Ciência e imaginação em Pico della Mirandola

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Ciência e imaginação em Pico della Mirandola1. Jonathan Molinari

1.Uma teoria do conhecimento humano Toda a filosofia de Giovanni Pico tem como núcleo central o problema dos modos e das linguagens do conhecimento humano. É essa a reflexão que funda a sua visão do cosmo e do homem, a sua ideia de liberdade, o seu modo de conceber o valor da filosofia e da história do pensamento. Tanto na Oratio como no Commento, tanto no De ente et uno como nas Disputationes, o interesse de Pico se dirige com intenções diversas e de perspectivas diversas na relação entre sensibilidade, razão e intelecto: na Oratio é para defender o valor da liberdade; no De ente et uno, para demonstrar como da definição dos diversos planos do saber humano depende a possibilidade da concordia philosophorum; no Commento, a mesma indagação serve para esclarecer o conteúdo filosófico da palavra poética; e nas Disputationes, as indicações dos caráteres da experiência sensível no quadro general de uma teoria do conhecimento humano são funcionais à definição de uma indagação da natureza fundada sobre a união de sensibilidade e razão. 1

Pesquisa realizada graças a uma bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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Não se compreenderia o modo pelo qual Pico vem caracterizando o problema da experiência se não se partisse daqui, de uma análise complexa da sua teoria do conhecimento e do seu modo particular de entender a relação entre as várias faculdades cognitivas do homem. A natureza humana é movimentada de uma “tensão vertical”2 que coincide com os momentos do impulso verso ao conhecimento e com o desdobramento da liberdade humana: na Oratio, a forma da sensibilidade isolada de qualquer racionalidade corresponde a um “grau zero” da humanidade, incapaz de distinguir-se de qualquer outro animal e de retornar através dos momentos do Eros à plenitude de sua dignidade. Por isso, o impulso da razão, o grau sucessivo da forma da mera sensibilidade, não apenas conduz o homem a um conhecimento mais perfeito, mas sobretudo o consagra um animal “celeste”, superior a bestialidade do homem que confia somente aos sentidos sem criar o guia da razão. Todavia é só na plenitude da consciência intelectual que o homem pode tender à visão completa da verdade3. 2

Giovanni Pico della Mirandola, Oration on the dignity of man, a new translation and commentary, edited by Francesco Borghesi, Michael Papio, Massimo Riva, Cambridge University Press, Cambridge 2012, p. 68. Cf., Pier Cesare Bori, Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della Mirandola, Feltrinelli, Milano, 2000. 3 Escreve Pico na Oratio: “Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit Pater; quae quisque excoluerit illa adolescent, et fructus suos ferent in illo. Si vegetalia, planta fiet. Si sensualia, obrutescet. Si rationalia, caeleste evadet animal. Si intellectualia, angelus erit et Dei filius, et si nullam creaturarum sorte contentus in unitatis centrum suae se receperit, unus cum Deo spiritus factus, in solitaria Patris caligine, qui est super omnia constitutus omnibus antestabit”. Giovanni Pico della Mirandola, De

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Nas intuições intelectuais a visão do homem se move dos olhos para a mente. Porém, como veremos, a visão sensível permanece sempre um momento necessário para a consciência das coisas: os olhos, o ato de enxergar e o conceito das imagens assumem significados centrais nos vários contextos nos quais se encontram na filosofia do Pico. O Commento esclarece muitos destes aspectos, mas antes pode ser útil aprofundar a relação que Pico define entre sentido, razão e intelecto a um outro testo fundamental, talvez o mais complexo de toda a sua obra, o De ente et uno4. No De ente et uno, Pico retorna o mesmo percurso da Oratio, mas os níveis da consciência humana são porem definidos com um outro escopo, aquele de recompor em um único dehominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, a cura di E. Garin, Nino Aragno Editore, Torino 2004, p. 106. 4 Sobre o De Ente et Uno ver Stéphane Toussaint, L’Esprit du Quattrocento: Le De Ente et Uno de Pic de la Mirandole, Honoré Champion, Paris 1995; A. Miguel Granada, Giovanni Pico e il mito della Concordia. La riflessione di Pico dopo il 1488 e la sua polemica antiastrologica, in Cesare Vasoli, Le filosofie del Rinascimento, a cura di P.C. Pissavino, Bruno Mondadori, Milano 2002, pp. 229-246; Giovanni Di Napoli, Giovanni Pico della Mirandola e la teoresi tomistica dell’Ipsum Esse, in San Tommaso: Fonti e Riflessi del suo Pensiero, Roma 1974, pp. 249-281. A respeito da relação entre Pico e Ficino ver também Sebastiano Gentile, Pico e Ficino, in Pico, Poliziano e l’Umanesimo di fine Quattrocento, a cura di Paolo Vitti, Olschki, Firenze 1994, pp. 127-147; Michael J. B. Allen, The second Ficino-Pico controversy in Marsilio Ficino e il ritorno di Platone. Studi e ricerche, a cura di G. C. Garfagnini. Firenze 1986, 2 voll. pp. 417-459; Maude Vanhaelen, The PicoFicino controversy: new evidence in Ficino's Commentary on Plato's “Parmenides”, Rinascimento XLIX, pp. 1-39 e Marsilio Ficino, Commentary on Plato’s “Parmenides”, Edited and translated by Maude Vanhaelen, The I Tatti Renaissance Library, Harvard University Press, Cambridge 2012.

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senho unitário, o grande projeto da concordia philosophorum – a inteira história do pensamento. Os instrumentos conceituais são os mesmos e, de novo, a relação entre razão e intelecto é o ponto de partida, mas o problema se complica: o objeto não é mais a liberdade em quanto tal, ou a tensão que impulsiona o homem a plenitude de suas faculdades e em seguida a sua dignitas, mas é a possibilidade de capturar, através da definição dos registros do conhecimento, a unidade meta-histórica do saber. Uma unidade que é transmitida através de linguagens históricas e, portanto, interpretável. Por isso no De ente et uno a ratio trabalha “purificando os nomes divinos de cada imperfeição terrena”5, enquanto o intelecto “denuncia a inadequação dos nomes” (nominum arguit deficientiam) e exprime até o limite do nosso conhecer (nostrae intelligentiae accusat infirmitatem)6. A linguagem humana é imprecisa porque é terrena, produto histórico da atividade humana. Para Pico, não existe uma língua naturaliter perfeita. Nesse sentido, nas Conclusiones philosophicae secundum propria opinionem, Pico distingue entre um “quid nominis” e um “quid rei”, entre um nível convencional e um capaz de atingir diretamente a realidade7. Apenas a uma 5

Giovanni Pico della Mirandola, Dell’Ente e dell’Uno, a cura di R. Ebgi con la collaborazione di F. Bacchelli, prefazione di M. Bertozzi e postfazione di M. Cacciari, Bompiani, Milano 2010, p. 236. 6 Ivi, p. 238. 7 É a tese n. II.2.80. “Si qua est lingua prima et non casualis: illam esse Hebraicam multis patet coniecturis”. Para uma edição das Conclusiones, cf.

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língua, aquela hebraica, é possível atribuir o estatuto de “lingua prima et non casualis”, admitindo assim que nessa o “quid nominis” coincide com o “quid rei”. Qualquer outro sistema de signos é necessariamente impreciso e necessita da atividade cognoscitiva do sujeito para ser corrigida através da atividade da razão e do intelecto, que remedia a inadequação constitutiva da linguagem8. O itinerário traçado na Oratio e no De ente et uno retorna também no Commento, mas daqui emergem outros elementos da reflexão de Pico sobre o problema do conhecimento. Em primeiro lugar, ora a “cognição da natureza das coisas” corresponde a passagem que através do Eros – o desejo que, ao lado da beleza, pertence somente ao homem e não a deus, critica Pico a Ficino!9 – se completa subindo “por ordenados graus” da beleza sensível à beleza inteligível. Agora, a relação sensibilidaderazão-intelecto se complica nos processos da única faculdade que permite a passagem da sensível à inatingível: a imaginação. Sem fantasmas, a mente do homem – que é “complexo” e “sínGiovanni Pico, Conclusiones nongentae. Le novecento tesi dell’anno 1486, a cura di A. Biondi, Leo Olschki Editore, Firenze 1995. Uma nova edição foi realizada por F. Borghesi, P.C. Bori, D. Buzzetti, P. Caton, S. Marchignoli, M. Papio e M. Riva, e está disponível on-line no endereço www.stg.brown.edu/projects/pico. 8 A respeito da relação entre Nicolau de Cusa e Pico: Kurt Flash, Cusano e gli intellettuali italiani del Quattrocento, in Cesare Vasoli, Le Filosofie del Rinascimento, cit., p. 186. 9 Giovanni Pico della Mirandola, De hominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, cit., pp. 487 e seg. Cf. a nota 31 do próximo parágrafo e o livro de Franco Bacchelli, Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto, Olschki, 2001.

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tese” do mundo inteligível, celeste e terrestre10 – seria vazia. “Pela perspicácia dos sentidos, pela indagação da razão e pela luz do intelecto”11, escreve Pico na Oratio – o homem é intérprete da natureza e criador de si mesmo; no Commento os “fantasmas” da mente provem necessariamente dos olhos, mas depois são imaginação, a razão e o intelecto a dar-lhes síntese e plasmar por abstração a verdade, uma operação através da qual a mente re-descobre dentro de si, e si da uma forma, uma ordem para todas as coisas12. É sempre uma intuição moral a guiar o discurso do Pico. O objetivo do homem no mundo é aquele de admirar a beleza, mas para essa tarefa é necessário que possa conhecer todas as coisas. Tal conhecimento nasce do desejo e o desejo vem de uma espécie de pré-cognição do objeto: por desejar conhecer a natureza das coisas. o homem deve já possuir “de qualquer modo” as sementes. Por isso, nele residem “sementes de toda espé10

Giovanni Pico, De hominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, cit., p. 301. 11 Assim Pico define o homem na Oratio: “Sensuum perspicacia, rationis indagine, intelligentiae lumine, naturae interpretem”, Ivi, p. 102. 12 A respeito disso, voltaremos no próximo parágrafo. No Commento, é a passagem do conhecimento relacionado aos sentidos àquela puramente intelectual o momento em que a mente descobre a si mesma, depois de purificar com imaginação e razão o objeto que primeiramente estava à frente: “In questa universal cognizione l’anima come in cosa da lei fabricata si diletta [...] e in lei el lume della vera beltà, come lume di sole sotto acqua, vede” (Ivi, p. 579). Uso a palavra “síntese” porque é este ato que no Heptaplus descreve o modo através do qual o homem compreende a si no ato de conhecer toda a realidade: “Hactenus de tribus mundis supercaelestis, caelesti et sublunari. Nunc agendum de homine, de quo est scriptum: ‘faciamus hominem ad ima-

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cie e germes de toda vida”13. Este é o fundamento da sua liberdade: o homem pode escolher a sua própria forma porque a sua alma pode conhecer – e portanto ser – tudo14.

2. O papel da imaginação A intuição intelectual em que culmina o percurso traçado na Oratio e no De ente et uno é uma forma particular de visão que o homem é levado pelo Amor entendido como desejo a uma beleza externa a ele15. A ideia de beleza intelectual, que é harmonia de ideias, representa, portanto, para Pico, a forma mais alta ginem nostram’, qui non tam quartus est mundus, quasi nova aliqua creatura, quam trium quos diximus complexus et colligatio” (Ivi, p. 300). 13 Ivi, p. 107. 14 O incipit da Oratio define o âmbito para o qual o homem foi criado, e no grande desenho da criação ele tem a tarefa de conhecer e amar a beleza do cosmos: “Sed, opere consummato, desiderabat artifex esse aliquem qui tanti operis rationem perpenderet, pulchritudinem amaret, magnitudinem admiraretur” (Ivi, p. 105). No Commento, Pico distingue o desejo natural que diz respeito a “le creature che non hanno cognizione”, que é aquele que faz cada criatura amar deus, de um segundo tipo de desejo que “non è se non circa le cose conosciute da chi desidera” (Ivi, p. 491). É no sexto capítulo do segundo livro do Commento que Pico esclarece a questão: “Non si desidera la cosa se non poiché è conosciuta, e da’ filosofi è sottilmente dichiarato come el conoscere le cose è un possederle, donde segue quel detto vulgato di Aristotele, che l'anima nostra è tutte le cose perché ogni cosa cognosce.” (Ivi, p. 492). 15 A equivalência entre o “viso incorporale” da tradição platônica e a “cognizione intellettuale” ou “cognição intuitiva” da teologia cristã é característica do método de proceder de Pico: não se trata de sincretismo, mas de uma operação de tradução conceitual desenvolvida com instrumentos da filologia e, sobretudo, segundo um critério de coerência lógica e filosófica dos sistemas

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de conhecimento, um saber ao qual não se pode alcançar senão a partir da viso: Da una sola potenza conoscitiva – escreve Pico – nasce amore, cioè dal viso [...] e muovesi per questo Plotino a credere che Eros, che in greco significa amore, si derivi da questa dizione orasis che significa visione16.

É uma dupla visão aquela que interessa a Pico: por um lado aquela do olho humano que olha as coisas sensíveis, por outro aquela intelectual na qual se realiza a perfeição do conhecimento humano17. Em ambos os casos o desejo de colher a harmonia das formas guia a visão do homem para a beleza. “As mentes são como olhos”, escreve Pico no Heptaplus, e “o que é o olho no mundo corpóreo é a mente no mundo espiritual”18. O conceito enigmático de intuição intelectual é, portanto, modelado no processo da visão: assim como o olho não vê sem a luz, o intelecto não vê sem as ideias. A visão sensível não é porém separada da razão e do intelecto: pode ser uma sensibiconfrontados. Toda definição de beleza do Commento também segue esta via (Ivi, pp. 497 e seg.). 16 Giovanni Pico, De hominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, cit., p. 497. 17 Assim, diz Pico: “Ma, direbbe uno, se bellezza è solo nelle cose che il viso comprende, come si può attribuire alle idee, che è natura del tutto invisibile? Per dichiarazione di questo dubbio, dal quale discende el fundamento di questa materia, è da notare che sono dua visi, l’uno corporale e l’altro incorporale; el primo è quello che comunemente si chiama viso, el quale dice Aristotele essere da noi amato sopra tutti gli altri sensi. L’altro è quella potenza dell’anima per la quale, nel penultimo capitolo del primo libro, fu detto noi avere convenienza cogli Angeli.” Ibidem. 18 Ivi, p. 289.

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lidade em si mesma, que é aquela daquelas almas que “mendigam a ciência das coisas pelos sentidos”19. É, por outro lado, também verdadeiro que é justo o desejo da beleza sensível – a “via amatoria” – aquilo que “excita na alma a memória da parte intelectual” e que a conduz à visão perfeita, aquela da harmonia das ideias20. Para que ocorra, a ratio deve guiar a experiência sensível. Isto é possível porque a razão è posta “como um meio entre os extremos”: [La ragione] ora a l’una parte, cioè al senso inclinandosi, ora all’altra, cioè allo intelletto elevandosi, a’ desideri dell’una e dell’altra per propria elezione può accostarsi21.

O conceito de eleição é central: aí está a liberdade que guia o conhecimento, mas o homem pode escolher governar ou ser governado pelos sentidos. De novo, é uma instancia ética a guiar a reflexão de Pico sobre o conhecimento, de novo se considera a liberdade do homem, a sua capacidade de formar a si mesmo e de realizar a própria dignidade. A ideia de Pico de uma “razão inclinada aos sentidos” marca a passagem da visão do olho ao uso do intelecto, do apetite que sofre a visão das coisas, ao valor livre que constrói em si a harmonia das ideias. Um problema moral, mais que gnosiológico, visto que a cegueira ameaça todo o processo: como a “divina caligo” e o silêncio do De ente et uno, o limite da visão in19 20

Ivi, p. 481. Ibidem.

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telectual no Commento remete à imagem última e não ultrapassável do conhecimento humano. Tirésias frente a nudez de Pallade, Homero diante da sombra de Aquiles, o Apóstolo Paulo levado ao céu: todos descobrem na cegueira o limite último da visão, assim como na mística do De ente et uno o limite último da palavra era o silêncio22. No processo descrito por Pico, a imaginação é central. Ela é a mais nobre e mais elevada “potenzia del senso” porque capaz de reformar a realidade. Não a reproduz, a transforma, não pode reduzi-la à “perfeita imaterialidade”, mas pode transfigurá-la e liberá-la da “deformidade da matéria”23. O primeiro momento do conhecimento se dá na intuição puramente sensível do objeto, e o segundo determina a passagem dos olhos à imagem formada pelo sujeito que detém para si não o objeto enquanto tal, mas sim “l’immagine che nell’anima sua ha già di lui formata”24. No terceiro grau, a razão transforma a imagem em um “conceito universal”25 e o sujeito “considera em si mesmo 21

Ivi, p. 494. Ivi, p. 529. 23 “Dice el Poeta che sono da lei [dall’immaginazione] talor poi reformate, ma non però espresse, però che la immaginativa, come più alta e più nobile potenza del senso, di fuori fa quella specie più spirituale e conseguentemente più la spicca dalla deformità della materia, che seco non patisce la vera Venere, ma non può però, per essere lei pure potenzia ancora materiale e organica, redurre quella specie a perfetta immaterialità. Però dice che la reforma e non la esprime” Ivi, p. 577. 24 Ibidem. 25 “Ed è che l’anima, surgendo sopra el primo e secondo grado, l’uno e l’altro de’ quali particularmente la bellezza considerando dalla materia non si spoglia, in universale concetto essa natura in sé considera e la multitudine 22

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essa natureza” reduzindo na unidade da beleza a multidão “di tutti e’ particulari corpi belli”26. É interessante notar aqui as mudanças no léxico de Pico. No primeiro grau, aquele que diz respeito à visão sensível, Pico utiliza o verbo “receber”: o objeto “chega” aos olhos. A imaginação, ao contrário, “reforma”, mas é incapaz de “reduzir” o objeto a perfeita imaterialidade, e somente a ratio “la moltitudine nella sua unità reduce”27. Na passagem do terceiro ao quarto grau, vê-se a beleza verdadeira, é o intelecto que é “illuminato” pelas formas e acolhe em si a ordem real das coisas, uma ordem que o sujeito criou “reformando”, “reduzindo” e “refletindo”: El quarto grado è che l’anima, considerando l’operazione sua, vede sè cognoscere la natura della bellezza universalmente come non ristretta ad alcuna particolarità, e cognosce che ogni cosa, che nella materia è fundata, è particulare, di che conclude questa universalità non dallo obbietto esteriore sensibile, ma dallo intrinseco suo lume e sua virtù procedere28.

A reflexão descobre finalmente em si a ordem das coisas como um produto do sujeito. Até aqui, o intelecto permanece ligado à experiência sensível de que teve início todo o processo. Somente nos últimos dois graus ele se distancia, naquele da pura verdade – “non però con totale plenitudine della sua beltà” – e naquele di tutti e’ particulari corpi belli nella unità della bellezza in se’ reduce.” Ivi, p. 579. 26 Ivi, p. 579. 27 Ivi, pp. 577 e seg.

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da pura contemplação do bem. No momento em que o intelecto está completamente desligado da experiência sensível, cessa o Eros do conhecimento e a busca encontra paz29. Este conhecimento puramente intelectual pode ser apenas em parte apreciado neste mundo30. Diferentemente de Ficino, Pico entende a beleza como luta, o eros como busca infinita, a pureza da contemplação como um limite que esta além da vida humana31. Não ama perfeitamente e não alcança a plenitude do intelecto “aquele que 28

Ivi, p. 568. Ivi, p. 569. 30 Ivi, p. 549. 31 Para Ficino, a beleza é princípio produtivo de amor: “E questa spezie divina, cioè Bellezza, in tutte le cose lo Amore, cioé desiderio di sé, ha procreato.” (Marsilio Ficino, Sopra lo amore ovvero Convito di Platone, Ed. SE, Milano 2003, p. 30) Para Pico, ao contrário, “la bellezza è causa dello amore, non come principio produttivo d’esso atto che è amore, ma come obbietto”. (Giovanni Pico, De hominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, cit., p. 499) Seguindo a mística cristã, Ficino pensa a respeito de um movimento circular em que a beleza de Deus cria o amor em um círculo que “da Dio comincia e nel mondo trapassa, e finalmente in Dio termina”. (Marsilio Ficino, Sopra lo amore, cit., p. 30) Seguindo o Simpósio, Pico contrariamente concebe um percurso de sentido único que vai do homem ao infinito: em deus não existe beleza “perché la bellezza include sempre in sé qualche imperfezione” (Giovanni Pico, De hominis dignitate, Heptaplus, De ente et uno e scritti vari, cit., p. 495), e não existe sequer amor porque “non essendo in dio desiderio di cosa alcuna fuora di lui, come quello in tutto è perfettissimo e nulla gli manca, non potriaa lui più repugnare questo nome” (Ivi, p. 488). A diferença entre essas duas concepções está exatamente no modo de entender a relação entre finito e infinito: para Ficino não há desproporção, não há um abismo, mas um tipo de continuidade – “circular”, efetivamente – que coloca o homem em continuidade com o divino. Ao contrário, para Pico, não pode existir distância mais radical: o homem é Eros, busca inquieta, e deus é paz e pleno de verdade; o homem ama o belo que é feito de contradição, ou “amica inimicizia”, “concorde discordia” (Ivi, p. 495). O infinito absorve e anula em si qualquer contrariedade. 29

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não morre de amor” 32. É esta a culpa de Orfeu que Ficino não compreende: não quis ir “per morte” até Euridice e por isto encontrou apenas um fantasma, um simulacro de verdade. A união mística com a perfeita beleza intelectual, a visão plena da verdade, a paz e o repouso da busca não pertencem – segundo Pico – à vida do homem nem constituem o horizonte e a esperança, nem marcam o limite extremo, mas se revelam apenas como notas em contraponto em relação à melodia da incerteza, da dúvida e da luta, que caracterizam o mundo humano e a natureza. É nesta tensão que está a ideia de filosofia de Pico: determinar a passagem da palavra ao silencio, da visão à cegueira, da brutalidade na qual pode cair o homem ao voo que pode fazer um anjo. Também aqui é emblemática a mudança do léxico que explica a passagem de uma consciência, que liga o sentido e a imaginação com a razão e o intelecto – a única que o homem possui – a um conhecimento puramente intelectual e alheio à razão e à experiência: o verbo agora é “alçar”, é o salto de Al32

Pico diz: “È adunque l’intenzione di Platone di dimostrare come per alcuna via non sia da sperare di potere aggiugnere alla fruizione della intellettuale bellezza, se prima in tutto le inferiori potenzie abbandonando, la umana vita insieme con quelle non si abbandona; nè ama perfettamente, cioè d'amore perfetto, chi per amore non muore.” (Ivi, p. 555) A passagem completa sobre o Orfeu é a seguinte: “Orfeo [...] desiderando andare a vedere l’amata Euridice, non volse andargli per morte, come molle e effeminato dalla musica sua, ma cercò modo di andargli vivo, e perciò dice Platone che non potè conseguire la vera Euridice, ma solo un’ombra e uno fantasma di lei gli fu dimostrato” (Ivi, p. 556). Poucas linhas após, depois de explicar sua interpretação do mito, Pico escreve contra Ficino: “Il quale senso benché sia suttile e alto, nondimeno è alle cose tanto conforme che quasi maraviglia mi pare che

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ceste que escolhe morrer, é o limite último da condição e da fraqueza humana33. Entretanto, antes de alcançar esse limite o saber humano pode voltar-se à natureza e estender-se qualquer campo como um instrumento, aquele da razão, capaz de guiar a experiência e fazer dela abstrações, de alcançar um grau de verdade que de fato é o mais alto concedido à natureza do homem. Sob a esperança e o limite, no conflito da natureza, o homem pode plasmar a realidade e olhá-la como um produto próprio: não pode exaurir a verdade, mas pode aproximar-se sempre um pouco mais na busca da verdade através de um tipo de conhecimento – imperfeito, mas que o distingue das outras criaturas – que reflete, ao proceder, a própria ordem da realidade. Na “inquisição” da realidade, a razão pode proceder com “conveniente e necessária ordem” da sensibilidade à abstração e, assim, iluminar aquilo que no intelecto era “obscuro lúmen e confusa cognição”34. Mas ao exprimir e comunica aquilo que descobriu, a razão pode seguir o sentido contrário, descendo em seu modo de explicar-se e Marsilio e ogni altro, preso dalle parole di Platone, non l’abbia inteso” (Ivi, p. 556). 33 “Né altrimenti accade a chi crede, non si spiccando dalle operazione della immaginativa e della parte eziandio razionale, adiungere alla vera cognizione delle intellettuale idee” (Ivi, p. 556). Mas “spiccare” das operações dos sentidos e da razão significa morrer: “El moto e la operazione è segno di vita, la privazione di questi è segno di morte.” (Ivi, p. 554). A passagem sobre Alceste é a seguinte: “Però Alceste perfettamente amò, che all'amato andare volse per morte, e morendo per amore fu per la grazie delli Dei a vita restituita, cioè regenerata in vita, non per corporale ma per spirituale regenerazione.” (Ivi, p. 555). 34 Ivi, p. 544.

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com a mesma “ordem científica” que domina a realidade e insere nas próprias coisas35. Entre o proceder da razão e o proceder da realidade, vigora assim uma mesma ordem, a beatitude permanece estranha à própria natureza do homem, mas o conhecimento da realidade segue um esquema plasmado pela sua razão. Nas Disputationes, este percurso se delineia de modo a sugerir as características que definem o caráter da experiência: dos sentidos não se procede a não ser seguindo a razão, a comunicabilidade da experiência, a precisão. Junto à experiência dos sentidos, resta a experiência humana, histórica e biográfica, a linha-mestra do filósofo que deseja investigar a natureza. A história humana e a história do saber se intersectam, e até a história pessoas se torna uma base de experiência da qual deduzir – sempre com método e razão – o senso das estrelas acima de Fiesole.

3. O problema da “experiência” nas Disputationes Em Indivíduo e cosmos, obra extraordinária e realmente capaz de adentrar nos problemas filosóficos profundos do Humanismo italiano, Ernst Cassirer considera as Disputationes adversus astrologiam divinatricem como texto fundador da ciência moderna: “Pico vai além da mera crítica à astrologia, traçando o limite 35

Ibidem.

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preciso que separa os signos mágicos da astrologia daqueles intelectuais da matemática e da ciência matemática da natureza. Deste momento em diante, estava aberto o caminho para a interpretação da ‘escritura cifrada da natureza’ através de símbolos físico-matemáticos, que são entendidos como símbolos que se apresentam à mente não apenas como potências estranhas, mas como suas próprias criações” 36 . Buscamos explicar como o mesmo resultado que Cassirer encontra nas Disputationes está no centro de toda a reflexão de Pico em torno do problema do conhecimento: da Oratio ao Commento e às Disputationes è a liberdade do sujeito que plasma a si mesmo e o mundo, reformando-o, fazendo sínteses e, finalmente, compreendendo-o como um produto de si próprio. Para Pico, a astrologia elabora um mundo inventado e expressa teses em contraste com a realidade das coisas porque não se baseia nos instrumentos que o homem tem à disposição para conhecer a natureza: os sentidos e a razão. No oitavo livro das Disputationes, a demonstração da falsidade das “imagens fabulosíssimas” utilizadas pelos astrólogos consiste precisamente no fato que dessas imagens não podemos ter conhecimento 36

E. Cassirer, Individuo e Cosmo, a cura di Friederike Plaga e Claus Rosenkranz, introduzione di Maurizio Ghelardi, traduzione e curatela di Giovanna Targia, Bollati Boringhieri, Torino 2012, p. 133. Cf. Nello Specchio del Cielo. Giovanni Pico della Mirandola e le Disputationes contro l’astrologia divinatoria, a cura di Marco Bertozzi, Olschki, Firenze 2008.

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“neque sensu neque ratione”37. Quase no final da obra, Pico se pergunta: “Se, como é demonstrado, os astrólogos não puderam captar a natureza do céu com a razão, descobriram-na mediante a experiência?”38 E como teriam feito se, neste caso, o experimento, ou seja, uma observação dos astros coerente com os princípios da astrologia, é por si impossível enquanto requereria “qualquer coisa de infinito, não reduzível nem a um método nem a alguma arte?”39 Já no início de sua obra, Pico havia criticado as próprias bases da astrologia divinatória, julgando-a insustentável porque os experimentos postos em relação a sua validade não tinham “nada de congruente, de constante, de verdadeiro, de crível, de firme”40. A razão, “única força inata em nós contra o engano”41, é a faculdade que, indagando a realizada das coisas, pode com juízo estabelecer as condições de confiabilidade da experiência e da observação. Somente tendo por base tais condições é possível definir aquele conceito de vera causa a que – como mostrou Cassirer – reunirá Kepler e Newton, o primeiro citando diretamente a crítica à astrologia de Pico42. 37

O título do capítulo é “Invisibiles imagines, neque sensu neque ratione cognitas esse; pugnareque inter se earum auctores, qui non Chaldaei aut Indi, sed Arabes tantum fuere”. Giovanni Pico, Disputationes adversus astrologiam divinatricem, a cura di E. Garin, vol. 2, Firenze, 1946 e 1952, p. 276. 38 “Si natura caelestium consequi ratione non potuerunt, quod demonstravimus, an potuerunt experientia?”, Ivi, p. 456. 39 “[...] Sed erraverunt existimantes esse tale quod fieri posset, cum infinitum sit illud, nec ad artem nec methodum redigi possit”, Ivi, p. 464. 40 Ivi, p. 43. 41 Ivi, p. 39. 42 E. Cassirer, Individuo e Cosmo, cit., p. 132.

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Mas qual é o conceito de experiência que pensa Pico? Antes da separação “moderna” entre os campos de saberes, a ideia de experiência elaborada para o filósofo coloca junto observação da natureza e experiência humana, saber histórico e reflexão moral. Desse modo, o problema da ciência só pode ser considerado em relação ao primado da liberdade humana, e os próprios métodos da ciência são inseparáveis daqueles métodos da investigação histórica e filosófica. Para dizer com Cassirer, a ideia de ciência de Pico é definida sempre a partir de “um pathos ético”43. O aspecto constitutivo da ideia de experiência em Pico visa em primeiro lugar o problema de sua comunicabilidade. Se se trata de experiência entendida como observação da natureza, a sua comunicabilidade depende, como se disse, de existir no experimento qualquer coisa de “congruente e constante” e repetível. A observação direta é critério de verificação e a repetibilidade da demonstração determina o grau de verdade. Escreve Pico: “Observei neste inverno, na minha cidade, na qual escrevi estas páginas, cada mudança notável no céu e, tendo presente os princípios dos astrólogos, em mais de centro e trinta dias de observação, pouco me surpreende se encontrei mais de seis ou sete 43

“Le radici ultime della critica che Pico rivolge all’astrologia non si trovano, però, in simili considerazioni di tipo logico o di critica della conoscenza. Il pathos che anima il suo scritto contro l’astrologia è, nella sua origine, un pathos non tanto teorico quanto etico”. E. Cassirer, Individuo e Cosmo, cit., pp. 133-134.

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dias que eu tinha previsto segundo as suas leis.”44 Seis ou sete dias equivalem a falsas coincidências para o filósofo, estatisticamente irrelevantes para definir com certeza a validade da observação conduzida. Mas o problema da comunicabilidade – e da acuidade – não visa apenas a experiência entendida como observação direta da natureza, mas define-se com maior clareza relativamente à experiência histórica. É em relação à história do pensamento que uma ciência – ou uma pseudociência como a astrologia, neste caso – define a origem e os próprios pressupostos de fundo. Aqui, para Pico, é a filologia o instrumento do cientista. Os magos, por ignorância ou oportunismo, atribuem os livros Da vaca a Platão, os livros dos gnósticos heterodoxos a Zoroastro, aqueles Das imagens de necromancia a Tomás de Aquino e a Alberto Magno, um pequeno livro de Roberto de York45. O elenco denunciado por Pico poderia prosseguir longamente, mas o elemento importante é que a análise textual é para ele instrumento da ciência na medida em que permite ao filósofo de entrar com precisão na história. Aqui está uma experiência da natureza que se desenvolve na relação entre sentido e razão, e aqui está uma experiência histórica na qual o elemento sensível é substituído pelo signo, pelo texto e pelo contexto a reconstruir: em ambos casos, é sempre o sujeito, segundo a razão, que reconstrói o objeto de sua indagação. 44

Giovanni Pico, Disputationes adversus astrologiam divinatricem, cit., p. 163. 45 Ivi, pp. 65 e seg.

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Ao lado da natureza e da história, existe um terceiro tipo de experiência que não emerge dos signos como o passado e que não nos alcança pelos sentidos adestrados pela razão. É um tipo de experiência em que se mantém o valor moral do conhecimento, a importância do juízo e da escolha, a beleza propriamente humana de uma consciência que o filósofo busca a partir de sua própria vida. A experiência biográfica é estímulo à pesquisa filosófica – as reprimendas de Pico aos amigos devastados pela loucura dos astrólogos e, assim, a necessidade “existencial” de desmistifica-los46 – e base direta de provas contra os magos, cujas superstições vão de encontro não apenas com os critérios do experimento científico e com o rigor da pesquisa histórica, mas também contra aquele tipo de juízo através do qual cada homem, olhando para sua própria vida, pode distinguir um saber verdadeiro de um falso. No De ente et uno, o limite é o silêncio em frente à verdade em sua plenitude; no Commento, é a cegueira que obscurece o ápice da beleza; nas Disputationes, é a distância das estralas: o céu é como um espelho, escreve Pico, mas “o espelho é muito alto para que as imagens das coisas terrenas possam chegar ao alto, muito brilhante para que seu fulgor não cegue nossa fraqueza”47. Uma filosofia do limite, então, na qual o problema 46

Cf. por exemplo o capítulo IX do segundo livro das Disputationes (Ivi, pp. 161 e seg.), no qual a demonstração da falsidade das predições dos astrólogo é conduzida “sia con esempi altrui che con vicende familiari”. 47 Ivi, p. 43.

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da experiência – entendida como conhecimento da natureza, da história e de si – retorna aquele da capacidade do homem de formar a si mesmo e a realidade, uma capacidade que se, por um lado supera a distância entre o sujeito do conhecimento e seu objeto, por outro deve conservar suas contradições. A capacidade formadora do homem repousa, de fato, sobre sua liberdade, e tal liberdade não pode ocorrer senão no conflito nunca resolvido entre o homem e a natureza, entre o homem e si mesmo. Não a “dupla alienação” que Eugenio Garin lia em Heidegger e Husserl48, mas por certo uma dialética em que a tensão entre natureza e cultura se mostra em toda sua grandeza: o “camaleão divino” tem em si também as sementes do mal, e seu olhar em direção às estrelas não pode se não colidir com os brilhos de um espelho muito iluminado para seus olhos. Não obstante, e talvez justamente por isso, o homem, copula mundi, tem a possibilidade e a tarefa de recompor em si o conflito, buscar a paz e plasmar em si a consciência.

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Eugenio Garin, Quel Humanisme?, in Revue Internationale de Philosophie, m. 85-86, Fasc. 3-4, 1968, p. 269.

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