Ciencia cidada nas redes digitais

May 26, 2017 | Autor: Victor Barcellos | Categoria: Epistemologia, Redes Sociais Digitais, Ciência Cidadã
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES VICTOR GOMES BARCELLOS

CIÊNCIA CIDADÃ NAS REDES DIGITAIS

São Paulo 2016

Victor Gomes Barcellos Nº USP 8545253

Ciência cidadã nas redes digitais

Monografia

de

graduação

apresentada à Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes,

Curso

de

Comunicação

Social: Habilitação em Relações Públicas. Orientador: Prof. Dr. Massimo Di Felice.

São Paulo 2016 1

Victor Gomes Barcellos Nº USP 8545253

Ciência cidadã nas redes digitais

Monografia

de

graduação

apresentada à Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Curso de Comunicação Social com

habilitação

em

Relações

Públicas. Orientador: Prof. Dr. Massimo Di Felice.

Aprovada em: ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________

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AGRADECIMENTOS Seria impossível citar todos aqueles que, em minha trajetória na Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), “terra de hecatombe dos meus pré-juizos” como bem a definiu meu colega Eli Borges, contribuíram para meu crescimento e aprendizado. Entretanto, não posso deixar de citar alguns deles. Quero agradecer em primeiro lugar à minha mãe, que tem feito de tudo para que eu tivesse a melhor educação possível e que, acreditando em meus sonhos, sempre foi minha principal incentivadora. Agradeço ao professor e amigo Mauricio Felicio, que logo no primeiro ano me encantou e continua a inspirar minha trajetória acadêmica. À professora Lucilene Cury, responsável por me iniciar na vida de pesquisa, que me ofereceu diversas oportunidades para aprender e, mesmo tão cedo, já participar das atividades de docência. Erick Roza, sempre disponível quando precisei de orientações, também merece toda a minha gratidão. Minha querida amiga Caroline Somera, grande apoiadora que se uniu a mim na missão de nos formarmos no período ideal: muito obrigado. Também dedico esse espaço aos três melhores amigos que fiz nesse período: André Eler, com quem sempre posso contar, Pedro da Conceição, que é ao mesmo tempo um amigo e um ídolo para mim, e Gabriel Bonnucceli, pelos excelentes rolês e conversas. Quero agradecer ao professor Massimo Di Felice, que por meio de suas aulas e obras ofereceu bases fundamentais ao meu pensamento. Ao Alexandre Abdo, que mesmo de longe contribuiu significativamente com a minha introdução nas questões aqui discutidas. E por fim à Erika Hingst-Zaher e Luciano Lima, que me receberam muito simpaticamente no Observatório de Aves do Instituto Butantan e me ofereceram informações essenciais para o desenvolvimento deste trabalho.

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“De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o Velho Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia

de

quem

busca

o

conhecimento, o mar, o nosso mar, está

novamente

provavelmente

nunca

aberto, houve

e tanto

‘mar aberto.’“ Friedrich W. Nietzsche 4

RESUMO O surgimento do paradigma da complexidade, a concepção da sociedade em rede e o advento das redes digitais estão produzindo profundas mudanças na Ciência. Entretanto, faltam referências sobre como na prática a pesquisa acadêmica passa a se desenvolver nesse contexto, bem como que novos atores e relações se tornam constitutivos desse processo. Então, escolheu-se investigar como a prática da Ciência Cidadã na observação de aves por meio das redes digitais está abrindo novas possibilidades para a ornitologia, o estudo das aves. Ao fim se pretende, com o relato de tal experiência, apontar para as possibilidades e desafios que se apresentam à pesquisa científica na Contemporaneidade.

Palavras-chave: Comunicação Digital; Epistemologia; Ciência Cidadã; Observação de Aves.

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ABSTRACT The emergence of the complexity paradigm, the design of the network society and the advent of digital networks are producing profound changes in science. However, there is a lack of references on how the academic research practice starts to develop in this context, as well as new actors and relationships become constitutive of this process. We then chose to investigate how the practice of Citizen Science in birdwatching via digital networks are opening new possibilities for ornithology, the study of birds. At the end it is intended, with the account of this experience, point to the opportunities and challenges facing the scientific research nowadays.

Key words: Digital Communication; Epistemology; Science Communication; Citizen Science; Birdwatching.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Portal eBird ............................................................................................. 38 Figura 2 - Ocorrência da Arara-azul-grande no eBird.............................................. 39 Figura 3 - Portal Wiki Aves ...................................................................................... 41 Figura 4 - Ocorrência da Arara-azul-grande no Wiki Aves …...…………………...... 42 Quadro 1 - Ciência Moderna e Ciência Contemporânea ……………………....…… 17

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SUMÁRIO 1.

Introdução - Zarpando ao mar aberto.......................................................................... 9

2.

Ciência, Tecnologia e Sociedade............................................................................... 11

2.1.

Do Positivismo para a complexidade ......................................................................... 12

2.2.

Das tecnologias analógicas para as digitais .............................................................. 14

2.3.

Do campo para a rede............................................................................................... 15

2.4.

Ciência Moderna e Ciência Contemporânea ............................................................. 17

3.

As novas epistemologias ........................................................................................... 19

3.1.

Como a Ciência se desenvolve e se organiza ........................................................... 19

3.2.

Epistemologia reticular e rizomática .......................................................................... 20

3.3.

Ciência e redes digitais ............................................................................................. 22

4.

Ciência Aberta............................................................................................................. 24

4.1.

Sociedade aberta ...................................................................................................... 24

4.2.

Definição ................................................................................................................... 25

4.3.

Ramos de atuação .................................................................................................... 26

4.4.

Desafios .................................................................................................................... 27

5.

Ciência Cidadã ............................................................................................................ 28

5.1.

Definição ................................................................................................................... 28

5.2.

Experiências ............................................................................................................. 29

5.3.

A questão da validação ............................................................................................. 31

5.4.

Desafios .................................................................................................................... 31

6.

Observação de aves e as redes digitais.................................................................... 33

6.1.

A prática da observação de aves .............................................................................. 34

6.2.

O Observatório de Aves do Instituto Butantan ........................................................... 35

6.3.

Ornitologia em rede ................................................................................................... 36

6.3.1.

eBird ...................................................................................................................... 38

6.3.2.

Wiki Aves ............................................................................................................... 41

6.4.

Análise dos resultados .............................................................................................. 43

Considerações finais ......................................................................................................... 45 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 46

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1. Introdução - Zarpando ao mar aberto A Ciência se apresenta cada vez mais de forma complexa, em rede e digital. Três fatores que contribuem para isso podem ser destacados: a emergência do paradigma da complexidade, o advento das tecnologias digitais e o surgimento da concepção da sociedade em rede. Assim, este trabalho busca estudar as mudanças atuais produzidas na Ciência por esses três fatores, bem como as possibilidades que se abrem à Pesquisa nesse contexto. A Epistemologia, por esses motivos, passa a se apresentar de novas formas, usando outros entendimentos para se organizar, agora reticulares e rizomáticos. Apresentar-se-á o movimento pela Ciência Aberta, que milita para que essas mudanças se estabeleçam de fato na academia. E, dentro dele, a prática da Ciência Cidadã, que abre o processo científico para o público em geral interessado no problema de pesquisa. Com isso, ressaltar-se-á a relação inexorável entre Ciência e Democracia. E, por fim, para analisar na prática como a Ciência está sendo afetada, analisar-se-á como a Ciência Cidadã nas redes digitais estão alterando a Ornitologia, o estudo das aves. O uso de plataformas digitais, a participação de pessoas de todos os tipos, a alimentação de bancos de dados a todo momento e lugar, e o financiamento coletivo de pesquisas estão oferecendo possibilidades para esse ramo da Biologia jamais antes vistas. Essa nova forma de se fazer Ciência se evidencia no próprio desenrolar deste trabalho: desenvolvido no contato com pesquisadores de outros países, na consulta de diversas referências digitais, com a contribuição de pessoas de fora da Academia, entre diversas outras características que poderiam ser citadas. Fatos que corroboram o que se defende aqui e justificam essa contribuição, ainda que humilde, para uma abertura cada vez maior da Ciência e sociedade como um todo. Como forma de tornar este Trabalho de Conclusão de Curso também uma experiência de Ciência Aberta, pretende-se disponibilizar a presente monografia em meu perfil na plataforma Academia.edu. Além disso, será publicado um resumo dela no Blog cienciaaberta.net e atualizados os verbetes no Wikipedia relacionados ao tema de pesquisa.

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Michael Nielsen, na obra Reinventing discovery: the new era of networked science, destaca o potencial das mudanças em curso: Improving the way science is done means speeding up the rate of all scientific discovery. It means speeding up things such as curing cancer, solving the climate change problem, launching humanity permanently into space. It means fundamental insights into the human condition, into how the universe works and what it is made of. It means discoveries we’ve not yet 1 dreamt of. (NIELSEN, 2012, p. 232)

Os horizontes se abrem para a Ciência. As ondas batem no casco de seu barco. Caso permaneça imóvel, será naufragada por elas. Mas se aceitar o desafio da Odisseia, de zarpar a mar aberto e enfrentar os Poseidons em seu caminho, sem a esperança de um dia atracar em uma Ítaca, mas certos do favor de Atena, poderá conhecer muitos mistérios de si e da natureza. A aventura da descoberta vale por si mesma.

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Otimizar a forma como a ciência é feita significa acelerar o ritmo de toda descoberta científica. Isso significa acelerar coisas como a cura do câncer, a resolução do problema das alterações climáticas, o estabelecimento da humanidade de forma permanente no espaço. Significa conhecimentos fundamentais sobre a condição humana, sobre como o universo funciona e do que ele é feito. Isso significa descobertas que ainda não sonhamos. (NIELSEN, 2012, p. 232, tradução nossa)

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2. Ciência, Tecnologia e Sociedade

É cada vez mais evidente a necessidade de se estudar Ciência, Sociedade e Tecnologia em conjunto. Apesar de sempre estarem ligadas ao longo da história, apenas recentemente está se tornando mais clara a relação intrínseca entre esses três fatores. Essa relação, contudo, não pode ser entendida como determinista e linear, e sim simbiótica e dinâmica. A Epistemologia, disciplina que faz dialogar Filosofia e Ciência e onde se encontram as reflexões a respeito de como se dá o processo do conhecer, encontrase diante de um novo desafio. Suas análises, dessa maneira, precisam passar por esses três níveis, ou cairão no reducionismo dos fenômenos constituintes da Ciência. Por isso, analisar-se-á as transições que essas três esferas estão passando na Contemporaneidade. No âmbito científico, há a transição do paradigma positivista para o da complexidade. No tecnológico, a mudança daquelas analógicas para as digitais. E no social, a passagem de uma sociedade em campo para aquela em rede. Essa análise pretende-se simétrica, não estabelecendo hierarquia entre esses fatores, mas apenas os destacando e interligando entre si. Como ressalta Manuel Castells: É claro que a tecnologia não determina a sociedade. Nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta científica, inovações tecnológicas e aplicações sociais, de forma que o resultado final depende de um complexo padrão interativo. (CASTELLS, 1999, p. 43)

Dessa consciência vem se desenvolvendo uma área de estudo e pesquisa chamada Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Diversos cursos estão se originando, grupos de pesquisa estão sendo criados e livros organizados a respeito da temática ao redor do mundo. Trata-se de um esforço prático e teórico para desenvolver as relações entre esses âmbitos, de forma a pensar tanto historicamente seu desenvolvimento como as perspectivas futuras. Pode-se fazer uma crítica à postura geralmente humanista, dicotômica e essencialista da técnica que essa área tem tomado. Isso porque tende a pensar a Ciência e a Tecnologia como algo que pode ser usado para o bem ou para o mal, 11

restringindo o debate à questão moral, e não mais profundamente, no nível da estética e da ontologia. Entretanto, este trabalho pode ser entendido como uma contribuição a essa linha de estudo que vem ganhando importância e comporta grande potencial crítico para os rumos da Ciência contemporânea.

2.1. Do Positivismo para a complexidade Cada revolução científica acompanha uma revolução social e uma revolução tecnológica. A primeira virada a ser apresentada é no âmbito paradigmático, entendendo o termo no sentido kuhniano, definido como De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc…,partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções propostas por quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal. (KUHN, 2006, p. 218)

Nele, opera-se a transição do paradigma positivista para o paradigma da complexidade, passagem essa teorizada pelo filósofo francês Edgar Morin. Segundo o autor, o conhecimento científico, desde o seu início, baseou-se na simplificação, que pode ter sua origem identificada com o pensamento de René Descartes. Assim, sujeito (res cogitans) e objeto (res extensa) eram tidos como entidades totalmente separadas, e o primeiro teria a capacidade de descrever objetivamente os fenômenos. Para isso, era preciso simplificar o máximo possível o que se pretendia estudar, num processo de “disjunção e redução” (MORIN, 2015, p. 77), e linearmente se poderia chegar a respostas cada vez mais gerais. O paralelo entre Descartes e Morin é de uma simetria muito interessante, sendo ambos filósofos franceses. Assim como o primeiro tem um Discurso sobre o método (2001), o segundo também tem seu O Método (2013). Se um pode ser considerado o fundador da Filosofia Moderna, o outro pode ser considerado o fundador da Filosofia Contemporânea. O paradigma cartesiano, quando aplicado à ciência, levou o nome de Positivismo. O conhecimento científico passa a ser concebido como o único discurso válido a respeito da realidade, e que se desenvolvido por métodos válidos levaria ao 12

progresso humano, bem como à dominação da natureza. Isso levou a um experimentalismo e um empirismo avançado, pautados pelos valores da objetividade, ordem e precisão. Essa forma de pensar, apesar de ter sido revolucionária para a época, possibilitando diversas descobertas, levou a uma “inteligência cega” (Ibidem, p. 9). Isso porque levou a uma fragmentação das ciências, retirou o observador do ambiente (teoricamente, porque na prática ele sempre esteve lá) e impediu de enxergar as relações entre as partes e delas com o todo. Então, o que Morin propõe é o paradigma da complexidade. Entretanto, é preciso entendê-la como “uma palavra-problema e não uma palavra-solução” (Ibidem, p. 6). Na definição do próprio autor: A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. (Ibidem, p. 13)

No pensamento complexo, o sujeito é reinserido no ambiente, enxergando-se como parte dele. A observação não é tida mais como neutra, mas participante, sendo a produção de conhecimento não apenas descrição, mas criação. Reconhece-se as limitações da Razão, bem como a legitimidade e necessidade de outros tipos de conhecimento. E as diversas disciplinas voltam a dialogar entre si, transpondo o esquartejamento a que haviam sido submetidas. Todavia, a complexidade não vem para substituir a o pensamento simplificador, e sim para se colocar em dialogismo com ele. É precisamente onde a simplificação se mostra insuficiente que ela se apresenta. Não se faz tábula rasa da forma de pensar anterior, muito menos se mantém preso a ela. Essa virada paradigmática produzirá efeitos que não podem ser previstos, mas que em muitas áreas já foram sentidos, como se verá no estudo de caso, visto que o que afeta um paradigma, isto é, a pedra angular de todo um sistema de pensamento, afeta ao mesmo tempo a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica, e por consequência a prática, a sociedade, a política. (MORIN, 2015, p. 54)

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2.2. Das tecnologias analógicas para as digitais Cada revolução tecnológica acompanha uma revolução científica e uma revolução social. Por mais que todo saber esteja de alguma forma ligado à técnica, pode-se dizer que aquele científico é caracterizado por uma relação ainda mais intrínseca a ela, tanto que costumam aparecer juntas na expressão técnicocientífico. A Ciência se vale da Técnica para suas descobertas e a partir delas cria novas técnicas que a permitem fazer novas descobertas, num processo cíclico. Entretanto, nem sempre se pensou as duas coisas, Ciência e Técnica, em conjunto. Harari (2016), historiador mundial, ao discorrer sobre a Revolução Científica na obra Sapiens: uma breve história da humanidade, afirma que Antes de 1500, ciência e tecnologia eram campos totalmente separados. Quando Bacon associou os dois no início do século XVII, foi uma ideia revolucionária. (HARARI, 2016, p. 270).

E, quando pensados, costumava-se partir de uma visão instrumental e essencialista da técnica. Ela, contudo, precisa ser entendida num sentido mais amplo, como no entendimento da Teoria do Ator-Rede (TAR), desenvolvida principalmente por Bruno Latour (2012). Não há um domínio específico da técnica que possa ser separado dos outros, mas apenas redes sociotécnicas. O que há é a mediação, realizada por agentes humanos e não humanos, que em sua interação dinâmica constroem a realidade. Seu papel na busca pelo conhecimento é ativo, e não passivo como se costuma pensar. Não é apenas uma extensão do cientista, mas um fator tão importante quanto ele no processo. Uma nova técnica traz consigo não apenas seus aspectos instrumentais, mas também uma nova experiência de mundo, uma nova forma de se estar nele. “Uma técnica não é nem boa, nem má, tampouco neutra.” (LÉVY, 1999, p. 26), e por isso precisa ser pensada no âmbito ontológico e estético antes do moral. Dito isso, pode-se observar que, no âmbito tecnológico, o que acontece na Contemporaneidade é o advento daquelas digitais, tendo entre seus principais pensadores o filósofo Pierre Lévy. Toda a informação disponível passa a ser virtualizada e traduzida em linguagem digital. “O cenário pós-moderno é essencialmente cibernético-informático e informacional.” (BARBOSA in LYOTARD, 14

1988, p. vii). Entretanto, isso não quer dizer que enfim se tenha alcançado a utopia do conhecimento total, “não significa de forma alguma que ‘tudo’ pode enfim ser acessado, mas antes que o Todo está definitivamente fora do alcance” (LÉVY, 1999, p. 161). O ciberespaço se desenvolve nessas plataformas e se tornou o principal local de produção e compartilhamento de conhecimento, chamado também pelo filósofo de “memórias dinâmicas” (Ibidem, p. 157). Nele, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet pode contribuir com seu desenvolvimento. A velocidade de tal produção de dados também é afetada, multiplicando-se exponencialmente. E a quantidade desses dados também, formando o que se designa por Big Data. Há, assim, uma nova forma de se relacionar com o conhecimento: Com esse novo suporte de informação e de comunicação emergem gêneros de conhecimento inusitados, critérios de avaliação inéditos para orientar o saber, novos atores na produção e tratamento dos conhecimentos. (Ibidem, p. 167)

Se até o momento a cultura impressa moldou os entendimentos e processos científicos, a cultura digital vem os transformando. Dessa maneira, as formas como se produz, armazena e legitima o conhecimento estão sofrendo profundas mudanças nas ambiências digitais.

2.3. Do campo para a rede Cada revolução social acompanha uma revolução científica e uma revolução tecnológica. Ao longo da história, as sociedades usaram diferentes modelos para se enxergarem. Essas concepções influenciam a Ciência, pois é cada vez mais claro seu caráter social, o que se deve muito ao surgimento da Sociologia da Ciência, com seus expoentes Thomas Kuhn e Robert K. Merton. Harari destaca também essa relação: Mas a ciência não é algo que acontece em algum plano moral ou espiritual superior, acima do restante das atividades humanas. Como todas as outras partes da nossa cultura, é definida por interesses econômicos, políticos e religiosos. (HARARI, 2016, p. 281)

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Um desses modelos, mais recente, é o de campo, desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bordieu (2003). Segundo essa concepção, a sociedade (ou macrocosmo) pode ser compreendida como uma reunião de diversos campos, sendo eles relativamente autônomos, pois obedecem a leis próprias. Dentro de um campo, há uma estrutura das relações objetivas que rege as ações dos agentes, sendo determinada pelo capital simbólico. Por conta do pertencimento ao campo, esses agentes adquirem disposições, denominadas habitus, que os identificam, diferenciando daqueles de outros campos. Então, a Ciência também poderia ser vista como um campo. Cada ciência (biologia, física, sociologia, etc.) guardaria relativa autonomia das demais, e mesmo do macrocosmo social. Os cientistas, participantes desse campo, seriam possuidores de um habitus, que legitimaria seu discurso. E sua participação no campo vista apenas como uma forma de adquirir mais capital científico, buscando se tornar um dominante do campo. Entretanto, a organização da Ciência como campo vai de encontro a uma Ciência que se pretenda Aberta e Cidadã (o que se definirá mais a fundo adiante). Isso porque estaria restrita àqueles que são pertencentes ao campo e possuidores de seu habitus. Práticas científicas que não retornem em capital não seriam realizadas porque não motivariam os agentes. E as diversas disciplinas ficam impossibilitadas de diálogo entre si, justificado pela sua autonomia. Dessa maneira, uma forma de se pensar o social alternativamente é a de rede, estudada por o sociólogo Bruno Latour. Em Reagregando o social (2012), argumenta que o social não pode ser entendido como algo que “já está agregado” (LATOUR, 2012, p. 17), dado como pronto. Deve ser entendido, dessa forma, como uma “busca de associações” (Ibidem, p. 23), evidenciando um tipo de conexão específico entre coisas que são sociais. E se formando pelo “movimento peculiar de reassociação e reagregação” (Ibidem, p. 25). O social científico em rede sim vai ao encontro de uma Ciência Aberta e Cidadã. Ele está aberto à participação de todos os interessados, sendo a conexão a única condição para tanto. As disciplinas estariam abertas para diálogo entre si, possibilitando a interdisciplinaridade que a complexidade propõe e o mundo atual exige. E ao invés de uma busca por capital, as intervenções na pesquisa seriam

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motivadas pelo simples interesse com o objeto de estudo. No campo se busca o poder, na rede, a potência. Atualmente essas duas formas de se pensar socialmente a ciência, como campo e como rede, apresentam-se na Academia conjuntamente, e as características de ambas se fazem presente. Entretanto, como aqui se argumenta, a visão de campo traz consigo limitações que a de rede pode transpor, levando a pesquisa a novas possibilidades.

2.4. Ciência Moderna e Ciência Contemporânea Não

se

pretende

argumentar

aqui

que

essas

mudanças

negam

completamente o que lhe é anterior. O pensamento acadêmico ainda se apresenta muitas vezes ligado ao Positivismo, as tecnologias analógicas ainda desempenham papel fundamental e a sociedade ainda se organiza sob outras formas que não a de rede. Entretanto, é preciso levar a atenção aos novos fenômenos e às possibilidades que se abriram para a Academia. Então, a Ciência Contemporânea se apresenta como complexa, em rede e digital, sendo não apenas uma mera evolução ou adaptação da Ciência Moderna, mas essencialmente outro tipo de Ciência. No fundo dos debates a respeito dos rumos que tomará, “é a própria noção de ciência que está em disputa” (ABDO, 2015, p. 16). Pode-se distinguir as características de cada uma delas da seguinte forma: Quadro 1 - Ciência Moderna e Ciência Contemporânea Ciência Moderna

Ciência Contemporânea

Positivismo

Complexidade

Campo

Rede

Analógica

Digital

Mais demorada

Mais rápida

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Apenas cientistas

Todos os interessados

Pesquisas locais

Pesquisas globais

Mérito

Generosidade/dádiva

Acesso restrito

Acesso aberto

Apenas alguns resultados legitimados Diversas formas de resultados (wiki’s, (artigos, monografias, congressos, etc.)

projetos de intervenção, etc.)

Fonte: Autor

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3. As novas epistemologias Dentre as principais questões que a Epistemologia se coloca, existem três principais que precisam ser distinguidas. A primeira é como se desenvolve a Ciência. A segunda é sob qual entendimento a Ciência se organiza. E por fim, a terceira é de que forma a Ciência se apresenta. No capítulo que se segue se fará as devidas distinções, para mostrar que apesar de ela sempre ter se desenvolvido em rede, apenas recentemente passa a se organizar sob esse entendimento e se apresentar desta maneira. E o movimento pela Ciência Aberta é motivado para o uso efetivo desse entendimento de rede no pensamento e prática acadêmicos. Serão também apresentadas as novas formas de se pensar e organizar o conhecimento, sendo elas reticulares e rizomáticas, mostrando como elas vão ao encontro das tendências aqui apresentadas. E por fim se desenvolverá a relação entre as redes digitais e a Ciência, sendo elas o novo ambiente onde esta passa a se desenvolver. 3.1. Como a Ciência se desenvolve e se organiza Quem foi mais a fundo propriamente em como a Ciência se desenvolve foi Bruno Latour na obra Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2000). Nela, o autor observa a Ciência em seu processo de construção, e não na sua forma já acabada como se costumou fazer. Ao seguir cientistas sociedade afora, Latour busca evidenciar os atores e eventos que constituem a edificação do saber. Em suas palavras, essa é uma tarefa difícil, visto que O equipamento necessário para viajar pela ciência e pela tecnologia é, ao mesmo tempo, leve e variado. Variado porque é preciso misturar pontes de hidrogênio com prazos finais, exame da capacidade alheia com dinheiro, correção de sistemas de computadores com estilo burocrático; mas o equipamento também é leve porque convém deixar de lado todos os preconceitos sobre as distinções entre o contexto em que o saber está inserido e o próprio saber. (LATOUR, 2000, p. 20)

Latour consegue, na ousadia de seu método, levar em consideração os aspectos tecnológicos, sociais e naturais da Ciência. Em uma análise complexa, 19

evidencia aspectos que costumavam ser ignorados pelo estudo da Ciência, mas que são igualmente importantes no desenvolvimento científico. Com isso, chega à conclusão que a ela sempre teve características de rede. Isto é, sempre se realizou na relação entre diferentes actantes2, que se agregam em torno de controvérsias na construção dos fenômenos. Entretanto, apenas hoje isso se mostra como evidente. Por mais que na prática se desenvolvesse em rede, usaram-se outros entendimentos para se organizar, como o de campo. É importante destacar esse fato porque, como será apresentado adiante, o que se busca hoje pelo movimento da Ciência Aberta é o uso efetivo desse entendimento de rede.

3.2. Epistemologia reticular e rizomática Esse entendimento da Ciência como rede é encontrado nas epistemologias reticulares, de Di Felice (2016), e no modelo rizoma, de Deleuze e Guattari (1995). Ambas são metáforas importadas da biologia e que exprimem uma nova forma estético-orgânica de relação com o saber. Retículo é definido no dicionário Priberam como “Padrão ou estrutura que se assemelha a uma rede”3. Sua forma mais conhecida é o retículo endoplasmático, organela encontrada nas células orgânicas, responsável pela circulação de substâncias dentro delas. Como epistemologia, privilegia o olhar para os fluxos, o trânsito das ideias, as mediações. Na explicação do sociólogo italiano: A expressão ‘epistemologias reticulares’ exprime uma evidente contradição, de um lado os conhecimentos (episteme) próprios da mente e dos métodos de conhecimento, do outro, as redes, as linguagens dos instrumentos técnicos utilizados para o observação e todos os atores que contribuem à produção do conhecimento científico. O ponto de partida é a constatação da característica não exclusivamente humana do conhecimento produzido pelos humanos. (DI FELICE. Disponível em: . Acesso em: 02/11/2016)

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O termo pode ser entendido como tudo aquilo que contribui para uma ação. Se algo fez parte do desenvolvimento de um acontecimento, é um actante. Isso inclui atores humanos, tecnológicos, naturais; sem hierarquias entre eles. 3 Disponível em: . Acesso em: 31/10/2016.

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Já o modelo (ao mesmo tempo anti-modelo) rizomático, proposto pela dupla de filósofos franceses, também está de acordo com as tendências aqui apresentadas. Isso porque não trata mais a produção de conhecimento como um processo linear, como ao modo cartesiano, mas se trata de “uma sobrelinearidade, isto é, um plano cujos elementos não possuem mais ordem linear fixa” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 27). Trata-se de uma epistemologia instável, em trânsito, que se refaz constantemente a cada nova informação: O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32-33)

É um modelo que se opõe ao da árvore, que tem um tronco de onde brotam os ramos. No rizoma não há tronco central, apenas galhos se desenvolvendo simultaneamente em caminhos distintos. Não há afirmações fundamentais de onde se derivariam as outras, uma hierarquia rígida entre os conhecimentos. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e... e…’. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36)

A representação que se faz do conhecimento, desta maneira, é diferente daquela que orientou a Ciência até então. E essa consciência é importante porque influi sobre toda a prática científica e educacional. A diferença entre as novas epistemologias e aquelas tradicionais é expressa por Lévy da seguinte forma: No lugar de uma representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas em ‘níveis’, organizadas pela noção de prérequisitos e convergindo para saberes ‘superiores’, a partir de agora devemos preferir a imagem de espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se reorganizando de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa uma posição singular e evolutiva. (LÉVY, 1999, p. 158)

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3.3. Ciência e redes digitais O advento das redes digitais tem um papel fundamental nessa mudança de entendimento, e não é coincidência que aconteçam simultaneamente. Logo as características da Cibercultura começam a aparecer também do processo científico. Tais ambiências digitais variam muito em sua natureza. Existem aquelas de disponibilização de resultados de pesquisa, outras para relacionamento entre cientistas, aquelas para a solução de problemas colaborativamente, e até mesmo as de financiamento coletivo de pesquisas. Todavia podem ser identificadas características comuns a elas. Por serem um suporte para a Inteligência Coletiva (LÉVY, 1999), não apenas cientistas participarão do processo, mas todos os interessados no problema de pesquisa. Em muitas delas a hierarquia entre cientista e leigo é totalmente suprimida, valendo acima de tudo a força sem força do melhor argumento (DEMO, 2011). Além disso, a Pesquisa passa a não ser delimitada em um espaço e tempo determinados, acontecendo em qualquer lugar e a qualquer momento. Os laboratórios agora estão em rede e a própria rede se torna um laboratório. Também o número de dados disponíveis se multiplica exponencialmente, possibilitando que novas perguntas, que antes não eram feitas pela impossibilidade de respondê-las, agora o sejam. Assim, o desafio que se apresenta à pesquisa é cada vez menos como encontrar as respostas e cada vez mais que perguntas fazer, o que justifica a revalorização atual da Epistemologia. A Lei de Moore4 se aplica também às descobertas, que tendem a se multiplicar e desenvolver de forma exponencial: Today, online tools offer us a fresh opportunity to improve the way discoveries are made, an opportunity on a scale not seen since the early days of modern science. I believe that the process of science - how discoveries are made - will change more in the next twenty years than it has 5 in the past 300 years. (NIELSEN, 2012, p. 101)

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Teoria segundo a qual o desenvolvimento tecnológico tem caráter exponencial, desenvolvida por Gordon E. Moore ao observar a evolução dos hardwares. 5 Hoje, ferramentas on-line oferecem-nos uma nova oportunidade para melhorar a forma como as descobertas são feitas, uma oportunidade em escala não vista desde os primórdios da ciência moderna. Eu acredito que o processo da ciência - como as descobertas são feitas - vai mudar mais nos próximos vinte anos, do que nos últimos 300 anos. (NIELSEN, 2012, p. 101, tradução nossa).

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O caráter provisório da Ciência, que sempre a definiu, fica ainda mais evidente, porque o texto digital não tem o fechamento tão marcado do impresso. A pesquisa, que sempre esteve em devir, abre-se ainda mais para os efeitos do rio de Heráclito. Uma teoria costumava demorar anos para ser desenvolvida, meses para ser divulgada e mais anos para ser refutada, e hoje isso acontece muito mais rapidamente. O acesso aos resultados também recebe uma abertura, ainda que se milite para que ela seja ainda maior. E a própria forma possível de apresentação dos resultados se diversifica, podendo se compor agora em, por exemplo, páginas Wiki. A forma de se organizar e armazenar o conhecimento, da mesma maneira, passa por mudanças. Se os cientistas da Modernidade procuravam reunir todo o conhecimento nas Enciclopédias, o armazenamento dele hoje se dá na rede. Entendendo a profundidade dessa mudança, afirma Lyotard: “A enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Eles excedem a capacidade de cada usuário. Eles são a "natureza" para o homem pósmoderno.” (LYOTARD, 1988, p. 93)

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4. Ciência Aberta Neste capítulo se pretende definir o que é o movimento pela Ciência Aberta, quais as suas principais tendências, sua importância para a Ciência Contemporânea e sua relação com o tema de pesquisa. Acredita-se ser uma tendência que deve ser seguida pela Academia do mundo inteiro, estando diretamente ligada à democratização da produção e acesso ao conhecimento, passando pelos seus diversos atores e processos que a constituem. Mas, antes de tudo, é preciso constatar que a Ciência precisa ser necessariamente

aberta

para

seu

desenvolvimento,

sendo

uma

de

suas

características fundamentais. Assim sendo, uma “Ciência fechada” seria uma contradição nos próprios termos. Ciência Aberta é simplesmente Ciência. 4.1. Sociedade aberta O adjetivo aberta é um termo emprestado das Ciências da Informação, que ao desenvolver os softwares de códigos abertos, acabou por incentivar toda uma cultura hacker que se difundiu para diversas outras áreas da sociedade. Assim, hoje se fala em “Política Aberta”, “Educação Aberta”, entre outras expressões que têm se difundido. Antes mesmo do advento dos softwares abertos, Karl Popper já falava em uma Sociedade aberta e seus inimigos (1974). Popper critica diversas filosofias que tentaram ou paralisar a mudança (Platão) ou predizê-la (Marx), e ao negar qualquer história universal, faz uma defesa ferrenha da Democracia. Mas é com o surgimento desse conceito no âmbito tecnológico que de fato houve a popularização dessa tendência. Essa abertura geral da sociedade é caracterizada pela resistência aos totalitarismos, a transparência, o acesso aberto a todos os dados públicos, e a defesa da Democracia. Numa sociedade aberta há a participação de todos em seu desenvolvimento, e tudo é passível de ser hackeado com vistas a seu melhoramento constante. Não se espera uma sociedade ideal, nela não há utopia, porque está sempre em construção.

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Uma organização a se destacar que é centrada em trabalhar essas questões é a Open Knowledge6. A Organização da Sociedade Civil (OSC), sem fins lucrativos e apartidária, desenvolve no Brasil com projetos como Governo Aberto, Orçamento Aberto, Programas e Grupos de Trabalho (entre eles, o GT em Ciência Aberta) e Educação Aberta. Estamos mudando o mundo promovendo formas mais abertas de trabalhar com o governo, com as ciências, as artes e muito mais! Construímos ferramentas e envolvemos comunidades para criar, usar e compartilhar conhecimento livre – conteúdo e dados que todos podem usar, compartilhar e construir. Nós acreditamos que criando um commons de conhecimento e desenvolvendo essas ferramentas, nós teremos uma contribuição significativa para melhorar governos, a pesquisa e a economia. Não apenas falamos sobre ideias, organizamos eventos, hospedamos projetos e promovemos o que acreditamos, alinhados com nossa visão e valores. (OPEN KNOWLEDGE. Disponível em: . Acesso em: 21/09/2016)

É nesse contexto de abertura da sociedade como um todo que se deve entender a Ciência Aberta. Há uma demanda em geral pelo acesso à informação, inclusive a científica. Uma demanda pela participação da construção da sociedade, inclusive na Ciência. O povo está tomando os Parlamentos e os Laboratórios. O que era de poucos se exige agora comum.

4.2. Definição Então, por haver resistência por parte de alguns setores da Ciência, que ainda se organizam sob os entendimentos da Modernidade, e se fecham para aqueles apresentados pela Contemporânea, surge o movimento pela Ciência Aberta. Como foi dito, também pode ser compreendida como a busca pelo uso efetivo do entendimento de rede na forma como se pensa o processo científico. Os princípios da Ciência Aberta ressaltam algumas características que estão na própria definição do pensamento científico, mas que por diversos motivos acabam sendo esquecidos. O acesso aberto aos resultados de pesquisa, a possibilidade de questionamento do conhecimento produzido, a abertura à

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Disponível em: . Acesso em 21/09/2016,

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participação de pessoas de fora da Academia foram essenciais para seu desenvolvimento até então. Uma obra que reúne diversas questões (abertas) importantes é o livro Ciência Aberta: Questões Abertas (2015). É um esforço de Albagli, Maciel e Abdo (2015) de reunir uma série de artigos que pontuam os principais desafios da Academia frente a essa demanda por abertura. Dentre as questões mencionadas, podem ser citadas a privatização do conhecimento (ALBAGLI, 2015), seu papel no desenvolvimento (CHAN; et al., 2015), hardware aberto (KERA, 2015)

e educação superior à

distância (GUIMARÃES, 2015). É, assim, ao mesmo tempo, uma militância, uma maneira de se fazer pesquisa e um objeto de pesquisa em si. Um movimento que ganha força no mundo todo e é embalado pelas mudanças epistemológicas, sociais e tecnológicas ressaltadas aqui. Mas, vale mais uma vez sinalizar, justifica-se pelo fato de que essa abertura está inexoravelmente no cerne do que se pretende validar por discurso científico. Entretanto, é importante salientar, não se trata de um movimento organizado, liderado por um ator central ou incorporado por uma instituição em especial. Caracteriza-se antes por uma emergência, reticular, dispersa, comportando uma diversidade de lutas, atores e frentes; assim como se apresentam os movimentos sociais contemporâneos. 4.3. Ramos de atuação A Ciência Aberta, enquanto movimento geral, abrange diversos aspectos em particular, atuando assim em diversas frentes, para que a abertura se dê no processo como um todo. Cada um deles é fundamental, porque o fechamento de qualquer um acabará limitando a abertura dos outros. São eles: Publicações Abertas, Dados Abertos, Instrumentos de pesquisa Abertos, Materiais Abertos, Educação Aberta e Ciência Cidadã7. Na questão das Publicações Abertas, a que tem recebido mais atenção, pretende-se

que

todas

as

publicações

resultantes

da

pesquisa

sejam

disponibilizadas para livre acesso. Isso inclui, por exemplo, repositórios online de 7

Disponível em: . Acesso em: 22/09/2016.

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artigos, e vale citar que a União Européia pretende disponibilizar toda a sua produção até 20208. Nos Dados Abertos, busca-se a disponibilização dos dados produzidos na pesquisa científica para o público em geral, de forma que possa ser reutilizado e avaliado, como é o caso do Zenodo9. Em Instrumentos Abertos, o que se deseja é que os instrumentos utilizados na pesquisa, em especial os softwares, sejam de código aberto. Educação Aberta ou Recursos Educacionais Abertos (REA) são aqueles em que os materiais de ensino são disponibilizados em domínio público ou gratuitamente. E, por fim, a Ciência Cidadã, que será melhor desenvolvida no próximo capítulo, e pode ser definida como a abertura para a participação dos cidadãos em geral na pesquisa. 4.4. Desafios Em cada uma dessas práticas tem se observado significativos avanços na academia em geral, o que motiva os militantes a continuarem nessa luta. Entretanto, ainda há muito trabalho pela frente, e qualquer abertura, por mais que do tamanho de uma fresta, já é algo a se considerar. Para a resolução das principais questões que se colocam ao mundo atual, desde os problemas climáticos aos socioeconômicos, será necessária a colaboração de todos em ambientes abertos. Os cientistas precisam deixar a pretensão de iluminados e a Academia a de setor separado da sociedade caso queiram ter relevância no cenário presente.

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Disponível em: . Acesso em: 22/09/2016. 9 Disponível em: . Acesso em: 22/09/2016.

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5. Ciência Cidadã A prática em especial para a qual este trabalho se atenta é a da Ciência Cidadã. Ela tem permitido significativos avanços em algumas áreas que a incoporaram em seu processo de produção de conhecimento, como será demonstrado no três projetos citados. O estudo de caso que será feito no último capítulo relatará e analisará mais profundamente uma importante experiência dessa tendência.

5.1. Definição A Ciência Cidadã ocorre quando uma pesquisa científica é desenvolvida com a participação de cidadãos em geral (não necessariamente cientistas). Assim, ao invés de apenas serem vistos como “objeto de estudo” ou alvo da divulgação científica, eles passam a exercer mesmo protagonismo no processo. Essa tendência explicita uma relação inexorável entre Ciência e Democracia. Não por um acaso o já citado Karl Popper, que desenvolveu um inovador método científico, seja o mesmo a defender uma sociedade aberta e democrática. O sufrágio universal já chegou à Política e agora caminha para a Pesquisa. É possível a participação pública nas diversas etapas do processo científico. Na importante obra sobre o tema Public Participation in scientific research: defining the field and assessing its potential for informal science education (BONNEY; et al., 2009, p. 11) essas diversas etapas são destacadas: a) escolha ou definição das questões para estudo; b) juntando informações; c) levantando hipóteses sobre possíveis respostas a essas questões; d) desenvolvendo metodologias de captação de dados e) coletando dados; f) analisando dados; g) interpretando os dados e elaborando conclusões; h) disseminando as conclusões; i) discutindo os resultados e fazendo novas perguntas. 28

Os autores também elaboram três modelos de Ciência Cidadã, distinguindo os tipos de projetos que podem ser desenvolvidos. São eles (BONNEY; et al., 2009, p. 11): 1) Projetos contributivos: são desenvolvidos por cientistas e o público contribui com dados; 2) Projetos colaborativos: onde o público pode refinar o projeto de pesquisa, analisar dados ou disseminar descobertas; 3) Projetos co-criados: onde cientistas e público trabalham juntos e os segundos são envolvidos em muitos ou todos os processos da pesquisa. Existem muitas vantagens na adoção da Ciência Cidadã em pesquisas. A quantidade de dados que se pode obter é muito maior, há mais interação entre a Ciência e a Sociedade, o público ganha novos conhecimentos e desenvolve novas habilidades, leva os participantes a se interessarem mais pela Ciência. Se as experiências atuais já apresentam significativos avanços, Newman et al. (2012, p. 302) enxergam ainda maiores no futuro. Para eles, se atualmente o projetos de Ciência Cidadã têm apenas algumas interações entre si, no futuro essa relação se dará entre organizações locais, regionais e globais; associações profissionais; jornais de acesso aberto; recursos para melhores práticas e suportes de ciberinfraestrutura expandida.

5.2. Experiências As experiências atuais em Ciência Cidadã, entretanto, ainda se apresentam muito restritas se comparadas com todo o montante de pesquisas científicas desenvolvidas. A maior parte delas se concentra nas ciências naturais, em especial na biologia. Por meio dela, tem sido possível mapear um número muito maior de espécies, identificar padrões de migração, denunciar a extinção de espécies, entre muitas outras conquistas. Para destacar alguns dos principais projetos do mundo em Ciência Cidadã, citaremos três exemplos. O primeiro na área da Biologia, o segundo na área da Astronomia e o terceiro na área da Matemática. Os dois últimos foram brevemente 29

comentados por Nielsen (2012), entretanto é preciso uma análise do ponto de vista da Comunicação sobre eles, que se pretende fazer numa pesquisa posterior. Um projeto excelente e de alcance mundial a ser citado é o iNaturalist.org10, que busca mapear e compartilhar observações sobre a biodiversidade do mundo. Desenvolvido pela California Academy of Sciences em 2008, é baseado na contribuição do público com dados (fotografias, gravações de som ou observações). Todos esses dados são reunidos em bancos de dados que são utilizados por cientistas em seus estudos sobre a natureza. Um segundo é o GalaxyZoo11, plataforma que busca compreender como as galáxias se formam e também conta com a Ciência Cidadã para isso. Os usuários entram em seu site ou aplicativo para dispositivos móveis e classificam as galáxias segundo seus formatos, que foram registradas milhões pelo Sloan Digital Sky Survey. Com esses dados, o site do projeto garante que os astrônomos possam compreender melhor o passado, presente e futuro do Universo. Para citar um projeto inovador das ciências exatas, pode-se citar o Polymath, plataforma de proposição e resolução de problemas matemáticos. É resultado da experiência de Tim Gowers, matemático da Universidade de Cambridge, que resolveu publicar em seu blog uma questão matemática para seus leitores resolverem. Depois de alguns dias, o problema recebeu uma colaboração massiva, resolvendo não apenas o problema inicial, mas um ainda mais difícil incluso nele. Hoje é uma importante plataforma para a resolução das principais questões da matemática. Acredita-se que todas as áreas de pesquisa podem se beneficiar dessas práticas, apesar de que, atualmente, restrinjam-se a apenas algumas áreas científicas. É uma tendência que será incorporada aos poucos pelas diversas ciências e em suas diversas etapas.

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Disponível em: . Acesso em: 28/09/2016. Disponível em: . Acesso em: 28/09/2016.

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5.3. A questão da validação Um dos principais questionamentos que se faz em relação à Ciência Cidadã é sobre a validação dos dados produzidos. Isso porque esses dados, produzidos pelo público comum ou leigo, não contariam com a legitimação que têm aqueles produzidos pelo cientista, que obteria a expertise e o habitus próprio. Essa desconfiança da capacidade do povo pode ser caracterizada como demofobia, que ao longo da história justificou fechamentos na Política e na Ciência. Nesse ponto se vê mais uma vez a relação entre Ciência Aberta e Democracia: ao invés do desprezo das capacidades do povo e legitimação apenas do discurso dos experts (sejam políticos ou cientistas), reconhecer a potência da inteligência coletiva. O que, então, legitima os dados produzidos pelo público comum, nãocientista? A quantidade de dados produzida. O montante deles é tão grande que os cálculos de probabilidade conseguem relativa segurança em suas afirmações. A probabilidade de uma pessoa errar é grande, mas a de milhares de pessoas é muito menor. Além disso, é possível a criação de filtros inteligentes capazes de validar ou não as informações registradas. Como exemplo disso, podemos citar Cooper e Bonter (2012), que desenvolvem um filtro para os dados levantados no projeto FeederWatch. Assim, descartar esses dados simplesmente por terem sido produzidos por leigos desperdiçaria informações que podem ter grande relevância para a pesquisa. 5.4. Desafios Nessas experiências de Ciência Cidadã são observadas as características citadas como aquelas de acordo com a Ciência Contemporânea. O volume de dados produzidos é muito maior, possibilitando pesquisas ainda mais abrangentes. O tempo e o custo delas é reduzido significativamente. Todas elas só se tornam possíveis com as redes digitais e a participação do público em geral, e não apenas dos cientistas. Para que essa prática seja incorporada em mais pesquisas, é preciso que os cientistas reconheçam o papel social que exercem, o valor da inteligência coletiva e 31

sejam desenvolvidas plataformas que a possibilitem. Assim, uma barreira epistemológica, uma social e uma tecnológica; como vem sendo destacado ao longo do trabalho. Ao lançar luz sobre esses casos, almeja-se incentivar outros campos, mesmo o da Comunicação, a seguir essas tendências. Não se pode imaginar as descobertas que poderão ser feitas nesse contexto, e se pensa que a Ciência encontra oportunidades jamais antes vistas. É possível que a descoberta de muitos mistérios do homem, da natureza e do universo seja apenas uma questão de abertura.

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6. Observação de aves e as redes digitais A fim de observar na prática pesquisas científicas que se utilizam da Ciência Cidadã em redes digitais, analisar-se-á como a ornitologia, ramo da biologia responsável pelo estudo das aves, está se utilizando de dados produzidos por observadores através de aplicativos de dispositivos móveis. Com isso, será possível ver que possibilidades essa prática abre para pesquisas, de que formas isso pode ser feito e como se mostram de acordo ou não com as tendências apresentadas para a Ciência Contemporânea. A opção por esse caso se deu pelo fato de ser uma das áreas onde essa tendência se mostra bastante avançada, já tendo rendido excelentes resultados e uma colaboração pública massiva. Além disso, a proximidade com o Observatório de Aves do Instituto Butantan permitiu uma imersão maior no problema de pesquisa, no contato direto com os pesquisadores e essa realidade de pesquisa, que é feita com a participação do público. Realizar-se-á uma introdução à prática da observação de aves, ou birdwatching, difundida por todo o mundo e sendo para muitos uma verdadeira paixão. Apresentar-se-á o Instituto Butantan como um pioneiro na prática da Ciência Cidadã, mesmo antes do advento das redes digitais, e como seu Observatório de Aves hoje incorpora essas tecnologias em suas pesquisas. Por meio de plataformas digitais, o interesse público pelo birdwatching tem se convertido em dados que têm sido úteis aos ornitólogos, principalmente para o estudo da biogeografia e ocorrência de aves, visando sua conservação. Serão analisadas duas plataformas, o eBird e o Wiki Aves, a primeira de espectro internacional e a segunda de nível nacional; mas ambas com expressiva colaboração do público e com isso um grande número de dados disponíveis. Observar-se-á suas características, seus resultados no levantamento e organização de dados sobre a biodiversidade e sua capacidade de dialogar com o público tanto cientista quanto leigo. Ao fim, analisar-se-á o quanto essas plataformas contribuem para uma nova forma de se fazer Ciência.

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6.1. A prática da observação de aves A observação de aves é um hobby, também considerado como uma modalidade do ecoturismo, em que pessoas passeiam ou mesmo viajam com o intuito de avistar aves em seu habitat natural. Essas observações podem ser feitas a olho nu, por meio de binóculos, e podem virar registros, como por câmeras fotográficas e gravadores de som. Todavia, o que tem acontecido recentemente é o uso também de dispositivos móveis na observação e registro de pássaros - é possível submeter dados sobre espécie, local, som e fotografia delas em aplicativos digitais. É difícil encontrar números precisos da quantidade de birders ao redor do mundo, sendo uma prática acessível a todos e que estimula desde graus menores (de

eventuais

observadores)

até

maiores

(observadores

profissionais)

de

envolvimento. Sabe-se também que a movimentação financeira em torno da prática (desde a compra de instrumentos, a realização de passeios turísticos, a promoção de eventos, entre outros) é enorme, e tem sido explorada por diversos países como forma de alavancar a economia local, como é o caso da Costa Rica. O Brasil, um dos países com a maior variedade de espécies, conta com uma expressiva quantidade de praticantes, visível nas organizações criadas em torno dessa prática. Há no país a Associação Brasileira de Observação de Aves 12, que procura integrar pessoas e instituições “interessadas em proteger e admirar as aves silvestres brasileiras em vida livre”. A SAVE Brasil (Sociedade para a Conservação de Aves do Brasil)13 é outra organização importante, que promove ações com vistas a evitar a extinção de espécies. Por fim, em São Paulo, é importante citar o Centro de Estudos Ornitológicos (CEO), responsável por diversos estudos importantes na área. Os grandes festivais são também uma marca desse hobby. Nos Estados Unidos acontece anualmente o famoso CraneFest14, que reúne cerca de quatro mil pessoas interessadas no tema. No Brasil se destacam os eventos organizados pela Avistar Brasil15, os Encontros Brasileiros de Observação de Aves, e que em 2016 foi 12

Disponível em: . Acesso em: 29/09/2016. Disponível em: . Acesso em: 01/11/2016. 14 Disponível em: . Acesso em: 29/09/2016. 15 Disponível em: . Acesso em: 01/11/2016. 13

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sediado pelo Instituto Butantan. Esses eventos contam com palestras, saídas de campo, atividades de educação ambiental, venda de artigos especiais, entre outras atrações. A prática do birdwatching é realizada nos mais variados ambientes, qualquer local é um potencial para a observação, mesmo nos centros urbanos é possível avistar algumas espécies. Entretanto, costuma ser mais comum em reservas ambientais e parques, com destaque no país para o Pantanal e as cidades de Manaus-AM, Parati-RJ e Ubatuba-SP. O destino dos observadores varia também conforme seu interesse, que pode ser o de espécies endêmicas que só estão presentes em uma região determinada.

6.2. O Observatório de Aves do Instituto Butantan O Instituto Butantan, localizado numa grande área verde do bairro do Butantã, na cidade de São Paulo, tem a ideia de Ciência Cidadã incorporada desde a sua criação. Teixeira, Teixeira-costa e Hingst-Zaher (2014) mostram como Vital Brasil, o primeiro diretor do Instituto, usou da divulgação científica para atrair e obter apoio da população em suas primeiras pesquisas através da permuta de cobras por soros e atividades educativas. Os autores revelam que, com essa prática comunicativa, Vital Brasil conseguiu criar demanda por soros antiofídicos e obter a matéria-prima necessária para a elaboração do soro. Isso foi feito por meio de palestras, elaboração de gráficos e relatórios, anúncios em jornais; direcionados tanto à comunidade médica quanto aos produtores e trabalhadores rurais. Como resultado, conseguiu estabelecer oficialmente com o público a troca de soros por serpentes e o transporte gratuito dessas serpentes pelas ferrovias do Estado. Como resultado dessa estratégia, garante o artigo, foi possível não apenas obter demanda pelos produtos desenvolvidos pelo Instituto e receber a matériaprima para produzí-los, como também a educação científica e a capacitação da população para lidar com a questão. Graças à prática da Ciência Cidadã, mesmo que de forma pioneira e antes desse conceito ser formalmente desenvolvido e reconhecido, foi um 35

fator importante para a transformação do pequeno instituto produtor de soros para as crises da saúde pública em uma instituição científica de grande porte e nacionalmente reconhecida. (TEIXEIRA; TEIXEIRA-COSTA,; HINGST-ZAHER, 2014, p. 47)

O parque do Instituto Butantan, localizado no bairro do Butantã da Cidade de São Paulo, é não apenas um excelente lugar para a observação de aves, onde já foram observadas 152 espécies, mas também abriga um Observatório. O Observatório, fundado em 2014, tem o objetivo de preservar e estudar a biodiversidade, e realiza atividades que incluem o levantamento e monitoramento de longo prazo da avifauna de diferentes áreas, o estudo de aspectos ligados a biologia e ecologia das espécies e a realização de vigilância ambiental em saúde através de aves silvestres. Além disso, também são desenvolvidas atividades educativas e de divulgação científica para diferentes públicos. (PÁGINA DO FACEBOOK OBSERVATÓRIO DE AVES. Disponível em: . Acesso em: 29/09/2016.

O Observatório também é responsável por organizar uma caminhada mensal e gratuita de observação de aves, chamada #vempassarinhar, divulgada por sua página no Facebook. O evento reúne interessados de todos os públicos que já realizam a prática ou desejam a conhecer, onde além da observação é possível conhecer melhor o Parque e ouvir as informações passadas pelos intrutores sobre a biodiversidade.

6.3. Ornitologia em rede A ornitologia, disciplina da biologia responsável pelo estudo de aves, utiliza-se de diversas técnicas para suas pesquisas. Uma delas constitui a captura de espécimes que são analisados em laboratório e em seguida armazenados em museus. Essa técnica é importante principalmente para a obtenção de informações quanto à anatomia, e seus dados costumam ser mais precisos que os outros. Outra a ser citada é a do anilhamento, em que se coloca uma anilha em um animal, na esperança de uma futura captura dele em outra região, indicando seu deslocamento. O uso de rastreamento por satélite (GPS ou geotag) também é

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realizado, apesar de ser menos comum pelo seu alto custo, e fornece dados sobre a ocorrência e geolocalização de espécies. Entretanto, atualmente, as redes digitais se apresentam como um importante meio para se realizar esses estudos. A grande quantidade de dados levantados pelos observadores de aves que registram suas observações em redes digitais tem auxiliado diversos estudos que seriam impossíveis sem eles. Desta maneira, a tarefa do cientista passa a ser menos a de produzir dados sobre seu objeto de estudo e mais a organização e análise dos dados já disponíveis na rede. Essa técnica de estudo fornece informações principalmente em relação à ocorrência e geolocalização de espécies, e reúne diversas vantagens. Entre elas, é melhor vista pela sociedade do que as outras, por ser menos invasiva. Além disso, a quantidade de dados produzidos é muito maior, tendo uma cobertura temporal e espacial mais abrangentes, e costumam ser de mais fácil acesso do que aqueles de museu. E também são relativamente mais baratos, visto que não são produzidos pelos pesquisadores. Nessas plataformas, qualquer um pode se cadastrar e passar a registrar informações (que vão desde localização, fotografias, sons, entre outras) sobre os pássaros que avista, além de poder acessar todos os dados produzidos pelos outros usuários. Esses dados são armazenados, ficam disponíveis e possibilitam classificações e visualizações das mais variadas, ou seja, podem ser organizados de diferentes maneiras, segundo o interesse de pesquisa de cada usuário. Assim, podese visualizar as ocorrências por região, por período de tempo, por espécie, e até mesmo pelas submissões em tempo real.

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6.3.1. eBird Figura 1 - Portal eBird

Fonte: eBird Lançada em 2002 pelo Cornell Lab of Ornithology junto com o National Audubon Society, a plataforma eBird recebe, armazena e organiza informações referentes a aves do mundo todo, constituindo uma rede internacional de birders. Observadores amadores e profissionais podem submeter observações a qualquer hora e de qualquer lugar por meio do aplicativo para dispositivos móveis ou de seu site, e então todas elas são integradas em mapas digitais interativos em tempo real. The observations of each participant join those of others in an international network of eBird users. eBird then shares these observations with a global community of educators, land managers, ornithologists, and conservation biologists. In time these data will become the foundation for a better understanding of bird distribution across the western hemisphere and 16 beyond. (EBIRD. Disponível em: . Acesso em: 29/09/2016)

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As observações de cada participante unem-se às dos outros em uma rede internacional de usuários eBird. O eBird, em seguida, compartilha essas observações com uma comunidade global de educadores, gestores de terras, ornitólogos e biólogos de conservação. Com o tempo, esses dados se tornarão o alicerce para uma melhor compreensão da distribuição de aves em todo o hemisfério ocidental e além. (EBIRD. Disponível em: . Acesso em: 29/09/2016, tradução nossa)

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No perfil de cada usuário, é possível ver o número de espécies observadas por ele, o número de fotos e sons de aves submetidas e as regiões onde as observações foram feitas. Além disso, permite criar checklists, que agregam o que foi obtido em uma sessão específica de observação, e que pode ser compartilhada com outro usuário. Outro recurso disponível é o ranking com os Top Birders, que mostra em cada região qual usuário registrou o maior número de espécies. Para explorar os dados disponíveis no portal, existem as opções: a) Procurar fotos e sons b) Explorar uma região c) Explorar hotspots d) Visualizar mapas por espécies e) Fazer gráficos de barra f) Fazer gráficos de linha e g) Observar o mapa de submissões em tempo real. Assim, são bastante variadas as formas de se visualizar esses dados, adequando-se ao contexto e interesse específicos do explorador. Como exemplo, pesquisamos pela Arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus), e foi apontado no mapa em cor roxa onde há a ocorrência dela: Figura 2 - Ocorrência da Arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) no eBird

Fonte: eBird 39

Até o momento desta pesquisa, foram submetidas 1.375.954 fotos; 170.123 áudios e 45.664 vídeos nessa rede. É um número muito expressivo e que só se torna possível graças à inteligência coletiva e esse suporte capaz de reunir todas essas informações. Existe a possibilidade de se descarregar os dados do sistema, segundo o interesse de cada usuário (espécie, região, período, etc.), e que podem ser usados em pesquisas científicas. Entretanto, ainda é preciso algum nível de contato próximo e reconhecimento por parte da Cornell Lab para que sejam disponibilizados, o que indica ainda uma falta de abertura dos dados. Mesmo assim, muitos trabalhos científicos têm se baseado nos dados levantados e armazenados no eBird para suas pesquisas ornitológicas. Um exemplo de publicação científica resultado dos dados do eBird (junto com outras plataformas digitais) foi o artigo Evidence for longitudinal migration in a ‘sedentary’ Brazilian flycatcher (LEES, 2016). Nesta pesquisa, o autor percebe que a espécie caneleiro-enxofre (casiornis fuscus), que até o momento era classificada como uma ave sedentária, na verdade realiza migração intratropical longitudinal para a Amazônia e o Cerrado. Desta maneira, os dados disponíveis de forma Aberta e Cidadã foram fundamentais para a descoberta, que não tinha sido possível até o momento através outras fontes de informação. Assim, é possível notar a relevância que o eBird tem no monitoramento de aves pelo mundo. A quantidade de colaborações, e com isso de informações disponibilizadas, é bastante expressiva, e a variedade de opções de apresentação delas é uma importante característica. E esses dados têm se convertido em pesquisas científicas de excelentes resultados.

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6.3.2. Wiki Aves Figura 3 - Portal Wiki Aves

Fonte: Wiki Aves O Wiki Aves é um site em formato wiki que concentra informações sobre observações de aves no Brasil. Como no eBird, qualquer pessoa pode se cadastrar e submeter informações sobre os pássaros avistados: local, fotos, sons e espécie. Entretanto, apresenta apenas site, e não aplicativo para dispositivos móveis. O WikiAves foi criado com o objetivo de apoiar a comunidade online de biólogos e observadores de aves do Brasil fornecendo ferramentas interativas que permitam promover a busca pelo conhecimento, a comunicação entre usuários, a divulgação de informações sobre as aves brasileiras com foco na preservação e a formação colaborativa do maior banco de dados sobre aves do Brasil na Internet. Sua função é organizar o conteúdo fornecido pelos observadores e transformá-lo em informações úteis e de fácil acesso para usuários leigos, avançados e profissionais. (WIKIAVES. Disponível em: . Acesso em: 26/10/2016)

O site conta com 25.114 usuários. No momento desta pesquisa já foram submetidas um 1.769.453 fotos; 140.098 sons; e registrou 1860 espécies. É possível realizar um filtro pelas espécies, fotos e sons. Em outro filtro é possível conhecer aquelas a) Mais Populares b) Mais difíceis c) Não-identificadas e d) Mais questionadas.

Também

possibilita

a

visualização

por

Estado

e

Cidade, 41

disponibilizando as estatísticas de cada um deles (número de usuários e número de espécies). O portal oferece mapas mais simples do que o eBird, como se vê abaixo na ocorrência da mesma espécie da Figura 2. Entretanto, tem como diferencial a disponibilização de um verbete wiki para cada espécie, escrito por colaboração dos usuários. Assim, é possível consultar de cada uma delas informações como: fotos, sons, classificação, características, subespécies, alimentação, reprodução, hábitos, e distribuição geográfica. Além disso, na página principal é possível consultar as aves mais populares, mais difíceis, não-identificadas e mais questionadas; primeiros e últimos registros fotográficos e sonoros; e últimas páginas alteradas. De cada usuário se pode acessar o número de fotos, sons e espécies registradas por ele; e avaliar (de um a cinco) e comentar a qualidade das mídias submetidas. O site também fornece um ranking, porém mais simples que o anterior. Figura 4 - Ocorrência da Arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) no Wiki Aves

Fonte: Wiki Aves Uma outra especificidade do site é a existência de um Fórum. Nele, existem os tópicos: Notícias, Identificação de Mídias, Problemas Técnicos, Observação de Aves, Aves & Artes, Meio Ambiente, Ornitologia, Registros Sonoros de Aves e 42

Fotografia Digital. Cada tópico do fórum, então, suscita um tipo de discussão entre os usuários, e o histórico das conversas permanece disponível para futuros interessados. Os dados disponíveis na plataforma são mais úteis na documentação das informações disponíveis sobre cada espécie do que propriamente constituírem dados úteis para pesquisas ornitológicas. Funciona, como é característico de plataformas Wiki, mais como uma enciclopédia, de fácil acesso e edição das informações já disponíveis sobre as aves. Entretanto, não se descarta seu potencial para pesquisas científicas, podendo ser muito útil a depender do enfoque dado.

6.4. Análise dos resultados Assim, no estudo de caso apresentado, acredita-se ter encontrado muitas das características defendidas como aquelas da Ciência Contemporânea: complexa, em rede e digital. O relato da experiência de Vital Brasil como pioneiro na prática da Ciência Cidadã mostrou como a parceria entre comunidade científica e sociedade tem potencial em uma pesquisa. Puderam-se observar também as três transições defendidas no início do trabalho: do positivismo para o paradigma da complexidade, da sociedade em campos para sociedade em rede e das tecnologias analógicas para aquelas digitais. A experiência de observação de aves reaproxima sujeito e objeto, demanda interdisciplinaridade e uma observação participante (não neutra). A quantidade de dados obtida nas plataformas eBird e Wiki Aves jamais seria alcançada se não fosse as redes digitais, que possibilitam o envio, armazenamento e organização de dados. Por conta das redes e dispositivos móveis, qualquer pessoa se torna um produtor de informações e qualquer espaço um laboratório ornitológico em potencial. E, finalmente, a organização da Ciência enquanto campo não é capaz de descrever o fenômeno, porque é um trabalho que não se limita aos participantes do campo, não tem como requisito o habitus e não é motivada pelo acúmulo de capital simbólico. Esta é melhor descrita como em rede, onde o acesso é o único requisito

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para a participação, está aberta a todos e motivada principalmente pelo interesse com a pesquisa. São práticas que no geral estão de acordo com os princípios da Ciência Aberta, por possibilitarem a Educação científica de forma aberta, disponibilizar os Dados produzidos de forma aberta e contar com a participação do público com Ciência Cidadã. Entretanto, seria possível uma abertura ainda maior dessas plataformas, sendo que ainda há uma certa resistência na disponibilização desses dados para aqueles que não contam com a legitimação institucional de um grupo de pesquisa científico. Pode-se observar, portanto, que as tendências aqui apontadas se mostram avançadas na área da biologia, em especial a ornitologia. Ao reunir o interesse dos pesquisadores em obter dados para estudo e a disponibilidade do público em produzí-los por hobby, estão fomentando novas formas de se realizar pesquisa científica. Tais formas favorecem uma relação recíproca entre a Academia e o restante da sociedade, em que ambas são favorecidas de diversas maneiras, e caminham juntas para uma via mais democrática. É preciso também lembrar que tanto a observação de aves quanto a ornitologia estão alinhadas com o propósito da preservação da natureza. Essas novas técnicas permitem não apenas pesquisas que exijam menor intervenção na biodiversidade,

como

também,

ao

permitirem

um

nível

muito

maior

de

monitoramento, contribuem para sua conservação. Mais especificamente, os dados disponíveis em tais plataformas facilitam a identificação de espécies com risco de extinção, e assim mais facilmente podem receber ações de prevenção.

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Considerações finais Em suma, com o objetivo de compreender as transformações que a Ciência vem sofrendo na Contemporaneidade, foram apontados três fatores centrais: o surgimento do paradigma da complexidade, a organização da sociedade em rede e o advento das tecnologias digitais. Além disso, estabeleceram-se relações entre as redes digitais e as novas epistemologias reticulares e rizomáticas. Destacou-se o movimento pela Ciência Aberta como aquele que milita pela efetivação das mudanças aqui descritas, e a prática da Ciência Cidadã como um grande potencial para a pesquisa científica. Com a análise de caso do uso de Ciência Cidadã na observação de aves, destacou-se como essa prática tem oferecido novas possibilidades para a pesquisa ornitológica, e se pôde identificar muitas das características que se esperava encontrar como aquelas próprias da Ciência na atualidade. O uso dos dados de birdwatching em redes digitais no geral se mostra como uma possibilidade de pesquisa complexa, em rede e digital. Isso porque conta com uma colaboração massiva, produzindo informações que têm se convertido em resultados científicos. Pretende-se dar sequência a esse estudo, agora voltando a análise para plataformas de maior alcance e de outras áreas do conhecimento, aprofundando a reflexão teórica com a Filosofia da Ciência e as Teorias da Comunicação. É preciso atualizar os conceitos que têm baseado a Ciência desde a modernidade (como o de comunidade científica, linguagem científica, legitimação do conhecimento, etc.) conforme as características que passa a apresentar no contexto presente.

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