a 159 da Lei Complementar n.º 16/92 (Plano Decenal Diretor da Cidade do Rio de Janeiro)” (Decreto nº 12.683, 1994, art. 1º). 179 Segundo Lazo (2005), “até 1997, a regularização dos loteamentos era feita no âmbito do programa de regularização de Loteamentos Clandestinos e Irregulares, que funcionava na Secretaria Municipal de Habitação. Os critérios de seleção das áreas consideram: a inscrição e participação da comunidade no Núcleo de Regularização Fundiária; o número de famílias beneficiadas; o custo da obra; a disponibilidade de infraestrutura urbana; a antiguidade do loteamento; e a existência e situação do PAL” (LAZO, 2005, p. 65). UFRJ I FAU I PROURB

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de ruas, reflorestamento, creches, centros comunitários, praças e áreas de esporte e lazer, reassentamento e regularização urbanística e fundiária (LAZO, 2005, p. 60).

Segundo Lazo (2005, p. 62), o PROAP II tinha como meta beneficiar 89 favelas e 17 loteamentos irregulares, e difere do PROAP I ao adotar quatro novos objetivos que visavam: “(...) dotar as favelas e loteamentos irregulares de infraestrutura urbana e serviços sociais básicos, regularizá-los e integrá-los à cidade, proporcionar o desenvolvimento de suas crianças e adolescentes e gerar oportunidades de trabalho e renda aos seus moradores” (PROAP II, 2000). Ele foi estabelecido em junho de 2000, onde se inseriram quatro componentes que constituem o seu diferenciador em relação ao PROAP I. São eles: Urbanização integrada, dirigido pela SMH180. Um diferencial deste componente foi a implantação do POUSO181 nas áreas beneficiadas. Atenção a crianças e adolescentes, voltado prioritariamente a menores de 14 anos sob responsabilidade da SMDS182. O desenho e dimensionamento das ações a serem implementadas em cada comunidade estariam definidos pelo Plano de Ação Social Integrada – PASI. Geração de trabalho e renda, tendo o PASI como regulador de suas ações, destinado a aumentar o perfil profissional de seus participantes e apoiar microempreendimentos dos moradores das comunidades beneficiadas, dirigido pela SMT183. Desenvolvimento institucional, mantido do PROAP I (LAZO, 2005, p. 62).

Contudo, o PROAP II não chegou a ser totalmente implantado na Carobinha, que virou novamente escopo de proposta de urbanização e regularização fundiária com o Programa Municipal de Integração de Assentamentos Precários e Informais Morar Carioca. Este programa foi criado em 2010 com o objetivo de “(...) promover a inclusão social, através da integração urbana e social completa e definitiva de todas as favelas do Rio até o ano de 2020” (SMH, 2013), oficializado pelo Decreto nº 36.388 de 29 de outubro de 2012. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação (SMH), o foco do Morar Carioca é a inclusão social e o respeito ao meio ambiente, através do processo de planejamento urbano (SMH, 2013).

180

Secretaria Municipal de Habitação. Posto de Orientação Urbanística e Social. 182 Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. 183 Secretaria Municipal do Trabalho. 181

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Além da implantação de infraestrutura, equipamentos e serviços, o Morar Carioca incorpora conceitos mais abrangentes. Entre as inovações está a implantação de um sistema de manutenção e conservação das obras, controle, monitoramento e ordenamento da ocupação e do uso do solo (...). As obras de urbanização do Morar Carioca serão executadas de acordo com o porte e a condição de cada comunidade. Nas áreas enquadradas como urbanizáveis [que é caso da Carobinha] estão previstas implantação de redes de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial, iluminação pública e pavimentação (SMH, 2013).

O Morar Carioca para a Carobinha prevê urbanizar uma área de 189.093 m 2, dividindo-se entre as quatro favelas identificadas dentro do loteamento e denominadas pela SHM (2011): Jardim Nossa Senhora das Graças II, Jardim Nossa Senhora das Graças, Jardim Nossa Senhora das Graças III e Comunidade do Ecoponto [Figura 23]. A coordenação do projeto é do arquiteto Floriano Freaza Amoedo

184 e almeja

atingir com os benefícios 1.071 domicílios, que, segundo os nossos cálculos, equivale aproximadamente a 4.300 habitantes beneficiados, se considerarmos a média de quatro pessoas por família. O artigo 4º do Decreto nº 36.388 de 29 de outubro de 2012 alerta, no entanto, que as ações de urbanização serão decididas pelo tipo de assentamento definido pelos artigos 210, 232 e 233, da Lei Complementar 111 de 1º de fevereiro de 2011 (Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro), que considera os tipos de assentamentos pelo número de domicílios. Neste caso, a Carobinha está enquadrada como área de urbanização com mais de 500 domicílios, e esta urbanização será orientada como parcial pelo fato de a localidade já ter sido objeto de urbanização no PROAP II. b. Urbanização parcial: (...) III. Assentamentos com mais de 500 domicílios: complementação do programa de urbanização com construção, complementação, recuperação ou ampliação de infraestrutura e equipamentos urbanos, ampliação da acessibilidade, tratamento adequado das situações de risco, reassentamento das famílias em áreas de risco ou em áreas excessivamente adensadas, promoção de novas oportunidades habitacionais, regularização urbanística e fundiária (Decreto nº 36.388, 2012).

O Programa prevê ainda a instalação do Posto de Orientação Urbanística e Social (POUSO) nas áreas beneficiadas, com o objetivo de viabilizar a implantação de regras de urbanização que retenham a multiplicação da irregularidade urbanística,

184

Importante esclarecer que até a presente data nenhum dos programas de regularização fundiária e melhorias urbanísticas propostas para a Carobinha foram implantados. UFRJ I FAU I PROURB

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que, no caso da Carobinha, contribui para a degradação da localidade e atinge a Área de Proteção Ambiental (APA) de Gericinó-Mendanha185,186 criada em 5 de setembro de 2005 pelo Decreto Estadual nº 38.183 [Figura 15].

Figura 15: Mapa da APA Gericinó-Mendanha com os municípios confrontantes. Fonte: GEUSO, 2011.

4.2.2 Dados estatísticos da região A degradação mencionada anteriormente e que atinge a Área de Proteção Ambiental (APA) de Gericinó-Mendanha é percebida também na falta de infraestrutura urbana, que contribui para a condição de vulnerabilidade ambiental na região do Mendanha, principalmente naquelas áreas em que se verificam informalidades jurídicas urbanísticas nas formas de ocupação do solo urbano, como é o caso da Carobinha. A esta deficiente infraestrutura é importante acrescentar a inclusão socioeconômica precária da parcela da população que habita a região, pois

185

“O território interno da APA, com 105 Km2 de área, abrange as serras do Marapicu, Mendanha e Madureira, nas cotas acima de 100 metros de altitude, e tem como objetivos: assegurar a proteção do ambiente natural, das paisagens de grande beleza cênica e dos sistemas geo-hidrológicos da região, que abrigam, em áreas densamente florestadas, espécies biológicas raras e ameaçadas de extinção, estruturas vulcânicas e nascentes de inúmeros cursos de águas contribuintes do Rio Guandu” (INEA, 2013). 186 A floresta do Mendanha é uma reserva significativa da Mata Atlântica, que deu origem à floresta da Tijuca (floresta mãe do reflorestamento da floresta da Tijuca), além de ser o manancial de vários rios da bacia do Guandu, com um ecossistema singular. UFRJ I FAU I PROURB

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isto afeta o acesso às mercadorias (no que se refere à renda e poder de compra), à informação (no que se refere ao acesso à educação) e às condições de salubridade urbana de uma maneira geral (no que se refere ao acesso à saúde e condições ambientais). Nessa região é alto o número de desempregados e, como um todo, no Mendanha urbano o IDH187 é baixo, porém, quando analisado no contexto da Região Administrativa de Campo Grande, passa para algo entre 0,751 – 0,799, considerado médio, segundo dados fornecidos pelo IPP188,189 (2004). Ressaltamos que o IDH, segundo o site do PNUD190 (2015) é um índice que está ancorado em três pilares:  



Uma vida longa e saudável (saúde) é medida pela expectativa de vida; O acesso ao conhecimento (educação) é medido por: (I) média de anos de educação de adultos, que é o número médio de anos de educação recebidos durante a vida por pessoas a partir de 25 anos; e (II) a expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar, que é o número total de anos de escolaridade que uma criança na idade de iniciar a vida escolar pode esperar receber se os padrões prevalecentes de taxas de matrículas específicas por idade permanecerem os mesmos durante a vida da criança; E o padrão de vida (renda) é medido pela Renda Nacional Bruta (RNB) per capita expressa em poder de paridade de compra (PPP) constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência (PNUD, 2015).

Para analisar tais índices referentes à Carobinha, temos que considerá-la no contexto da região em que está inserida, Campo Grande, uma vez que não dispomos de um estudo estatístico exclusivo sobre a mesma. Nesse sentido, constatamos que o rendimento médio total na região de Campo Grande é o segundo maior da área de planejamento 5 da Cidade do Rio de Janeiro, onde se encontra a Carobinha (Jardim Nossa Senhora das Graças). Esse rendimento médio corresponde a 52,7% do valor total sobre o rendimento médio na Cidade do Rio de Janeiro, e que é de R$ 1.246,46 [TABELA 2].

187

Índice de Desenvolvimento Humano. Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. 189 Segundo o site do PNUD (2015), “(...) o objetivo da criação do Índice de Desenvolvimento Humano foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. (...) o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Apesar de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, o IDH não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da "felicidade" das pessoas, nem indica "o melhor lugar no mundo para se viver". Democracia, participação, equidade, sustentabilidade são outros dos muitos aspectos do desenvolvimento humano que não são contemplados no IDH”. 190 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 188

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Mesmo com uma população economicamente ativa em torno de 82,3%, a região apresenta alta taxa de desemprego, quase 20%, perdendo somente para as regiões da Pavuna, Jacarezinho, Santa Cruz e Cidade de Deus (IPP, 2004, p. 56). Tabela 2: [reprodução] Rendimento mensal médio do responsável do domicílio por sexo do responsável, segundo as Regiões Administrativas (em R$ de 2000) - 2000. Regiões Administrativas da Área de Rendimento Mensal Médio Planejamento 5 Total Masculino Feminino Rio de Janeiro 1 246,46 1 395,73 973,35 XVII Bangu 600,21 689,27 425,36 XVIII Campo Grande 654,01 739,45 457,92 XIX Santa Cruz 468,74 529,48 339,60 XXVI Guaratiba 513,36 573,38 356,71 XXXIII Realengo 719,73 833,95 492,43 Fonte: Censo Demográfico 2000, via IPP / DIG / MOREI, Tabela 877. Nota: Incluídos os responsáveis sem rendimento.

A população estimada para a Cidade do Rio de Janeiro em 2013 era de 6.466.736 habitantes (IPP, 2004). Esses valores são confirmados por recente estudo publicado que cita que, já em 2010, a população da cidade era de 6,3 milhões (IPP, 2013, p. 9). Este estudo prevê, ainda, que a zona oeste191 crescerá mais que as outras, por ser foco de investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida (IPP, 2013, pp. 910). Contudo, temos que destacar que a lógica de crescimento urbano da cidade seguiu por duas vertentes, a partir da sua área central, e isto também torna visíveis as direções opostas na apropriação do território, tomadas pelas classes sociais. As classes mais abastadas seguiram pela região praiana, o que confirma a tradição costeira na forma de ocupação do território brasileiro, e a consequente valorização destas terras, no caso carioca, em direção à zona sul e atingindo a zona oeste nos bairros do Itanhangá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Já a outra vertente de crescimento seguiu a implantação da linha ferroviária, confirmando o já citado, que “o trem seria o elemento de estratificação social” (LESSA, 2001, p. 226), e mais tarde através da Avenida Brasil. A zona oeste carioca, que se conforma urbanisticamente para além do bairro do Recreio dos Bandeirantes, localiza-se espacialmente no extremo oposto do ponto de partida da formação do núcleo urbano da cidade, e os bairros de Campo Grande,

191

A área de planejamento 5 está na zona oeste da cidade.

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Guaratiba e Santa Cruz são as únicas terras que ainda dispõem de grandes glebas vazias à espera da especulação imobiliária. Podemos considerar que o anel de crescimento urbano do Rio de Janeiro se fechou nestes bairros, sobretudo após a consolidação do anel viário, o chamado BRT192, que após passar pela Barra da Tijuca atinge o bairro de Santa Cruz no encontro com a Avenida Brasil. Tabela 3: [reprodução] População Residente e Estimada - Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas do Município do Rio de Janeiro - 2000/2010/2013-2016/2020. Áreas de População Residente População Estimada Planejamento 2000 2010 2013 2014 2015 2016 2020 Área de Planejamento 1 Área de Planejamento 2 Área de Planejamento 3 Área de Planejamento 4 Área de Planejamento 5

268 280 997 478 2 353 590 682 051 1 556 505

297 976 1 009 170 2 398 572 909 955 1 704 773

307 368 1 012 868 2 412 799 982 035 1 751 666

309 358 1 013 651 2 415 813 997 306 1 761 601

311 265 1 014 402 2 418 702 1 011 946 1 771 125

313 102 1 015 125 2 421 484 1 026 039 1 780 294

319 863 1 017 787 2 431 726 1 077 930 1 814 053

Fonte dos dados brutos: IBGE, Censo Demográfico de 2000 e 2010, Tabela 3261. Elaboração: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos da Prefeitura do Rio de Janeiro – IPP.

Hoje, a Área de Planejamento 5, que engloba os bairros de Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, Bangu e Realengo, e espacialmente corresponde a quase 50% do território da cidade, possui o segundo maior número de residentes, 1.751.666 habitantes, atrás somente da Área de Planejamento 3 (IPP, 2004)

[Tabela 3].

O

interessante é que se observarmos o mapa que divide a Cidade do Rio de Janeiro em Áreas de Planejamento [Figura 24], a única região costeira e que ainda tem terras vagas é o bairro de Guaratiba, que é a região menos povoada da AP-5, com 130.043 habitantes sobre os 1.751.666, ou seja, 7,43%. A Carobinha, com uma população estimada de 2.687 habitantes (IPP, 2004) não é considerada, como um todo, pelo IBGE um aglomerado subnormal193. Contudo,

192

“O BRT (Bus Rapid Transit), ou Transporte Rápido por Ônibus, é um sistema de transporte coletivo de passageiros que proporciona mobilidade urbana rápida”. No Brasil, “O sistema BRT foi criado em 1974 pelo arquiteto e na ocasião prefeito da cidade, Jaime Lerner, em Curitiba, no Paraná” (NTU, 2013). 193 Segundo o IBGE: “O conceito de aglomerado subnormal foi utilizado pela primeira vez no Censo Demográfico 1991. Possui certo grau de generalização de forma a abarcar a diversidade de assentamentos irregulares existentes no País, conhecidos como: favela, invasão, grota, baixada, comunidade, vila, ressaca, mocambo, palafita, entre outros”. A partir do Censo Demográfico de 2010 é tido como “(...) um conjunto constituído de, no mínimo, 51 (cinquenta e uma) unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. A identificação dos Aglomerados Subnormais deve ser feita com base nos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuírem pelo menos uma das seguintes características: urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos; e precariedade de serviços públicos essenciais. Os Aglomerados Subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes UFRJ I FAU I PROURB

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o IPP (2004) pondera que existem favelas que se integram ao loteamento e que, estas sim, constituem aglomerados subnormais e, por isso, são áreas sujeitas às regularizações fundiárias que já referenciamos. A partir de então, segundo o relatório do Sistema de Assentamentos de Baixa Renda (SABREN, 2013) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, a Carobinha é denominada como um “complexo” que mescla favela e loteamento irregular, o Complexo Jardim Nossa Senhora das Graças. As já citadas áreas, e que são objetos de regularização fundiária, abrigam uma população de 1.834 habitantes, assim distribuídos: Comunidade do Ecoponto - 112 habitantes; Jardim Nossa Senhora das Graças - 1.163 habitantes; Jardim Nossa Senhora das Graças II - 312 habitantes; e Jardim Nossa Senhora das Graças III - 247. Não sabemos afirmar se este total está incluso na estimativa populacional de 2.687

[Tabela 4]

moradores para o local, mas

considerando que sim, isto equivale a 68,25% da população da Carobinha em Aglomerados Subnormais, ou seja, mais da metade. Tabela 4: [reprodução] Estimativas de domicílios e população residente em Favelas, segundo Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas - 2000 (ver notas). Áreas de Planejamento, Regiões População Domicílios Notas Administrativas e Favelas Total no Município 1 214 178 343 336 Área de Planejamento 5 238 490 66 105 XVIII RA Campo Grande 62 635 17 309 Jardim Nossa Senhora das Graças 2 687 734 3 Fontes - Dados: IBGE - Censo Demográfico 2000 e IPP/DIC, Tabelas 2917. Cálculos: IPP/DIC e Oficina Engenheiros Consultores Associados Ltda. (serviço contratado pela SMH e coordenado pelo IPP). Notas: (...) 3 - Esta favela não foi considerada como "aglomerado subnormal" pelo IBGE. Veja o limite das favelas em: www.armazemdedados.rio.rj.gov.br – Portalgeo - Sabren.

Para concluir, Lopes observa que a área do Mendanha, incluindo o Parque Municipal da Serra do Mendanha, é de “(...) aproximadamente 2.000 hectares e de cerca de 27 mil habitantes” (LOPES, 2007, p. 57). Deste total populacional, uma média de “(...) 840 famílias são de pequenos agricultores que se dedicam ao cultivo de leguminosas, hortaliças, frutas (principalmente a banana, o caqui e a manga) e, em especial, a exploração do chuchu” (p. 59).

categorias: a) invasão; b) loteamento irregular ou clandestino; e c) áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente” (IBGE, 2010, pp. 26-27). UFRJ I FAU I PROURB

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Se considerarmos a área do Mendanha, a Carobinha corresponde a 0,71% da sua superfície territorial. Contudo, é um complexo populacional que faz frente a uma das mais importantes vias de acesso da cidade, a Avenida Brasil, e avança até os limites da APA Gericinó-Mendanha que faz divisa com municípios da Baixada [Figura 15]. Assim, desde a década de 1980, a Carobinha está sujeita às disputas por facções criminosas que veem no lugar, entre outros, um ponto estratégico de ancoragem, por um lado, pelo simples exercício de poder, e por outro pela sua facilidade de acesso tanto ao centro do Rio de Janeiro, aproximadamente 55 km, como ao litoral sul do Estado através da RJ-014 (Rodovia Rio-Santos), em torno de 25 km. Tabela 5: [reprodução] Área ocupada pelas favelas cadastradas segundo as Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas - Município do Rio de Janeiro - 2008-2010. Áreas de Planejamento, Regiões Código Áreas (m²) Administrativas e favelas. Período 2008 2009 2010 Total no Município 46 829 483 46 807 142 46 420 263 Área de Planejamento 5 14 793 998 14 817 787 14 780 100 XVIII Campo Grande 3 683 841 3 688 794 3 692 050 Jardim Nossa Senhora das Graças 711 141 796 141 796 142 019 Fonte: IPP - DIC - Gerência de Cartografia, levantamento aerofotogramétrico 2009 e 2010, imagem de satélite 2008 e SABREN - Sistema de Assentamentos de Baixa Renda, 2011, Tabela 2642.

4.2.3 A visibilidade que o outro tem da Carobinha na atualidade Dadas às circunstâncias de segregação socioespacial da Cidade do Rio de Janeiro, que marca as distâncias sociais pela ocupação do território, e a realidade vivida por seus moradores que estão “incluídos precariamente”194 no corpo socioeconômico, é notório que a Carobinha aparece, é vista por aquele que está fora, ou seja, que não pertence ao território, de forma extremamente negativa não somente pelos aspectos de vulnerabilidade ambiental ou falta de infraestrutura urbana que mencionamos, mas pela apropriação e controle do território imposto por grupos que praticam a violência. Esse olhar do outro aqui apresentado toma como base publicações na mídia impressa, e, como bem cita Perin (2007) sobre o pensamento de John Kenneth Galbraith195, “(...) a mídia cria e controla quase todas as crenças da sociedade,

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Conceito desenvolvido por José de Souza Martins. Cf. MARTINS, J. de S. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. 195 [Citado] GALBRAITH, John Kenneth. A economia e a arte da controvérsia. Tradução de Gilberto Paim. Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1959. UFRJ I FAU I PROURB

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formando assim certas sabedorias convencionais” (PERIN, 2007, p. 2), por exemplo, de que a favela seria o lugar do violento. Ermínia Maricato (2000) também enfatiza o papel da mídia na construção das representações dos espaços incluídos precariamente ao dizer que: É evidente que a publicidade insistente e a mídia, de um modo geral, têm um papel especial na dissimulação da realidade do ambiente construído e na construção da sua representação, destacando os espaços de distinção. É evidente também que a representação ideológica é um instrumento de poder - dar aparência de “natural” e “geral” a um ponto de vista parcial, que nas cidades estão associados aos expedientes de valorização imobiliária. A representação da cidade encobre a realidade científica (MARICATO, 2000, p. 165).

A autora acrescenta ainda, que: A manipulação das informações na construção da ficção é atribuída à genialidade de alguns técnicos de marketing, que conhecem os valores e anseios populares. Ela leva em conta aspectos que estão plantados no imaginário da população, ligados a seus paradigmas históricos, à sua identidade ou ainda à sua vontade de mudança de paradigmas existentes (MARICATO, 2000, p. 166).

É nesse sentido que, para Alba Zaluar (1994), “na visão da direita, pobres e bandidos se confundem” (ZALUAR, 1994, p. 49) e são considerados aliados por partilharem o mesmo território. No entanto, a autora deixa claro que as quadrilhas que se instalam dentro das favelas se convertem em um poder central e centralizador e são capazes de alterar “(...) as redes de sociabilidade e interferir nas organizações” (p. 51) locais, em que o único acordo existente entre moradores e bandidos é a imposição pelo medo (p. 50).

Figura 16: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. Fonte: Clipping da Autora.

A prática da imposição da “regra” pelo medo, que é exercida quando da apropriação de um território por um bando criminoso, confirma também aquilo que Ripoll e Veschambre (2005, p. 13) discutem no capítulo 2 sobre a valorização e estigmatização de tais territórios e indivíduos. Neste caso, para estes autores, ocorre UFRJ I FAU I PROURB

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a violência simbólica, que não é mais tão percebida pelos moradores do lugar, mas sim por aquele que está fora do território (VESCHAMBRE, 2004, p. 74). A realidade da Carobinha se enquadra totalmente no debate sobre a violência. Ocupada por narcotraficantes entre as décadas de 1980 e 1990, o local é constantemente tensionado por disputas entre traficantes e milicianos196. Em 2008, já tomada por milicianos, foi novamente alvo desta disputa, e a chamada da matéria no jornal Extra [Figura 16] ressalta a violência sob o título: “terror em Campo Grande” (EXTRA, 17/0/2008, p. 11). A violência faz parte da sua história e a criminalidade tem sido visivelmente um fardo para a população. Longe de romantizar o morador como coitado, destacamos que “a criminalidade aumenta a pobreza e os sofrimentos dos pobres” (ZALUAR, 2002, p. 20), mas não pelo fato desta população estar submetida ao controle de bandidos, mas porque tal controle “(...) impede o acesso aos serviços e instituições do Estado, tais como escola, postos de saúde, quadras de esportes (...)” (p. 20), ou porque o governo encontra dificuldades na gestão do lugar, ou porque, quando o serviço existe tem por vezes seu uso mediado pelos bandidos.

Figura 17: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. Fonte: Jornal Extra online (Acessado em 29-Mar-2013).

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“As milícias existem no Rio de Janeiro desde a década de 1970, controlando algumas favelas da cidade. Um dos primeiros casos conhecidos foi o da favela de Rio das Pedras, na região de Jacarepaguá, onde comerciantes locais se organizaram para pagar policiais para que não permitissem que a comunidade fosse tomada por traficantes ou outros tipos de criminosos, em 1979. A princípio com a intenção de garantir a segurança contra traficantes, os milicianos passaram a intimidar e extorquir moradores e comerciantes, cobrando taxa de proteção. Através do controle armado, esses grupos também controlam o fornecimento de muitos serviços aos moradores. São atividades como o transporte alternativo (que serve aos bairros da periferia), a distribuição de gás, a instalação de ligações clandestinas de TV a cabo. No início do século XXI, estes grupos parapoliciais começaram a competir pelas áreas controladas pelas facções do tráfico de drogas. Em dezembro de 2006, segundo relatos, as milícias controlavam 92 das mais de mil favelas cariocas” (PERES, 2012). UFRJ I FAU I PROURB

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É sabido por todos que a milícia no Rio de Janeiro controla alguns serviços dentro das favelas, e no caso da Carobinha destacamos dois, que são ressaltados pela mídia: o transporte coletivo alternativo, através de vans; e a comunicação por rádio, via rádios comunitárias piratas [Figura 17]. No caso das rádios comunitárias piratas, o que volta à cena é a capacidade da mídia de criar e controlar as opiniões da massa, mas, desta vez, a serviço do crime organizado. Geralmente, tais rádios são usadas nas campanhas políticas de candidatos apoiados por milicianos, para divulgar atividades comerciais na favela e promover a integração social, tal como citado por Zaluar (1994) anteriormente. Neste caso, o crime acaba por controlar as relações que são estabelecidas dentro da favela, na maioria das vezes sem que os moradores percebam que veiculam o mesmo discurso dos bandidos (VESCHAMBRE, 2004, p. 74).

Figura 18: Reportagem do Jornal Extra evidenciando a Carobinha como território de violência. Fonte: Jornal Extra online (Acessado em 29-Mar-2013).

Outra forma de coerção presente na Carobinha diz respeito ao exercício pleno da cidadania, que em períodos eleitorais é visivelmente coibido pelo mando do crime local, que transforma a comunidade em um “curral eleitoral”. Segundo Lopes (2007), isto é uma espécie de mandonismo que não deve ser confundido com a prática do coronelismo197, segundo o autor, um termo que foi usado pela primeira vez em 1948

197

Segundo Lopes (2007), Vitor Nunes Leal, considera ainda que o sistema coronelista, “(...) em seu modelo clássico se dá com o coronel exercendo seu poder no meio rural e seus doutores advogados e médicos, fazendo a interlocução com o centro urbano, garantindo assim sua clientela e os negócios com os fornecedores, pois estes detinham conhecimentos que muitas vezes o coronel não podia obter” (LOPES, 2007, p. 34), e no caso do Mendanha, relembramos que era de onde vinha o médico particular de D. Pedro II, que transmitiu por herança seus poderes. UFRJ I FAU I PROURB

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por Victor Nunes Leal198, “é um sistema político nacional, baseado em barganhas, entre os governos e os coronéis” (LOPES, 2007, p. 20). Já o mandonismo não é um sistema, mas um estilo de poder exercido por um indivíduo em uma dada localidade (LOPES, 2007, p. 20). A noção de mandonismo está diretamente ligada à de clientelismo e violência segundo Lopes (2007), além de ser uma relação fundamental para compreender o conceito de cidadania “(...) enquanto paradigma da ação política na sociedade e no Estado brasileiro em todos os seus níveis de poderes” (p. 21). O autor salienta ainda que, De toda sorte, há que não se perder de vista, como observa Paulo Baía199 (2006), a existência de uma relação dialética entre o clientelismo e o mandonismo, ou seja, as condições estruturais que possibilitam a prática clientelista ensejam o surgimento do nomadismo em toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A ineficiência do Estado em prover as demandas sociais no atendimento básico à população da zona oeste em espaços públicos de negociação e conflito, entre outras práticas, se consubstancia, no terreno fértil, fundamental e necessário para a ocorrência do clientelismo clássico (LOPES, 2007, pp. 22-23).

(...)

Figura 19: Reportagem do Jornal O Globo evidenciando a Carobinha como território de violência. Fonte: Jornal O Globo online (Acessado em 29-Jan-2013).

198

[Citado] Cf. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, 3ª ed. 199 [Citado] Cf. BAIA, P. R. S. A tradição reconfigurada: mandonismo, municipalismo e poder local no município de Nilópolis e no bairro da Rocinha, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Rio de Janeiro: CPDA: UFRRJ, 2006. UFRJ I FAU I PROURB

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As histórias dos bairros de Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba estão alicerçadas em práticas coronelistas, também chamadas de chaguismo (LOPES, 2007, p. 36), como vimos anteriormente, através da presença e influência do “Grupo Triângulo” na Primeira República. Podemos dizer que hoje existe uma espécie de clientelismo mandonista, que usa seu poder simbólico interpondo-se às práticas do direito cidadão dos moradores do lugar, personificado pelas milícias como crime organizado que se instala na zona oeste [Figura 19]. É lógico que a população que está submetida ao mandonismo do criminoso percebe que está imersa em um imbricado jogo de relações de poder e controle do território, contudo, como já afirmamos, ela não é conivente por concordar com o bandido, mas porque está submetida pelo medo. Assim, é possível perceber que as tensões entre narcotráfico e milícia incutidas nos moradores se conflitam nas emoções que eles direcionam ao lugar. Nas incursões etnográficas que fizemos à Carobinha, que abordaremos mais adiante, observamos que os moradores vivem e compartilham a experiência do paradigma da pobreza, mas tentam sempre espantar o paradigma da violência. Projetamos nossa pesquisa como um estudo das representações que um grupo de jovens, habitantes do lugar, constrói através das falas, que, por emocionadas, deixam escapar as tensões que eles visualizam e vivem, e que dão materialidade ao lugar. No campo do urbanismo, através do olhar do arquiteto, uma vez que acreditamos que o urbanismo é interdisciplinar e não monopólio da arquitetura, dizemos que esta é também uma forma de “saber ver a arquitetura”, como anunciada por Bruno Zevi (2011), por meio da “experiência espacial própria” (ZEVI, 2011, p. 25), que “prolonga-se na cidade, nas ruas e praças, nos becos e parques, nos estádios e jardins, onde quer que a obra do homem haja limitado “vazios”, isto é, tenha criado espaços fechados” (p. 25). Assim, o que também é importante para nós, neste trabalho, é pensar com Zevi (2011) que,

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(...) a arquitetura não é apenas arte nem só imagem da vida histórica ou vivida por nós e pelos outros; é também, e, sobretudo, o ambiente, a cena [que olhamos e] onde vivemos a nossa vida (ZEVI, 2011, p. 28).

Vale advertir que não estamos reduzindo o que o autor chama de cena ao mero cenário ou paisagem desconectada da realidade ou palco das relações sociais. Partilhamos, com Maricato (2000), a ideia que O espaço urbano não é apenas um mero cenário para as relações sociais, mas uma instância ativa para a dominação econômica ou ideológica. (...). Para começar, quando se pretende desmontar o simulacro para colocar em seu lugar o real, os urbanistas deveriam reivindicar a adoção de indicadores sociais e urbanísticos que pudessem constituir parâmetros/antídotos contra a mentira que perpetua a desigualdade (MARICATO, 2000, p. 168).

A autora refere isto para observar que a representação da cidade real é fruto da construção da consciência, que adota como referência às demandas populares, como forma de orientar um planejamento urbano responsável. E as demandas populares, em nossa pesquisa, são explicitadas por nuances emocionais, que são articuladas pelas falas, e que, em certa medida, criticam o espaço urbano, tal como no poema de Beto Machado (09/02/2011) que abre este capítulo, e que não esconde as mazelas da Carobinha, mas qualifica a sua população como livre, onde a força de transformação do lugar está na capacidade de mobilização que eles terão frente às adversidades vividas. As considerações históricas conformadoras do território da Carobinha, associadas aos indicadores econômicos e às relações de poder estabelecidas no lugar, são o arcabouço para a construção do próximo capítulo, que se detém nas apresentações e representações da Carobinha em relação à cidade como um todo, através dos olhares e reflexões desse grupo de jovens selecionados.

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Figura 20: Mapa da estrutura do lugar. 20-A: Relação dos espaços edificados e o sistema de espaços livres públicos e privados; 20-B: Estrutura das quadras; 20-C: Estrutura das vias de circulação; 20-D: Forma de ocupação horizontal do lugar. Fonte das Informações: análises de campo (março de 2013). Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 21: Mapa das condicionantes físicas e ambientais. 21-A: Campos de futebol e quadras esportivas; 21-B: Corpos hídricos: FNA da rede de abastecimento d’água, rios, riachos e alagadiços; 21-C: FNA da rede de alta tensão; 21-D: Relevo. Fonte das Informações: análises de campo (março de 2013). Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 22: Mapa dos limites da Carobinha, loteamentos confrontantes e vias de circulação que definem o Lugar. Fonte das Informações: http://wikimapia.org (Acessado em: 30-mar-13). Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 23: Mapa das Áreas sujeitas a Regularização Fundiária segundo o escopo do Programa Morar Carioca. Fonte das Informações: Relatório de Favela(s): Complexo Nossa Senhora das Graças (SABEN, 2013). Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 24: Mapa com a localização da Carobinha dentro da Área de Planejamento 5 no Município do Rio de Janeiro. Fonte das Informações: CMRJ, Proposta do Poder Executivo para Revisão do Plano Diretor, 2009. Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004). UFRJ I FAU I PROURB

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CAPÍTULO V A COMUNIDADE EMOCIONAL JOVENS DO PROJOVEM NA CAROBINHA: REPRESENTAÇÕES URBANAS DO SER E DO DEVIR COM E NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Neste capítulo tornamos visíveis nossas conjecturas teóricas sobre cidade emoção como um conhecimento, perceptível através da observação e interpretação daquilo que Raffestin (1977, p. 123) caracteriza como apresentações (conhecimento direto) e representações urbanas (conhecimento reflexivo), explicitadas à medida que nossos informantes - um grupo de jovens habitantes da Carobinha - se apropriam do lugar materialmente e imageticamente, em que marcam e personalizam os limites dos territórios cotidianos, de trocas, referencial e sagrado [Tabelas 8-10]. Lembramos que, nesse deslocamento entre apropriações e representações urbanas, identidades que configuram comunidades emocionais são constituídas em trajetos dialógicos, tanto físicos como mentais, tornando visíveis as territorialidades de grupos que constantemente se desterritorializam e reterritorializam (HAESBAERT, 2009). Cumprindo o percurso metodológico apontado nos capítulos anteriores, nossa análise está focada em desvendar as territorialidades de comunidades emocionais, a partir da caracterização dos seus territórios cotidianos, de trocas, referencial e sagrado (RAFFESTIN, 1995), que são manifestos através da apreensão dos “duplos elementos de construção de nossas representações” (BAILLY, 1990, p. 266), na medida em que as apropriações emergem dos “percursos comentados” (THIBAUD, 2003), traduzidos em vídeos e fotos capturadas pelos jovens, e desenhos feitos por eles [Tabelas 8-10]. Os elementos de construção de nossas representações alcançam tanto a linguagem da paisagem, ou aquilo que é visto, considerando “as estruturas do lugar: eixos estruturantes, relações entre eixos, marcos referenciais e limites físicos”, como a linguagem da territorialidade, ou aquilo que é vivido, considerando as “significações UFRJ I FAU I PROURB

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socioculturais do lugar: coordenadas simbólicas; limites culturais, históricos e simbólicos; imagens e representações simbólicas e/ou funcionais; características simbólicas (das marcações) e territorialidades (espaço significado)” (BAILLY, 1990, p. 266). De imediato, deixamos claro que não faremos uma leitura linear das modalidades de construção das representações, pois entendemos que tais modalidades podem ocorrer de forma contígua no espaço-tempo daquele que vê e vive no e com o lugar, mas também podem ocorrer em momentos distintos, se nós considerarmos os trajetos entre o ser e o devir de cada indivíduo socialmente construído (PRIGOGINE, 2002).

5.1

Os trajetos físicos e cognitivos observados nas escolhas dos

percursos comentados pelos jovens Conforme apontamos no capítulo 3, nossos informantes, as personas da comunidade emocional, foram dez (10) jovens entre 14 e 17 anos do programa Projovem, residentes na comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro, sendo quatro meninos e seis meninas. Observamos que este grupo, ao apresentar e representar seus territórios como parte da cidade do Rio de Janeiro, deixou evidente que de fato existem distâncias físicas (topológicas) e cognitivas que influenciam as representações sobre o espaço urbano, mas também trouxe para o debate da análise, desdobrada mais adiante, as distâncias sociais que assinalam a forma de ocupação do espaço da cidade. Quanto aos trajetos dialógicos que explicitam as distâncias físicas e cognitivas enunciadas por Prigogine (2002), lembramos que a trajetória comum ou distância física corresponde a uma intenção, enquanto a distância cognitiva corresponde a uma interação. Nesse sentido, as escolhas dos percursos comentados foram fruto de mediações intento-inteirar dos jovens, num movimento de apresentaçãorepresentação tanto do espaço urbano como daquele que o anima. Assim, o intento dos jovens - como querer, era nos apresentar o lugar, ao mesmo tempo em que tinham como objetivo central nos inteirar - como processo UFRJ I FAU I PROURB

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comunicacional sintetizado em representações, uma comunidade repleta de contradições socioespaciais e marcada por distâncias sociais, que complexificam sua materialidade e simbolismo dentro da cidade. Entre intenções e interações ao longo dos percursos comentados, enquanto comunidade emocional estes jovens deixaram escapar sua identidade - o ser jovem urbano territorializado em enclaves de pobreza - através da linguagem da paisagem e da territorialidade, mas também nos apontaram possíveis devires, explicitados principalmente pela possibilidade de se apropriar dos territórios significados da cidade. Voltando o olhar sobre os percursos comentados, método de campo que tornou visíveis intenções e interações, no segundo e terceiro dias de trabalho de campo, e as escolhas de tais percursos [Figura 68], verifica-se que as meninas, quando separadas dos meninos, não tiveram problema em apresentar a comunidade como ela é, ou seja, escolheram um trajeto físico que atravessa a rua principal da localidade. Aqui cabe um parêntese para esclarecer que a separação do grupo por gênero não se deu por orientação da pesquisa. Ela se originou dos trajetos intencionais e interacionais mediados entre os jovens e com a interferência do “Professor”, como podemos constatar nas seguintes passagens do caderno de campo. [sic] Assim que o grupo chegou à Estrada da Carobinha o Professor orientou que seria interessante começar a filmar a comunidade a partir de sua entrada, configurada pelo encontro da Avenida Brasil com a Estrada da Carobinha. O grupo dividiu-se em dois, puxados por quem manuseava as câmeras digitais. De um lado estava Igor e do outro um jovem chamado Romário (...). (...) Nesse momento o Professor interveio falando que cada grupo apresentaria uma coisa, e que o Romário já estava apresentando. Ele ainda tentou negociar com Gabriela que continuou relutante e acabou sugerindo o Franklynn, mas que também não se colocou disponível. Enquanto eles tentavam resolver quem iria dar prosseguimento a filmagem, as irmãs Adriana e Juliana não tardaram em sair tirando fotografias. É importante observar que o grupo esboçou uma divisão natural entre meninas e meninos. De início as meninas ficaram com as máquinas digitais, fotogravando o que achassem relevante (ANEXO 1, SEGUNDO DIA). UFRJ I FAU I PROURB

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Nós acreditamos que existe certo grau de previsibilidade que conduz as atividades orientadas, mas que o conhecimento do novo está exatamente naquilo sobre o qual não temos controle. Nesse sentido, convém lembrar, mais uma vez, que a imprevisibilidade (PRIGOGINE, 2002), discutida no capítulo 2, está diretamente ligada aos processos interacionais que medeiam intencionalidades diversas, e aponta para as possibilidades interpretativas nascidas dos trajetos físicos e cognitivos observados em campo. Retomando a questão sobre os trajetos físicos escolhidos, constatamos que este grupo de jovens, ainda que se ancore no discurso solidário do estar-junto em defesa ou crítica do lugar, através do que Maffesoli (2010) chama de paradigma ético para a constituição desta comunidade emocional, é composto por intencionalidades distintas, ou seja, a desinvidualização dos seus integrantes somente se dá quando existe um tema unificante, no caso – apresentar e representar a cidade a partir do lugar que habitam. Aspecto que fica evidente em relação às meninas, que delimitaram bem suas identidades e, consequentemente, aquilo que as distanciam umas das outras, como suas preferências por estilos musicais distintos. As irmãs funkeiras, a Gabriela com o Rap de Cristo, a Márcia roqueira que tolera o hip-hop e as irmãs Maria e Milena que não deixaram evidente aquilo que preferem. [sic] Franklynn: Aquelas ali são as menininhas aí. [sic] Gabriela: Roubalheiras ela, elas são roubalheiras, são funkeiras. Ficam até cantando musiquinha de “senta na cabecinha” (ANEXO 1, SEGUNDO DIA). (...) [sic] Milena: Filma aqueles malucos ali. [sic] Márcia: Ô! Se for roqueiros não são malucos não! (ANEXO 1, TERCEIRO DIA). (...) [sic] Gabriela: [♪] “vote em Cristo, para presidente da sua vida”200... (...) (ANEXO 1, QUARTO DIA).

200 Música chamada “Vote em Cristo” de Lito Atalaia e Provérbio X. Interpretada pelo grupo musical de Rap Cristão

Provérbio-X. UFRJ I FAU I PROURB

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Isto nos remete ao início deste tópico quando mencionamos que as meninas não tiveram problema em apresentar o interior da Carobinha. Ressaltamos, conforme constatado nas citações anteriores, que foram as irmãs funkeiras que iniciaram o trajeto físico das meninas, e, para elas, as suas identidades como parte da cultura jovem local estão bem resolvidas em seus trajetos cognitivos, a ponto de reconhecerem a linguagem da territorialidade ligada à linguagem da paisagem do lugar através dos trajetos físicos. Já a jovem Gabriela se mostrou reservada preferindo ser orientada pelas irmãs. Gabriela, que acompanhou inicialmente o grupo do Romário até a passagem pela rampa da passarela, quando ele fez o comentário sobre o mau cheiro do lugar, ela logo se juntou às meninas, mas sempre de maneira muito reservada como quem mais observa e constrói dentro de si suas ideias, e que eram devolvidas para os outros somente através de sorrisos e algumas outras considerações (ANEXO 1, SEGUNDO DIA).

Os meninos, de uma forma geral, se identificam em torno dos espaços de lazer, o campo de futebol. Numa análise da estrutura do lugar, não notamos a existência de praças de lazer construídas pelo poder público dentro da Carobinha. As escolhas e orientações de filmagem do trajeto foram influenciadas, em parte, pela intencionalidade do Professor, que o tempo todo orientava os jovens. [sic] Após outra longa pausa na fala, Igor perguntou quem iria filmar a partir daquele ponto. Enquanto que em “off” o Professor e o Romário combinavam que iriam até o “Pão Gostoso” ou “Padaria do Bolinha”. [sic] Romário: Mas é legal pegar o valão ali (ANEXO 1, SEGUNDO DIA).

As escolhas dos trajetos físicos dos meninos são atravessadas por críticas e ironias ao lugar, como veremos no próximo item, mas revelam que, para descrever a linguagem da paisagem via trajeto físico, os jovens reorganizam a todo instante seus trajetos cognitivos sobre as questões infraestruturais que segregam os espaços da cidade, ressaltando mais uma vez as distâncias sociais na forma de apropriação espacial. Observamos, com isso, que a Carobinha apresentada pelos jovens em seus trajetos físicos não está circunscrita aos seus limites físicos [Figuras 68-69]. Inclusive, no UFRJ I FAU I PROURB

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terceiro dia do percurso comentado, os jovens escolheram caminhar para fora dos marcos territoriais da Carobinha. Também organizados em grupos de meninos e meninas, desta vez os meninos tomaram à frente, seguidos pelas meninas. Este dia, ainda que os jovens expandissem suas apresentações através das representações observadas nas falas, a figura do “professor” como mediador nas definições de o quê filmar foi mais presente. [sic] As meninas se organizam em frente à associação de moradores. Maria decide que vai fotografar, Márcia vai filmar e Milena acompanhar. O professor orienta as meninas a filmar e fotografar as faixas informativas. [sic] Professor: Olha, grava a faixa do “pagode do sorriso”. [sic] Márcia: “Pra” onde a gente tá indo mesmo? Votorantin né? [sic] Professor: Pela... Pela... Passar na pracinha. [sic] Glauci: A pracinha fica no limite da Carobinha? [sic] Márcia: Não... Votorantin é a praça ali do lado do colégio... Não, é que o condominiozinho ali se chama Votorantin. Aquela praça é conhecida como Votorantin. (...) (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, FILMAGEM DAS MENINAS).

Estes comentários confirmam que, numa investigação urbana, em vez de descrever unicamente as distâncias físicas intencionais, mensuráveis e qualificáveis, quando consideramos os estudos interacionais complexos, nós devemos descrever também possibilidades relacionais ou distâncias cognitivas que agem em complementaridade às físicas como em um sistema eco-auto-organizado (MORIN & LE MOIGNE, 2000). Privilegiando a análise urbana mais centrada nas representações, nos detivemos a partir de então nas linguagens da paisagem e da territorialidade expressas na descrição e avaliação das estruturas e significações socioculturais do lugar ressaltadas pelos jovens do Projovem Carobinha e organizadas pelo tretraglossema de Raffestin (1995): territórios cotidianos, de trocas, referencial e sagrado [Tabela 8].

5.2

O território cotidiano representado pelos jovens Vimos no capítulo 2 que das relações estabelecidas no território cotidiano é

que surgem as necessidades fisiológicas de segurança, pertencimento e afetividade UFRJ I FAU I PROURB

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que delineiam nossas emoções. Raffestin considera que o território cotidiano também é onde tencionamos os devires, porém de uma forma que se inicia não tão tranquila, pois tais projeções acontecem cercadas por tensões que tendem em seguida ao relaxamento que configura as territorialidades - “(...) uma territorialidade imediata e por vezes trivial e singular, previsível e imprevisível (...)”201 (RAFFESTIN, 1995, pp. 96-97). Queremos dizer, então, que no território cotidiano se desenrola a vida banal do dia a dia, que, para Maffesoli (2010), se configura como a ambiência dos costumes de uma comunidade, fundamentando as suas redes de solidariedade. Em qualquer fase da vida, o território cotidiano é um processo emocional em incansável transformação, mas na juventude, em que os devires são constantemente renovados, podemos dizer que tal processo seja extremamente efervescente. Nada melhor para iniciar às nossas considerações sobre a cidade emocional e exemplificar tal efervescência juvenil, alternada por tensões e momentos de relaxamento, do que o conflito de estranhamento e resistência expressado pela jovem Gabriela quando perguntamos ao grupo como era a Carobinha. É importante sublinhar que logo no primeiro dia do trabalho de campo, esta jovem resistiu em estabelecer uma comunicação conosco. Neste ponto, destacamos o papel fundamental que exerceu a figura do orientador social – o “Professor”, quem, utilizando o recurso do vídeo quebrou lentamente a barreira imposta pela jovem, que foi revelando aos poucos o seu pensamento sobre o lugar. [sic] Professor: Fala Gabriela, olha pra cá... Gabrieeela? Gabriela? Olha pra cá e fala como é a sua comunidade. [sic] Gabriela: Minha comunidade é chata (ANEXO 1, PRIMEIRO DIA).

Esta constatação de que a comunidade é chata é recorrente entre os jovens, mas percebemos através das falas que tal “chatice” se deve à inexistência de uma rede de entretenimento e lazer diversificada, bem como de uma infraestrutura

201

Citado no capítulo 4.

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urbana adequada. Mesmo Gabriela alternava sua opinião entre a comunidade ser chata ou ser um bom lugar para viver. [sic] Gabriela: O lugar que eu moro é um pouquinho ruim, pois não tem NADA. Para nos divertirmos temos que sair de casa e ir para outro lugar. É muito chato porque não tem adolescente da minha idade e os que têm só gostam de jogar bola, soltar pipa e ficar correndo para cima e para baixo que nem malucos. Eu não sairia do lugar onde moro, pois é um lugar onde eu tenho paz e tranquilidade de espírito, só que melhorasse em muitos aspectos e o primeiro seria o saneamento e a drenagem do rio, pois todas as vezes que chove muito forte o rio enche, transborda, e enche a minha casa e as casas de outros vizinhos. Queria que colocassem pelo menos um campo ou uma praça em frente à minha casa, onde tem um “sítio”, pois ele é grande e tem bastante espaço para que algum deputado (ou seja lá o que for) possa fazer a praça. Concluindo, o lugar onde eu moro é chato, mas é bom ao mesmo tempo, existem pessoas que estão piores ou não tem lugar onde morar (ANEXO 2, PARTE 1).

Apesar do conformismo, outro aspecto importante que desponta na fala de Gabriela, e que já discutimos anteriormente, é que nessa fase da vida, pelo menos no grupo comunitário que visamos, os jovens tendem a se organizar primeiramente por gênero e depois por outras afinidades. O que fica notório na observação do território cotidiano dos jovens é a percepção oscilante entre tranquilidade e precariedade infraestrutural do espaço urbano. [sic] Franklynn: O lugar onde eu moro é sem graça. Não tem nada de bom e é repetitivo. Todos os dias acontecem a mesma coisa (...) (ANEXO 2, PARTE 1). [sic] Juliana: O lugar onde eu moro não tem muitas novidades, sempre acontecem as mesmas coisas, mas é um lugar calmo e bom para se morar. Tem muitas religiões. Aqui não tem muitos lugares para se divertir, mas aqui é legal (ANEXO 2, PARTE 1). [sic] Márcia: Calmo até demais, mas tranquilizador, onde eu posso pensar na vida e na maioria das vezes esquecer os meus problemas. Bom, esquecer parcialmente, pois os problemas como saneamento básico e a falta de infraestrutura não nos ajuda muito. Na verdade, não nos ajuda em nada. Sendo assim, [um lugar] calmo, tranquilizador e preocupante (ANEXO 2, PARTE 1).

Em geral, as falas ou os textos não condizem com os desenhos. Por mais críticos que tenham sido em relação à precariedade, os desenhos nos revelam de maneira lúdica a relação emocional que a maior parte estabeleceu ao longo do tempo com o lugar, o que ressalta o aspecto ético do estar-junto solidário (MAFFESOLI, 2010). Tais disparidades foram claras quando nós colocamos as seguintes perguntas no “caderno de vivências urbanas” (ANEXO 2): Como é o lugar que você mora?; e, Para você, qual a imagem que melhor representa o seu bairro? [Tabela 6]. UFRJ I FAU I PROURB

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Tabela 6: Elementos exteriores que estruturam a Carobinha nas representações dos jovens.

Figura 25: Desenho do Franklynn em maio de 2012: campo de futebol como marco referencial. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 26: Desenho da Gabriela em maio de 2012: as áreas vegetadas como limite físico. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 27: Desenho do Igor em maio de 2012: identificação de diversos marcos referenciais, e a rua da Carobinha como eixo e limite do lugar. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 28: Desenho da Márcia em maio de 2012: o parque do Mendanha e a rua Guandu do Sena como limites físicos. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Somente Franklynn teve a espontaneidade de fazer um desenho com alguma referência aos terrenos baldios. As meninas, quase sempre, se reportaram à abundância vegetativa que existe de fato no limite da Área de Proteção Ambiental (APA) Gericinó-Mendanha, ou às praças e brincadeiras, já entre os meninos suas representações priorizaram desenhos de quadras de futebol e marcos referenciais tais como escolas, comércios etc. Detectamos algumas modalidades de representação. Para ilustrar a estrutura, os jovens tomaram marcos referenciais não pertencentes aos limites físicos da Carobinha– a Praça do Votorantin e a Área de Proteção Ambiental (APA) GericinóMendanha, ambos fora dos eixos estruturais da região. Contudo, ao significar o lugar, o fazem em trajetos dialógicos que conectam coordenadas simbólicas no passado e no presente da comunidade, para determinar as territorialidades das personas que lhes dão vida, mais visíveis a partir de nossa análise dos aspectos simbólicos. UFRJ I FAU I PROURB

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Destacamos que através de tais representações fica nítido, também, o que Fischer (1994) entende sobre personalização, onde se expressa a autonomia de cada um em relação ao território, e que está atrelada à estrutura física do mesmo, porém, é a pessoalidade que trata de evidenciar os gostos, preferências, opiniões e atitudes. Não nos esqueçamos que a apropriação também acontece através da expressão oral, escrita ou gráfica (desenhos), mecanismos utilizados pelos jovens para personalizar a Carobinha, mas que também trazem à tona suas pessoalidades [Tabelas 8-10]. Simbolicamente, em geral todos têm a Carobinha como um lugar calmo para viver, mas o grupo das meninas percebe e personaliza o espaço de forma diferente dos meninos. Além de constatarmos isso nas falas iniciais e nos desenhos, vistos anteriormente, os mapas que delineiam as escolhas dos trajetos comentados 69],

[Figura

quando cruzados com as falas mostram que os interesses de ambos não são

convergentes. Nesse sentido, é igualmente importante tecer um breve comentário sobre as apreensões e representações espaciais dos grupos de meninos e meninas, sem, evidentemente, excluir a interferência de um sobre o outro. 5.2.1 As perspectivas dos meninos do grupo Conforme já mencionado, meninos e meninas esboçaram se dividir em dois grupos no percurso comentado e logo que a dinâmica da caminhada se voltou para o interior da Carobinha dividiram-se por completo, cada grupo ficando com uma filmadora e uma câmera digital capturando imagens e narrando impressões sobre o lugar. [considerações da autora] A esta altura eles estavam na Estrada da Carobinha esquina com a Rua Clarínia, na qual entraram, desviando-se totalmente do trajeto das meninas. Enquanto Igor filmava [inicialmente], o Professor e o Romário decidiam o que era importante mostrar e o Franklynn fotografava o que achava interessante, mas também palpitando (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

É claro que a decisão do percurso comentado foi lançada e totalmente mediada pelo Professor, porém numa postura relevante que tentava a todo instante conduzir o interesse dos jovens de forma crítica. Entretanto, chamou de fato a atenção dos meninos, logo de início: a presença do ponto de moto-táxi, os campos

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de futebol e a precariedade da infraestrutura, esta última orientada pelo professor [Figura 30].

Figura 29: Ponto do moto-táxi da Carobinha. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Maria (07-mai-2012).

Figura 30: Quadra de futebol do Votorantin. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Maria (07-mai-2012).

O ponto de moto-táxi é percebido como presença física dos milicianos, que impõem as regras de convívio, como citado no capítulo 4, qual seja: marcação do território com o objetivo de evidenciar as relações de poder, os conflitos e mais amplamente a dimensão espacial das relações sociais (VESCHAMBRE, 2005, p. 115). Essa questão interfere na construção da identidade da comunidade emocional através do reconhecimento dos limites das territorialidades, àquelas pertencentes aos jovens e àquelas que, mesmo não pertencentes diretamente aos jovens, configuram a linguagem da territorialidade da Carobinha - uma localidade da cidade sujeita ao “controle” do crime organizado. Já o campo de futebol, conforme apropriado e representado, nós o vemos como um “espaço de uso exclusivo”, no sentido atribuído por Ripoll e Veschambre (2005, pp. 10-11), e que ocorre por razões puramente funcionais, uma vez que é um suporte material propício à socialização dos jovens. A partir de tais constatações, verificamos que entre os elementos simbólicos da pobreza e os estruturais do lugar, a filmagem dos meninos pareceu confusa no início, pois a todo instante o Professor indicava o que tinha que ser filmado; no caso, as relações socioculturais e a falta de infraestrutura urbana que caracteriza fisicamente o lugar, e isso desviava a atenção dos meninos que estavam preocupados de fato com o campo de futebol ou outros aspectos do território cotidiano. [sic] Igor: Ô Franklynn... Qual o nome desse campo? UFRJ I FAU I PROURB

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[considerações da autora] Foi quando o Professor observou para não deixar de filmar a igreja Assembleia de Deus em frente ao campo. [sic] Igor: Gravando (referindo-se à igreja). [considerações da autora] Igor filmou a solicitação do Professor, mas logo se voltou para o campo de futebol, mais ou menos demarcado numa porção de terra entre as ruas Clarínia e Morungaba, e que servia também de “atalho” para os pedestres. À exceção do campo de futebol, todo o resto da porção de terra estava abandonada, com mato alto, acúmulo de pneus velhos em um canto e um tanque de caminhão no outro. Igor atravessou o campo pelo “atalho” sempre filmando as poças d’água parada, mas sem falar sobre elas. [sic] Igor: Aqui é o campo, um dos nossos campo. [considerações da autora] Já na Rua Morungaba, Igor fez uma filmagem panorâmica do campo e falou. [sic] Igor: Cara, tá feio pra “caraca” esse campo! (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Figura 31: Desenho do Igor denominado campo do Flamengo. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Mesmo havendo conflito de intenções, os jovens seguiram o percurso atendendo às solicitações do Professor, mediando-as com os seus quereres, ao voltar o olhar para o que achavam verdadeiramente relevante para o cotidiano da comunidade. É evidente a força simbólica que a bola e a quadra de futebol exercem nas vidas desses meninos. Na Carobinha ou em outras áreas de pobreza, os campos de futebol são, normalmente, as únicas alternativas de lazer dessa população, por isso, não só a apropriação física dos espaços é comum, mas, sobretudo, a apropriação em seus imaginários. Quando os meninos da Carobinha se apropriam dos campos de futebol imaginariamente,

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eles

exercitam

a

“interiorização

cognitiva”

(RIPOLL

e

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VESCHAMBRE, 2005), que coloca em jogo o processo de conhecimento emocional e de construção de familiarização e consequente posse do lugar

[Figura 30].

Ao mesmo

tempo, também exercitam a relação afetiva dada pela “apropriação existencial” (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005), que tende a transformar os espaços em territórios cotidianos ao conferir-lhes o aspecto de “lar”. Veremos mais adiante que a ideia de “lar” é expressa pelas meninas através da casa propriamente dita; já para os meninos é quase como se eles habitassem os espaços de lazer, proporcionado pela atividade do jogo de bola, ou seja, a quadra de futebol pertence a eles, como bem expressou Igor acima na colocação possessiva “esse é um de nossos campos”. Assim, o lugar passa a fazer parte deles mais que qualquer outro da comunidade. Tamanha é a força representativa do campo de futebol e o sentido de posse que os meninos têm deste lugar, que no segundo dia de caminhada eles praticamente anularam a interferência mediadora do Professor. Nesse dia, os meninos dispararam deixando o professor para trás com as meninas e atingiram rapidamente a Praça do Votorantin, onde fica a maior quadra de futebol da região. [sic] Romário: Vem professor, vem professor, vamos com nós. [considerações da autora] Romário tenta juntar os meninos, mas o que estava filmando continua dentro da construção abandonada filmando desta vez o Parque Municipal do Mendanha. Então segue caminhando em direção à quadra onde estava ocorrendo uma partida de futebol e onde Igor, Romário e Franklynn estavam dançando. [sic] Léo: capoeira, capoeira. Ação... Ação então. [considerações da autora] E quando o professor finalmente se aproxima dos meninos, Romário anuncia: [sic] Romário: E aí Mané, “tamo” aqui agora, meu nome é Romário. “Se liga” só, agora nós estamos aqui na praça... Praça Votorantin. Dá um bizuzão, essa é a Praça Votorantin, essa aqui é a quadra... Externa. Aquela quadra ali é chão normal viu. Ali tem umas paradas de malhar. E é isso aí, a comunidade é isso aí, entendeu? Tá humilde, mas é nossa. Olha o chão (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM A).

Além das quadras de futebol, ficou flagrante em relação aos meninos, quanto os buracos das ruas, que atrapalhavam a circulação de veículos, os incomodavam. [sic] Igor: Feio, esculachado, ruas cheias de buracos. (...) (ANEXO 2).

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A falta de infraestrutura não foi tema corrente entre eles, e quando vinha à tona era uma intenção controlada pelo Professor. Seus interesses se dirigiam para os aspectos de lazer. Tanto é assim, que no momento em que filmava o rio degradado da Avenida Canal 2, orientado pelo Professor, Romário, se desprendendo das orientações, se voltou para um menino que empinava pipa e outros que jogavam pingue-pongue. [sic] Professor: Vê se pega o cano... Aquele cano lá Franklynn. [sic] Romário: Olha o moleque correndo atrás da pipa lá. [sic] Igor: Pegou Mané [a pipa]... E sozinho. [considerações da autora] Nesse momento o irmão do Igor apareceu e pediu as chaves de casa para ele. Igor interpelou o irmão dizendo para não fazer bagunça, e foi então que o irmão do Igor sugeriu: [sic] Irmão do Igor: Filma o campo lá. [sic] Igor: Já filmei. [sic] Irmão do Igor: A lanhouse. [sic] Igor: Na lanhouse não pode não. Vou filmar o Seu Bira. (...) [sic] Romário: Aí pessoal... Essa é a rua, olha só como que é que eles tratam nossa cidade. O pessoal na área de lazer... Jogando pingue-pongue ali na rua (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Ainda que os meninos não referissem com tanta frequência quanto às meninas a presença dos milicianos na comunidade, eles sabiam e tinham pleno domínio dos lugares consentidos e que poderiam ser mostrados aos de fora. Apesar da grande adversidade existente, seja quanto aos aspectos urbanísticos ou de “gestão” territorial, no entendimento geral terminava por ser o “melhor lugar do mundo”, pois ninguém ousava transgredir as regras impostas pelos milicianos, e implícitas entre os moradores. [sic] Léo: Aqui é o lugar mais seguro do mundo... Da cidade... Do país. É... Aqui ninguém mexe contigo aqui não. “Tu faz” o que quiser (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM a).

Nos percursos comentados dos meninos, os trajetos cognitivos ficaram mais dispersos entre suas intencionalidades e as do Professor, mas igualmente ricos enquanto processo interacional que comunica o que é a complexidade estrutural e simbólica do espaço urbano. UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 32: Meninos jogando capoeira numa rua do conjunto Votorantin. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Milena (07-mai-2012).

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Figura 33: Meninos jogando bola na quadra do conjunto Votorantin. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Milena (07-mai-2012).

No terceiro dia de caminhada, meninos e meninas percorreram o trajeto mais ou menos juntos, porém cada um focou o ver naquilo que achava mais relevante. A partir de um momento, os grupos se juntaram motivados pela brincadeira de jogar capoeira, sugerida por Franklynn, deixando visível o quão empática era tal atividade, ao unificar o grupo ao seu redor [Figura 32]. O poder de empatia da capoeira não se restringiu aos jovens, foi igualmente recebida pelo Professor como uma atividade positiva, afinal, ele era defensor declarado da cultura afrodescendente e participante do movimento negro local. [considerações da autora] (...) Romário chamou o Franklynn então, e pediu que filmasse ele e o Léo jogando capoeira na rua. [sic] Romário: Vem, vem, vem. [sic] Márcia: Abre a rodinha aqui. [sic] Romário: O que é isso! Pô... Abre a rodinha?! Vem que vem apresentar um pouco da cultura brasileira. É mais ou menos assim. [sic] Professor: Em ritmo de capoeira e batendo palma [♪] Quem vem, quem vem, quem vem quem vem quem vem, vem... Quem vem, quem vem, quem vem quem vem quem vem, vem... Ih cara! Joga mesmo! aí! [Aplausos dos meninos e das meninas] Agora o grupo dos meninos caminhava junto com o das meninas. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM a).

5.2.2 As perspectivas das meninas do grupo Cabe ressaltar, que a divisão do grupo entre meninos e meninas aconteceu nos dois dias do trabalho de campo em que privilegiamos o percurso comentado. Inicialmente vamos nos deter no segundo dia, em que ocorreu o trajeto das irmãs UFRJ I FAU I PROURB

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com Gabriela, e onde nós participamos como “um grupo de meninas”, e depois faremos referência ao terceiro dia, em que participou outro grupo de meninas. Retomamos

aqui

as

considerações

sobre

o

comportamento

de

estranhamento da jovem Gabriela, ao qual já nos referimos, porém ele é importante uma vez que expressa de forma clara como os jovens se organizaram por gênero. [Considerações da autora] Gabriela, que acompanhou inicialmente o grupo do Romário até a passagem pela rampa da passarela, quando ele fez o comentário sobre o mau cheiro do lugar, logo se juntou às meninas, mas sempre de maneira muito reservada como quem mais observa e constrói dentro de si suas ideias, e que eram devolvidas para os outros somente através de sorrisos e algumas outras considerações (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM C).

A jovem se manteve a maior parte do tempo calada, foi a que mais ofereceu resistência e, aparentemente, achava tudo sem propósito. Mesmo assim, ainda que não pertencesse, visualmente e ideologicamente, ao grupo das irmãs Adriana - a caçula, e Juliana - a grávida, porque estas eram assumidamente funkeiras e Gabriela simpatizante do rap de cristo, logo se reuniu às irmãs, apontando para um sentido, que Maffesoli (2010) chama de convivialidade ou solidariedade entre as tribos em prol de algo maior - o fato delas representarem o grupo feminino do Projovem que estava presente. A iniciativa de filmar as meninas foi de Gabriela que pegou uma das filmadoras e pediu à Juliana que cantasse. A irmã Adriana sugeriu que elas cantassem a música do “bonde das meninas” de que elas faziam parte, o que foi suficiente para cantarolarem e começarem a descrever, na interpretação delas, o evento que acontece semanalmente na Carobinha, o “Baile do Renato”, na atual Avenida Zumbi dos Palmares (mais conhecida como Estrada da Carobinha). [sic] Juliana: Porque você só tá filmando a gente Gabriela? [sic] Adriana: É... Olha aí a Carobinha grande aí. [sic] Gabriela: Porque você tá falando do baile do Renato pô. Tá apresentando o Renato né! [sic] Glauci: Quando é o baile? [sic] Juliana: Sexta, sábado e domingo. [sic] Adriana: Três dias, e começa... Ah... Começa tipo meia noite né!?

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[sic] Juliana: Fica bom mesmo 1 hora da manhã. É o Renato e o Telhadão. [sic] Adriana: O Telhadão é do lado. [sic] Juliana: E eu fico boba como vem gente “pa” ficar assistindo, ficar no baile no meio da rua! [sic] Glauci: Então tem várias barraquinhas? [sic] Juliana: Não! [sic] Adriana: Só tem uma barraca de cachorro quente. [sic] Juliana: Porque o pessoal bebe mais... O pessoal vai pra beber! [sic] Adriana: Principalmente no bar do Renato (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

O local do baile é um marco referencial e importante coordenada simbólica para os jovens da comunidade, o que amplia os aspectos vividos do lugar, quais sejam: as suas significações sociais e culturais (BAILLY, 1990, p. 266). Geograficamente, está situado mais ou menos no ponto médio da Estrada da Carobinha, e é simplesmente um “bar na esquina”, mas é o único ponto de encontro de lazer em larga escala, no espaço público da Carobinha. [sic] Adriana: Aqui é que acontece o baile. A caixa de som fica ali [apontando para a esquina], e o Telhadão fica logo ali do lado. [sic] Glauci: São dois bailes ao mesmo tempo? [sic] Adriana: Isso, quando tá tocando junto não dá pra escutar qual música você quer (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

Figura 34: O bar do Renato na Rua da Carobinha ponto referencial do baile dos finais de semana. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Juliana (02-mai-2012).

Figura 35: Desenho da Maria representando o baile e o bar do Renato na Rua da Carobinha ponto referencial do baile dos finais de semana. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Isso denota o quão tal ambiente é um “espaço de uso autônomo”, nos termos propostos por Ripoll e Veschambre (2005) - aquele que pode ser usado a princípio livremente, onde se transgride a finalidade de um uso determinado, com a

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sobreposição do vivido sobre o concebido. No caso, parte da rua é consumida pela dinâmica de um baile funk [Figuras 34-35]. Esse baile, que acontece todo o final de semana, aparece em outras falas dos jovens, contudo, não é para todos que ele tem uma conotação positiva. Gabriela, Márcia e Franklynn frequentemente nas suas considerações rotulavam aqueles que moram próximos ou frequentam os bailes como pessoas “faveladas” ou próximas ao crime organizado. [sic] Gabriela: Porque não é gente favelada entendeu?! Aí, como eu moro lá, eu sou gente decente. E como elas moram aqui... Aí vem “pro” baile do Renato... Entendeu?! [sic] Glauci: Entendi. Então a gente tem que conhecer o lugar de gente decente (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E). [sic] Márcia: Ih! A lá... Tá tocando “Sugar202”, eu vou voltar... Uma música decente. Até que enfim eu encontrei um lugar decente! Faltou a Gabriela (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B). [sic] Glauci: O que é que tem no bairro? [sic] Franklynn: No baile? [sic] Glauci: No bairro. [sic] Franklynn: Ah, se fosse no baile eu ia falar brigas, confusões, gente morrendo, milícia batendo em meia dúzia (ANEXO 1, QUARTO DIA).

Recolhemos duas coisas interessantes nessas falas. A primeira diz respeito à construção do juízo de valor que os jovens fazem de quem deva ser considerada “gente decente”, e que para eles está associado, de maneira geral, ao tipo de consumo cultural que cada um faz, no caso, qualquer coisa que não esteja associada ao funk. Independentemente da afinidade musical de cada um, o gênero funk é de fato relacionado, pelo senso comum, ao que é ilícito e esteticamente feio e vulgar. Notamos aqui alguns dos adjetivos que parte da população faz questão de subjetivamente manter distância, e que pode ser o movimento ensaiado por esses jovens, ao negarem aquilo que é a marca cultural das comunidades do Rio de Janeiro, os bailes. A segunda observação importante e que aparece de maneira mais velada nas falas é a presença do crime organizado, manifesto na figura dos milicianos como

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Banda de rock alternativo dos Estados Unidos.

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vimos acima. Os jovens deram pouca visibilidade ao fato e, quando o fizeram, usaram um código difundido entre eles, que refere os milicianos pela sigla “MM’s”, que significa “os Meliantes Milicianos”, mas que faz alusão aos confeitos de chocolate “MM’s”. Podemos dizer que a Carobinha é uma zona sensível da cidade, caracterizada pelo simbolismo negativo da pobreza e da violência, constituindo o que é definido por Ripoll e Veschambre (2005) um espaço de “uso exclusivo não autônomo” (RIPOLL e VESCHAMBRE, 2005, pp. 10-11). Traz intrínseca a violência simbólica exercida pelo grupo criminoso que “legisla” toda e qualquer forma de apropriação material neste lugar. [considerações da autora] Neste momento a filmagem parou e foi retomada somente quando estávamos na Rua do Valão, pelo seu lado direito de quem vem da Avenida Brasil. As meninas pediram para não gravar, pois elas falavam dos MM’s, forma como os jovens da comunidade geralmente se referem aos “Meliantes Milicianos”. Elas indicavam uma área de ocupação recente na comunidade. E eu indaguei: [sic] Glauci: Foi a prefeitura que limpou e organizou tudo [ocupação] [Figura 38]? [risos por entredentes de Juliana] [sic] Juliana: ... Eles é quem tiraram o mato, os MM’s. [sic] Glauci: Carinhoso isso, MM’s. [sic] Juliana: É carinho pra não precisar falar assim num português claro né. Aí eles limparam tudo e mandaram ocupar. [sic] Glauci: Eles que construíram essas casas. [barulho ensurdecedor de serra misturado ao som de um pagode] [sic] Adriana: Não, eles dão o local pra os moradores construir (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

Este é o caráter socialmente arbitrário de uma apropriação em longo prazo e que, em geral, ou a comunidade não percebe diretamente (VESCHAMBRE, 2004, p. 74), ou nada mais é do que o paradigma ético presente nas comunidades emocionais. Aquela espécie de conformismo, do qual fala Maffesoli (2010), entre os membros de uma comunidade que simplesmente “aceitam” os fatos como a “lei do lugar”, e que o diálogo abaixo mostra com clareza. [sic] Franklynn: Posso escrever que falta segurança? [sic] Glauci: Pode... É o que você acha? UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Juliana: Eu acho muito caro a segurança “deles” [milicianos]. [sic] Adriana: 20 Reais! [sic] Glauci: Por mês? [sic] Adriana e Juliana: [em coro] Por semana! [sic] Franklynn: Caraca! Vocês paga? [sic] Juliana: Minha mãe. [sic] Franklynn: Eu não pago não. [sic] Glauci: Só os comerciantes que pagam? [sic] Franklynn: É. [sic] Glauci: 80 Reais por mês? [sic] Juliana: Não. Depende do comércio. Se lucra mais pede mais caro. [sic] Glauci: Como se fosse um shopping?! Condomínio de shopping é assim. [sic] Franklynn: Eles pedem 5 Reais por mês de um maluco que corta cabelo lá na 100 [quadra]. [sic] Juliana: 5 Reais só! (ANEXO 1, QUARTO DIA).

O fato é que a gestão territorial municipal e o que deveria ser uma política habitacional para essa parcela da população não existem verdadeiramente. Constatamos um conformismo que está expresso no fato deles “aceitarem” as imposições dos “MM’s” como última forma para suas vidas, que aponta para a sua baixa estima como cidadãos. Neste sentido, destacamos a marcação de projeção, citada anteriormente, que tem caráter ilegal e transitório e que projeta, por impulso, seus conflitos internos, porém projetando a culpa desses conflitos no outro. Outro aspecto cotidiano assinalado pelas meninas se refere à infraestrutura urbana precária da Carobinha. Gabriela foi quem mais demonstrou incômodo sobre isso, a todo instante motivava esse debate. [considerações da autora] Enquanto isso, Gabriela para pela primeira vez de filmar diretamente as meninas falando, e aponta a câmera para o rio, mostrando que ele estava cheio de mato. Juliana e Adriana percebem e se voltam para Gabriela. [sic] Juliana: Gabriela! pode falar que isso aqui é o piscinão de Ramos. [sic] Adriana: Isso aqui era um rio que agora virou uma serra né. [sic] Juliana: Aí, na moral, não dá nem “pa” vê a água suja mais, só o mato maluco. Tá doido. [sic] Gabriela: Fala que isso é um rio [Figuras 36-37]. [sic] Juliana: Não, isso é um valão... Isso é um valão.

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[sic] Gabriela: Só que não dá pra se vê, por causa que... O mato o cobriu, como pode se vê. [sic] Glauci: Enche? [sic] Gabriela: Enche sim. Depende muito da chuva, se chover muito, muito, muito. [sic] Juliana: Teve uma vez que eu fiquei desesperada, cheia de água no meu pé. [sic] Adriana: Ai que nojo. [sic] Juliana: Foi dessa vez que eu perdi a minha certidão de nascimento original (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

A falta de infraestrutura urbana é um assunto que perpassa o discurso de todos os jovens do Projovem, sejam meninas ou meninos, todos vivenciam a mesma experiência e deixam escapar o quanto é desagradável para a sua rotina e mesmo para a imagem do lugar, que descreve a linguagem da paisagem. As falas das três jovens, Gabriela e as irmãs Juliana e Adriana, são ricas em informações acerca dos problemas infraestruturais, que vão da falta de drenagem dos rios à falta de abastecimento de água, passando por questões habitacionais. Cruzamos então as falas das meninas do segundo dia às falas do percurso comentado feitas por Márcia e as irmãs Milena e Maria, no terceiro dia de campo. [considerações da autora] Gabriela mais uma vez desvia o olhar para uma situação que julgou pertinente mostrar: uma senhora lavando roupa, e que tirava água de um reservatório. [sic] Glauci: Aqui tem água normal? [sic] Juliana: Tem... aí é gente pobre, mas isso é normal. [sic] As irmãs em coro: Olha o barraco [barraco de madeira na comunidade Ecoponto] [Figura 38] (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E). [considerações da autora] Milena, que já está mais distante, para em frente à construção em ruínas e grita para Márcia perguntando o que era aquilo, e Márcia responde: [sic] Márcia: Isso... Se eu não me engano, ia ser um posto [posto de saúde], aí abandonaram a obra [Figura 39]. [sic] Milena: Aí, uma senhora que não tinha casa veio morar aqui. [sic] Márcia: Isso... Mas aí abandonaram a obra, eu não sei o que aconteceu... Aí deu nisso... Olha! Do lado de um colégio, ratos, baratas e cobras. [sic] Milena: Tem gambá, só do grandão, tem que vê. (...) [sic] Maria: Esse lugar deveria ser um posto de saúde e “tá” sendo moradia de pobres, mendigos.

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[sic] Márcia: rsrsrsrs... De pessoas muuuito mal distribuída. Calma aí, calma aí que tem que gravar a estrutura da obra. Caramba! Eu não tinha notado isso, o teto vai cair! Caralhocas! Vamos entrevistar uma moradora da construção abandonada... E olha que o único posto daqui é longe “pa” caraca viu. Cadê a moça que mora por aqui? Uhu, ô de casa? Ô de casa? (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B).

Figura 36: Matagal e lixo à beira do canal que conforma a Avenida Canal 2. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Juliana (02-mai-2012).

Figura 37: Detalhe do leito do canal que conforma a Avenida Canal 2. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Juliana (02-mai-2012).

A casa como espaço material de abrigo é percebida fortemente pelas meninas do grupo. Para elas, de uma forma geral, há os lugares bons dentro da Carobinha e outros que são para os mais pobres. A falta ou a precariedade na conservação das moradias é o reflexo da falta de política habitacional e da má distribuição de renda para esta parcela da população, a que Márcia se referiu acima como “pessoas muito mal distribuídas”. Quanto ao “esqueleto” [Figura 39], a obra abandonada, segundo informações dos adultos seria realmente um posto de saúde, mas, passados quase dez anos, permanece na estrutura, já deteriorada pela ação do tempo. A área é ainda cercada por mato e lixo, mas, na sequência, existe uma praça que é frequentemente citada pelos jovens, principalmente pelos meninos, pois é a única que tem uma quadra de esportes projetada, a Praça do Votorantin. Não podemos deixar de mencionar que a Escola Municipal Casimiro de Abreu também aparece como uma coordenada simbólica, tanto para meninos como para meninas. Evidenciando mais uma vez a importância do debate das estruturas espaciais associadas às significações sociais e culturais do lugar (BAILLY, 1990, p. 266). Neste caso, a escola configura tanto um marco referencial dos jovens, como expressa a imagem e representa simbólica e funcionalmente o ambiente, que é propício à sua UFRJ I FAU I PROURB

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socialização, ou seja, a escola como espaço público interior (SERFATY, 1988, p. 112), significável e gerador de territorialidades entre os jovens, que dela se apropriam ao interagirem suas intencionalidades.

Figura 38: Barracos de madeira no Ecoponto: apropriação de terreno, consentida pelo crime organizado, para habitação. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Juliana (02-mai-2012).

5.3

Figura 39: Ocupação do “esqueleto” no Votorantin: apropriação de construção abandonada pelo poder público, para habitação. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Milena (07-mai-2012).

O território de trocas representado pelos jovens Para Raffestin, o território de trocas não pode ser cartografado na escala do

lugar (1995), trata-se de algo mais amplo, que tende à escala global. Contudo, entendemos que as trocas também se dão nas localidades, pois, como citamos no capítulo 4, elas são igualmente apreensíveis através das sutilezas relacionais. Observamos na escala das localidades a materialização das diferenças socioeconômicas, expressas principalmente pelo poder de compra daqueles que são “incluídos precariamente”203 na relação ampla de trocas. A relação de troca é, então, na escala da localidade uma relação de sujeição àquilo que o sistema impõe como sendo o território possível materialmente, e que frequentemente destoa do território sonhado, vislumbrado em escapes emocionais nos territórios referenciais, sagrados, ou mesmo vividos no cotidiano. Isto é visível neste grupo de jovens, que têm plena consciência do valor de compra dos pequenos objetos que fazem parte do seu cotidiano. [sic] Romário: Mais um pouco a frente tem um negócio ali... É tipo um ponto. É caro pra “caraca” as coisas lá entendeu. Fui pra comprar um negócio ali, um doce, um 203

Cf. MARTINS, J. de S. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

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Real, caro pra “caraca”. Não aconselho ninguém a comprar nada ali (SEGUNDO DIA, ITEM A).

O jovem se referia ao Shopping Avenida [Figura 40] que é mais conhecido como Posto Mendanha e fica exatamente em frente à Avenida Brasil, na entrada da comunidade. Um lugar que pertence ao território cotidiano da Carobinha como referência geográfica, mas que não faz parte do seu cotidiano, mais por ser inacessível economicamente do que por estar geograficamente na sua fronteira física. O doce a um real, que até pode parecer irrisório para nós, deixa claro que estes jovens compreendem qual o seu poder de articulação econômica na sociedade. Esta consciência socioeconômica da realidade do mundo contribui de certa maneira para a consciência de sua identidade em relação ao restante da cidade. Claro que suas rotinas de trocas não se restringem ao interior da comunidade. Principalmente para as meninas, para quem o universo de ofertas é mais interessante fora dos seus territórios cotidianos, que inúmeras vezes se referiam ao centro de Campo Grande como o melhor lugar para comprar roupas. [sic] Juliana: (...) Vou a Campo Grande comprar roupa para a minha filha (...). (ANEXO 2).

Isso demonstra outro fato, que remete à abrangência do território de domínio desses jovens, dada pelo seu poder de deslocamento físico, que em certa medida é determinado pelas relações de trocas. Perguntamos nos “cadernos de vivências urbanas” (ANEXO 2) como, “habitualmente, se deslocavam na cidade”. Pelas respostas, podemos afirmar que seu universo girava ao redor dos bairros de Campo Grande e Bangu, à exceção de Franklynn que tinha um emprego na Imprensa da Cidade204, órgão oficial da municipalidade do Rio de Janeiro que funciona no bairro da zona portuária central da cidade, São Cristóvão

[Figura 41].

Sua atividade estava

vinculada, aparentemente, a algum programa destinado ao jovem trabalhador, mas que ele não quis especificar.

204

O objetivo da Imprensa da Cidade (IC) é a publicação e distribuição do Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro e seus suplementos, bem como executar, privativamente, serviços gráficos para os todos os órgãos e entidades da Administração Direta, Indireta e Fundacional do Município. UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 40: Posto Mendanha na entrada da Carobinha e em frente à Avenida Brasil. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Glauci Coelho (02-ago-2015).

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Figura 41: Camisa do Franklynn por ele mesmo (personalização). Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

Entretanto, basicamente eles estavam inseridos no cotidiano da Carobinha, sendo lá o primeiro lugar em que tomavam contato com o seu poder de consumo, o que, até certo ponto, é indicador das diferenças sociais que perpassam a construção da sociedade contemporânea, fortemente conduzida pelas relações de trocas - o que eles podem e o que os outros podem. Nas palavras da jovem Márcia, as diferenças são expressas pela personalização das residências, destacadas por objetos de consumo vistos pelos jovens como desejáveis para uma boa vida [Figura 42]. [considerações da autora] Mais à frente, Márcia observa que o quilo da batata está R$1,00 exaltando que é o lugar mais barato que ela já viu. Neste momento ela volta o olhar primeiro para o comércio local e depois para as casas. [sic] Márcia: Nossa gente! Essas casas têm TV a cabo. [sic] Márcia: (...) Manicure! Quanto “tá”? Nossa! R$14,00! Caro! Deve ser muito chato morar aqui (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B).

Figura 42: Detalhe da casa com antena de canais de TV: produto de consumo desejado pelos jovens Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Milena (07-mai-2012).

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Figura 43: Detalhe da placa com preços das atividades: território de troca (in)acessível. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Milena (07-mai-2012).

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No momento em que se refere ao conjunto Votorantin como um “lugar chato”205 para viver, a jovem destaca os traços, marcas e presença que caracterizam o ser do outro (VESCHAMBRE, 2004, p. 73), mas que é imaginado em trajetos cognitivos como um possível devir, conforme aprenderam a pensar qualidade de vida associada ao poder de consumo. Isso confirma a apropriação do território de trocas dos jovens como um mecanismo de afirmação identitária operado por projeções dos gostos, valores e normas que indivíduos e grupos idealizam espacialmente (p. 74). Assim, os valores dos objetos de consumo não escapavam aos olhos atentos dos jovens, que distinguiam a todo instante os lugares acessíveis economicamente à parcela da população a que pertenciam. [sic] Juliana: Filma o pão gostoso. [sic] Adriana: Aqui é o mercado, o único mercado aqui da comunidade. [sic] Gabriela: Único mercado da comunidade. [sic] Adriana: Super Rede, barato do seu lado... eheheh! (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

A relação de troca como possibilidade de adquirir algo não é observada somente através daquilo que eles julgam caro ou barato economicamente, mas também do que apontavam possuir, e que estava atrelado aos seus corpos como marcadores de personalização e que os identificava por seus gostos e preferências (VESCHAMBRE, 2004).

Figura 44: Detalhe do mercado Pão Gostoso, ou Super Rede o barato do seu lado. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Adriana (02-mai-2012).

Figura 45: Detalhe do comércio ao longo da estrada da Carobinha entre a av. Brasil e o Pão Gostoso. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Adriana (02-mai-2012).

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Na linguagem de gíria juvenil, e porque não, já na linguagem corrente, quando alguém diz que algo ou alguma situação é “chata”, ele quer dizer exatamente o contrário, que deve ser muito legal ou bom estar naquela situação, ou poder fazer ou ter aquilo a que se refere. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Márcia: (...) Detalhe: a gente tá andando no barro, no barro puro. Pô... Tinha que “tá” de “olympikus” e não de “all star” (...) (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B). [sic] Glauci: mas só tem bondes de meninas. [sic] Juliana: De meninos também. [sic] Adriana: Mas as meninas é que tem mais rivalidade. [sic] Juliana: Tem mais rivalidade... Na hora da dança se acham mais gostosa, o sapato mais alto. [sic] Adriana: Só que eu não preciso de sapato alto né, já sou alta né (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

O interessante é que notamos isso com as falas das meninas sobre os sapatos, reconhecidamente um sonho de consumo feminino, e que cada uma delas, mesmo pertencente a grupos distintos, quer dizer, uma roqueira com o tênis e uma funkeira com o salto alto, julgaram ter valor para a caracterização de suas identidades grupais.

Figura 46: Camisa do Franklynn por ele mesmo. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

Figura 47: Chinelo do Franklynn por ele mesmo. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

Figura 48: Bandeira do time de futebol. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

Figura 49: Camisa do Romário por Franklynn. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

Este tipo de preocupação também se verificou com os meninos, mas, é claro, mais uma vez o foco estava no futebol, nos objetos que remetiam aos seus times de preferência, ou ainda às marcas consumidas por eles. Apropriação não explicitada na UFRJ I FAU I PROURB

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fala, mas pelas fotos, que silenciosamente capturaram de si mesmos e de lugares nos trajetos feitos pela comunidade [Figuras 46-49]. Os territórios de troca são diversos e foram apreendidos na escala local, mas é claro que isso evidencia somente as diferenças socioeconômicas locais. As relações de troca são percebidas, principalmente, pela acessibilidade que cada um ou o grupo tem para poder consumir determinado objeto. No mundo juvenil a visibilidade mais palpável se dá através dos mecanismos de personalização do corpo por produtos de consumo capazes de imprimir, como já nomeado, traços, marcas e a presença (VESCHAMBRE, 2004, p. 73) deste jovem no contexto da sociedade. Consumir tais objetos significa em última instância, para eles, uma forma de afirmação identitária que os torna visíveis ao outro.

5.4

O território referencial representado pelos jovens Talvez esteja no território referencial aquilo que torne a emoção mais visível

em um estudo sobre a apreensão sensível do ambiente, que é a memória. Temos presente, através das considerações tecidas ao longo dos capítulos 1 a 3, que o ser, mesmo não sendo capaz de armazenar toda a sua vasta experiência é capaz de selecionar momentos, instantes experienciais que servirão de subsídio às suas escolhas nos momentos de tensão e reorganização do seu conhecimento sobre o mundo, e que é a emoção acumulada pela experiência, seja ela positiva ou negativa, que irá congelar em nossas memórias os fatos vivenciados como lembranças. Raffestin (1995) afirma, conforme vimos no segundo capítulo, que o território referencial tanto diz respeito à memória de um indivíduo como de um grupo, e que esta é dinâmica, ou seja, pode mudar na medida em que ampliamos as nossas experiências. A questão é que existe um território referencial real e outro que é imaginário. O primeiro diz respeito à materialidade de nossas experiências e se relaciona tanto ao passado como ao presente, enquanto o outro considera a imagem, muitas vezes utópica, que projetamos sobre qualquer fato ou coisa e que incorpora o tempo futuro como possibilidade. Entendendo tal diferença no eixo do tetraglossema que UFRJ I FAU I PROURB

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faz referência a este território, propusemos uma divisão, com a intenção de melhor visualizar as diferenças e/ou similaridades, entre o que é referência real e imaginária. A relação entre presente, passado e futuro como conexões possíveis na construção da memória foi um tema explorado pelo Professor, que insistia na afirmativa que o trabalho de exploração e conhecimento da comunidade era uma pesquisa de resgate e construção da memória da comunidade e deles mesmos. Ele fazia isso usando mecanismos literários ou musicais, mas, raramente, os jovens compreendiam o sentido dos textos lidos. [considerações da autora] (...) o Professor interfere de súbito perguntando para o Franklynn se ele tinha alguma memória sobre o lugar, que respondeu ter muitas. Juliana intervém dizendo que acha memória legal, pois lembra jogo de memória. E a partir daí o Professor começa a discorrer sobre o que é memória: [sic] Professor: Essa questão da memória é interessante porque ela não é só a questão da lembrança, ela é a questão da gente tá registrando, é a questão do registro que a comunidade costuma fazer. É o que a gente tá começando a fazer aqui. É uma palavra política. E vocês sabem que o ser humano é o único animal que faz história, que registra sua memória. Então memória é isso, não só... O que eu lembro? O que eu comi ontem? Não. Eu me lembro da história dos meus ancestrais, da história da minha comunidade. Isso que é importante. [sic] Adriana: Uma coisa que guarda muitas coisas interessantes. [sic] Professor: Tem a ver com autoestima. Vocês lembram o que eu trouxe naquela aula. Eu trouxe máquina de fotografia velha, o que mais que eu trouxe Maria? [sic] Adriana: Celular velho, disco velho. [sic] Professor: LP. [sic] Adriana: Aqueles cartão de computador. [sic] Professor: Disquete. [sic] Professor: Tem mais uma outra coisa que eu trouxe... Fita cassete... Câmera velha. Aquela história que eu contei pra vocês, que a minha esposa e meus filhos se recusaram a me deixar continuar usando aquela máquina, e a máquina tava boa né. [sic] Juliana: tem câmera digital agora pra quê? [sic] Professor: Pois é, olha a diferença, a modernidade. [sic] Gabriela: O tempo é digital agora (ANEXO 1, PRIMEIRO DIA).

Abertamente, o professor parte dos objetos antigos com o intuito de sensibilizar os jovens para o fato de habitarem um lugar construído socialmente e historicamente; porém, o apelo da “modernidade” das novas tecnologias desvioulhes a atenção. Observamos que o aparato digital que levamos constituía algo que

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eles não possuíam e nem tinham contato em seu cotidiano, mas conheciam e, por isso, foram seduzidos por esses objetos sonhados e que integram o território referencial imaginário atravessadamente ao de trocas. 5.4.1 O território referencial real O cotidiano dos jovens e de qualquer um está impregnado dessas referências, e para os jovens da Carobinha não é diferente. Nada mais significativo do que a fala de Márcia, para iniciar as observações sobre a apreensão emocional do território referencial real. Esta jovem tem com alguns espaços da comunidade uma forte ligação emocional, que ela busca a todo instante, em trajetos cognitivos às suas lembranças, para reconstruir positivamente a imagem do lugar e de si mesma. [sic] Márcia: (...) Ih! “a lá” passei anos da minha vida nessa rua... Meu antigo colégio, tipo... Meu primeiro colégio. [sic] Professor: É aqui? [sic] Márcia: É aqui, a Casa da Criança [Escola Municipal Professora Enyr Portilho Avellar]. [sic] Milena: Isso é uma creche. [sic] Márcia: É essa aqui! A Casa da Criança. Eu não tive creche, eu vim direto “pra” cá. Geeeente! Quanto tempo eu não entro nessa casinha [casinha de bonecas]. [considerações da autora] Márcia começa a filmar o pátio da Casa da Criança por cima do muro com tom nostálgico. [sic] Márcia: Quanto tempo eu não entro nesse colégio. Eu estudei aí há 10 anos. [barulho das crianças no horário do recreio – lanche] [considerações da autora] Márcia continua filmando o pátio da escola enquanto o grupo segue.

O “êxtase” em que esta jovem entrou foi impressionante. De fato, a “Casa da Criança”

[Figura 50]

faz parte da memória desses jovens como o primeiro ambiente

educacional fora de suas casas com o qual tomaram contato, ou seja, a partir de onde seus mundos começaram a se expandir. É sabido que o sentido de território se amplia à medida que as crianças crescem. (...) à medida que cresce, ela se relaciona a localidades e aos elementos presentes no espaço, até a ideia de lugar tornar-se mais específica (TUAN, 1983). Conforme a ideia de lugar amplia o pertencimento da criança, marca o seu território de domínio, ao transformar o ambiente vivido em espaço íntimo, isto é, lugar [marcado pelas relações afetivas] (COELHO, 2007, pp. 177-178). UFRJ I FAU I PROURB

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Comprovamos que aqueles jovens mantêm uma relação especialmente positiva com as escolas do lugar. Tendo um verdadeiro sentido de posse desses ambientes. Os territórios de domínio de sua infância continuavam a se expandir a partir da escola, pois aqueles eram os seus marcos referencias de partida para o entendimento da estrutura física do lugar, e ainda, a coordenada simbólica mais forte, transmitida ao outro, e que representava uma etapa importante de suas vidas. Confirmando a escola como ambiente de múltiplas territorialidades, um espaço público interior significado pela juventude, desde a sua infância, pelas emoções guardadas na memória. [sic] Léo: (...) Aqui é uma escola? [sic] Igor: Não! É uma creche [Casa da Criança]. [considerações da autora] O menino então, se apoia no muro da creche e filma o pátio de brinquedos que estava vazio. Ele desce e se volta para filmar a Márcia, outra jovem que filmava em detalhes a creche. [sic] Igor: Ô! Não filma minha escola não... Não filma minha escola não [Escola Municipal Cora Coralina]. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM A).

Não podemos afirmar que tal relação com a escola ocorra com todos os jovens, mas podemos especular que para jovens que vivenciam ambientes de precariedade infraestrutural urbana, declarado por eles mesmos como carentes de espaços de lazer, o ambiente escolar represente uma das únicas alternativas de espaço público possível à socialização entre jovens de diversas tribos. [sic] Professor: Então vamos até ali pegar a escola [Escola Municipal Casimiro de Abreu] e depois a gente volta. [sic] Romário: Beleza. (...) [sic] Léo: Vou entrar na escola “pa” dá uns beijinhos nas gatinhas... Se tiver também. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM A).

Márcia foi quem mais demonstrou a força da escola como guardiã de lembranças positivas. Esta jovem, ao final da caminhada, retornou à escola de sua infância e, transgredindo a regra acordada entre todos, filmou as crianças sem autorização. A emoção que a movia nesta direção estava notoriamente vinculada à sensação de segurança que se tem ao pertencer e ser aceita em um determinado grupo, e que ela deve ter experimentado na infância mais do que na juventude. UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 50: Escola Municipal Professora Enyr Portilho Avellar: pátio de brincar. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Maria (07-mai-2012).

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Figura 51: Escola Municipal Casimiro de Abreu: detalhe da fachada. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Maria (07-mai-2012).

[considerações da autora] Márcia passa em frente à Casa da Criança no momento da saída e fala que sente saudade de ser daquele tamaninho. Ela se debruça no muro e filma as crianças no parquinho de brinquedos. [sic] Márcia: Olha que graça! Cara que bonitinho... Oiiii... Tudo bem? Oi meninho, qual é o seu nome? [sic] Criança 1 no pátio: Luiz [acena com uma das mãos]. [sic] Márcia: Oi Luiz, eu sou a Márcia, tudo bem? Manda um beijo “pra” câmera. Qual o seu nome menininho? [sic] Criança 2 no pátio: Wesley. [sic] Márcia: Wesley manda um beijo “pra” câmera. [Criança 2 no pátio manda um beijo] [sic] Márcia: Ah! “Brigada” amor. Sabe que eu já estudei aqui. [sic] Criança 2 no pátio: Aqui? [sic] Márcia: Na época tinha uma piscina... É... Eu já fui pequenininha. [sic] Criança 2 no pátio: Você era bebezinha? [sic] Márcia: Não bebezinha. [sic] Criança 2 no pátio: Aqui tem de creche... [sic] Márcia: É, mas eu não estudava aqui quando era creche não. [sic] Criança 3 no pátio: Mas aqui... Tem peque...nininho aqui. [sic] Márcia: É... Qual o seu nome baixinha? [sic] Criança 3 no pátio: Maria Luísa. [sic] Márcia: Ôooo Maria Luísa, tudo bem? [considerações da autora] A professora das crianças chega ao pátio e as repreende. Márcia desce do muro e sai correndo. Igor e Romário chegam e chamam a atenção de Márcia dizendo que não pode filmar as crianças dentro da escola. Ela concorda desligando a filmadora, e finalmente seguem para o lanche. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM A).

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Conjecturamos que a referência emocional que o ambiente é capaz de denotar é extremamente importante para a formação dos jovens e do ser em geral, pois representa o habitar ou estar no mundo, no sentido que apontou Bailly (1990) no capítulo 2, que é o de constituir raízes e ter domínio sobre o lugar, e que este estar no mundo é facilitado exatamente pela existência de marcos referenciais e de coordenadas simbólicas, marcadores de nossas representações, que localizamos ao longo dos processos de socialização e construção de conhecimento, aos quais nos reportamos através da memória. Contudo, as memórias não são sempre positivas. No caso específico da Carobinha existe a memória negativa, impregnada nas lembranças dos moradores que vivenciaram a presença do tráfico de drogas na comunidade. Tal presença era marcada por atos violentos que, nos trajetos cognitivos dos moradores, operam diferentemente da violência simbólica praticada pelos milicianos. Esta última representa para os moradores um paradigma ético e de costume (MAFFESOLI, 2010), em que observamos uma espécie de conformismo entre quem mora lá. Já a violência praticada pelo tráfico de drogas é a do terror imediato, vivenciado pelas pessoas, de que a qualquer momento possa ocorrer um tiroteio ou um dos meninos do tráfico matar alguém “sem justificativa”. Esta é uma relação complexa e difícil de compreender por quem não está submetido à dinâmica interna do lugar, pois as duas formas de “poder”, seja dos milicianos ou dos traficantes, constituem crime, não podem existir, e os moradores compreendem isto. Contudo, principalmente os adultos, se conformam com o fato de que o Estado, enquanto verdadeiro poder gestor instituído, não vai interferir nas rotinas desses lugares, e quando o faz é porque esta comunidade é vizinha a algum equipamento público ou tem visibilidade para além das fronteiras do município, ou ainda, porque esta comunidade está localizada em área de interesse especulativo do setor privado (Cf. ANEXO 1, SEXTO DIA). Fato é que, para o habitante comum, que não é “intelectualizado” pela academia ou por outro tipo de instituição, a simples possibilidade de retorno da presença do tráfico de drogas representa o terror, por isso é melhor ficar como está, UFRJ I FAU I PROURB

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pois, na percepção dessas pessoas, se os milicianos pretenderem matar alguém, vão, antes, lhe fazer chegar o recado para que mude de comportamento. Esse pensamento, que é corrente entre parte dos adultos, também é compartilhado pela maioria dos jovens. Já deixamos claro, em declarações anteriores, a revolta que alguns sentem com relação à presença da milícia, porém, outros entendem exatamente como colocado acima. [sic] Igor: Tá doido cara!? Tu filmar a cara do moto-táxi!? (falou para o Franklynn que fotografava) Não pode não cara, por causa da polícia com a Rocinha devolve tudo pra cá cara. [sic] Franklynn: Eu tava gravando “os pessoal”... Não tava gravando “as pessoas” não. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM C).

Apesar dos jovens não compartilharem da mesma opinião sobre a presença e o poder do crime organizado na comunidade, uma coisa é ponto comum entre eles o lugar que servia de base para o aquartelamento dos traficantes é definitivamente o que de pior existe dentro da Carobinha. A famosa “Quadra 100”, desde os nossos primeiros contatos, foi descrita pelos jovens como lugar que não presta por ser sinônimo de bandidagem, ainda que o tráfico de drogas não estivesse na Carobinha, no momento da pesquisa. [sic] Glauci: (...) Temos aqui a farmácia. Só tem essa!? [sic] Adriana: Não, tem essa, uma lá na frente e outra lá no final. [sic] Gabriela: Não, tem uma perto de onde eu moro que é na quadra 100... Perto, eu não moro na quadra 100... Graças a Deus, Deus me livrou desse mal! [sic] Glauci: O que é que tem na quadra 100? [sic] Gabriela: Muita coisa que não presta. [sic] Glauci: E o que é coisa que não presta? [sic] Gabriela: Porque, é... Quando era bandidagem aqui, aí... [sic] Juliana: O pessoal só ficava lá. [sic] Gabriela: É... o pessoal só ficava lá, então a quadra 100 é tida como favela, como coisa que não presta, como lugar que não presta. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

A maioria desses jovens eram crianças, entre oito e dez anos, quando os traficantes foram expulsos definitivamente pelos milicianos, mas o sentido pejorativo que ficou impregnado na “Quadra 100” é forte o suficiente para eles estereotiparem quem mora no lugar ou próximo como usuário de drogas ou bandido. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Matheus: Olha a casa do cracolândia. [sic] Márcia: Quase a minha casa... Do ladinho pô... Não é não pô? [sic] Matheus: [cracolândia] É na quadra 99. [sic] Márcia: Não, a quadra 99 só tem cra... Cracudo né!? [sic] Maria: E a quadra 100, rsrsrs? [sic] Milena: kkkkkk. [sic] Márcia: Evolução de cracudo é o que?! [sic] Milena: Óxi206... “oxsudo” né. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B).

Figura 52: Quadra “100”: antigo ponto do tráfico. Foto: Denise (30-set-2012).

Figura 53: Quadra “100”: detalhe do calçamento. Foto: Denise (30-set-2012).

Figura 54: Quadra “100”: moradora lavando a rua. Foto: Denise (30-set-2012).

Figura 55: Quadra “100”: crianças brincando. Foto: Denise (30-set-2012).

De alguma forma, entre esses jovens o conceito de “gente decente” está relacionado à proximidade ou não ao que eles chamam de “favela”, que é a “Quadra 100” [Figura 69]. Para ser decente a pessoa precisa se manter distante da “favela” que é sinônimo, para eles, de tráfico de drogas. Embora a distância geográfica em relação à Avenida Brasil, os jovens reconhecem que a “Quadra 100” não é o “fim do mundo”

206 “(...)

Óxi ou oxidado, uma droga parecida com o crack, só que mais devastadora. (...) Enquanto o crack é obtido a partir da mistura e queima da pasta base com bicarbonato de sódio e amoníaco, no óxi são utilizados cal virgem e algum combustível, como querosene, gasolina e até água de bateria, substâncias que barateiam o custo do entorpecente” (GUILHERME BALZA, UOL Notícias, online, 30/04/2011). UFRJ I FAU I PROURB

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por estar afastada, mas por representar aquilo que eles querem manter longe de suas identidades. Tanto é assim, que este lugar é visto como não pertencente à Carobinha dos jovens. [sic] Juliana: Não é o fim de mundo também não. É porque lá é um lugar muito afastado. [sic] Franklynn: É porque os pessoal de lá é mais do que antipático. Acho que ninguém gosta dos pessoal de lá. [sic] Glauci: Mas por quê? Eles são diferentes? [sic] Franklynn: Não... Eles são do lado ruim da população. [sic] Glauci: Eu não consegui entender esse “lado ruim da população”. [sic] Professor: Vamos lá então. [sic] Juliana: Eu não vou. [sic] Professor: Porque tu não vai? [sic] Juliana: Porque eu não gosto da 100. É muito longe. [sic] Adriana: Eu não conheço... Eu só fui lá duas vezes com o pessoal da escola de ônibus. [sic] Glauci: É um lugar tão péssimo assim. [sic] Franklynn: Não é um lugar péssimo. É que ninguém gosta de lá entendeu. [sic] Glauci: Não entendi. [sic] Gabriela: Ah! Ninguém sabe. Por isso que todo mundo fala: Ah, você mora na 100. Eu falo, eu não moro na 100, eu falo que eu moro depois. [sic] Juliana: É porque tem uma fama muito ruim da época dos bandidos aqui [tráfico de drogas]. [sic] Gabriela: É, uma fama muito ruim. [sic] Glauci: Então vocês não vão por conta da fama? [sic] Juliana: Não, porque eu não gosto de lá mesmo. [sic] Franklynn: Os moleques de lá são feios, gostam de arrumar briga. [sic] Glauci: Hoje não tem mais tráfico... Mas isso é uma quadra só ou é uma região? [sic] Gabriela: É como se fosse a Carobinha, uma região que deram o nome de quadra 100. (ANEXO 1, QUARTO DIA).

Quando situamos geograficamente a “Quadra 100” em relação ao trajeto escolhido pelos jovens [Figura 69], constatamos que ela está no lado oposto ao que eles nos mostraram como sendo a Carobinha. Percebemos, então, que o que eles nos apresentaram como Carobinha foi na realidade o Conjunto Votorantin e parte da rua principal da Carobinha. Tivemos que solicitar um adulto para nos acompanhar até a “Quadra 100” para certificarmos visualmente o ambiente que era negativamente UFRJ I FAU I PROURB

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descrito pelos jovens, e verificamos que tanto a sua linguagem da paisagem quanto a da territorialidade, elas são perfeitamente legíveis através do contexto da comunidade. O ambiente guarda, portanto, somente lembranças negativas desse território referencial real. 5.4.2 Território referencial imaginário Mas existe ainda o território referencial imaginário, ou seja, aquele que constitui uma utopia, uma fantasia, ou um símbolo externo apropriado pelos jovens para comparar, descrever o lugar, ou ampliar seus territórios. Este se tornou perceptível, primeiramente, através da fala de um dos meninos, o Romário que inicia sua descrição da comunidade comparando-a ao bairro de Copacabana na Cidade do Rio de Janeiro. É lógico que ele faz isso de forma sarcástica e deixa bem claro que os ares de Copacabana só existem na entrada da comunidade. [sic] Romário: Aí ó os carros passando, ponto de bicicleta, que aqui é uma comunidade. Isso aqui não é uma favela não. (...). [sic] Romário: (...) Olha os coqueiros, que lindo! “Caraca”! Parece Copacabana né, massa! (...). (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM A).

A tentativa de evidenciar que ali era uma comunidade e não favela estava visível a partir do entendimento de que comunidade é onde não acontece mais o tráfico de drogas, e agora, também, através da identificação de áreas vegetadas, especificamente com palmáceas, e mobiliário urbano como o bicicletário [Figuras 56-57], remetendo a uma linguagem da paisagem que não lhes pertence de fato, mas que se coloca como um devir sonhado pelos jovens. Uma imagem idealizada de cidade que fica cada vez mais distante à medida que adentramos pelas ruas da Carobinha. A representação dominante na interpretação dos jovens é a da degradação ambiental, expressa na ideia do abandono sociopolítico, quando reconhecem habitar um lugar precário de infraestrutura. O trajeto cognitivo percorrido, ao se reportarem aos espaços urbanos que denotam sofisticação como expressão de “bem viver”, ocorria em um sentido que lhes permitia a comparação e o questionamento subliminar do por que eles serem privados do que era entendido como bom para viver. UFRJ I FAU I PROURB

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Figura 56: Palmeiras na entrada da Carobinha que remetem à praia de Copacabana. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Glauci Coelho (02-mai-2012).

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Figura 57: Bicicletário improvisado na passarela que remete a ideia de boa mobilidade. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Glauci Coelho (02-mai-2012).

[sic] Romário: Olha a rua gente! Olha o cenário! Só Deus na causa. [considerações da autora] Referia-se a Rua Dália que não é asfaltada e cheia de poças d’água acumuladas nos buracos feitos pelo trânsito de veículos. [sic] Romário: Ôôôô... Uma imagem dessas! Nem quero ir a Paris mais. (...) [sic] Romário: Na zona sul não tem isso, olha o estado [rua de terra com poças d’água]. [sic] Romário: Isso aí a rua... Situação precária... Nenhuma ajuda governamental... só querem saber de ganhar em cima do povo... Aí o que acontece ó óó... Essa é a pura realidade. Vê se o pessoal na zona sul tem isso. Não tem pô... Não tem. É só aqui, só na zona oeste, na zona norte... só nessas regiões aí. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Esses jovens demonstraram ter pleno domínio das territorialidades que conformam a cidade do Rio de Janeiro, e sabem situar suas identidades através da leitura da estrutura que caracteriza a cidade, zonas sul, norte e oeste. Com um olhar crítico da linguagem da paisagem, que é consentida a uns em detrimento de outros, as relações entre os eixos, os limites físicos percebidos e os marcos referencias se desvelam no (re)desenho dialógico de suas identidades no território referencial que transita entre o real e o imaginário. Outro aspecto que não podemos deixar de fora é o fato de que, embora localizados fisicamente ao lado do Parque Municipal da Serra do Mendanha somente se apropriarem do espaço imaginariamente. Vale destacar que o parque integra a Área de Preservação Ambiental (APA) Gericinó-Mendanha apontado, por quem mora na região de Campo Grande, como um lugar violento, onde somente existem pessoas

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usando drogas. Além deste aspecto “violento”, os jovens acrescentam ser o parque muito distante.

Figura 58: Sede do Parque Municipal do Mendanha. Fonte: http://www.panoramio.com/photo/1852138 Foto: Rcandre (15-mar-2007).

Figura 59: Parque Municipal do Mendanha. Fonte: http://www.panoramio.com/photo/47033825 Foto: Thiago Vieira (24-jan-2011).

[considerações da autora] Demos uma pausa na conversa para Adriana entrar numa loja de roupas, e eu me voltei para o Parque Municipal da Serra do Mendanha e perguntei se seguindo direto nós chegaríamos lá. Foi quando a Gabriela rompeu seu silêncio e entrou na conversa. [sic] Gabriela: Não! O Parque do Mendanha tem que pegar a estrada do Guandu direto. [sic] Adriana: E tem que ir de Kombi né. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Não existe relação desses jovens com o rico ambiente natural propiciado pelo Parque Municipal da Serra do Mendanha [Figuras 58-59]. Não só não o conhecem direito, como não o identificam enquanto território cotidiano e não o relacionam com a estrutura da Carobinha. É um mundo à parte e cercado de estórias míticas, que eles entendem como verdade, e, talvez, por isso não se preocupam em dele se apropriar. Um lugar que, pelos aspectos naturais da vegetação exuberante e das belas cachoeiras, poderia subverter a imagem de precariedade da Carobinha. [considerações da autora] Márcia, a menina que estava filmando, se aproximou dos meninos e perguntou o que era aquilo [uma construção antiga] dentro do Parque do Mendanha. [sic] Léo: Aquilo lá é de plantação. [sic] Márcia: É um colégio... Não! É um colégio. [sic] Léo: Aquilo é uma casa antiga, não é um colégio não... Aquilo é a casa dos “português” cara. [sic] Márcia: Que português gente! [sic] Léo: Tem português que tem plantação aí em cima aí cara! [sic] Igor: Pergunta “o” Frank... Aquilo ali é um ex-presídio.

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[sic] Léo: Tem alguns “português” aqui que... [sic] Igor: Aquilo é um ex-presídio... Aquilo é abandonado. [sic] Léo: ... Tem plantação de chuchu. [sic] Léo: Ah! Presídio! [num tom debochado]. [sic] Romário: Aquilo ali é um cabaré. (...) [considerações da autora] Os meninos se aproximaram das meninas enquanto eu indagava sobre o parque do Mendanha. [sic] Márcia: Parque do Mendanha é para lá [lado direito], lá é a Serrinha. [sic] Léo: Parque do Mendanha fica ali assim ô. [sic] Igor: Mas o Parque do Mendanha professora, não sei se a senhora já foi lá, mas pô... [sic] Léo: Fica a leste da serra. [sic] Igor: ... Muito feio... Lá é muito feio. Lá ficam uns maluco lá que anda em cima das nuvens só esperando o cheiro da erva. Lá tem segurança, mas não vale de nada. (...) [sic] Igor: Fala que não pode tomar banho naquela cachoeirinha lá, e neguinho toma. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

O mais interessante não é que eles não se apropriem do Parque do Mendanha, mas se apropriarem simbolicamente da estátua do Cristo Redentor, que não conhecem presencialmente, e das praias da cidade a que raramente vão, e que estão a cerca de 50 quilômetros de distância, e não guardam nenhuma relação com a ambiência da Carobinha. Quando perguntamos nos “Cadernos de Vivências Urbanas”, “qual a imagem que melhor representa a Cidade do Rio de Janeiro”, e “quais os espaços para lazer que você usa na cidade”? Eles foram quase unânimes em dizer que a imagem da cidade era o Cristo Redentor e seus espaços de lazer na cidade eram as praias [Tabela 7].

[sic] Franklynn: O Cristo Redentor e as praias do meu Rio são as melhores representações de Rio de Janeiro. (ANEXO 2).

Essa é uma clara constatação da força das características simbólicas de um lugar contidas nos seus monumentos - jovens que se sentem pertencentes e perfeitamente integrados ao cotidiano da cidade em que vivem simplesmente pela apropriação coletiva de um território referencial, no caso uma escultura que UFRJ I FAU I PROURB

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representa a imagem da cidade, da qual eles não se apropriaram presencialmente. Lembramos aqui a afirmação de Veschambre (2004) de que o que está em jogo neste processo que valoriza a identidade coletiva é a existência de um grupo social através da sua visibilidade para além dele, ou seja, um movimento que identifica uma comunidade emocional nos termos definidos por Maffesoli (2010). Isto acontece ainda que os jovens compreendam que, no que tange às condições de infraestrutura dos territórios por eles apropriados cotidianamente, estas divirjam estruturalmente daqueles territórios relacionados aos símbolos por eles identificados como seus. Isto reafirma as considerações feitas no capítulo 2 de que o domínio simbólico de um território independe do contato material proporcionado pela linguagem da paisagem apropriada visualmente. Estes jovens se identificam com objetos e lugares que não desfrutam de fato, mas que, por transmissão cultural, aprenderam que lhes pertencem. Tabela 7: Elementos exteriores que estruturam a Cidade do Rio de Janeiro nas representações dos jovens: marcos e coordenadas simbólicas.

Figura 60: Desenho da Juliana em maio de 2012: Cristo Redentor olhando para o mar. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 61: Desenho da Gabriela em maio de 2012: Cristo Redentor em frente a uma trave de futebol. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 62: Desenho do Igor em maio de 2012: as praias do “seu” Rio de Janeiro. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 63: Desenho da Adriana em maio de 2012: Cristo Redentor no alto da colina. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

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5.5

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O território sagrado representado pelos jovens O território sagrado não está circunscrito aos limites físicos, mas,

principalmente, aos simbólicos e se expressa através das falas dos jovens. Vimos no capítulo 2, com Raffestin, que a importância deste território se deve à sua capacidade de organizar o real pelo abstrato. Constitui-se basicamente no pensamento simbológico/mitológico/mágico (MORIN, 1999), onde dificilmente se transgride algo, sob a pena da punição. Conjecturamos que, no universo específico desses jovens, o sagrado surge como uma via para explicar as adversidades infraestruturais à que estão submetidas suas vidas. Frequentemente, eles se reportavam a “Deus” como único capaz de dar respostas ao estado de abandono governamental, pois, apesar do abandono material, eles têm o amparo sagrado que os conforta. [sic] Romário: Olha o que o Estado faz conosco... Judia de nós, mas nós se vira com que nós temos né... Olha isso, olha a rua... olha... Só Jesus na causa! Isso aqui é a ponte, ponte improvisada que os moradores fizeram, entendeu? Sem ajuda de ninguém, ninguém da prefeitura veio aqui e deu nada. Foi os próprios moradores que fizeram. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D). [sic] Glauci: (...) Temos aqui a farmácia. Só tem essa!? [sic] Adriana: Não, tem essa, uma lá na frente e outra lá no final. [sic] Gabriela: Não, tem uma perto de onde eu moro que é na quadra 100... Perto, eu não moro na quadra 100... Graças a Deus, Deus me livrou desse mal! (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

Isto confirma a função do mágico como possibilidade de o cosmo atuar “divinamente” transformando o mundo real em que vivem (capítulo 1). Este recurso ao sagrado funciona como uma espécie de escape, e principalmente, como apontou Morin (1999), relaciona-se à ideia de troca, ou seja, cria um território simbólico de troca pelo sacrifício e pela oferta de salvação de uma realidade que, segundo os jovens, “só Deus” é capaz de proporcionar. Outro aspecto importante a considerar é que esses jovens estão imersos numa espécie de conformismo, na medida em que aceitam os fatos que sustentam a ética comunitária (MAFFESOLI, 2010) e movem o lugar. Com exceção das jovens

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Adriana e Juliana, e do Professor, todos os outros informantes faziam parte de congregações evangélicas ou católica, e, para eles, evocar o sagrado na figura de “Deus” é também um recurso corrente. Entretanto, o que destacamos é o “estarjunto solidário” que, amparado pelo sagrado, os torna fortes para tomar a iniciativa, eles próprios, de transformar os aspectos negativos do ambiente. [sic] Romário: Olha só essa rua também... Só Jesus! Essa aqui até tá boa! Dá pra andar. Tem ver aquela que nós temos que desviar. Essa aqui é o que povo fez, entendeu. O povo tirou do bolso e comprou cascalho de asfalto e teve que colocar, e não teve ajuda nenhuma. A própria comunidade... Olha o pessoal ali [amigos] “tamu junto” é isso aí. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Quanto à identificação da presença material que delimita territórios sagrados, esta ficou restrita a parcos comentários de que no lugar existe uma enormidade de igrejas e centros de candomblé. [sic] Adriana: (...) Onde eu moro tem muitas igrejas evangélicas, muitos centros de macumba (...). (ANEXO 2). [sic] Gabriela: Aqui é um lugar muito engraçado. Aqui o que tem de centro de macumba, tem de igreja... É igual. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM E).

O maior preocupado em tornar visível a quantidade de igrejas era o Professor, que a todo instante, nas caminhadas, solicitava aos jovens que as filmassem. Isto, na nossa percepção, porque, sendo ele praticante do candomblé, a proliferação de recintos pentecostais chama mais sua atenção que a dos jovens. [sic] Igor: Ô Franklynn... Qual o nome desse campo? [considerações da autora] Foi quando o Professor observou para não deixar de filmar a igreja Assembleia de Deus em frente ao campo. [sic] Igor: Gravando (referindo-se à igreja). (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Para os jovens em geral, as igrejas representavam mais uma possibilidade de espaço de lazer e uma espécie diferente de cultura. Já mencionamos, atestado por eles, a carência de espaços e atividades de lazer, nesse sentido, o território sagrado, além do ambiente escolar, configura-se como uma alternativa para explorarem suas relações de sociabilidade, o que amplia também o conhecimento do real. [sic] Romário: Olha isso aí ó... Nós temos cultura, olha nossa igreja (Assembleia de Deus)... Não é a minha que eu congrego, mas pô... É uma igreja... Aí ó, pouca

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vergonha (a rua esburacada), olha a rua, olha a situação. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

Tanto o sagrado é sinônimo de cultura, para eles, que um dos jovens foi capaz de identificar que os trajes usados pelo professor o personalizavam (VESCHAMBRE, 2004), dizendo-se (o menino) pertencer à outra cultura, mas que ele tolerava, talvez pela “autoridade” do professor. [sic] Romário: Ó! Um funk esperto! Nada contra, eu sou cristão, sou evangélico, mas pô é cultura daqui, o que é que eu posso fazer. Olha o “cocô” na rua... Esse povo é fogo. Olha o bonezinho207 do “Prof” Mané... Cultura dele ora, isso é cultura. É uma cultura feia, mas... Nada contra né... É isso aí, “tamu junto”... (...). (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

O território sagrado, que compõe o tretraglossema proposto por Raffestin (1995) somado aos territórios cotidiano, de troca e referencial, é capaz de dar visibilidade à amplitude das relações experimentadas pelos jovens com os outros e com os espaços urbanos. O sagrado desponta como um amparo às emoções desses jovens e como um espaço complementar às extensões interacionais de suas vidas. Neste território, tais jovens tanto reivindicam suas necessidades como ancoram suas identidades.

Figura 64: Igreja evangélica “Deus é Amor” no Conjunto Votorantin: espaços cada vez mais observados em áreas com falta de infraestrutura. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto:Franklynn (02-mai-2012).

Figura 65: O filá do Professor capturado durante o percurso comentado: cultura tolerada pelos jovens pela presença do professor como autoridade. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Franklynn (02-mai-2012).

[sic] Gabriela: [♪] vote em Cristo, para presidente da sua vida208... Falta lazer. (ANEXO 1, QUARTO DIA).

207

Gorro nigeriano conhecido como filá e que compõe a indumentária do homem nigeriano. Essa designação pode variar para Aso Oke (pronuncia-se axóokê) se for confeccionado com o tecido do mesmo nome. 208 Música chamada “Vote em Cristo” de Lito Atalaia e Provérbio X. Interpretada pelo grupo musical de Rap Cristão Provérbio-X. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Romário: Aí ó os carros passando, ponto de bicicleta, que aqui é uma comunidade. Isso aqui não é uma favela não. Olha o pessoal morador da comunidade, trabalhador é isso aí. Fé em Deus que é tudo nosso. (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM A). [sic] Milena: Vai, vai, eu sou o Cristo Redentor... Continua me fotografando. (ANEXO 1, TERCEIRO DIA, ITEM B).

Figura 66: Milena sendo fotografada por Maria (sua irmã), enquanto simula ser a imagem do Cristo Redentor. Ao fundo, Mácia filmando a perfomance de Milena. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Maria (07-mai-2012).

Figura 67: Desenho da Milena em maio de 2012: Cristo Redentor no alto da colina. “[SIC] O Cristo Redentor porque ele que representa a parte mais forte do Rio de Janeiro”. Fonte: Arquivo pessoal da autora (ANEXO 2).

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Tabela 8: Elementos de construção das representações dos jovens: estruturas espaciais do espaço urbano. UFRJ I FAU I PROURB

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Tabela 9: Elementos de construção das representações dos jovens: significações do espaço urbano (1/2).

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Tabela 10: Elementos de construção das representações dos jovens: significações do espaço urbano (2/2).

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Figura 68: Mapa de localização da Carobinha com os percursos comentados pelos jovens. Fonte das Informações: Anexos 1 e 2. Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 69: Cruzamento dos percursos comentados com os marcos referenciados pelos jovens na Carobinha. Fonte das Informações: Anexos 1 e 2. Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004).

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Figura 70: Zonas que influênciam a construção do conhecimento emocional sobre cidade, a partir das apropriações materiais e imaginárias reveladas pelos trajetos físicos e cognitivos dos jovens do Projovem Carobinha. Fonte das Informações: Anexos 1 e 2. Fonte da Imagem: Planta Cadastral (Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2004). UFRJ I FAU I PROURB

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CONSIDERAÇÕES FINAIS CIDADE EMOÇÃO: O VER E O VIVER NAS REPRESENTAÇÕES URBANAS DE UM GRUPO DE JOVENS DO RIO DE JANEIRO Buscamos neste trabalho demonstrar que a cidade é um objeto de conhecimento que se constitui nas relações sócio-históricas (MORIN, 1999; VIGOTSKI, 1998). Por isso possui uma dimensão de compreensão que é apresentada e outra que é representada, sendo ambas legíveis através da linguagem da paisagem e da territorialidade, conforme apontou Raffestin (1977, 1995). Nós também consideramos o aspecto emocional, presente na construção do conhecimento sóciohistórico, pois a emoção está na base do estar-junto solidário em torno de um objetivo comum; no momento em que grupos sociais se solidarizam ao redor de um discurso, conformam comunidades emocionais (MAFFESOLI, 2010). As comunidades emocionais são movidas por intencionalidades e impulsionadas pelo desejo de existência. Nesse mover-se das intenções, as relações de construção das identidades simbolizam os espaços da cidade delimitando as territorialidades dos diferentes grupos. Esse movimento torna visível, por representações, as identidades comunitárias compostas por subjetividades diversas que se integram à estrutura social a que pertencem. A emoção desponta então como uma categoria de análise que está diretamente ligada às tomadas de decisões que estão ancoradas em nossas experiências. Ao decidir sobre algo, buscamos referências visuais e vivenciais na memória para auxiliar em nossos trajetos físicos e imaginários209, que concorrem para territorializar nossas identidades. Acreditamos que nossas memórias evocam lembranças, que tanto podem ter conosco uma relação positiva como negativa. E isto interfere em certa medida na constituição das emoções que irão influenciar aquilo que apresentamos e que

209

Cf. Bailly, 1985; Prigogine, 2002.

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representamos sobre o real, no nosso caso, a cidade através do olhar e da experimentação de um grupo de jovens da cidade do Rio de janeiro. Entendendo que a emoção cumpre um papel preponderante no que tange às nossas apresentações e representações, podemos afirmar que o conhecimento, além de cultural e socialmente construído, é emocional na medida em que eco-autoorganiza nossas identidades. (...) a máquina viva auto-organiza-se. [§] Ao mesmo tempo em que a máquina viva situa-se num meio que lhe é exterior, ela contém, de certa maneira, esse meio no interior do qual se situa. Com efeito, mesmo sendo singular e autônoma, a autoorganização viva integra a ordem e a organização do seu meio, a “eco-organização”, e constitui na realidade uma eco-auto-organização (MORIN, 1999, p. 51).

Edificar esse conhecer é, assim, um processo interacional que transforma o pensamento reflexivo a partir do momento em que tomamos contato com o objeto de conhecimento e o vivenciamos. No nosso caso, fizemos uma breve exploração sobre as impressões que o território urbano pode deixar nas lembranças de um grupo de jovens sujeitos a uma ambiência que engloba aspectos de pobreza, tais como a falta de infraestrutura urbana e a falta de legalidade na posse do território, também submetido ao controle do crime organizado, onde estas impressões são constatadas em falas carregadas de emoção. Consideramos, ainda, a ideia de tribo debatida por Maffesoli, na medida em que nossos jovens constituíam um microgrupo (2010, p. 31), pois ela nos permite desvincular a individualização, qual seja, a representação do real como pura subjetividade do eu, sem desconsiderar que ela exista. Colocamos a possibilidade da desinvidualização das subjetividades ao redor de um tema ou objetivo agregador de intencionalidades. Conclusivamente, é importante balizar que os espaços da cidade, como os percebemos e compreendemos, resultam de uma construção coletiva, que ocorre por processos interacionais, sócio-históricos e emocionais, que situam os indivíduos enquanto pertencentes a diversos microgrupos210.

210

Cf. Vigotski, 1998; Maffesoli, 2010; Haesbaert, 2007; e, Leontiev, 2004.

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Em nossa perspectiva, referendada no pensamento complexo de Morin (1999), isto significa afirmar que um dos processos interacionais experimentados pelos seres na sua comunicação com o mundo é dado pela dialógica entre simplificação e complexificação do discurso, que pode ser verbal, corporal ou gráficotextual. Nas interações observamos intencionalidades mediadas pelo discurso, e, à medida que as tensões verificadas no confronto de diversas intenções são mediadas dialogicamente, o discurso coletivo é construído, em um processo intermitente de interações que nos “permite traduzir o vivido, os sentimentos, emoções e paixões” (MORIN, 1999, p. 135). Assim, o conhecer emocional instaura um campo de possibilidades de devires que são esboçados aos poucos e conforme nos deslocamos física e cognitivamente (BAILLY, 1990) no espaço-tempo, em um movimentar-se para além do que é conhecido e nos dá segurança. Tal movimento, que extrapola nossas fronteiras de domínio, permite conflitar informações que, dialogicamente, reorganizam nossas territorialidades enquanto indivíduos pertencentes a um lugar. Essa constatação pode ser captada na relação entre o ser e o devir, que é apontada por Prigogine (2002) através dos trajetos físicos e cognitivos, que acreditamos ser uma relação imersa em tensões explicitadas pelos conflitos em nossos pensamentos reflexivos, externalizados na forma como apresentamos e representamos o real, até que cheguem a configurar conceitos211 emocionais e socialmente construídos sobre o real. Nesse sentido, vemos a cidade não como um objeto fisicamente acabado ou um conceito cientificamente determinado, mas como uma ação, uma criação das diversas intenções comunais que, como qualquer outra, é passível de apropriação por qualquer grupo que a perceba materialmente e/ou imaginariamente “a sua maneira”. Isto aponta, ainda, que as tensões entre ser e devir se constituem como um processo intermitente de territorialização-desterritorialização-reterritorialização

211

Cf. Vigotski, 1998.

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(HAESBAERT, 2007) de intencionalidades que se apossam e personalizam os espaços urbanos com foco na definição e determinação de suas identidades. O que nossa investigação permite visualizar é que as identidades constituídas na dialógica cidade- jovens podem ser captadas separadamente via discurso, ou seja, podemos distinguir as partes tanto de uma como a de outros, que inseridos em um determinado contexto nos dizem o que são per si. Porém, mais do que tal evidência, concluímos que a percepção das complexidades que configuram as dimensões urbanas e coletivas expande-se à medida que pensamos que a cidade existe, também, como um processo sócio-histórico e emocional que reúne lembranças. As lembranças como memória coletiva de uma comunidade emocional capaz de representar de forma sensível as experiências que delineiam as ambiências urbanas212. As ambiências urbanas reúnem aspectos materiais que traduzem a linguagem da paisagem, expressa na interpretação das estruturas que configuram a imagem do lugar por meio dos trajetos físicos, mas elas também permitem interpretar os trajetos cognitivos dos seres e devires em movimento213, no nosso caso, um grupo de jovens que terminam por desenhar a linguagem da territorialidade, interpretando as significações sociais e culturais a partir do lugar onde ancoram suas identidades. Nossas afirmações são embasadas nas ponderações teóricas, mas também no que Raffestin (1995) chama de “antropológica das relações” dos territórios cotidianos, referenciais, de trocas e sagrados que configuram o “tetraglossema” para a leitura das complexidades espaciais. A partir do entendimento deste marco teóricometodológico foi possível construir uma metodologia de análise urbana que toma as representações humanas tanto no que se refere aos aspectos estruturais do lugar, como aos aspectos socioculturais que o simbolizam [Figura 6].

212

Cf. Maffesoli, 2010; e Thibaud, 2008. Consideramos o “movimento” como processos interacionais dialógicos de fuga do ser, que a todo instante escapa aos limites da sua zona de conforto, gerando conflitos no pensamento, para então retornar com a ideia de realidade reorganizada, intermitentemente. 213

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Essa metodologia trata de considerar a representação como uma síntese do conhecimento, mas uma síntese que estimula e retroalimenta o pensamento, numa cadeia eco-auto-organizadora do conceito daquilo que representamos, a partir da consciência de como o representamos. Para a aplicação dessa metodologia de análise de campo há que interagir indivíduo↔coletivo↔territórios, o que nos conduziu a uma abordagem etnográfica participativa, pautada pelo método do “percurso comentado” apontado por Thibaud (2004). Na conjugação das considerações teóricas com as informações que emergiram dos discursos nos percursos comentados pelos jovens da Carobinha, nós podemos vislumbrar como resultado da aplicação da metodologia de análise urbana, que especificamente no caso deste grupo de jovens, eles trazem em suas lembranças, tensionados, o território referencial real e o imaginário como uma das possibilidades de construção da realidade. O processo socioemocional de apreensão e representação do mundo que os cerca, surgido a partir das provocações do nosso trabalho de campo, permitiu o confronto de suas realidades, impelindo-os a identificar que habitam fisicamente um lugar que é precário de serviços infraestruturais se comparado com outras ambiências urbanas, quer na mesma cidade ou no mundo. Tal perspectiva aponta a existência clara na cidade do Rio de Janeiro de distâncias sociais explicitadas pelas distâncias geográficas, conjecturadas no pensamento reflexivo desses jovens durante nossas interações investigativas. Eles sabem que espacialmente se encontram afastados de territórios mais bem servidos por serviços infraestruturais que qualificam o ambiente urbano positivamente. De forma irônica, esclarecem que as diferenças estruturais que caracterizam as distâncias sociais também se dão pela forma como os territórios urbanos são apropriados e por que classes. Esse entendimento dos jovens das diferenças entre os espaços urbanos evidencia a forma consistente como organizam seus territórios referenciais. A experiência referencial deles é claramente emocional, seja ela positiva ou negativa, desde o momento em que são capazes de compreender as diferenças estruturais UFRJ I FAU I PROURB

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entre o seu e outro bairro mais abastado, dadas pelo abismo socioeconômico, ou mesmo quando se reportam ao espaço da escola como o seu lugar mais próximo e de experiências mais positivas socialmente, configurando-a como um claro espaço afetivo possível para os jovens. Outra observação importante detectada é que os territórios cotidianos vistos e vividos por eles são apreendidos, em geral, de forma crítica. O conhecimento reflexivo, neste caso, é dado pela vida do dia a dia, na perspectiva do que Maffesoli (2010) pontua sobre os aspectos estéticos, éticos e de costumes e que conformam, assim, a comunidade emocional desses jovens. Os jovens entendem que o seu território cotidiano é atravessado por costumes comunitários e regras de conduta impostas, principalmente, pelo grupo criminoso presente no local, que acaba por ditar as regras de comportamento, limitando o direito de ir vir das pessoas. Esta relação entre ética e costumes não escapa à percepção aguçada destes jovens que têm uma noção precisa das limitações impostas às suas vidas, que se ampliam no momento em que apresentam a “estética do lugar” como linguagem da paisagem. A estética do lugar, segundo Maffesoli (2010), é aquilo que vivenciamos em comum e que, no caso dos jovens da Carobinha é toda a ambiência, configurada pela falta de saneamento, ausência de pavimentação das ruas, de equipamentos urbanos e de espaços livres públicos para o lazer, aspectos que constituem a estrutura do lugar. Estando tal estética também associada aos costumes e limitações éticas impostas ao microssistema sociocultural, aspectos próprios à configuração das significações socioculturais do lugar [TABELA 8]. Constatamos com isso, que a linguagem da paisagem descrita pela estética do lugar acontece por meio de representações críticas que os jovens fazem da Carobinha, porém tende ao conformismo característico do estar-junto solidário, próprio do paradigma ético das comunidades emocionais. Esta aceitação é percebida na análise dos territórios de troca e sagrado, bem como nos referenciais e cotidianos relacionais destes jovens. O território de troca

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acontece através dos mecanismos de personalização214 dos corpos com objetos de consumo associados às tribos a que pertencem como forma de afirmar sua presença no mundo. É importante ter presente que o território de troca se restringe, neste estudo, à localidade e está diretamente atrelado à possibilidade e capacidade de posse, o que evidencia o espaço de domínio material dos jovens. Em alguns casos, o espaço de domínio não vai além dos corpos. Assim, estes jovens compreendem que a cidade como consumo está limitada à sua realidade econômica, mas isto, apesar de distanciá-los da materialidade da cidade que idealizaram ou que aprenderam ser “a boa cidade”, não os exclui desta. Percebem-se pertencentes ao cotidiano da cidade como um todo, porém, mais pelos aspectos referenciais que remetem à imagem da praia ou da estátua do Cristo Redentor como marcos da “cidade maravilha”, do que pela ambiência que vivenciam de fato e que somente remete aos aspectos negativos atrelados aos ambientes de pobreza. Interpretamos isto como um mecanismo de fuga de pessoas que tentam trazer para perto de suas vidas aspectos urbanos que a sociedade reconhece como positivos, revelando a busca humana por referenciais materiais e simbólicos que acomodam as identidades coletivamente, como uma estratégia identitária de garantia da visibilidade. Por isso, sublinhamos que os escapes físicos e cognitivos na apropriação dos territórios cotidianos, referenciais e de trocas ocorrem em processos que desterritorializam e reterritorializam as identidades, atravessadamente com o território sagrado. Este último é destacado pelos aspectos simbólicos que é capaz de evocar, ao organizar o real pelo abstrato. De uma maneira mais ampla, o sagrado é partícipe da organização dos nossos pensamentos e identidades, quer acreditemos em

algo

ou

não,

quando

simbológico/mitológico/mágico

consideramos

que

o

pensamento

(MORIN, 1999) organiza dialogicamente

as

realidades da humanidade no tempo, pelos aspectos emocionais.

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Cf. Veschambre, 2004.

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O texto a seguir diz bem sobre a importância do território sagrado para esses jovens positivarem suas emoções negativas sobre a cidade: (...) o homem é infeliz porque não sabe que é feliz; só por isso. (...) Quem o souber no mesmo instante se tornará feliz (...) (DOSTOIÉVSKI, 2005, pp. 238-239). (...) Se eles soubessem que estão bem, então estariam bem, mas enquanto não sabem que estão bem não estão bem (DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 239).

Estas citações de Dostoiévski, que a princípio tratam da existência ou não do Divino e do “ensinamento” das massas para mantê-las alheias à realidade, nos levam a dois pontos conclusivos. O primeiro é o conformismo, enunciado por Maffesoli (2010), e aqui é algo evidentemente intrínseco ao território sagrado, uma vez que este território se conforma, nos trajetos cognitivos dos jovens, como um lugar de acolhimento, onde a realidade pode ser explicada por um discurso pautado em locuções interjetivas, que convocam as figuras divinas a atuar e transformar o mundo real em que vivem (MORIN, 1999). [sic] Romário: Olha o que o Estado faz conosco... Judia de nós, mas nós se vira com que nós temos né... Olha isso, olha a rua... olha... Só Jesus na causa! (...). (ANEXO 1, SEGUNDO DIA, ITEM D).

O segundo aponta que, mesmo nosso estar no mundo é um processo de conhecimento socioconstruído com a ideia de tempo de cada cultura. Apreendemos aquilo que o mundo nos informa e o que retornamos é uma informação carregada de intencionalidades, daquele que luta para garantir sua presença no mundo, ou seja, nesta pesquisa, jovens que querem pertencer à cidade. Por isso, apesar da leitura crítica sobre a distribuição de infraestrutura no espaço urbano do Rio de Janeiro, vislumbram estar nele ao concordarem, através do senso comum, com aquilo que eles aprenderam que é “de bom tom” elogiar – a imagem vendida da cidade do Rio de Janeiro, adjetivada como “maravilhosa”, e que o simples fato de estar nela é o suficiente para “(...) se tornar feliz”. O jogo entre os territórios cotidiano, de trocas, referencial e sagrado revela, de fato, um cotidiano que é “dado” pelo sistema a esses jovens, que por sua situação econômica têm limitada sua possibilidade de consumo dos espaços urbanos, pois têm consciência das realidades a que são submetidos, ao se reportarem aos territórios UFRJ I FAU I PROURB

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referenciais, que evidenciam as diferenças estruturais dos espaços da cidade. O território sagrado entra para explicar o que o sistema não explica e para acomodar suas emoções num mecanismo de aceitação do que significam socioculturalmente os territórios urbanos. A partir de tal consideração nos parece lógico que as constituições identitárias conflitem a todo instante entre trajetos cognitivos que transitam dialogicamente da interioridade/exterioridade dos nossos pensamentos reflexivos à construção dos nossos conhecimentos emocionais. Quer dizer, entre o ver o mundo - linguagem da paisagem, e o viver as significações socioculturais - linguagem da territorialidade, o que fica como real são nossas representações, exatamente como as construímos com a coletividade. Maffesoli (2010) fala da “persona” como um “eu público”, ou seja, aquilo que encenamos parecer ser, nos diferentes contextos, pois nós somos tantas personas quantas forem nossas vivências, mas sempre estamos atrelados a uma tribo, ou coletividade que reivindica, através dos seus paradigmas estéticos, éticos e de costumes, seu estar no mundo, capaz de tornar visível a identidade que funda sua “cidade emocional”. Desta forma, podemos apontar que o método de análise urbana proposto, que conjuga representações estruturais e simbólicas, a partir da relação paisagem↔territorialidade,

se

coloca

como

caminho

conveniente

para

percebermos, enquanto profissionais de projeto urbano, as singularidades que caracterizam o todo da cidade, somente passíveis de serem apreendidas nos escapes emocionais daquele que se apropria e está em movimento nos territórios da cidade.

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ANEXO 1 DIÁRIO DE CAMPO215 I.

Primeiro dia: 27 de abril de 2012

Esse foi o primeiro dia de contato com o grupo de jovens do programa Projovem para adolescente até 17 anos, que na Comunidade da Carobinha funciona na associação de moradores. Como era esperado, assim que apresentamos a proposta deles nos apresentarem a comunidade e produzirem desenhos ou textos explicando suas impressões acerca do lugar, houve uma pequena resistência, principalmente de uma jovem com ar sério e um tom revoltado chamada Gabriela, mas que ao longo do trabalho de campo foi se aproximando. Quando chegamos com o aparato tecnológico, notamos neste um forte fator de sedução. O fato de termos disponibilizado câmeras de vídeo e máquinas digitais para eles manuseariam nas atividades foi aos poucos nos aproximando do grupo, principalmente dos meninos, e mesmo o Sérgio Alves, a quem os jovens se referem como professor, mas que é de fato o orientador social 216 do Projovem na Carobinha, vislumbrou a possibilidade de desenvolver uma espécie de filme curtametragem, o qual ele já parecia ter todo o roteiro em mente. O Sérgio é visivelmente um homem engajado politicamente e culturalmente. Auto se intitulando um dos poetas da zona oeste do Rio de Janeiro 217. Assim como os jovens expressava um tom de preocupação política na fala, sempre nos fazendo lembrar a falta de comprometimento da política com a sociedade. Nesse contexto iniciamos o trabalho de campo com a proposta de realizarmos uma atividade interna na qual os jovens, através de desenhos ou textos, descreveriam o que eles percebem do lugar que moram. Nossa ideia foi lançar uma pergunta não muito restritiva - como é o lugar onde você mora? - Para que esta tivesse o maior número possível de interpretações, e sintonizasse-os no espírito da nossa proposta. No entanto, não nos ocorreu a presença do papel de mediador de um adulto, que foi o papel desempenhado pelo Sérgio, o qual daqui por diante nos referiremos como o “Professor”. No início tentamos atenuar a interferência dele naquilo que os jovens expressariam através de falas, ressaltando que o importante era a opinião deles, os jovens, mas percebemos que seria em vão tentar conter a atitude de um adulto comprometido com ideais políticos e culturais, pois no momento em que desenvolvia as atividades com os jovens sobre seus espaços de morar e lazer ele era também um sujeito emocionado. Distribuímos as folhas, dispomos os materiais de desenho sobre as mesas, e a atividade teve início. Logo de saída, os jovens começaram a declarar em voz alta a grande quantidade de igrejas evangélicas e centros de macumba (umbanda e candomblé) que existe na comunidade, foi quando o

215

A transcrição do trabalho de campo respeita as falas dos jovens e dos adultos com eventuais gírias e erros de português. 216 Orientador social é a “alma” do Projovem Adolescente. Desempenha a “função-chave” de facilitar a trajetória de cada jovem e do coletivo juvenil na direção do desenvolvimento pessoal e social, contribuindo para a criação de um ambiente educativo, participativo e democrático. O Orientador Social é uma referência fundamental para os jovens, propondo-se como um modelo de identificação, o que aumenta a sua responsabilidade quanto à postura adotada frente aos jovens e frente à vida, que deve ser consistente com os princípios orientadores e dimensões metodológicas do Projovem Adolescente. Abertura ao diálogo, reciprocidade e compromisso são características fundamentais no acompanhamento das ações e vivências cotidianas. Deve valorizar as potencialidades dos jovens e do coletivo, incentivá-los e mobilizá-los para a participação. No enfrentamento desses desafios contará com o apoio e a assessoria do profissional de nível superior do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), encarregado de supervisionar a execução do serviço socioeducativo. (MDS, 2009, pp. 3739). 217 Sérgio Alves é autor do livro de poesias intitulado “Canto Mestiço” editado de forma independente em 2004. UFRJ I FAU I PROURB

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orientador do programa Projovem Adolescente 218, o Professor, interferiu falando que seria interessante que eles colocassem também tanto o que tem como o que gostariam que tivessem porque estavam fazendo um diagnóstico e diagnóstico é isso, e continuou falando: [sic] Professor: então vocês já sabem que tem muita igreja evangélica, muito centro espírita, tem uma praça, várias escolas, só que não tem de nível médio né, aqui não tem né? Só o “Cora219” que tem de nível médio, mas não alcança a comunidade toda, os jovens têm que sair para Campo Grande para estudar, não é isso? [sic] Gabriela: mas no Cora é de noite e eu não posso estudar de noite. [sic] professor: e os jovens que não querem estudar de noite, querem estudar de dia? Enquanto a atividade ia se desenvolvendo, a Gabriela, uma jovem de 16 anos que deixou bem claro que não faria desenhos, pois só gosta de escrever, reclamou que sua folha estava acabando e pediu para escrever no verso da folha. Foi quando o Professor se prontificou a filmar a atividade e se dirigiu até a Gabriela pedindo que ela olhasse para a câmera. [sic] Professor: Fala Gabriela, olha pra cá... Gabrieeela? Gabriela? Olha pra cá e fala como é a sua comunidade. [sic] Gabriela: Minha comunidade é chata. Desenvolvemos a primeira atividade, ainda em tempo para propormos aos jovens que descrevessem – qual a imagem que melhor representava o bairro? Nesse momento todos já estavam em silêncio e concentrados no naquilo que faziam. Tal silêncio foi quebrado por um jovem que observou que todo mundo que reclamou que não queria desenhar estava desenhando, mas ninguém se manifestou com a partir da sua fala. Foi quando Franklynn, um jovem de 17 anos, entregou seu desenho para o Professor que o descreveu em voz alta: [sic] Professor: Campo de futebol! “Resumindo: muito feito”!? Pô, ai meu Deus! Arquibancada e tudo! [sic] Franklynn: Não, arquibancada foi da minha imaginação. Foi quando, pela primeira vez as irmãs Adriana de 14 anos e Juliana que está grávida e tem 16 anos se manifestaram oralmente numa disputa, pelo fato da irmã mais nova reclamar com a mais velha, que estava batucando com a tesoura na mesa, estar perturbando com aquele barulho. A reclamação não surtiu efeito e Juliana continuou com seu batuque. Gabriela lança então a declaração: [sic] Gabriela: Ai que mixórdia! Essa declaração é interessante, pois acabou gerando um curto debate ao redor do significado da palavra mixórdia e o porquê dela tê-la usado. Gabriela não respondeu e concluíram que iriam procurar em casa o significado da palavra. Nesse momento, para encerrar o debate em torno do que era mixórdia, o Professor interfere de súbito perguntando para o Franklynn se ele tinha alguma memória sobre o lugar, respondendo ter muitas. Juliana intervém dizendo que acha memória legal, pois lembra jogo de memória. A partir daí o Professor começa a discorrer sobre o que é memória: [sic] Professor: Essa questão da memória é interessante porque ela não é só a questão da lembrança, ela é a questão da gente tá registrando, é a questão do registro que a comunidade costuma fazer. É o que a gente tá começando a fazer aqui. É uma palavra política. E vocês

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O Programa Projovem é um Programa Nacional de Inclusão de Jovens, instituído pela Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005, regido pela Lei nº 11.692, de 10 de junho de 2008 e regulamentado na forma do Decreto nº 6.629, de 4 de novembro de 2008. O Projovem possui quatro modalidades: Projovem Adolescente – Serviço Socioeducativo, Projovem Urbano, Projovem Trabalhador e Projovem Campo – Saberes da Terra. (MDS, 2009, p. 3). 219 “Cora” é como comumente os moradores da região se referem a Escola Municipal Cora Coralina, que fica localizada no Bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro e atende à moradores da comunidade da Carobinha. Esse nome é em homenagem a Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretãs, a Cora Coralina. UFRJ I FAU I PROURB

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sabem que o ser humano é o único animal que faz história, que registra sua memória. Então memória é isso, não só... O que eu lembro? O que eu comi ontem? Não. Eu me lembro da história dos meus ancestrais, da história da minha comunidade. Isso que é importante. [sic] Adriana: Uma coisa que guarda muitas coisas interessantes. [sic] Professor: Tem a ver com autoestima. Vocês lembram o que eu trouxe naquela aula. Eu trouxe máquina de fotografia velha, o que mais que eu trouxe Maria? [sic] Adriana: Celular velho, disco velho. [sic] Professor: LP. [sic] Adriana: Aqueles cartão de computador. [sic] Professor: Disquete. [sic] Professor: Tem mais uma outra coisa que eu trouxe... Fita cassete... Câmera velha. Aquela história que eu contei pra vocês, que a minha esposa e meus filhos se recusaram a me deixar a continuar usando aquela máquina, e a máquina tava boa né. [sic] Juliana: tem câmera digital agora pra que? [sic] Professor: Pois é, olha a diferença, a modernidade. [sic] Gabriela: O tempo é digital agora. [sic] Adriana: Essa aqui então professor, já é mais moderna. [sic] Professor: Essa aí então! Mais moderna ainda, mais fininha. Daqui a dez anos os filhos da Glauci vão falar: que máquina velha. Nesse momento o Professor fala que trouxe um texto para os jovens não sentirem falta, pois ao final de cada encontro ele fazia uma leitura propondo reflexão ou debate. [sic] Adriana: Eu!? Sentir falta? E rebatendo a fala da Adriana, Gabriela questiona: [sic] Gabriela: Tá de deboche?! [sic] Professor: E tem a ver com o dia de hoje. Com esse nosso começo de trabalho hoje, porque a gente tá começando um trabalho histórico. Estamos fazendo história. Vocês não imaginam a importância que tem esse tipo de trabalho. Pra gente e pra vocês... Aí esse texto aqui... Vocês já ouviram falar em António Cícero? Assim, enquanto os jovens continuavam a escrever e desenhar suas impressões sobre a imagem do bairro, o Professor apresentou e declamou Antônio Cícero. [sic] Professor: Antônio Cícero, ele é um poeta irmão e é um parceiro da... Ai meu Deus! Marina Lima. Já ouviram falar em Marina Lima, que é uma roqueira? [sic] Juliana: Minha tia! Exclamação feita pelo fato de terem o mesmo sobrenome. [sic] Professor: Tua tia... Não, tem aquela música, vocês vão lembrar da música. É... [♪] pra começar quem vai colar os tais caquinhos do velho mundo. [sic] Adriana: Eu nunca escutei essa música. [sic] Franklynn: Dá tua época. Falou Franklynn para o professor. [sic] Professor: De uma novela recente. [♪] nossas famílias, religiões e preconceitos... chegou, não tem mais jeito. [sic] Franklynn: Novela de que canal!? [sic] Adriana: Sim, que novela? [sic] Professor: Essa novela não tem dois anos. Eu mesmo não lembro o nome dela [risos], uma novela das oito. [sic] Professor: [♪] pra terminar, quem vai colar. [sic] Adriana: Essa novela foi o senhor que escreveu. [sic] Professor: Não gente, tá vendo como nossa memória é curta da gente. [sic] Adriana: Não, a memória da gente não é curta, é só a gente colocar ela para funcionar que ela funciona direitinho.

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[sic] professor: Então, mas... Marina é autora dessa música e é uma das músicas em parceria com o irmão dela que é o Antônio Cícero, e o Antônio Cícero tem esse poema aqui que se chama “Guardar”, e tem tudo a ver com o que a gente tá fazendo aqui. Nesse momento, como num intuito de instigar nos jovens a exporem aquilo que pensam das suas condições e do lugar que eles moram, o Professor recitou o poema. [sic] Professor: Guardar Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro Do que um pássaro sem voos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar220,221. [Aplausos] [sic] Adriana: Guardei muita coisa agora. [sic] Professor: Então, qual a intenção desse texto? [sic] Adriana: O guardar. [sic] Professor: O guardar né, mas o que eu mais gosto nesse poema é: Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro... Do que um pássaro sem voos. [sic] Franklynn: Olha como minha memória é fértil, o senhor já leu esse poema ano passado num outro projeto lá. [sic] Professor: Mas o que vocês entendem por isso? [sic] Franklynn: O que q eu entendo, melhor ver o pássaro voando do que ele no chão. [sic] Professor: É... é... Você guarda ele voando né. Tem um amigo meu que é porteiro, e que ele tem um poema que diz: Faz-se a gaiola, prende-se um pássaro, pássaro preso, preso está o homem. Quebra-se a gaiola, liberta-se o home, quebra-se o homem, liberta-se o pássaro. Após este longo debate, os jovens se declaram emocionados em um tom de deboche, mas permaneceram calados e entre risos. Foi quando Adriana e Gabriela falaram: [sic] Adriana: Chorei por dentro agora. [sic] Gabriela: Ai! Mas que mixórdia!

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Antônio Cícero nasceu no Rio de Janeiro, em 1945. Formou-se em filosofia na Universidade de Londres. De 1991 a 1992, Antonio Cícero coordenou, em colaboração com o poeta e professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Alex Varella, os cursos de Estética e Teoria das Artes do Galpão do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de janeiro. Em 1993, concebeu o projeto intitulado “Banco Nacional de Ideias”, através do qual, nesse ano e nos dois anos subsequentes, promoveu, em colaboração com o poeta Waly Salomão e com o patrocínio do Banco Nacional, ciclos de conferências e discussões de artistas e intelectuais de importância mundial (NOGUEIRA JR, online, 2012). 221 [Citado] CÍCERO, Antônio. Guardar - Poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, pág. 337. UFRJ I FAU I PROURB

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[Risos] Nesse momento Gabriela admitiu não saber o significado da palavra e que a fala porque as suas amigas a falam. O Professor sugeriu que todos fossem embora com a missão de procurar no dicionário o significado da palavra mixórdia, avisando para os jovens que na próxima quarta-feira iríamos sair em campo, que cada um iria pegar uma máquina digital e uma filmadora para registrar a comunidade. Importante observar que participaram da atividade neste primeiro dia cinco jovens. Desses, três foram mais participativos verbalmente – Gabriela, Adriana e Franklynn - enquanto os outros dois ficaram centrados nos desenhos – Maria e Igor. De todos os jovens que participaram no primeiro dia, nem todos estarão nos dias que se seguem, bem como outros jovens surgirão indicando a alta rotatividade dos jovens nas atividades do programa.

II.

Segundo dia: 02 de maio de 2012

O segundo dia foi uma surpresa, pois vários outros jovens apareceram para a caminhada pela comunidade. Organizamos internamente a distribuição das câmeras de vídeo e máquinas digitais. Logo o Franklynn se prontificou a filmar, e de forma muito descontraída e divertida tomou a frente do grupo. Enquanto caminhavam do interior da associação em direção a Estrada da Carobinha, Gabriela já se manifestou que a caminhada iria até a padaria do Bolinha. Assim que o grupo chegou à Estrada da Carobinha o Professor orientou que seria interessante começar a filmar a comunidade a partir de sua entrada que é configurada pelo encontro da Avenida Brasil com a Estrada da Carobinha. O grupo dividiu-se em dois, puxados por quem manuseava as câmeras digitais. De um lado estava Igor e do outro um jovem chamado Romário de 17 anos falou que iria apresentar a comunidade enquanto Franklynn o filmava, e então ele começou: [sic] Romário: Estamos aqui mais uma vez na Carobinha. Tá ligado? Isso aqui ó, é a Avenida Brasil, essa aqui é a passarela. Tá vendo? Sacou? [sic] Professor: A porta de entrada da comunidade. Mas não tardou e Romário assumiu o controle da câmera de vídeo. Assim, a partir deste ponto narraremos separadamente as impressões sobre o lugar de cada “controlador” de vídeo, até que o grupo se separe novamente.

a)

A entrada da comunidade por Romário [sic] Romário: Beleza Mané. Maneiro, se ligou?! Têm uns dois meliantes ali que não fazem nada, tão sempre ali. Todo dia de manhã quando eu venho pra cá eles estão ali. Agora tá de tarde e eles tão ali fazendo naaaada, nada, mas é normal né, fazer o que? Esse aqui é o sacolão da Avenida Brasil, aqui nós compramos tudo baratinho, eu acho. Ali tem outras pessoas gravando também. Esse aqui é o Mano Gabi. [sic] Gabriela: Mano Gabi!? [sic] Romário: Isso aí Mané, aquele ali é o Mano Franklynn andando, “ram” é isso aí ó, Dá um bisou dá um bisou... Suave Mané. Ali ó, os malucos de lá, sacolão fechamento puro. É isso aí, é tudo nosso. Andando mais um pouco a frente... Olha só, não! Pior que se liga! Olha o matagal que tem pra cá! “Caraaaaca” Mané, é dose né!? Mas beleza, aqui também já foi cenário, é é... já fizeram uma peça aí. [Ruídos da Avenida Brasil] [sic] Romário: Ali tem o ICEC222 uma indústria de ferro, tá vendo não!? Ali ó, dá um bisou. Olha a passarela Mané! No aço... Essa é a passarela da Brasil, o Posto Mendanha... É isso aí... Levanta Franklynn.

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Construções Metálicas ICEC.

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A partir de então, após gritar para o Franklynn se levantar do meio-fio, Romário caminhou em direção ao ponto de ônibus da Avenida Brasil, também conhecido como Posto Mendanha, e quando passou ao lado da rampa da passarela constatou. [sic] Romário: Aqui tá fedendo pra “caraca”. E continuou andando e apresentando repetidas vezes o Posto Mendanha, sabendo que essa é a melhor referência para se chegar à Carobinha. Ainda no trajeto até ao ponto de ônibus, localizou um bar que fica ao lado do Posto Mendanha, e se referindo a este como um estabelecimento caro. [sic] Romário: Mais um pouco a frente tem um negócio ali... É tipo um ponto. É caro pra “caraca” as coisas lá entendeu. Fui pra comprar um negócio ali, um doce um Real, caro pra “caraca”. Não aconselho ninguém a comprar nada ali. Então mais uma vez fez referência ao Posto Mendanha e observou as pessoas que chegavam do trabalho. Foi quando apontou para o bicicletário e as bicicletas que ficam presas no gradil da passarela fazendo a observação que ali era uma comunidade e não uma favela. [sic] Romário: Aí ó os carros passando, ponto de bicicleta, que aqui é uma comunidade. Isso aqui não é uma favela não. Olha o pessoal morador da comunidade, trabalhador é isso aí. Fé em Deus que é tudo nosso. Romário deu mais uma pausa, e mais uma vez se volta para Posto Mendanha, ao retornar perguntou o que mais poderia mostrar, mas antes que alguém desse a resposta ele se adiantou. [sic] Romário: Mais o quê? Nós temos mais à frente um posto onde se conserta caminhões. Olha os coqueiros, que lindo! “Caraca”! Parece Copacabana né, massa! Ali é uma outra entrada que tem pra comunidade. E aqui é o ponto... Posto Mendanha, entendeu? Paralelo à caminhada feita por Romário e que foi acompanhada por Franklynn, pelo Professor e por Gabriela em parte, ocorria a apresentação da comunidade através da filmagem feita por Igor. Em certo momento os dois se encontraram às margens da Avenida Brasil e Romário voltou-se para o Igor como numa entrevista: [sic] Romário: Vamos apresentar a comunidade. Mano Igor dá um alô... Aqui é o Mano Romário, repórter por um dia e Mano Igor. [sic] Igor: Aqui é o Mano Igor, repórter da Carobinha e estamos aqui fazendo um “estúdio” (estudo), perguntando aqui pras pessoas como é que vai, o que que queria de mudança, que que os “prediudica” (prejudica). Qual as melhora que as pessoas gostaria de ter. Romário interrompeu Igor e apontou para um vendedor ambulante falando. [sic] Romário: Aqui tá o nosso trabalhador do dia a dia. Aí ó beleza, é só ralação é isso aí Mano... Sem precisar roubar. A partir de então os jovens tomaram a direção da Estrada da Carobinha.

b)

A entrada da comunidade por Igor [sic] Igor: Tamo na comunidade... [sic] Gabriela: Tá empolgadão ele! Falou Gabriela referindo-se a Romário. [sic] Igor: Comunidade Carobinha. Estamos gravando ao lado do Mendanha (Posto). Gravamos a Avenida Brasil.

Nesse momento Igor fez uma longa pausa na fala e continuou gravando em volta, e por vezes a performance de Romário. [sic] Igor: Cadê!? Quem é que vai apresentar? Perguntar pra os pessoal como é que se sente em morar nesse lugar. Cadê? Coloca alguém pra gravar e o Romário para perguntar. UFRJ I FAU I PROURB

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Foi quando o Professor interferiu falando que cada grupo apresentaria uma coisa, e que o Romário já estava apresentando. Ele ainda tentou negociar com Gabriela que continuou relutante e acabou sugerindo o Franklynn, mas que também não se colocou disponível. Enquanto tentavam resolver quem iria dar prosseguimento com a filmagem, as irmãs Adriana e Juliana não tardaram em sair tirando fotografias. Igor então, ainda um pouco perdido, tentou chamar a atenção do Romário sem sucesso e ensaiou novamente a sua apresentação do lugar. [sic] Igor: Estamo aqui... No “barrio” (bairro) da Carobinha. Aqui se encontrando na Avenida Brasil, onde que os moradores... Romário, ô Romário... Foi nesse instante do percurso do Igor que ele se encontrou com Romário à margem da Avenida Brasil.

c)

Indo para a Carobinha

É importante observar que o grupo esboçou uma divisão entre meninas e meninos. De início as meninas ficaram com as máquinas digitais fotogravando o que achasse relevante. Gabriela que acompanhou inicialmente o grupo do Romário até a passagem pela rampa da passarela, quando ele observou o cheiro ruim do lugar, ela logo se juntou às meninas, mas sempre de maneira muito reservada como quem mais observa e constrói dentro de si suas ideias, devolvidas para os outros somente através de sorrisos e algumas outras considerações. Já no início da Estrada da Carobinha Igor nos informou que o sacolão era conhecido como “Sacolão do Lico” e seguiu gravando até que pediu ao Romário: [sic] Igor: Ô Romário... Ô Romário... Dá a câmera pra alguém e você fica apresentando comigo te gravando. Dá a câmera pra garota. Neste momento o Professor se aproximou de Igor e observaram que algumas pessoas não gostam de ser filmadas, mas o Professor deixou claro que não era para filmar as pessoas diretamente e sim a arquitetura. Assim iniciamos o percurso através da Estrada da Carobinha com o grupo já dividido entre meninos e meninas. Apresentaremos primeiro a narração dos meninos.

d)

A Carobinha na perspectiva dos meninos do grupo Caminhando juntos, o Professor e o Igor. [sic] Igor: Alguém tem que ir explicando. [sic] Professor: Aqui é a Avenida Zumbi dos Palmares, antiga Estrada da Carobinha. [sic] Igor: Antiga!? [sic] Professor: É... Antigamente era Estrada da Carobinha, agora é Avenida Zumbi dos Palmares. É a rua principal da comunidade.

Após outra longa pausa na fala, Igor perguntou quem iria filmar a partir daquele ponto. Enquanto que em off o Professor e o Romário combinavam que iriam até o “Pão Gostoso” ou “Padaria do Bolinha”. [sic] Romário: Mas é legal pegar o valão ali. A esta altura eles estavam na Estrada da Carobinha, esquina com a Rua Clarínia através da qual entraram desviando-se totalmente do trajeto das meninas. Enquanto Igor filmava, o Professor e o Romário decidiam o que era importante mostrar, já o Franklynn fotografava o que achava interessante, mas também palpitando. [sic] Igor: Qual o nome dessa rua aqui? [sic] Romário: Agora estamos quase perto do Colchão...

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[sic] Igor: Tá doido cara!? Tu filmar a cara do mototaxi!? (falou para o Franklynn que fotografava) Não pode não cara, por causa da polícia com a Rocinha devolve tudo pra cá cara. [sic] Franklynn: Eu tava gravando os pessoal... Não tava gravando as pessoas não. O diálogo foi interrompido por um carrinho de som que passava e anunciava um curso gratuito de informática na Estrada Guandu do Sena (quadra 76, lote 11). Enquanto isso Igor filmava uma valeta com água parada que se acumulou no que deveria ser um meio-fio entre uma rua com asfalto malfeito e uma área de terra que eles chamavam de campo. [sic] Igor: Ô Franklynn... Qual o nome desse campo? Foi quando o Professor observou para não deixar de filmar a igreja Assembleia de Deus em frente ao campo. [sic] Igor: Gravando (referindo-se a igreja). Igor filmou a solicitação do Professor, mas logo se voltou para o campo de futebol mais ou menos demarcado numa porção de terra entre as Ruas Clarínia e Morungaba, que também servia de “atalho” para os pedestres. A exceção do campo de futebol, todo resto da porção de terra estava abandonada, com mato alto, acumulo de pneus velhos em um canto e um tanque de caminhão no outro. Igor atravessou o campo pelo “atalho” sempre filmando as poças d’água parada, mas sem falar sobre elas. [sic] Igor: Aqui é o campo, um dos nossos campo. Já na Rua Morungaba, Igor fez uma filmagem panorâmica do campo e falou. [sic] Igor: Cara, tá feio pra “caraca” esse campo. Em frente ao campo existe uma espécie de clube chamado “Socity Show” que é onde acontece nos finais de semana o “Pagodão”. Até então somente o Professor havia citado o lugar, mas os meninos passaram por ele como se não tivesse tanta importância. Já na Rua Pontões, Igor acelerou os passos para alcançar o Professor, Franklynn e Romário. [sic] Aqui.... É a Rua Pontões. Esta é uma rua também com o asfalto malfeito onde se acumula nas calçadas e terrenos vazio o mato. Igor também tinha a preocupação de registrar esse fato, bem como Franklynn que fotografava o local. O objetivo do percurso dos meninos, acordados ainda na Estrada da Carobinha, era atingir o valão que corta a comunidade e conforma precariamente a Avenida Canal Dois. Eles atingiram o valão ao final da Rua Pontões passando pela Rua Graça, até uma pequena ponte em frente à Rua Dália, onde pararam um pouco. Foi quando Franklynn avistou uma ratazana morta no valão e correu para fotografar. [sic] Professor: É aqui pessoal. [sic] Franklynn: Calma aí... Tem um rato aqui... Vou fotografar. [sic] Professor: Cuidado! Não vai cair aí nessa água. [sic] Igor: Olha aqui, olha aqui... A imagem dessa rua aqui tá boa pra mostrar. [sic] Romário: Olha a rua gente! Olha o cenário! Só Deus na causa. Referia-se a Rua Dália que não é asfaltada e cheia de poças d’água acumuladas nos buracos feitos pelo transito de veículos. [sic] Romário: Ôôôô... Uma imagem dessas! Nem quero ir a Paris mais. [sic] Professor: Vê se pega o cano... Aquele cano lá Franklynn. O cano era apenas uma tubulação de abastecimento d’água que atravessava o valão. O grupo continuou andando através da ponte até atingir um trecho de Avenida Canal Dois que segue paralela a Praça Treze, alcançando a continuação da Rua Pontões. Continuaram andando, e enquanto Igor filmava as poças d’água, Romário se concentrava num menino que passou correndo atrás de uma pipa chamando a atenção de Igor para o fato. [sic] Romário: Olha o moleque correndo atrás da pipa lá. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Igor: Pegou Mané... E sozinho. Nesse momento o irmão do Igor apareceu e pediu as chaves de casa para ele. Igor interpelou o irmão dizendo para não fazer bagunça, e foi então que o irmão do Igor sugeriu: [sic] Irmão do Igor: Filma o campo lá. [sic] Igor: Já filmei. [sic] Irmão do Igor: A lan house. [sic] Igor: Na lan house não pode não. Vou filmar o Seu Bira. Continuaram andando até outra ponte onde o grupo chamou a atenção para um trecho do valão que corria imprensado por entre as casas. [sic] Professor: Aqui é o valão... Que já foi um rio... Esse é o valão da Rua Pontões. A partir de então entraram por um beco, atingiram outra rua e entraram num dos lotes. Foi quando Igor passou a câmera filmadora para o Romário. [sic] Romário: Aí pessoal... Essa é a rua, olha só como que é que eles tratam nossa cidade. O pessoal na área de lazer... Jogando pingue-pongue ali na rua. Uns jovens improvisaram uma mesa de pingue-pongue juntando um tampo de madeira com a base de uma mesa. [sic] Romário: Isso aí a rua... Situação precária... Nenhuma ajuda governamental... só querem saber de ganhar em cima do povo... Aí o que acontece ó ó ó... Essa é a pura realidade. Vê se o pessoal na zona sul tem isso. Não tem pô... Não tem. É só aqui, só na zona oeste, na zona norte... só nessas regiões aí. Neste momento Franklynn interpelou Romário iniciando um debate que ficou inconcluso se ali era norte ou zona oeste, e Romário voltou-se para a filmagem. [sic] Romário: Olha aí só... Pra você vê como é que é a rua! Olha só isso! [sic] Professor: Dá um close na placa: Rua da Graça, quadra 7, lote 4, Carobinha. [sic] Romário: Olha isso aí ó... Nós temos cultura, olha nossa igreja (Assembleia de Deus)... Não é a minha que eu congrego, mas pô... É uma igreja... Aí ó, pouca vergonha (a rua esburacada), olha a rua, olha a situação. [sic] Franklynn: Situação precária do Estado. [sic] Romário: Olha o que o Estado faz conosco... Judia de nós, mas nós se vira com que nós temos né... Olha isso, olha a rua... olha... Só Jesus na causa! Isso aqui é a ponte, ponte improvisada que os moradores fizeram, entendeu? Sem ajuda de ninguém, ninguém da prefeitura veio aqui e deu nada. Foi os próprios moradores que fizeram. Deram uma pausa na filmagem e quando já estava perto da Estrada da Carobinha, retornaram a filmagem. [sic] Romário: É isso aí, mais uma vez a área aí... A comunidade. Foi quando apareceu um amigo dos meninos e acrescentou. [sic] Amigo dos meninos: É... Aqui é uma benção né... Temos que nos conquistar... “conquis”... Contentar com o que nós temos... Aí ó, lan house de humilde. [sic] Romário: É isso aí... Olha o povo só na laje... Fazendo nada. Olha o auau... auau... Dá um stop, dá um stop. [sic] Romário: Ó! Um funk esperto! Nada contra, eu sou cristão, sou evangélico, mas pô é cultura daqui, o que é que eu posso fazer. Olha o “cocô” na rua... Esse povo é fogo. Olha o bonezinho223 do “Prof” Mané... Cultura dele ora, isso é cultura. É uma cultura feia, mas... Nada

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Gorro nigeriano conhecido como filá e que compõe a indumentária do homem nigeriano. Essa designação pode variar para Aso Oke (pronuncia-se axó okê) se for confeccionado com o tecido do mesmo nome. Atualmente a tradição dos centros de tecelagem Aso Oke, produzem três tecidos bastante prestigiados: Etu, Sanyan e Alaari. Etu é um tecido tingido de índigo azul escuro quase preto, e tramado com listras brancas, e às vezes de um azul UFRJ I FAU I PROURB

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contra né... É isso aí, “tamu junto”... Olha o símbolo feioso... Olha esse símbolo, dá um “bizu” gente [logomarca do Botafogo de Futebol e Regatas grafitado no muro]... Olha o salão aí [salão de beleza], bolado. [sic] Professor: Olha aqui ó, rua sem asfalto. [sic] Romário: Olha só essa rua também... Só Jesus! Essa aqui até tá boa! Dá pra andar. Tem ver aquela que nós temos que desviar. Essa aqui é o que povo fez, entendeu. O povo tirou do bolso e comprou cascalho de asfalto e teve que colocar, e não teve ajuda nenhuma. A própria comunidade... Olha o pessoal alí [amigos] “tamu junto” é isso aí. [sic] Professor: Tá bom né, vamos voltar né. [sic] Romário: Isso aí, “vamo que vamo”... Eu sou o Romário e é isso aí. Esse é o Franklynn, esse é o Igor, esse é o “pafessor” doidão... Tudo nosso, é isso aí “rapeize” “tamu junto”, não tem caô não... Nosso supermercado da comunidade aí. Neste momento o grupo dos meninos encontra com o grupo das meninas em frente ao supermercado da estrada da Carobinha, o Super Rede, e o professor diz que já está bom em um tom interrogativo e todos concordam que sim. O professor e todos comentaram então que acabou ficando um grupo de meninos e outro de meninas e que o melhor é que não foi combinado. Então Romário faz uma nova intervenção: [sic] Romário: Esse aí é o supermercado Supe Rede, mais conhecido como pão gostoso. E por dá fim, eu Romário Boladão.

e)

A Carobinha na perspectiva das meninas do grupo

Na entrada da Carobinha, Gabriela pega uma das filmadoras e começa a filmar as meninas que faziam uma roda. Juliana, a grávida reclama e fala que ela tinha que filmar a comunidade, é então que Gabriela fala: [sic] Gabriela: Canta aí. [sic] Juliana: Eu não, eu tenho cara de vocalista?! [sic] Adriana: Vamos cantar para ela [Glauci] a música da gente. As irmãs Juliana e Adriana fazem parte de um “bonde de meninas” que cantam e dançam em bailes funks. Então, nesse momento elas se escondem da filmagem da Gabriela atrás do poste e começam a cantar. [sic] Juliana e Adriana: [♪] hahaha, a Bruna safadinha, senta senta na cabecinha, senta na cabecinha. A Tatiane safa safadinha, senta senta na cabecinha, senta na cabecinha. A Juliana safa safa safadinha, senta senta na cabecinha, senta na cabecinha. A Juliana, exclama “que Juliana!?” e interrompe a cantoria e se põe a caminhar pela estrada da carobinha. [Barulho intenso de moto taxi passando] [sic] Juliana: Porque você só tá filmando a gente Gabriela. [sic] Adriana: É... Olha aí a Carobinha grande aí. [sic] Gabriela: Porque você tá falando do baile do Renato pô. Tá apresentando o Renato né! [sic] Glauci: Quando acontece o baile?. [sic] Juliana: Sexta, sábado e domingo. [sic] Adriana: Três dias, e começa... Ah... Neste momento o diálogo foi abafado pelo barulhento de um carro anunciante.

claro. O nome Etu vem da semelhança com a plumagem da galinha de angola, pelas pintas de sua plumagem. Um verso de Ifa descreve Etu como o pai de todos os tecidos. Sanyaan é um têxtil de seda bege obtida do mofo dos caramujos Anaphe, que dão o colorido irregular de um marrom pálido. Alaari é o nome Ioruba dado aos panos tecidos com retalhos de seda magenta. Os panos tecidos inteiramente com essa seda eram extremamente raros, sendo mais comum tece-los com listas ou tramados no índigo. UFRJ I FAU I PROURB

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[Barulho intenso de um carro anunciante]: (...) e entregamos em condições grátis das 11 até às 20 horas e trinta minutos. Telefones 3356-2352 ou 8675-7573. Endereço: Estrada Guandu do Sena, lote 9, quadra 115, Nossa Senhora das Graças. Comida Caseira do jeito que você gosta é na pensão da Dona Eva! ... O centro de estética... [o som foi diminuindo]. Disputando com o barulho do carro de anúncios, o dialogo seguiu: [sic] Adriana: ... Começa tipo meia noite né!? [sic] Juliana: Fica bom mesmo 1 hora da manhã. É o Renato e o Telhadão. [sic] Adriana: O Telhadão é do lado. [sic] Juliana: E eu fico boba como vem gente “pa” ficar assistindo, ficar no baile no meio da rua! [sic] Glauci: Então tem várias barraquinhas? [sic] Juliana: Não! [sic] Adriana: Só tem uma barraca de cachorro quente. [sic] Juliana: Porque o pessoal bebe mais... O pessoal vai pra beber! [sic] Adriana: Principalmente no bar do Renato. [sic] Glauci: Então vocês vão pra dançar com o bonde? [sic] Adriana: Não, agora só quando as duas ganhar neném, porque aí a gente vai gravar um vídeo pra colocar no youtube. [sic] Adriana: Pra mostrar o que faz o bonde das maravilhas. [sic] Glauci: Falar nisso, aqui tem quantos bondes? [sic] Adriana: Aqui na Carobinha?! Vários. [sic] Juliana: E ninguém gosta de ninguém. [sic] Adriana: São tudo rival. [sic] Glauci: mas só tem bondes de meninas. [sic] Juliana: De meninos também. [sic] Adriana: Mas as meninas é que tem mais rivalidade. [sic] Juliana: Tem mais rivalidade... Na hora da dança se acham mais gostosa, o sapato mais alto. [sic] Adriana: Só que eu não preciso de sapato alto né, já sou alta né. [sic] Juliana: Ô Gabriela, ou tu para de filmar, ou vai levar dois tiros na testa. [sic] Gabriela: Ué, vocês estão contando a história do baile do Renato ué. [sic] Adriana: Já acabou, agora você pode filmar lá. [sic] Glauci: Depois você filma onde acontece o baile do Renato. [sic] Adriana: A gente já tá chegando. Demos uma pausa na conversa para Adriana entrar numa loja de roupas e eu me voltei para o Parque Municipal da Serra do Mendanha e perguntei se seguindo direto nós chegaríamos lá. Foi quando a Gabriela rompeu seu silêncio e entrou na conversa. [sic] Gabriela: Não! O Parque do Mendanha tem que pegar a estrada do Guandu direto. [sic] Adriana: E tem que ir de Kombi né. [sic] Gabriela: Quer dizer, Guandu do Sena... pega a Guandu do Sena toda. A gente podia marcar um dia para ir ao parque natural. [sic] Juliana: Fazer um piquenique. [sic] Gabriela: É, porque lá é um... [sic] Gabriela: Olha os meninos. [sic] Juliana: É... numa casa de videogame. [sic] Gabriela: Isso aí é uma casa de videogame. [sic] Glauci: Tem muitas aqui. [sic] Meninas em coro: Tem. [sic] Glauci: Mesmo com todo mundo tendo computador e celular para jogar? [sic] Gabriela: Mas ainda existe para os viciados e para os que não têm nada em casa. [sic] Juliana: Antigamente eu preferia LAN house, do que computador em casa. Nesse momento a filmagem parou e foi retomada somente quando estávamos na rua do valão, pelo seu lado direito de quem vem da avenida Brasil. As meninas pediram para não gravar, pois elas falavam dos MM’s, forma como os jovens da comunidade geralmente se referem aos “Meliantes UFRJ I FAU I PROURB

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Milicianos”. Elas indicavam uma área de ocupação recente na comunidade (Comunidade Eco Ponto). E eu indaguei: [sic] Glauci: Foi a prefeitura que limpou e organizou tudo? [risos por entre os dentes de Juliana] [sic] Juliana: ... Eles é quem tiraram o mato, os MM’s. [sic] Glauci: Carinhoso isso, MM’s. [sic] Juliana: É carinho pra não precisar falar assim num português claro né. Aí eles limparam tudo e mandaram ocupar. [sic] Glauci: Eles que construíram essas casas. [barulho ensurdecedor de serra misturado ao som de um pagode] [sic] Adriana: Não, eles dão o local pra os moradores construir. Enquanto isso, Gabriela para pela primeira vez de filmar diretamente as meninas falando e volta a câmera para o rio, mostrando que ele estava cheiro de mato. Juliana e Adriana percebem e se voltam para Gabriela. [sic] Juliana: Gabriela! pode falar que isso aqui é o piscinão de Ramos. [sic] Adriana: Isso aqui era um rio que agora virou uma serra né. [sic] Juliana: Aí, na moral, não dá nem “pa” vê a água suja mais, só o mato maluco. Tá doido. [sic] Gabriela: Fala que isso é um rio. [sic] Juliana: Não, isso é um valão... Isso é um valão. [sic] Gabriela: Só que não dá pra se vê, por causa que... O mato o cobriu, como pode se vê. [sic] Glauci: Enche? [sic] Gabriela: Enche sim. Depende muito da chuva, se chover muito, muito, muito. [sic] Juliana: Teve uma vez que eu fiquei desesperada, cheia de água no meu pé. [sic] Adriana: Ai que nojo. [sic] Juliana: Foi dessa vez que eu perdi a minha certidão de nascimento original. Gabriela mais uma mais desvia o olhar para uma situação que jugou pertinente mostrar: uma senhora lavando roupa tirando água de um reservatório. [sic] Glauci: Aqui tem água normal? [sic] Juliana: Tem... aí é gente pobre, mas isso é normal. [sic] As irmãs em coro: Olha o barraco [barraco de maneira]. [sic] Juliana: É a cara do meu irmão. Cara! Parece do Jefferson, tira uma foto... Minhas irmãs lá na frente [referindo-se as éguas]. [sic] Adriana: A Renata e a Tássila. [sic] Juliana: A Tássila é minha irmã mais velha. [sic] Glauci: E quantas irmãs você tem. [sic] Juliana: Na verdade três só. [sic] Adriana: Eu só tenho duas... Graças a Deus! [sic] Juliana: Nunca vim aqui pra esse buraco não! [sic] Adriana: Nem eu. [sic] Juliana: Agora que eu tô vendo. [sic] Glauci: Ué, mas aqui não é o lugar do bonde das meninas. [sic] Juliana: É, mas é por isso mesmo, a gente não gosta de ultrapassar a ponte não. [sic] Glauci: Território do inimigo. [sic] Juliana: Imagina! 20 cabeça e o nosso bonde é 6... Sabe o que que é, eu saia com o primo delas, aí, antes dele sair comigo, ele pegava elas, porque era tudo primo né... de quarto grau. [sic] Adriana: Aí, uma garota da ponte. [sic] Juliana: Meu irmão saiu com essa garota da ponte, aí terminou com ela e ela achou que é minha culpa. [sic] Adriana: Culpa da gente! A gente até pegou briga com ela mês passado. [sic] Glauci: Aí não pode entrar na rua dela. [sic] Juliana: Ela falou que se pegar a gente... vê a gente por lá, vai meter a porrada na gente. [sic] Adriana: É...

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[sic] Juliana: E minha mãe falou assim: se você encostar na minha filha grávida quem vai te pegar de porrada sou eu. Porque a gente não tinha nada a ver com ela... Eu tenho culpa se meu irmão terminou e traiu ela. [sic] Adriana: Eu tenho culpa se ela é toda estragada por dentro e não pode ter filho. Você tá gravando isso Gabriela!? Kkkk. [sic] Gabriela: Cajáaaaa! A filmagem foi interrompida novamente e retornamos pelo mesmo caminho até a estrada da Carobinha. Lá, Gabriela começou a filmar em frente ao baile do Renato. [sic] Adriana: Aqui é que acontece o baile. A caixa de som fica ali [apontando para a esquina], e o Telhadão fica logo ali do lado. [sic] Glauci: São dois bailes ao mesmo tempo? [sic] Adriana: Isso, quando tá tocando junto não dá pra escutar qual música você quer. [Barulho alto de pagode na rua] [sic] Adriana: Pronto. Agora a gente tá descendo pra vê o único mercado da comunidade. [sic] Glauci: Aqui o mercado é caro? [sic] Gabriela: Não, só um pouquinho. As carnes são caras. Ai meu Deus, vão morrer ai... ô, ô, ô! Nós estávamos caminhando pelo meio da rua quando um fusca se aproximou em nossa direção, mas as meninas continuaram falando. [sic] Juliana: Não, o pessoal faz compra de mês aqui. [sic] Gabriela: É, faz, faz. [sic] Juliana: O Guanabara [supermercado] é muito longe! [sic] Adriana: Esse aqui é “os comércio” da milícia. [sic] Gabriela: Ó, eu “tô” gravando quem tá falando. Vocês “tão” falando e eu “tô” gravando vocês. [o barulho de carros passando misturado ao da música era intenso] [sic] Adriana: Ali uma igreja... Tem outra ali. [sic] Gabriela: Aqui é um lugar muito engraçado. Aqui o que tem de centro de macumba, tem de igreja... É igual. [sic] Adriana: Aqui tem uma em frente à outra [igrejas]. [sic] Gabriela: É uma do lado da outra, as igrejas. [sic] Glauci: Tem igreja católica? [sic] Gabriela: Têeeemmm. [sic] Juliana: Eu “tô” andando e o neném também. [sic] Glauci: Isso é bom. [sic] Juliana: Eu que não gosto, ela mexe pra caraca! [sic] Gabriela: Ainda bem que ela mexe né! [sic] Juliana: A Carobinha é um... Um vale né. Você passa por aqui e sai lá do outro lado. [sic] Glauci: Tem outra rua como essa? [sic] Gabriela: Um monte. [sic] Adriana: Só a Guandu que vai direto, mas, não é tão animada quanto a Carobinha. [sic] Adriana: Não, eles dão o local pra os moradores construir. [sic] Gabriela: Porque lá é de gente decente! Aqui é de gente favelada. [sic] Juliana: Pois é, eu moro do lado de lá. [sic] Glauci: Como de gente decente? [sic] Gabriela: Porque não é gente favelada entendeu?! Aí, como eu moro lá, eu sou gente decente. E como elas moram aqui... Aí vem “pro” baile do Renato... Entendeu?! [sic] Glauci: Entendi. Então a gente tem que conhecer o lugar decente. [sic] Gabriela: Vai andar um pouquinho. [sic] Juliana: Pouquinho! [sic] Gabriela: A gente pode fazer sabe o que, ir pela estrada do Guandu. Pela Guandu do Sena, no caso. Porque agora a gente pode parar aqui no pão gostoso. Temos aqui a farmácia. [sic] Glauci: Só tem essa!? [sic] Adriana: Não, tem essa, uma lá na frente e outra lá no final.

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[sic] Gabriela: Não, tem uma perto de onde eu moro que é na quadra 100... Perto, eu não moro na quadra 100... Graças a Deus, Deus me livrou desse mal! [sic] Glauci: O que é que tem na quadra 100? [sic] Gabriela: Muita coisa que não presta. [sic] Glauci: E o que é coisa que não presta? [sic] Gabriela: Porque, é... Quando era bandidagem aqui, aí... [sic] Juliana: O pessoal só ficava lá. [sic] Gabriela: É... o pessoal só ficava lá, então a quadra 100 é tida como favela, como coisa que não presta, como lugar que não presta. [sic] Adriana: Olha o professor! [sic] Gabriela: Ih! [sic] Juliana: Filma o pão gostoso. [sic] Adriana: Aqui é o mercado, o único mercado aqui da comunidade. [sic] Gabriela: Único mercado da comunidade. [sic] Adriana: Super Rede, barato do seu lado... eheheh! As meninas deram uma pausa no caminhar e no diálogo. Adriana conferiu as horas no seu relógio, olhou para os meninos que caminhavam com o professor em nossa direção e foi quando Gabriela retomou o assunto sobre morar no lugar. [sic] Gabriela: Ai, igual quando as pessoas falam: a gente mora no Mendaaaanha, e não sei o que. Pô, mas é tudo a mesma coisa! É praticamente a mesma coisa. [sic] Professor: Tá bom né meu povo.

f)

Organizando o retorno para a associação de moradores

O grupo se juntou novamente em frente ao pão gostoso e Romário tomou a palavra nas filmagens enquanto Gabriela filmava. [sic] Romário: “vamo” se apresentando aí... é isso aí, é o preto fosco [Igor]. Igor acha graça e faz sinal de positivo com as duas mãos. [sic] Romário: É isso aí ó... “Frank”, bonezinho da “Vans”... Ninguém nunca viu essa marca [risos], só ele que tem. Franklynn ri sem graça e sai caminhando de lado. [sic] Gabriela: Calma aí que eu vou dá um close no seu boné. Franklynn ajeita o boné e sorri para a câmera. Gabriela volta-se para Romário como quem espera que ele continue falando. [sic] Romário: Acabou né, isso aí. [sic] Professor: Vamos pro lanche. O fim das atividades diárias no Projovem era encerrado por um lanche ansiosamente aguardado por todos. Nós tomamos o caminho de volta pela estrada da Carobinha.

III.

Terceiro dia: 07 de maio de 2012

No terceiro dia de filmagem, novos jovens apareceram, e nós seguimos por um caminho diferente, porém, novamente o grupo foi dividido entre meninos e meninas.

a)

Filmagem iniciada pelos meninos [sic] Romário: Beleza, tá filmando. [sic] Léo: Aí nem, vai ficar famosa ó. Olha “pa” cá nem... Dá uma rebolada então.

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[sic] Romário: Caraaaaca! Debochado. Entramos então pela Estrada Sete Riachos em direção ao Conjunto Votorantin que os jovens apresentam como sendo a Carobinha. Foi quando receberam a orientação de alguém para parar de filmar. Retomaram as filmagens mais adiante, em frente a um terreno baldio. [sic] Léo: Olha o Romário tirando fotinho [terreno baldio]. Romário? Neste momento o menino que estava com a câmera filmou um ônibus escolar [ônibus da liberdade] passando pela rua, e depois se voltou para o Romário novamente. [sic] Léo: Aí, vai “pro” Vagner Monte, Romário... Manda um passinho 224 aí “pra” ficar bolado. Romário aceita a proposta e começa a fazer a dança do passinho no meio da rua. [sic] Léo: Moleques palhaços né. O professor se aproxima e orienta o menino a filmar a placa de um bar na esquina da Estrada Sete Riachos com a Rua Votorantin. A placa dizia: temos almoço. [sic] Léo: Quer entrevistar alguém, em Romário? [sic] Romário: Quero não, quero não. O menino tentou parar a filmagem, mas não conseguiu operar a câmera, assim continuou filmando o Romário, que agora tirava fotos de outro terreno baldio ao lado da Escola Municipal Professora Enyr Portilho Avellar, e, em quanto acompanhava um funk que tocava na rua. [sic] Léo: [♪] sempre na minha, ela tá vacilando, sempre na minha ela tá vacilando... Aqui é uma escola? [sic] Igor: Não! É uma creche [Casa da Criança]. O menino então, se apoia no muro da creche e filma o pátio de brinquedos que estava vazio. Ele desce e se volta para filmar a Márcia, outra jovem que filmava em detalhes a creche. [sic] Igor: Ô! Não filma minha escola não... Não filma minha escola não [Escola Municipal Cora Coralina]. [sic] Léo: Pô! tem que filmar a escola... É precário aí dentro, tá ligado. É horrível aí dentro. [sic] Igor: Aí dentro... Lá dentro?! [sic] Léo: É... Nesse momento o Igor se adianta e chama o menino que está filmando para entrar na ruína de uma construção. [sic] Igor: Aí... Moradores sem casa “pa” morar. [sic] Léo: Isso aí não pode, tem que pedir permissão [para filmar]. O menino então grita para as meninas que já estavam filmando uma ocupação nas ruídas: [sic] Léo: Qual é... Tem que pedir permissão. Tem gente aí? Tem gente aí? Tem? Ô garota!? O menino faz então uma filmagem panorâmica do local e evidencia que se trata de uma estrutura térrea formada por laje e pilares, que está abandonada. Ao final chama os meninos que estavam distantes. [sic] Léo: Aí Romário... Franklynn... E ele continua filmando ao redor, mas agora dando close na pista de skate e na quadra de futebol ao lado da ruína. [sic] Léo: Ô moleques, vocês vão aonde cara? [sic] Igor: Vamos por aqui. [sic] Léo: Já é.

224

O passinho de funk é um tipo de dança solo comum entre os jovens que frequentam o baile funk.

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[sic] Romário: Vem professor, vem professor, vamos com nós. Romário tenta juntar os meninos, mas o que estava com a filmadora continua dentro da construção abandonada, filmando desta vez o Parque Municipal do Mendanha. Então segue caminhando em direção à quadra onde estava ocorrendo uma partida de futebol. [sic] Léo: capoeira, capoeira. Ação... Ação então. Enquanto o professor finalmente se aproxima dos meninos, Romário anuncia: [sic] Romário: E aí Mané, “tamo” aqui agora, meu nome é Romário. “Se liga” só, agora nós estamos aqui na praça... Praça Votorantin. Dá um bizuzão, essa é Praça Votorantin, essa aqui é a quadra... Externa. Aquela quadra ali é chão normal viu. Ali tem umas paradas de malhar. E é isso aí, a comunidade é isso aí, entendeu? Tá humilde, mas é nossa. Olha o chão. [sic] Léo: Quer mostrar como funciona a malhação lá. [sic] Romário: “Vamo” lá, “vamo” lá “pa” vê como se malha. Caminharam até os aparelhos de ginástica. [sic] Romário: E aí, tá gravando? [sic] Léo: Tá gravando. Romário começou a fazer exercício de flexão na barra explicando como é que se fazia. E depois foi para as barras paralelas e em seguida para a prancha. Em seguida começou a fazer flexão sobre o banco da praça dizendo que eles não tinham todos os aparelhos ali então era preciso improvisar. Eles continuaram andando até que alguém perguntou onde estavam. [sic] Léo: Atrás do “Cora”. Romário apontou então para o chão da rua dizendo: [sic] Romário: Na zona sul não tem isso, olha o estado [rua de terra com poças d’água]. Nesse momento o professor sugere revezar quem estava filmando, mas o menino falou que depois entregava a filmadora para o outro menino. [sic] Romário: Olha o cavalo aqui! [sic] Léo: Não filmo cavalo não... Só égua. Márcia, a menina que estava filmando, se aproximou dos meninos e perguntou o que era aquilo [uma construção antiga] dentro do Parque do Mendanha. [sic] Léo: Aquilo lá é de plantação. [sic] Márcia: É um colégio... Não! É um colégio. [sic] Léo: Aquilo é uma casa antiga, não é um colégio não... Aquilo é a casa dos “português” cara. [sic] Márcia: Que português gente! [sic] Léo: Tem português que tem plantação aí em cima aí cara! [sic] Igor: Pergunta “o” Frank... Aquilo ali é um ex-presídio. [sic] Léo: Tem alguns “português” aqui que... [sic] Igor: Aquilo é um ex-presídio... Aquilo é abandonado. [sic] Léo: ... Tem plantação de chuchu. [sic] Léo: Ah! Presídio! [num tom debochado]. [sic] Romário: Aquilo ali é um cabaré. Discutiram e não chegaram a uma conclusão sobre o que se tratava, então mudaram o foco e continuaram. Foi quando Romário começou a dançar e a cantarolar. [sic] Romário: Olha o Billy Jim [Michael Jackson]. [sic] Léo: Moleque maluco né? Os meninos se aproximaram das meninas enquanto eu indagava sobre o parque do Mendanha. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Márcia: Parque do Mendanha é para lá [lado direito], lá é a Serrinha. [sic] Léo: Parque do Mendanha fica ali assim ô. [sic] Igor: Mas o Parque do Mendanha professora, não sei se a senhora já foi lá, mas pô... [sic] Léo: Fica a leste da serra. [sic] Igor: ... Muito feio... Lá é muito feio. Lá ficam uns maluco lá que anda em cima das nuvens só esperando o cheiro da erva. Lá tem segurança, mas não vale de nada. [sic] Léo: Aqui é o lugar mais seguro do mundo... Da cidade... Do país. É... Aqui ninguém mexe contigo aqui não. “Tu faz” o que quiser. [sic] Igor: Fala que não pode tomar banho naquela cachoeirinha lá, e neguinho toma. Caminhamos pela ruela de terra atrás do “Cora” até a altura de uma rua chamada Caminho do sítio. Lá os grupos pararam e decidiram que caminho tomar. Igor interveio falando que seria melhor tomar o caminho da esquerda, pois já haviam filmado o outro lado que a Marcia queria ir. Porém, acabamos voltando pelo mesmo caminho em direção a Praça Votorantin e entramos pela Rua Hemetério Luiz Antunes, foi quando Romário chamou a atenção para olharmos para o muro da casa da esquina coberta por pichações. [sic] Romário: Olha aqui a obra prima dos moradores. Um morador que estava tomando cerveja no bar da esquina chamou os meninos pedindo para ser filmado. [sic] Léo: Calma aí, calma aí... Relaxa o corpo. [sic] Morador bebendo cerveja: Vira aí cara, me filma aí. [sic] Léo: manda um recadinho “pa” comunidade então. [sic] Morador bebendo cerveja: “Vamo” melhorar a comunidade porque aqui na comunidade Votorantin é todo mundo dez. É seus vereadores e seus governadores... “vamo” fazer aquele trabalho legal aqui nessa praça... essa praça tá merecendo aqui. [sic] Léo: Apresenta seu amigo aí. [sic] Morador bebendo cerveja: Apresento aqui meu amigo gordo, dono do bar. [sic] Léo: Fechamento essa parada... E teu outro amigo ali? [sic] Morador bebendo cerveja: O amigo é morador também. [sic] Léo: Valeu... tranquilo, um abraço aí. Neste momento o professor surgiu e perguntou para os jovens que estavam filmando se eles haviam filmado a bandeira do Brasil grafitada no muro ao lado do bar. [sic] Léo: Tá sofridinha ela né? [a tinta estava desbotada] [sic] Professor: Sinal que ela está antiga. O legal é isso. O Léo observou que tinha outro grafite da bandeira do Brasil na esquina oposta e começou a filmar. Entramos então pela Rua Antônio Carlos de Paiva, nos distanciando cada vez mais da Carobinha. A marcha continuou em silencio por algum tempo até que o menino falou: [sic] Léo: Até que aqui tem umas casinhas bonita né? Mais uma vez a caminhada foi interrompida para negociarem o percurso. Não queriam subir em direção ao Mendanha, pois teriam que enfrentar uma pequena ladeira. Franklynn, que agora estava filmando, se adiantou e falou que quem quisesse ir por ali que fosse, mas que ele ia em direção ao posto. Romário chamou o Franklynn e pediu que filmasse ele e o Léo jogando capoeira na rua. [sic] Romário: Vem, vem, vem. [sic] Márcia: Abre a rodinha aqui. [sic] Romário: O que é isso! Pô... Abre a rodinha?! Vem que vem apresentar um pouco da cultura brasileira. É mais ou menos assim. [sic] Professor: Em ritmo de capoeira e batendo palma [♪] Quem vem, quem vem, quem vem quem vem quem vem, vem... Quem vem, quem vem, quem vem quem vem quem vem, vem... Ih cara! Joga mesmo aí! [Aplausos dos meninos e das meninas] Agora o grupo dos meninos caminhava junto com o das meninas. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Igor: Tinha que ver lá no Projovem Léo. Eu e Romário... Jogava muito lá... lá na igrejinha225. O percurso seguiu até encontramos novamente a Rua Votorantin. [sic] Romário: Ali “rapeize” tem mais uma fábrica ali. Dá um “bizu”, dá um “bizú”. Ali professor, filma aquela fábrica ali ó. [sic] Professor: Isso, boa ideia. [sic] Márcia: É fábrica226 de que? [sic] Romário: Eu moro aqui e não sei. [sic] Professor: Tá na hora de voltar, 16h18min. [sic] Romário: É a Guaracamp. [sic] Igor: Isso é fábrica de ferragem aí. [sic] Milena: Guaracamp é lá cara. Aqui não é Guaracamp não. [sic] Romário: Chega, chega, “vamo” fechar. [sic] Franklynn: Olha o Ronaldinho [imagem do jogador de futebol grafitada no muro]. [sic] Professor: Então vamos até ali pegar a escola [Escola Municipal Casimiro de Abreu] e depois a gente volta. [sic] Romário: Beleza. [sic] Professor: Olha ali, filma o “Vô Bar”. Seguimos mais uns 100 metros pela Rua Votorantin até a esquina da Rua Lino Carlos de Paiva, quando Maria, irmã da Milena, gritou: [sic] Maria: Ih cara peguei! [sic] Professor: O que?! [sic] Maria: Brenão trabalhando [o menino lavava a moto na calçada]. [sic] Romário: Sofredor da carobinha. [sic] Léo: Vou entrar na escola “pa” dá uns beijinhos nas gatinhas... Se tiver também. [sic] Professor: “Vamo” lá meu povo. Franklynn entra na escola e começa a filmar o pátio externo, depois sai e filma o ônibus da liberdade que faz o transporte dos alunos. Em seguida pegamos o caminho de volta, a passos acelerados pela Rua Votorantin. Quando chegamos em frente da construção em ruína, Igor observou que a moradora que ocupava parte do local com uma moradia já havia chegado. Franklynn então a filmou, sentada no sofá da sua “casa” fechando um close. Continuamos acelerados, pois estava na hora do lanche.

b)

Filmagem iniciada pelas meninas

As meninas se organizam em frente à associação de moradores. Maria decide que vai fotografar, Márcia vai filmar e Milena acompanhar. O professor orienta as meninas a filmar e fotografar as faixas informativas. [sic] Professor: Olha, grava a faixa do “pagode do sorriso”. [sic] Márcia: Esse aqui é o famoso prédio rosa [comercio na esquina da Rua da Carobinha com Estrada Sete Riachos]. [sic] Márcia: “Pra” onde a gente tá indo mesmo? Votorantin né? [sic] Professor: Pela... Pela... Passar na pracinha. [sic] Glauci: A pracinha fica no limite da Carobinha? [sic] Márcia: Não... Votorantin é a praça ali do lado do colégio... Não, é que o condominiozinho ali se chama Votorantin. Aquela praça é conhecida como Votorantin. Propaganda dos Correios... Olha o carro dos correios. Só acham até uma parte do Guandu né?! Entregues as cartas. E o resto... Lá “pra” onde a gente mora, a gente nunca viu o carro dos correios. [sic] Glauci: E como é que vocês pegam as cartas? 225 226

Antes de funcionar na Associação de Moradores, o Projovem estava sediado na Igreja Católica. Hidracamp Irrigação e Equipamentos Agrícolas Ltda.

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[sic] Márcia: É um garoto acho... Que fica lá... Um garoto. [sic] Milena: Vai, vai, eu sou o Cristo Redentor... Continua me fotografando. [sic] Márcia: O 802 o único ônibus que passa no Guandu, que passa mais ou menos de 1 em 1 hora... E isso é o mais rápido que se tem. Como é que os caras da Globo conseguem andar e não tremer a câmera?! [sic] Milena: Filma aqueles malucos ali. [sic] Márcia: Ô! Se for roqueiros não são malucos não! Alguém durante a caminhada faz menção ao prédio rosa e Márcia afirma que o gravou. [sic] Márcia: Eu graveeeei. Eu peguei o prédio rosa. [sic] Maria: Caraca! Olha aí o zoológico. [sic] Márcia: Não é totalmente um terreno baldio... Um sitiozinho. [sic] Matheus: Olha a casa do cracolândia. [sic] Márcia: Quase a minha casa... Do ladinho pô... Não é não pô? [sic] Matheus: [cracolândia] É na quadra 99. [sic] Márcia: Não, a quadra 99 só tem cra... Cracudo né!? [sic] Maria: E a quadra 100, rsrsrs? [sic] Milena: kkkkkk. [sic] Márcia: Evolução de cracudo é o que?! [sic] Milena: Óxi227... “oxsudo” né. [sic] Meninas em coro: kkkkkkkkkk. [sic] Matheus: Não, é sério... Márcia onde é a quadra 99? [sic] Márcia: É antes da quadra 100 e fica depois da 98 [sem deboche]. [sic] Milena: Ó, vou apresentar. Aqui é o colchão [beco sem nome próximo a bifurcação entre a Estrada Sete Riachos e Rua Votorantin]. [sic] Márcia: Colchão?! Kkkk, e o que significa? Uhu... O ônibus da liberdade transporte de alunos da prefeitura. [sic] Milena: Que eu pego todo dia... 07h30minh da manhã. [sic] Igor: Você tá me filmando Márcia?! [sic] Márcia: Você sabe se eu te filmei? Você nem aparece contra a luz! Seguindo orientação do professor, Márcia informa que agora nós já estávamos na Rua Votorantin. [sic] Professor: Isso... Rua Votorantin. [sic] Igor: Professor, tudo aqui é Mendanha. [sic] Márcia: 802, o único ônibus que passa no Guandu [filma novamente]. Olha, está contradizendo o que eu estou falando. Eu falei que passa de 1 em 1 hora e pela primeira vez passou em menos de 10 minutos. [sic] Professor: Viu. [sic] Márcia: É porque estamos aqui na gravação. Qual o nome dessa rua, alguém sabe? Isso aqui tem nome por um acaso? [sic] Milena: Acho que é barro ou colchão, não sei. [sic] Márcia: Colchão de novo! Deve ser o colchonete ou parte dois do colchão. Ih! “Ah lá!” passei anos da minha vida nessa rua... Meu antigo colégio, tipo... Meu primeiro colégio. [sic] Professor: É aqui? [sic] Márcia: É aqui, a Casa da Criança. [sic] Milena: Isso é uma creche. [sic] Márcia: É essa aqui! A Casa da Criança. Eu não tive creche, eu vim direto “pra” cá. Geeeente! Quanto tempo eu não entro nessa casinha [casinha de bonecas]. Márcia começa a filmar o pátio da Casa da Criança por cima do muro com tom nostálgico. [sic] Márcia: Quanto tempo eu não entro nesse colégio. Eu estudei aí há 10 anos.

227 “(...)

Óxi ou oxidado, uma droga parecida com o crack, só que mais devastadora. (...) Enquanto o crack é obtido a partir da mistura e queima da pasta base com bicarbonato de sódio e amoníaco, no óxi são utilizados cal virgem e algum combustível, como querosene, gasolina e até água de bateria, substâncias que barateiam o custo do entorpecente” (BALZA, UOL Notícias, online, 30/04/2011). UFRJ I FAU I PROURB

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[barulho das crianças no horário do recreio – lanche] Márcia continua filmando o pátio da escola enquanto o grupo seguia. [sic] Márcia: Esse aqui é um colégio [a Casa da Criança] e aquele ali ao lado, se não me engano, é o colégio da Glorinha [Márcia chama a Maria às vezes pelo seu segundo nome – Maria da Glória]. [sic] Glauci: Você nunca estudou aí não [no Cora Coralina]? [sic] Márcia: Não, nunca estudei aí não. Mas já passei anos da minha vida esperando ônibus aí “pra” ir “pra” Campo Grande no meu colégio. Márcia para novamente, desta vez no portão da Escola Municipal Cora Coralina e filma o pátio. Depois para alguns segundos a câmera voltada para uma placa da prefeitura que informava sobre obras de reforma das unidades escolares nas áreas das 6ª a 10ª CRE. De longe Igor fala qualquer coisa para perturbar a Márcia que responde: [sic] Márcia: Ele tem algo contra mim, isso é bullying... Isso é bullying. Olha o tiozinho, melhor que eu, porque eu “tô” a pé e ele tá de moto. Milena que já está mais distante, para em frente à construção em ruínas e grita para a Márcia perguntando o que era aquilo, e Márcia responde: [sic] Márcia: Isso... Se eu não me engano, ia ser um posto [posto de saúde], aí abandonaram a obra. [sic] Milena: Aí, uma senhora que não tinha casa veio morar aqui. [sic] Márcia: Isso... Mas aí abandonaram a obra, eu não sei o que aconteceu... Aí deu nisso... Olha! Do lado de um colégio, ratos, baratas e cobras. [sic] Milena: Tem gambá, só do grandão, tem vê. [sic] Márcia: Ih! Eu fui lá “pro” parque ontem [Parque do Mendanha] e encontrei vários gambás mortos... Professor. [sic] Romário: lá na macumba tinha vários. [sic] Márcia: Vocês estão com medo de passar aqui?! [sic] Maria: Esse lugar deveria ser um posto de saúdo e “tá” sendo moradia de pobres, mendigos. [sic] Márcia: rsrsrsrs... De pessoas muuuito mal distribuída. Calma aí, calma aí que tem que gravar a estrutura da obra. Caramba! Eu não tinha notado isso, o teto vai cair! Caralhocas! Vamos entrevistar uma moradora da construção abandonada... E olha que o único posto daqui é longe “pa” caraca viu. Cadê a moça que mora por aqui? Uhu, ô de casa? Ô de casa? Enquanto Márcia grita pela moradora, as meninas fotografam e observam que na casa tem tudo, incluindo comida, mas que o cheiro é insuportável de urina. [sic] Márcia: Acho que vou vomitar [por causa do cheiro]. [sic] professor: estão queimando lixo ali. [sic] Márcia: Corre, corre é furo de reportagem. Que isso! Maria! Sai de perto, vai explodir isso aí. Nossa! “Tá” um eco do caramba aqui! Perto de moradias, putz! Agora que eu me liguei. Hmm! Maior cheiro de loló, cruzes! Bom, “pra” quem não sabe, loló é maconha. Neste momento Márcia filma os meninos do grupo que estão próximo ao campo de futebol negociando o caminho que irão seguir e gritando para o professor seguir com eles, que pede para os meninos filmarem o lixão, mas é ignorado. É então que Márcia se volta para a praça. [sic] Márcia: Uma praça decente, mas não tão decente porque tem materiais e cascalhos de obras. O professor volta-se para Márcia e pede para ela filmar a pista de skate. [sic] Professor: Márcia, pega o skate. [sic] Márcia: Oi! Mas olha o estado da rampa... Putz! Como é que eu vou andar com o meu skatinho aqui?! [sic] Professor: Essa seria uma pista de skate.

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[sic] Márcia: Isso é! Dá “pra” ver que é uma pista de skate. Não faz sentido eles colocarem as paredes novas se a própria praça está em decadência. [sic] Professor: Bom, vou monitorar os meninos ali. [sic] Márcia: “Tão” te chamando lá “prof” vai lá! Márcia para e fica filmando a academia da terceira idade ao lado da pista de skate. [sic] Márcia: Bom, aqui tem academia da terceira idade. Ih! A lá... Futebol, quanto tempo eu não jogo mano. Ih! A lá... Comlurb228! Caraca! Nem eu sabia que tinha isso. Como é que os moradores não sabem que tem isso. Poxa! A união de ambos os grupos [meninos e meninas] Neste momento, todos estavam na parte de trás da Praça Votorantin, e foi quando Romário começou a fazer ginástica nas barras e na prancha. Márcia interrompe a filmagem e retoma quando todos estavam já no beco de chão de terra atrás do “Cora”, e enquanto caminhava: [sic] Márcia: Ih! A lá... Tá tocando “Sugar229”, eu vou voltar... Uma música decente. Até que enfim eu encontrei um lugar decente! Faltou a Gabriela. [sic] Glauci: Sabe que caminho é esse? [sic] Márcia: O nome do caminho eu não sei não, mas eu sei aonde vai dá. Vai próximo ao curso [Projovem]. Vamos sair na Carobinha. Detalhe: a gente tá andando no barro, no barro puro. Pô... Tinha que “tá” de “olympikus” e não de “all star”. Manicure! Quanto “tá”? Nossa! R$14,00! Caro! Deve ser muito chato morar aqui. [sic] Glauci: Por quê? [sic] Márcia: Não, lá onde eu moro, só tem mato, o rio e mais mato e é muito chato morar lá, imagine aqui? Aqui, silêncio... Lá, pelo menos, tem crianças brincando. Bom, nós estamos atrás do colégio Cora Coralina. Márcia fica filmando as poças de lama no beco, os cavalos e os patos dentro da casa de uma moradora. Os meninos observam a casa dentro do parque do Mendanha e o diálogo sobre o que era aquela casa se desenrola entre ser presidio, escola e etc. E no final Márcia interroga. [sic] Márcia: cadê a Glória (a Maria)? Onde essa menina foi? Rua da Liberdade. Neste momento os meninos e as meninas negociam novamente o percurso e enquanto isso, os meninos ficam transitando para lá e para cá até que resolvem tomar o caminho de volta até a Praça Votorantin. [sic] Márcia: Voltando tudo de novo para gravar o Votorantin... Entrando no Votorantin [Rua Hemetério Luiz Antunes]. [sic] Professor: Pegaram a bandeira do Brasil? [sic] Márcia: “Tá” muito antiga. [sic] Igor: Aí, em vez de ficar filmando os outros, pega aquela bandeira lá. [sic] Márcia: Brasil. Márcia caminha um tempo em silencio capturando a paisagem local formada por casas térreas e comercio local. [sic] Márcia: Cara! Todo mundo gravando todo mundo! É isso mesmo? Agora, já na esquina da Rua José Drumond, os jovens param para discutir novamente o percurso, ponderando que não subiriam em direção ao parque do Mendanha por conta da ladeira. Foi quando Franklynn interveio informando que iria em frente. [sic] Franklynn: Eu vou por baixo. [sic] Márcia: É isso aí. Este é o momento que todos param para observar a roda de capoeira entre Romário e Léo, e logo depois dos aplausos.

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Companhia Municipal de Limpeza Urbana. Banda de rock alternativo dos Estados Unidos.

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[sic] Márcia: Ô Franklynn! Já acabou já. Mais a frente Marcia observa que o quilo da batata está R$1,00 exaltando que é o lugar mais barato que ela já viu. Neste momento ela volta olhar primeiro para o comercio local e depois para as casas. [sic] Márcia: Nossa gente! Essas casas têm TV a cabo. Atingimos a fábrica que eles não sabiam do que era e o professor anuncia que estava na hora de voltar para o lanche. [sic] Márcia: Gente, “vamo” lanchar. O professor sugere então irem até a Escola Municipal Casimiro de Abreu antes do lanche. [sic] Márcia: Voltando a gravar... Nossa! A Casimiro de Abreu evoluiu muito. [sic] Maria: É... Ela era rosa... [sic] Márcia: Ela era rosa! Neste momento Maria pega o amigo Breno lavando a moto na calçada, e logo em seguida seguem para a escola e começam a filmar o inspetor do portão. [sic] Márcia: E aí! Qual é o seu nome? [sic] Inspetor do portão: Romero. [sic] Márcia: Roberto? [sic] Inspetor do portão: Romero. [sic] Maria: Olha “pra” mim, olha “pra” mim, esse é o Romero que trabalha na escola Casimiro. Eu estudei aqui. [sic] Márcia: Nunca estudei, mas sempre fiquei no ponto esperando o ônibus... Pelo que eu me lembre, esse colégio era rosa e não azul. [sic] Maria: Evoluiu bastante... Grava as mães esperando o ônibus da liberdade. [sic] Maria: Uau! Quanto matoooo. Bom, a famosa Estrada do Mendanha. O final dela vai parar no Largo do Mendanha onde corta a Rua Guandu e é a entrada “pra” Serrinha. E para o outro lado é a entrada para a Avenida Brasil... Gloria [gritando] “tão” chamando a gente, “vambora”. E no caminho de volta Márcia retomou a filmagem. [sic] Maria: Bom, 850 [linha de ônibus]. Não estamos mais no Guandu, estamos no Mendanha. Vamos voltar para o curso gravando. Bom, a melhor pessoa “pra” “tá” gravando e comentando seria a Gabriela, Mano Gabi, mas ela não está né! Tive que pegar o posto, mas eu sou uma horrível comentadora... Vamos, vamos ter que alcançar aquela “povada” lá... rsrsrs. Vamos dá uma corridinha? Gravando? [sic] Maria: “vamo”, “vamo”. Márcia e Maria correram até encontrar o restante do grupo. [sic] Márcia: Imitei o cinegrafista da Globo correndo no meio do tiroteio. O professor para e pede para Maria fotografar um muro ecológico feito com sucatas de pneus, e para a Márcia gravar. Elas fazem prontamente. [sic] Márcia: Ai, eu estou ofegante. Não andamos nada... Quer conhecer o Guandu? Vai ter que andar muuuuito. [sic] Maria: Corri tanto que o meu coque desmanchou... Tenho que cortar o cabelo! “Tá” muito grande. [sic] Márcia: O meu também, cortei o meu no meu aniversário, “tava” “pequetucho”, agora “tá” grande. Tem que cortar de novo. Eu queria cortar moicano. [sic] Maria: Ai. [sic] Márcia: Mas como eu sou menor de idade e minha avó não fez nenhum pouquinho de chantagem né... [fala da avó reproduzida] “se você cortar moicano você vai arrumar outro lugar para você morar porque comigo você não mora”. “Tá” bom... Com essa gentileza toda. [sic] Milena: Caraca! “Tô” tão gorda.

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[sic] Márcia: “Tá” de sacanagem! Vou mostrar uma amiga minha que aí sim você vai ver o que é gorda... Minha amiga Larissa tem que vê. Claro, se clicarem no meu perfil, lá “vão vê”. E claro, me adicionem no facebook... Márcia Cristina. Esqueci de divulgar. Meu Orkut foi excluído por tanto tempo que eu não uso... Dois mil e tantas fotos. Caraca! Andei muito. Chegamos novamente à Praça Votorantin onde se tocava uma uma música em um quiosque, Márcia seguiu cantarolando. [sic] Márcia: [♪] (...) Faltou luz mas era dia... di-ia. Faltou luz mas era dia, dia, dia.230 Neste momento Maria e Márcia se aproximaram dos quatro meninos que estavam no quiosque controlando o som. [sic] Márcia: Qual o nome dessa barraquinha? [sic] Menino do quiosque: Quiosque do “Churbs”. [sic] Márcia: Valeu. Os meninos que estavam jogando futebol na quadra pediram para serem gravados por Márcia. É então que ela constata que a moça que mora na ocupação da ruína havia voltado e corre para lá. [sic] Márcia: Boa tarde. [sic] Moça da ocupação: Não, não [em estado defensivo] [sic] Márcia: Não Moça, relaxa. Só “tamu” gravando “pro” Projovem. Neste momento a Moça avança em direção as meninas e elas saem correndo. [sic] Márcia: Ela não quer ser gravada Maria. Marcia passa em frente à Casa da Criança no momento da saída e fala que sente saudade de ser daquele tamaninho. Ela se debruça no muro e filma as crianças no parquinho de brinquedos. [sic] Márcia: Olha que graça! Cara que bonitinho... Oiiii... Tudo bem? Oi meninho, qual é o seu nome? [sic] Criança 1 no pátio: Luiz [acena com uma das mãos]. [sic] Márcia: Oi Luiz, eu sou a Márcia, tudo bem? Manda um beijo “pra” câmera. Qual o seu nome menininho? [sic] Criança 2 no pátio: Wesley. [sic] Márcia: Wesley manda um beijo “pra” câmera. [Criança 2 no pátio manda um beijo] [sic] Márcia: Ah! “Brigada” amor. Sabe que eu já estudei aqui. [sic] Criança 2 no pátio: Aqui? [sic] Márcia: Na época tinha uma piscina... É... Eu já fui pequenininha. [sic] Criança 2 no pátio: Você era bebezinha? [sic] Márcia: Não bebezinha. [sic] Criança 2 no pátio: Aqui tem de creche... [sic] Márcia: É, mas eu não estudava aqui quando era creche não. [sic] Criança 3 no pátio: Mas aqui... Tem peque...nininho aqui. [sic] Márcia: É... Qual o seu nome baixinha? [a criança 3 demora em responder o nome] [sic] Criança 3 no pátio: Maria Luísa. [sic] Márcia: Ôooo Maria Luísa, tudo bem? A professora das crianças chega ao pátio e as repreende. Márcia desce do muro e sai. Igor e Romário chegam e chamam a atenção de Márcia dizendo que não pode filmar as crianças dentro da escola. Ela concorda desligando a filmadora, e finalmente seguem para o lanche.

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Música do “O Rappa” chamada “O que sobrou do céu”, composta por: Falc, Lauro Farias, Marcelo Lobato, Marcelo Yuka, Xandão. Album “Lado B Lado A” de 1999. UFRJ I FAU I PROURB

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IV.

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Quarto dia: 11 de maio de 2012

No quarto dia de campo os jovens preferiram desenvolver a atividade interna de preencher o mural que havíamos montado. O tema do mural estava concentrado na ideia de bairro através daquilo que eles identificaram como serviços ou atividades existentes na localidade, porém qualificando entre o que era bom, ruim ou faltava. Nesta dinâmica foi possível visualizar usos percebidos pelos jovens como sendo importantes para os seus cotidianos. Neste dia Franklynn resolveu filmar um pouco enquanto as meninas montavam o mural. [sic] Franklynn: Essa é a professorinha. [sic] Gabriela: “Tô” de TPM hoje. [sic] Franklynn: Aquelas ali são as menininhas aí. [sic] Gabriela: Roubalheiras ela, elas são roubalheiras, são funkeiras. Ficam até cantando musiquinha de “senta na cabecinha”. [sic] Franklynn: E aquela lá... [sic] Juliana: É a música do bonde. [sic] Gabriela: A música do bonde é o “palavrão”. [sic] Franklynn: E aquela lá é ela e aquela lá é a outra que eu não sei o nome delas duas. Essa aqui é a Milena, e o professor cismando com água, todo dia é isso, todo dia ele vem com aguinha. Eu já falei “pa” ele comprar uma coca-cola “pa” gente. Ele não compra... O que que tem de ruim, se for falar o que que tem de ruim no bairro, o mural vai ficar pequeno. [sic] Glauci: O que é que tem no bairro? [sic] Franklynn: No baile? [sic] Glauci: No bairro. [sic] Franklynn: Ah, se fosse no baile eu ia falar brigas, confusões, gente morrendo, milícia batendo em meia dúzia. [sic] Gabriela: Professora, você pode colocar no mural “pra” mim, por favor. No lado ruim. [sic] Milena: Pega ali as folhas “pa” mim, as duas vai, a rosa [ruim] e a verde [bom]. [sic] Gabriela: [♪] vote em Cristo, para presidente da sua vida231... Falta lazer. [sic] Glauci: E o que tem de bom? [sic] Juliana: O transporte. [sic] Gabriela: kkkkkkkkk. [sic] Juliana: O transporte porque a gente mora perto da Avenida Brasil. [sic] Gabriela: Ai cara, vocês são bobas demais, na moral. Não me grava. [sic] Professor: Escola. Tem escola? [sic] Franklynn: Tem até demais. [sic] Professor: Tem segundo grau pra todo mundo, ensino médio pra todo mundo? [sic] Franklynn: Teeeem. Uma só ali [sic] Gabriela: Não, segundo grau não tem não. [sic] Glauci: Quem estuda aqui dentro da comunidade. [sic] Franklynn: Eu. Eu estudo aqui dentro. [sic] Adriana: Eu nem estudo. [sic] Glauci: Olha só! Tem mais coisa boa. Eles falaram tanto, mas tem mais coisa boa que ruim. [sic] Franklynn: Hmmm quer que eu comece a escrever? O ruim é o rosa, calma aí professora. [sic] Adriana: Falta trabalho. [sic] Professor: Rede de esgoto pra todo mundo tem? [sic] Franklynn: Tem, o valão passa ali. [sic] Professor: Esgoto a céu aberto, isso é ruim. [sic] Franklynn: “A lá”, tá escrito isso lá. [sic] Adriana: Eu escrevi. [sic] Professor: Tem... Coleta de lixo, cursos profissionalizantes, cultura tem... Um teatro? [sic] Gabriela: Não.

231 Música chamada “Vote em Cristo” de Lito Atalaia e provérbio X. Interpretada pelo grupo musical de Rap Cristão

Provérbio-X. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Professor: Falta cultura. [sic] Gabriela: Não têm ruim aqui as coisas, mas só falta. [sic] Professor: Atividades culturais? Neste momento Franklynn pede para filmar a etiqueta rosa que ele preparou e dizia que faltava saneamento básico. Tabela 11: Transcrição do mural construído pelos jovens: “o que é bom, o que é ruim, o que falta na comunidade da Carobinha no Rio de Janeiro”. BOM RUIM FALTA Baile. Esgoto aberto. Lazer. Sossego, tranquilidade, a minha Falta saneamento básico. Asfalto. igreja, e correr durante a noite brincando de pique-ajuda. As praças o posto e as escolas que Falta limpeza das ruas, e dos rios. Escola. é de lá que vê o nosso futuro. Transporte. As ruas de barro, esgoto, a céu Trabalho. aberto. Falta de trabalho, atividades culturais e etc. Falta limpeza dos rios que estão Asfalto, dragar o rio, escola para o cheios de matos, bichos mortos, 2º grau perto de casa. UM bactérias de montão. GOVERNO DESCENTE. Faltam cursos profissionalizantes, Falta de limpeza, falta área de culturas e projetos sociais no lazer. bairro. O saneamento básico. As pessoas (não em geral).

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[sic] Franklynn: Pelo menos o básico. [sic] Professor: Cultura! Atividades culturais. [sic] Franklynn: Falta, mas mesmo assim se aparecer ninguém vai fazer. [sic] Glauci: Porque ninguém vai fazer? [sic] Professor: É uma boa discussão. Se aparecer uma “lona cultural” aqui ninguém vai frequentar um show? [sic] Franklynn: Ah vai. Tinha um circo ali que enchia. [sic] Glauci: E o que tinha lá? [sic] Franklynn: Show dos Backyardigans. [sic] Juliana: Ai, legal. Eu ia. Encheu “pa” caraca. [sic] Adriana: Eu adoro eles. [sic] Glauci: Mas porque você acha que atividade cultural não vai fazer sucesso? [sic] Franklynn: [risos] Porque… Proque o povo daqui... [sic] Adriana: É porque os pessoal daqui são tudo antipático. [sic] Gabriela: É. Os pessoal daqui são tudo antipático. [sic] Professor: É porque é falta de prática... O ser humano acostuma com o que é ruim, não vai acostumar com que é bom? [sic] Adriana: É. Sabe o que acontece. Os pessoais adoram as coisas ruim entendeu, e as coisa boas esquece. [sic] Professor: Não, o pessoal se adapta ao que é ruim. [sic] Franklynn: Posso escrever que falta segurança? [sic] Glauci: Pode... É o que você acha? [sic] Juliana: Eu acho muito caro a segurança “deles” [milicianos]. [sic] Adriana: 20 Reais! [sic] Glauci: Por mês? [sic] Adriana e Juliana: [em coro] Por semana! [sic] Franklynn: Caraca! Vocês paga? [sic] Juliana: Minha mãe. [sic] Franklynn: Eu não pago não. [sic] Glauci: Só os comerciantes que pagam? [sic] Franklynn: É. [sic] Glauci: 80 Reais por mês? [sic] Juliana: Não. Depende do comércio. Se lucra mais pede mais caro. [sic] Glauci: Como se fosse um shopping?! Condomínio de shopping é assim. [sic] Franklynn: Eles pedem 5 Reais por mês de um maluco que corta cabelo lá na 100 [quadra]. [sic] Juliana: 5 Reais só! [sic] Franklynn: Eles querem lucrar de qualquer jeito. [sic] Glauci: Lá tem comércio na quadra 100? [sic] Todos: Tem. [sic] Gabriela: E muito. É um do lado do outro lá. [sic] Glauci: Mas do jeito que vocês falam. [sic] Juliana: Não é o fim de mundo também não. É porque lá é um lugar muito afastado. [sic] Franklynn: É porque os pessoal de lá é mais do que antipático. Acho que ninguém gosta dos pessoal de lá. [sic] Glauci: Mas por quê? Eles são diferentes? [sic] Franklynn: Não... Eles são do lado ruim da população. [sic] Glauci: Eu não consegui entender esse “lado ruim da população”. [sic] Professor: Vamos lá então. [sic] Juliana: Eu não vou. [sic] Professor: Porque tu não vai? [sic] Juliana: Porque eu não gosto da 100. É muito longe. [sic] Adriana: Eu não conheço... Eu só fui lá duas vezes com o pessoal da escola de ônibus. [sic] Glauci: É um lugar tão péssimo assim. [sic] Franklynn: Não é um lugar péssimo. É que ninguém gosta de lá entendeu. [sic] Glauci: Não entendi. [sic] Gabriela: Ah! Ninguém sabe. Por isso que todo mundo fala: Ah, você mora na 100. Eu falo, eu não moro na 100, eu falo que eu moro depois. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Juliana: É porque tem uma fama muito ruim da época dos bandidos aqui [tráfico de drogas]. [sic] Gabriela: É, uma fama muito ruim. [sic] Glauci: Então vocês não vão por conta da fama? [sic] Juliana: Não, porque eu não gosto de lá mesmo. [sic] Franklynn: Os moleques de lá são feios, gostam de arrumar briga. [sic] Glauci: Hoje não tem mais tráfico. Mas isso é uma quadra só ou é uma região? [sic] Gabriela: É como se fosse a Carobinha, uma região que deram o nome de quadra 100. [sic] Franklynn: Não é longe, longe não, dá “pa” ir andando em 20 minutos. [sic] Meninas: Só se for “pra” você. [sic] Franklynn: “Tá” de brincadeira! É porque vocês dão dois passos e para né. [sic] Adriana: ô, quando eu vou lá “pro” final... [sic] Glauci: Onde é o final, é depois da quadra 100? [sic] Franklynn: Não, o final da Carobinha é antes. [sic] Glauci: Então quadra 100 não é Carobinha. [sic] Adriana: Aí professora, quando eu vou lá “pro” final da Carobinha eu demoro 40 minutos. [sic] Glauci: A carobinha que você fala é a rua? [sic] Adriana: É, imagina ei ir “pra” quadra 100. Eu ia demora 1 hora e meia, duas horas. [sic] Glauci: Mas lá passa ônibus? [sic] Gabriela: Não. [sic] Glauci: Kombi? [sic] Gabriela: Kombi. [sic] Franklynn: Cadê o coisa [dicionário] professor. Acho que escrevi aqui errado. [sic] Milena: “Tá” errado professor? [sic] Professor: “Cursos profissionalizante”. Não, é só colocar o “s” no final. [sic] Milena: Viu Franklynn. [sic] Juliana: Agora só tem coisa ruim no mural. [sic] Glauci: Mas foi o Franklynn. [sic] Franklynn: Ainda falta mais um. [sic] Professor: Faltou escrever dos rios... Praças. [sic] Juliana: Não tem nem praça, mas a praça “tá” em obra. [sic] Gabriela: Aí, vai abrir uma praça lá na quadra 100. [sic] Glauci: Lá vai ficar bom então. [sic] Adriana: Nada, eu “tava” namorando um garoto lá da quadra 100 e terminei com ele porque é muito longe. Quando ele falou: “eu moro na quadra 100”... [sic] Gabriela: [♪] vote em Cristo, para presidente da sua vida. Neste momento Franklynn pediu para completar o seu caderno de vivências urbanas e falou que circulava muito, pois trabalha em São Cristóvão como jovem trabalhador na “Imprensa da Cidade”. [sic] Professor: Ô Franklynn, faz uma pesquisa lá pra min se a Imprensa da Cidade publica livro pagando. [sic] Franklynn: Acho que particular pode. [sic] Juliana: Professora. Eu mijei nas calças ontem de noite. [sic] Glauci: Sério? [sic] Juliana: Sério. [sic] Professor: Olha que comédia, filma isso. [sic] Glauci: É que ela tá grávida, ela pode. [sic] Gabriela: Claro que não! Tá maluco. [sic] Franklynn: O que você falou antes professora? [sic] Glauci: Se você trabalha direto com a palavra, escrevendo? [sic] Franklynn: Não, eu fiquei no setor de escrever um tempo, mas preferi o acabamento... Os papel a gente dobra. É mais zoação, o outro lugar era muito certinho. [sic] Adriana: Ei! Que hora é? [sic] Franklynn: 16h11min. [sic] Adriana: Ei! Vamos na feirinha. [sic] Franklynn: Fazer o que na feirinha? Abre seis horas! UFRJ I FAU I PROURB

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Antes de finalizar as atividades com o tradicional lanche, as meninas perguntaram para o professor sobre vasectomia. Ele explicou como era feita a cirurgia e que não alterava em nada no homem, pois ele mesmo já havia feito.

V.

Quinto dia: 25 de maio de 2012

As atividades no Projovem funcionaram de forma desordenada durante duas semanas, pois mudariam de orientador social. Fomos informados da saída do Sérgio e da chegada de três outros orientadores que se revezariam por semana. Contudo, quando cheguei com a Odinéia, orientadora social da semana, nós fomos recebidas pelo ex-presidente da associação de moradores que relatou ter sido obrigado a abandonar suas atividades por apoiar um candidato a deputado estadual diferente do orientado pelos milicianos do local. A família dele recebeu “ordem de despejo” e tinha o tempo contado para sair da comunidade. O fato ocasionado resultou no encerramento das atividades do Projovem, que foi impedido de continuar lá pelos milicianos. Asupervisão regional do programa ponderou que não seria conveniente continuar lá, por representar risco para os jovens e para os orientadores. Não foi possível então continuarmos em campo com os jovens que já haviam marcado uma visita à quadra 100, desde que fossemos de ônibus. Para conhecê-la, nós tivemos que entrar em contato com uma morada que participava da associação e cuidava da interlocução entre a direção da associação dos moradores e os milicianos. A visita foi agendada somente em setembro de 2012 e no período noturno.

VI.

Sexto dia: 27 de setembro de 2012

Nesse dia encontrei com Denise na passarela da Avenida Brasil no final da tarde. Antes de irmos para a quadra 100, ela informou que teria que pegar sua filha de oito anos na escola. Seguimos então de Kombi até a Escola Municipal Casimiro de Abreu. Quando Ariel, filha de Denise saiu, ela pediu uma carona no ônibus da liberdade, nós entramos e seguimos. Denise é moradora do lugar e fala sobre cada rua, as melhorias e mudanças que ocorreram, e ao percorrer as ruas ela encontra alguns moradores que participam da filmagem com seus comentários e conversas; a partir desses comentários podemos perceber que a convivência entre eles é bem próxima. Denise percorre os arredores da quadra 100 e encontra outra moradora e começam a falar sobre as mudanças ocorridas no local, que é asfaltado, mais ainda tem algumas ruas perpendiculares sem asfalto, com muito mato e sem estrutura. A história que foi vivida por muitos moradores foi compartilhada através da filmagem, como se fosse um enredo contado por mais de um autor, onde detalhes e percepções iam se completando e descrevendo uma realidade que está mudando. [sic] Denise: Os becos (becos sem asfaltos)... de antigamente... Hoje isso aqui é um paraíso, não é?! Fala pra ela... [sic] Moradora 1: É!! Minha filha. [sic] Denise: ela não conhece, hoje aqui é um paraíso!!! Hoje é um paraíso! [sic] Moradora 1: É, é mesmo. [sic] Denise: Antigamente uma hora dessa a gente não podia, entrar aqui. [sic] Moradora 1: Poxa!!! É verdade minha filha. [sic] Denise: Moradora 1! É moradora antiga daqui. [sic] Glauci: Ah é... [sic] Moradora 1: Hoje a gente pode dormir de porta aberta. [sic] Denise: Hoje agente dormi de porta aberta. [sic] Moradora 1: Também minha filha, às oito horas nós tinha que tá... [sic] Glauci: Toque de recolher! [sic] Denise: Era!! Toque de recolher mesmo. Às cinco horas da tarde... [sic] Glauci: Dá até gosto de cuidar das coisas, né... rsrsr. UFRJ I FAU I PROURB

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[sic] Moradora 1: É minha filha, agora é! [sic] Denise: Às cinco horas da... às cinco horas da tarde aqui, a gente entrava ali já tinha o primeiro contato, não podia nem passar... [sic] Moradora 1: O quê!? Ram... [sic] Denise: Essa é a quadra 100. Ainda pertence à quadra 100, tudo isso aqui, ainda pertence. Ao final da rua principal Denise fala sobre os outros becos que são perpendiculares, e outra área da região que se chama Bibliópolis. [sic] Denise: Hoje tem uma ponte, antigamente não tinha aquela ponte ali. [sic] Glauci: Esse é o valão. [sic] Denise: É o valão. Tudo aqui são assim... são becos que tem vielas de casas, uma... uma perto da outra. [sic] Glauci: A temperatura aqui é mais gostosa. [sic] Denise: É!!! Por causa da serra. [sic] Glauci: É, tem montanha. [sic] Denise: Então, aquele lado que os meninos falaram que é roça, que é o lado de lá. Aqui e Bibliópolis. [sic] Glauci: Bibliópolis?! Depois eu vou fazer o mapa e te mostrar... rsrs. [sic] Denise: Aqui eu conheço tudo... rsrs. Aqui é conhecido como a Jaquera, no bairro... Ja..., Aqui é Jaquera purque [por que] tinha uma jaquera [jaqueira] que ficou muito famosa, na época. [sic] Glauci: Aí cortaram a jaqueira. [sic] Denise: É, purque [por que] marcou uma época muito ruim do bairro. [sic] Glauci: Ah é? [sic] Denise: Rurum. Avenida canal. [sic] Glauci: Mas é Avenida Canal? [sic] Denise: É o, Avenida Canal. Alá! Tira foto da placa oh, Avenida Canal. [sic] Glauci: Engraçado, né! Por que ela não tem tamanho de avenida. [sic] Denise: É... Avenida Canal. [sic] Glauci: Aí a Carobinha vai por aí.... [sic] Denise: Nossa... não, aqui ainda pertence a quadra 100. Isso tudo aqui ainda é quadra 100. [sic] Glauci: É por isso que eles chamam do fim do mundo. [sic] Denise: É... é aqui! Aqui que é o fim do mundo. [sic] Glauci: Por que tá no matinho. [sic] Denise: É aqui é o fim... realmente aqui, era... nossa!!! Aqui foi muito pior já, muito pior. [sic] Glauci: O quartel general [tráfico de drogas] era aqui pra dentro. [sic] Denise: Era aqui atrás, era aqui. [sic] Glauci: Diziam que eles matavam e não deixavam... [sic] Denise: Aqui era, Jaquera. [sic] Glauci: Aqui. [sic] Denise: Cortaram a jaquera, por conta disso. [sic] Glauci: É, era feito aqui. [sic] Denise: Era, tudo era feito aqui. [sic] Denise: Olha o nosso rio! O nosso rio, tadinho, abandonado o meu bichinho. O nosso... o nosso rio, o nosso rio abandonado e ainda quando, quando tem chuva, chuvareu aqui... enche isso aqui. Olha a jaquera, a famosa jaquera. Aqui Glauci a famosa jaquera. [sic] Glauci: É essa. [sic] Denise: É essa aí. Pensei que tinham cortado ela, ela foi famosa. Ela já foi muito famosa, a jaquera. [sic] Denise: Essa aqui é a jaquera, se ela falasse... [sic] Glauci: Se ela falasse... [sic] Denise: Ela foi testemunha de muita coisa, muitos horrores que aconteceram aqui. Aqui pertence ao morro da Torre. [sic] Glauci: Fica? O morro da Torre é o que? [sic] Denise: O morro da torre é uma... é uma área principal de só... só vegetação, plantação. [sic] Glauci: Mas é a Carobinha? UFRJ I FAU I PROURB

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CIDADE EMOÇÃO

[sic] Denise: É, é a Carobinha. Aqui ainda é tudo Carobinha. Tudo Carobinha. Aqui eu conheço tudo nesse lugar. Aqui que os adolescentes têm vergonha de dizer que existe. [sic] Glauci: Que existe depois do rio. [sic] Denise: É, Bibliópolis. [sic] Glauci: Tem uma menina que... a Gabriela mora aqui...hum. [sic] Denise: Ô bonitinha!!! [menina na rua] Você conhece alguma menina por nome de Gabriela, aqui? [sic] Menina na rua: Gabriela? [sic] Denise: É! [sic] Menina na rua: Gabriela de quê? [sic] Denise: Que fazia... Projovem!!! [sic] Menina na rua: Não. Só conheço uma Gabriela, que a mãe é costureira. [sic] Denise: Não, aí eu não sei se é. [sic] Denise: Aqui já é Bibliópolis. Não é isso? [sic] Ariel: Aqui é Mina. [sic] Denise: Mina e Bibliópolis, ali na frente. [sic] Glauci: Mina e Bibliópolis. [sic] Ariel: Aqui já é Mina, já! [sic] Denise: É a principal. [sic] Glauci: Mina por quê? Por que tem uma Mina aqui. [sic] Denise: É por causa desse, desse... dessa nascente aí. [sic] Glauci: Mina d’água? [sic] Denise: É. Aqui já foi muito ruim, hoje em dia é um paraíso, apesar da lama, é o paraíso. [sic] Glauci: É. [sic] Denise: Venho aqui, agente vai andar mais aqui. Vem filha. Aqui tá asfaltadinho, direitinho agora. [sic] Glauci: Lá pra cima tá asfaltado, tem obra, como que é? [sic] Denise: Lá pra cima dá, vai dá praquele (para aquele) matagal que eu te falei, que é do outro lado. [sic] Glauci: Mas lá tem obra normal. [sic] Denise: Tem, tem casas normais. [sic] Glauci: Como assim, quando você fala asfal... calçamento? [sic] Denise: Calçamento que os próprios moradores fazem, né. Eles mesmos se unem e fazem o calçamento da rua, dos becos, pra eles subirem. Eles mesmos fazem. É aqui que os adolescentes têm vergonha de mostra que moram. Denise continua percorrendo a Rua e começa a conversar com uma criança que mora no local. Neste momento o foco da filmagem muda; passa ser a criança, que está curiosidade de ver sua imagem e filmar como Denise. Logo depois que filmou o menino, olha para o parque do Mendanha, admirando e mostrando a beleza desta paisagem, capturando sua imagem pela máquina. No percurso algumas vezes os moradores e a paisagem chamavam a atenção de quem estava filmando, mais do que a história ou a condição do local. [sic] Denise: Aí que lindo!... [fala da Denise enquanto filma o Parque do Mendanha]. Bom, aqui já é a tal da Bibliópolis, que não é tão ruim como já foi um dia. O pessoal tem vergonha por causa da lama, por causa da enchente do rio, por que dá enchente. Aqui dá enchente no rio. Filha pro cantinho, pro cantinho, o cavalo. [sic] Moradores que passam a cavalo: Boa Noite. [sic] Glauci e Denise: Boa noite. [sic] Glauci: rsrsr. Pode tirar foto? [sic] Denise: Ah? Deles?! Pode! Eles são moradores do lugar. [sic] Glauci: Ah tá, por que se não... [sic] Denise: São moradores da... da roça, pessoal que vive da plantação. Tem um lugar bonito pra você filmar, é... Que fala di... que tem plantação, que tem roça, roçado, aí você tem que vir aqui com... é que, é na quadra 100 também. Bom, aqui você que ir pra mais algum lugar por aqui mesmo, de referência à quadra 100 agente já veio. Vamos voltar? Aí você pode seguir a quadra 100 toda agora. Pode fechar ela, desligar ela, Fechar? [sic] Glauci: Pode. Eu ainda não... UFRJ I FAU I PROURB

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CIDADE EMOÇÃO

Já era noite e começamos a retornar. Ariel e Denise desligaram a filmadora. E um pouco mais a frente, Ariel pediu para filmar. Observávamos a rua e sua condição, foi quando apareceu um menino, surpreso e curioso que observa Ariel filmando. Bastou Ariel falar com ele, para que conversassem. O foco da filmagem mudou, do local para o morador, que era a criança. [sic] Menino na rua: Jeferson, tá tirando foto de tu. [sic] Ariel: Tiro foto dele. [sic] Jeferson: Tá tirando foto de mim. [sic] Ariel: AH? [sic] Jeferson: Tá tirando foto de mim. [sic] Ariel: Tó, tirando foto de você. [sic] Menino na rua: Tira de mim também. [sic] Ariel: Tirando foto de você. [sic] Jeferson: Cada eu?! [sic] Ariel: Tá aqui grava... guardado. [sic] Jeferson: Deixa eu vê. Tia deixa eu fazer um pouquinho? [sic] Denise: Ah, não pode, não pode pegar. [sic] Glauci: Fica parado que eu tiro. [sic] Denise: Ele quer ficar famoso, ele quer ver ele na, na máquina. Tiramos fotos das crianças que queriam ver suas imagens na máquina e resolvemos ir embora caminhado, após constatarmos que a quadra 100 não é um lugar diferente fisicamente do restante da comunidade. Sua diferença está no fato de ter sido o local onde o comando do tráfico de drogas se concentrava e operava seus desmandos.

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CIDADE EMOÇÃO

ANEXO 2 CADERNO DE VIVÊNCIAS URBANAS: TRANSCRIÇÃO Nomes

Tabela 12: Transcrição do “Caderno de Vivências Urbanas” com os desenhos feitos pelos jovens do Projovem Carobinha. Para você, qual a imagem que melhor Quais os espaços para lazer que você usa na Habitualmente, como você se desloca na representa o seu bairro? cidade? cidade?

Qual a imagem melhor representa a Cidade do Rio de Janeiro?

É um lugar bonito e moderno. Onde eu moro tem muitas igrejas evangélicas, muitos centros de macumba, e várias escolas e muito mais.

Um lugar bonito.

Praia do Oi que é na Barra.

Eu me desloco da minha casa para Campo Grande de Kombi. Para ir para cidade eu vou de ônibus ou metrô.

Desenho que esboça a Estátua do Cristo Redentor.

O lugar onde eu moro é sem graça. Não tem nada de bom e é repetitivo. Todos os dias acontecem a mesma coisa. Só é bom o futebol de todos os dias. Na minha rua é que é o melhor lugar, com os moleques. O meu pensamento sobre habitação, é habitar uma cidade onde as pessoas vivem em paz, com as pessoas habitando descentemente e com harmonia, e não um bando de vândalos que não habitam em lugar nenhum. Eles são um bando de vândalos que só servem para vandalizar um habitante natural. Vamos viver em paz e ter uma habitação adequada para todos.

Resumindo: muito feio. Desenho que reproduz o campo de futebol do Votorantin com suporte de arquibancadas e camarote que não existem. A referência geográfica para situar a quadra é a presença no desenho do matagal e do “esqueleto” (construção abandonada) que fazem fronteira com o campo, além da escola Cora Coralina.

Eu vou ao Maracanã e Engenhão e nas praias da Barra da Tijuca, Ipanema e Flamengo, e no mar vermelho (praia), e na Quinta da Boa Vista lá no Zoológico.

Eu me desloco do meu bairro para a cidade de ônibus, metrô, trem, Kombi e van. Vou para vários lugares do meu Rio de Janeiro.

O Cristo Redentor e as praias do meu Rio são as melhores representações de Rio de Janeiro.

O lugar que eu moro é um pouquinho ruim, pois não tem NADA. Para nos divertirmos temos que sair de casa e ir para outro lugar. É muito chato porque não tem adolescente da minha idade e os que têm só gostam de jogar bola, soltar pipa e ficar correndo para cima e para baixo que nem malucos. Eu não sairia do lugar onde moro, pois é um lugar onde eu tenho paz e tranquilidade de espírito, só que melhorasse em muitos

Tranquilidade. Desenho com duas árvores que sustentam uma rede com uma pessoa, e ao lado uma barraquinha de água de coco.

Praia, escola e igreja.

Eu pego o ônibus para ir para a escola, uma Kombi para ir para Bangu ou Campo Grande.

O Cristo Redentor. Desenho do Cristo Redentor com um sol ao fundo, e uma trave de gol para futebol.

Como é o lugar que você mora?

Adriana Silva (irmã da Juliana) 14 anos

Franklynn Gomes 17 anos

Gabriela Reis 16 anos

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CIDADE EMOÇÃO

aspectos e o primeiro seria o saneamento e a drenagem do rio, pois todas as vezes que chove muito forte o rio enche, transborda, e enche a minha casa e as casas de outros vizinhos. Queria que colocassem pelo menos um campo ou uma praça em frente à minha casa, onde tem um “sítio”, pois ele é grande e tem bastante espaço para que algum deputado (ou seja lá o que for) possa fazer a praça. Concluindo, o lugar onde eu moro é chato, mas é bom ao mesmo tempo, existem pessoas que estão piores ou não tem lugar onde morar.

Igor Tobias Barbosa

Não respondeu.

Não respondeu.

17 anos

Feio, esculachado, ruas cheias de buracos. Valas, escolas e bailes. Desenho que representa parte da estrada da Carobinha margeada por um salão, ponto de moto taxi e quadra de futebol de um lado. Do outro lado, buraco, o Programa Projovem e uma pequena mata as margens da Avenida Brasil.

Campo do Flamengo. Desenho de uma enorme quadra de futebol.

Praia. Desenho de uma praia com pessoas nadando.

O lugar onde eu moro não tem muitas novidades, sempre acontecem as mesmas coisas, mas é um lugar calmo e bom para se morar. Tem muitas religiões. Aqui não tem muitos lugares para se divertir, mas aqui é legal. Desenho representando uma rua com casas dos dois lados.

Um lugar calmo.

Eu vou para a praia da Barra da Tijuca. Vou a Campo Grande comprar roupa para a minha filha. Vou à casa dos meus parentes em Nova Iguaçu.

Eu desloco a base de van, Kombi e ônibus.

O Cristo Redentor. Desenho do Cristo Redentor com um sol ao fundo.

Calmo até demais, mas tranquilizador, onde eu posso pensar na vida e na maioria das vezes esquecer os meus problemas. Bom, esquecer parcialmente, pois os problemas como saneamento básico e a falta de infraestrutura não nos ajuda muito. Na verdade, não nos ajuda em nada. Sendo assim, [um lugar] calmo, tranquilizador e preocupante.

Escondido da sociedade. Desenho representando o vale com a Serra do Mendanha ao fundo e uma placa indicando a direção para Bangu a partir da estrada Guandu do Sena.

Muitas praças e ruas, sendo elas: a Praça do Parque Leopoldina, a Praça de Guilherme da Silveira, a praça popularmente conhecida como Largo de Bangu, e praças nos shoppings Bangu e Jardim Guadalupe, entre outros.

A pé, de ônibus e de bicicleta.

Nenhuma imagem representa melhor o Rio de Janeiro, pois esta cidade é constituída de muitas imagens. Separando-as, não representam nada. Agora, juntas representam a “Cidade Maravilhosa”, com suas comunidades e seus magníficos prédios, praias e principalmente cidadãos.

Juliana (irmã da Adriana) 16 anos

Marcia Cristina Silva do Nasciment o 17 anos

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CIDADE EMOÇÃO

Maria da Gloria Souza da Silva (irmão da Milena)

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

16 anos

É tranquilo, animado, tem praças que dá para curtir, o que mais tem é igreja, macumba, tem também nos finais de semana bailes funks, pagodes que é o lugar da maioria. Porém em muitas ruas faltam asfalto, no meu bairro há muitas escolas, “mas” na minha opinião é preciso melhorar (na reforma, nos professores, etc....) é um lugar bonito! Desenho representando a praça do Votorantin com a pista de skate, o campo de futebol e mesinhas.

Animado! Desenho representando o Baile do Renato.

É muito bom de viver. Desenho que representa uma pessoa se deslocando de bicicleta em direção a uma casa, e duas brincando de pipa em uma praça com arvores, trepa-trepa, escorregador e balanço. Não respondeu.

A praça mais as ruas onde os carros passam. Desenho de paisagem vegetal com pássaros.

As praças que são as principais áreas de lazer. Desenho de praça com balanço e trepa-trepa.

Sem texto. Desenho de ônibus indo em direção à escola.

O Cristo Retentor porque ele representa a parte mais forte do Rio de Janeiro. Desenho do Cristo Redentor sobre colina.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Não respondeu.

Milena Joyce Souza da Silva (irmã da Maria) 14 anos

Romário 17 anos

Léo 17 anos

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