Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico

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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Colorado do Oeste

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Colorado do Oeste

ISBN 978-85-67589-44-2

Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

As discussões e diálogos travados durante o I Seminário de Ciência e Tecnologia, do Instituto Federal de Rondônia - Campus Colorado do Oeste -, realizado em novembro de 2014, resultou nesta obra onde pesquisadores e professores, de diferentes e diversas áreas de formação, desenvolveram ideias, concepções e conceitos sobre a importância da Ciência e da Tecnologia para nossa sociedade contemporânea. Duas palavras tão usuais e tão presentes em nosso cotidiano, mas que são, ao mesmo tempo, um mal necessário e um bem nefasto para os homens e mulheres do século XXI. Os textos aqui expostos apresentaram interessantes perspectivas sobre essa intrigada relação. Leiam aqui até onde a ciência é nosso Belerofonte e, ao mesmo tempo, nossa Quimera contemporânea.

ENTRE BELEROFONTE E A QUIMERA: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA (ORGs)

entre belerOfOnte e a quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE RONDÔNIA – IFRO CAMPUS COLORADO DO OESTE REITOR Uberlando Tiburtino Leite DIRETORA GERAL CAMPUS COLORADO DO OESTE Larissa Ferraz Bedôr Jardim DIRETORA DE ENSINO Salete Borino DIRETOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Eduardo Norberto Aquino CHEFE DO DEPARTAMENTO DE EXTENSÃO Leandro Cecílio Matte CHEFE DO DEPARTAMENTO DE PESQUISA, INOVAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO Rafael Henrique Pereira dos Reis

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Colorado do Oeste

entre belerOfOnte e a quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA (ORGs)

COLORADO DO OESTE (RO) 2016

© 2016 Mauro Henrique Miranda de Alcântara, Roberta Carolina Ferreira Galvão de Ho-

landa e William Kennedy do Amaral Souza Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem autorização dos autores.

Revisão técnica e de conteúdo: Moisés José Rosa Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Nacional E61 Entre Belerofonte e a Quimera: reflexões sobre a ciência na contemporaneidade/ Organizado por Mauro Henrique Miranda de Alcântara, Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda e William Kennedy do Amaral Souza - Colorado do Oeste : MC&G Editorial, 2016. 140 p. : il . ISBN: 978-85-67589-44-2 1. Sociologia. 2. Ciência e Sociedade. 3. Meio Ambiente e Sociedade. 4. Relações Trabalhistas – Brasil. I. Título. II. Alcântara, Mauro Henrique Miranda de. III. Holanda,Roberta Carolina Ferreira Galvão de. IV. Souza, William Kennedy do Amaral. CDU: 316

BR 435, Km 63, Zona Rural Caixa Postal 51, CEP: 76.993-000 Colorado do Oeste, Rondônia.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................... 7 CAPÍTULO I



O “Prometeu acorrentado”: À guisa de uma introdução................................................................................................. 11 Mauro Henrique Miranda de Alcântara

CAPÍTULO II



Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia....................................................................................................21 Stella Cristiani Gonçalves Matoso Paulo Guilherme Salvador Wadt

CAPÍTULO III

– Meio

ambiente e sociedade: Transformação e história.......................................................... 49 Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda

CAPÍTULO IV

– Trabalho,

consumo e preservação ambiental: Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema........................................................... 63 Marcos Antonio Oliveira Rodrigues William Kennedy do Amaral Souza

CAPÍTULO V

– Entre

os “imprescindíveis” e os “redundantes” — olhares sobre as relações de trabalho no Brasil......................................................................77 Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

CAPÍTULO VI

– A

ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: Em busca de um caminho voltado para o homem................................................................. 99 Alisson Diôni Gomes

CAPÍTULO VII

– Ciência,

gênero e sexualidade: A influência epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico................................................................................111 Emerson R. de A. Pessoa Franciele Monique Scopetc dos Santos Gustavo Piovezan

CAPÍTULO VIII

– Arte

e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade.................................................. 127 Raphaela Rezzieri João Paulo Rossatti

SOBRE OS AUTORES................................................................................................................139

APRESENTAÇÃO Este livro é resultado dos diálogos, debates e comunicações realizados no I Seminário de Ciência e Tecnologia do Instituto Federal de Rondônia — Campus Colorado do Oeste realizado entre os dias 19 e 20 de novembro de 2014. Esse evento foi desenvolvido para contemplar as atividades da Semana da Ciência e Tecnologia, proposta anualmente pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Em 2014, a temática sugerida para as atividades da semana foi A Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social. A partir desse eixo temático começamos a pensar e organizar as atividades do evento. A primeira pergunta que perseguimos para organizar o evento e, posteriormente, na organização deste livro foi: É possível a ciência e a tecnologia garantirem o desenvolvimento social? Organizamos quatro mesas redondas e duas conferências com pesquisadores de diversas áreas, a fim de debatermos esses questionamentos e propormos possíveis saídas. O resultado dos diálogos travados durante o evento, ou ao menos parte dele, poderemos verificar ao ler esta publicação. Nela, pesquisadores enriqueceram com aprofundamentos temáticos e teóricos as propostas apresentadas durante as atividades do I Seminário de Ciência e Tecnologia. O capítulo que abre este livro, justamente porque busca apresentar uma introdução aos debates vindouros, é o texto do professor Mauro Henrique Miranda de Alcântara (IFRO), cujo título é O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução. Neste texto, o autor problematiza a relação entre a busca por uma verdade nas ciências e a consequente mitificação dos seus usos, tanto pelos cientistas, quanto pela sociedade. No capítulo II, escrito pela professora Stella Cristiani Gonçalves Matoso (IFRO) e o pesquisador Paulo Guilherme Salvador Wadt (EMBRAPA), sob o título Crenças e Credos em Ciência dos Solos na Amazônia, os autores buscaram, por meio de apresentação e explicação de dados numéricos, biológicos e 7

fórmulas químicas, desmistificar algumas crenças e credos sobre os solos amazônicos. O capítulo seguinte, Meio Ambiente e Sociedade: transformação e história, escrito pela professora Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda (IFRO), apresenta uma interessante discussão sobre o avanço do consumismo na sociedade capitalista ocidental e a consequente transformação e deterioração do meio ambiente. Em Trabalho, consumo e preservação ambiental: discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema, o acadêmico Marcos Antonio Oliveira Rodrigues (IFRO) e o professor William Kennedy do Amaral Souza (IFRO), amparados pelo diálogo entre as teses de Marx e muito dos seus interlocutores contemporâneos, apresentam como os discursos do capitalismo objetivam a práticas mais simbólicas do que reais, em torno da preservação ambiental. A professora Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa (UFMT), no capítulo intitulado Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — olhares sobre as relações de trabalho no Brasil, nos apresenta, por meio de discursos de trabalhadores, mapas de violência e outras fontes, a problemática relacionada entre o avanço do “progresso” e as relações de trabalho no Brasil. O professor Alisson Diôni Gomes (UNIR), no capítulo VI, intitulado A Ciência, a Tecnologia e o Desenvolvimento: Em busca de um caminho voltado para o homem apresenta uma reflexão sobre como a produção científica e tecnológica contemporânea podem fornecer subsídios para um desenvolvimento humano, de fato, em meio a muitos absurdos oriundos do capitalismo. A produção de verdades científicas, em torno das questões de gênero e sexualidade na história, é a temática central do capítulo VII, intitulado Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico, escrito pelos professores Emerson R. de A. Pessoa (UNIR), Franciele Monique Scopetc dos Santos (UNESP) e Gustavo Piovezan (UTFPR). O capítulo que fecha esta coletânea é o escrito pelos professores Raphaela Rezzieri (UNEMAT) e João Paulo Rossatti (UFMT), intitulado Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade. Através de uma breve abordagem histórica, esse texto apresenta a consonância entre arte e ciência na transformação da sociedade ocidental.

8 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Convidamos-vos para que façam a leitura destes capítulos, com um olhar curioso, buscando mais obter perguntas do que respostas, pois após as reflexões que estes textos nos trazem, o título do livro é a metáfora para as questões abertas sobre a ciência no mundo contemporâneo: ela é tanto a fonte do mal, quanto do bem. Ou seja, ela é a Belerofonte e a Quimera. Boa leitura!

Os organizadores

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CAPÍTULO I

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução Mauro Henrique Miranda de Alcântara

Era o deus Prometeu, um habilidoso escultor. Filho dos Titãs Japeto e Ásia, seria ele o responsável por uma das mais importantes criações de Zeus: o homem. Sem compreender inicialmente tal tarefa, a ele incumbida pelo deus supremo, começou a confeccioná-lo sem mais delongas. Ao finalizar o trabalho, todo orgulhoso, foi apresentá-lo aos deuses que não somente aprovaram a criatura, como também encobriram o “escultor” de majestosos elogios. Embevecido com tamanha honraria, Prometeu tornou o “homem” a sua obra-prima e passou a buscar meios para que sua “arte” vivesse o melhor possível. Ele roubou do sol uma pequena chama que enviou aos homens. No entanto estes, bem como toda criatura em relação ao seu criador, acabaram por entrar em conflito com Zeus. Certo da necessidade de aplicar um castigo aos homens, o deus supremo retirou deles o direito ao fogo, presenteado por Prometeu. Mesmo alertado quanto à possibilidade de uma punição àqueles que desobedecessem às ordens de Zeus, Prometeu tornou a roubar uma chama e dá-la aos homens. Irado, Zeus mandou acorrentar o desobediente Prometeu no alto de um rochedo, e enviou uma ave de rapina para que comesse, todos os dias, um pouco do seu fígado. Sua fúria era tão grande que ordenou a Prometeu ficar eternamente preso ao rochedo. Após longos anos de sofrimento, Zeus, em um ato de compaixão, resolveu dar uma trégua, libertar Prometeu do seu sofrimento, se este jurasse esconder dos homens o segredo do fogo. Prometeu recusou e manteve-se em silêncio. Héracles, filho de Zeus, acabou por ajudar a atenuar o sofrimento de Prometeu. Em uma de suas jornadas aventureiras, acabou por matar o abutre que devorava constantemente o seu fígado. Prometeu conseguiu se livrar das correntes, mas Zeus apareceu e disse-lhe ser O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 11

impossível se livrar de tal castigo, pois a sua ordem, de que ele deveria ficar eternamente ligado àqueles rochedos, seria eterna. Prometeu sugeriu a Zeus uma ideia para manter tal ordem, mas concedendo-lhe a liberdade. Pediu que Héracles fabricasse com suas correntes um anel. Zeus concordou. Assim que o recebeu, Prometeu o colocou e afirmou que agora, ele estaria eternamente preso ao dito rochedo, conforme ordem do deus supremo do Olimpo. Zeus ficou espantado e admirado com tal sagacidade. E resolveu pôr fim a tal contenda. Entre tantos mitos e seres míticos herdados da cultura grega, talvez este seja um dos mais intrigantes e significantes para a vida humana. Provavelmente dele podemos pensar muito do que somos e, principalmente, do que nos tornamos. A metáfora do “Prometeu acorrentado”, nos dá certa dimensão para pensar o papel da ciência, dos cientistas e da tecnologia em nossos dias. A ciência, como a concebemos hoje, é fruto da sagacidade, inteligência, destreza e curiosidade humana. Sem tais características, não poderíamos ter construído tantos conhecimentos, organizado e disseminado, tal como fazemos. Bem como Prometeu que, sem tais adjetivos, não teria conseguido conceber a sua “obra-prima”, o homem. Como o mito grego, a ciência, por diversas vezes, acaba por “desrespeitar as ordens humanas”, ou melhor, a ciência, capaz de nos dar condições de pensar objetivamente um “mundo ideal, real”, concebe um código de ética para as suas atividades, mas ao mesmo tempo, acaba por desrespeitar aquilo que prega e “comprova” ser o melhor. O que seria o “antiético” diante de uma construção “ética”, se não isso? A ciência e Prometeu se assemelham ainda em um ponto: ambos são em demasia “humanos”. Talvez porque, por mais que se busquem apresentar ambas as explicações fora de um contexto humanístico, são elas construções dos homens, para os homens e no ambiente dos homens. Possuem a mesma capacidade de superar desafios com perspicácia para a melhoria da humanidade. Ambos possuem dentro de si um tanto de mal quanto de bem. Quer algo mais humano do que isso? O que mais os transformam em uma construção humana, ou melhor, humanizada é que tanto o mito do “Prometeu acorrentado”, quanto a ciência moderna, são construções discursivas. Ou seja, ambos só podem existir materializados por uma narrativa que, até o prezado momento, é uma atividade exclusivamente humana. Antes de entrar em um terreno movediço, que apresenta tudo e a todos como meras representações, apresentamos aqui as reais diferenças entre a construção de um mito e da ciência. 12 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

O mito é uma representação, ou melhor, são metáforas para explicar observações do homem em relação ao seu mundo, mas sem a capacidade e as devidas ferramentas para uma explicação plausível para acontecimentos, fatos, coisas. A ciência se arquiteta na busca de uma comprovação, por meio dessa explicação plausível e com as devidas ferramentas, as quais foram insuficientes, inicialmente, para os gregos. Os mitos permanecem em nosso meio e, muitas vezes, é justamente na ciência que eles se perpetuam, como veremos à frente. O fato é que, independentemente do caráter explicativo (objetivo ou subjetivo), ambas formas narrativas buscam apresentar explicações do seu mundo para os seus pares, daquilo que a curiosidade humana é instigada. Entre os gregos, durante muito tempo, os mitos foram suficientes para dar conta dos acontecimentos humanos. No entanto, tal fenômeno, bem como todas as coisas humanas, acabou-se por ser insuficiente. Eis onde entra o papel da filosofia grega e sua busca por indagar-se e apresentar explicações mais próximas do “real” dos acontecimentos mundanos e, até mesmo, metafísicos. Eis que as indagações e explicações filosóficas não se perpetuaram, uma vez que a natureza humana é uma parente próxima de Prometeu, sagaz, curiosa e principalmente, ambiciosa. A ciência moderna, construção de um mundo “iluminado”, apresenta-se como a solução da humanidade a partir do século XVIII, resplandece e tem seu momento de glória e consolidação no século XIX, no entanto apresenta-nos o caos e a descrença com as atrocidades e genocídios ocasionados por grandes eventos bélicos no século XX. Assim com Prometeu, a ciência foi e é capaz de grandes feitos e grandes destruições ao mesmo tempo. Seria a ciência (ou os próprios seres humanos?) ao mesmo tempo o maravilhoso e corajoso herói Belerofonte e o mais terrível monstro com quem ele lutou, a Quimera? Deixando momentaneamente de lado a metáfora do “Prometeu acorrentado”, mas não a mitologia, estes discursos utilizados pelos gregos antigos para explicar o mundo possuíam, provavelmente, a mesma importância que os discursos científicos para nossa atual sociedade. Ou seja, independentemente do período histórico, as práticas discursivas acabam por nos dar a base explicativa para a vida neste planeta. Os gregos utilizavam as explicações míticas diante de um sentido religioso, ou seja, tais discursos buscavam “religar” essa sociedade aos seus deuses. Dominique Maingueneau, linguista francês, utiliza-se do termo “discurso constituinte” para explicar a capacidade de certos discursos serem justificados em si mesmo: O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 13

A pretensão desses discursos, assim chamados por nós de “constituintes”, é de não reconhecer outra autoridade além da sua própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles. Isso não significa que as diversas outras zonas de produção verbal […] não exerçam ação sobre eles; bem ao contrário, existe uma interação constante entre discursos constituintes e não-constituintes, assim como entre discursos constituintes. Mas faz parte da natureza dos discursos constituintes negar essa interação ou pretender submetê-la a seus princípios. (MAINGUENEAU, 2008, p. 37).

O mais interessante dessa colocação do francês é que para ele os discursos, tidos, como constituintes são: os discursos científicos, religiosos e jurídicos. Mais uma vez verificamos aproximações entre o “Prometeu” e a ciência. Tanto um quanto o outro buscavam e buscam governar, justificar e constituir a vida de suas respectivas sociedades. Dessa forma é como tais discursos buscam se caracterizar e apresentar, no entanto trata-se de discursos de caráter sócio-históricos, influenciados diretamente pelas estruturas sociais, econômicos e culturais. Se hoje não concebemos a mitologia grega como uma explicação do mundo, apenas olhamos para tais mitos com um olhar de historicidade, do que foi um dia. A ciência, apesar de estar e ser presente em nossa sociedade, também é marcada por uma historicidade, ou melhor, por uma “validade histórica”. O historiador das ciências Thomas Kuhn apresenta a ciência como uma “convenção”, e a “comunidade científica”, onde ela é desenvolvida, é “ao mesmo tempo, o lugar e o resultado dessa convenção” (HOCHMAN, 1994, p. 203). Portanto, por ser uma convenção, a ciência é algo construído sócio historicamente, por indivíduos de tal local, e exposta a todas as estruturas do seu tempo. Quando as respostas que esse “paradigma científico” fornece não conseguem satisfazer as questões levantadas pela sociedade, vem a crise e a mudança: Enquanto os instrumentos proporcionados por um paradigma continuam capazes de resolver os problemas que este define, a ciência move-se com maior rapidez e aprofunda-se ainda mais através da utilização confiante desses instrumentos. A razão é clara. Na manufatura, como na ciência — a produção de novos instrumentos é uma extravagância reservada 14 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

para as ocasiões que a exigem. O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos. (KUHN, 206, p. 105).

Eis, provavelmente, o motivo para a existência deste texto e, principalmente, para a abertura de diálogos, reflexões e debates sobre o papel da ciência, da tecnologia e dos cientistas na contemporaneidade, a partir de artefatos textuais, noticiários, eventos, entre outros. Nossa sociedade busca novas respostas, as ciências, apesar de conseguirem se renovar e inovar em uma velocidade impressionante (a aceleração do tempo, eis a marca de nossa sociedade), ela não consegue apresentar características e formas que atendem tais demandas. No entanto, o que presenciamos é uma busca incessante, por parte dos cientistas com vistas a justificarem o resultado dos seus trabalhos como “discursos constituintes”, ignorando a dialética à qual estão envolvidos diretamente. Isso porque muitas vezes, não conseguem compreender para quem trabalham, e acreditam piamente na possibilidade da construção de um conhecimento objetivo, isento e comprovado. Hochman, ao explicar como o sociólogo francês Pierre Bourdieu compreende a lógica de um “campo científico”, relata: O campo científico é um campo de lutas, estruturalmente determinado pelas batalhas passadas, no qual agentes/cientistas buscam o monopólio da autoridade/competência científica. Os conflitos que ocorrem no e pelo domínio desse campo são entre agentes que têm lugares socialmente prefixados no mesmo, assim como qualquer agente na sociedade, e são fundamentalmente interessados, isto é, desejam maximizar, e se puderem monopolizar, a competência/ autoridade científica — reconhecida pelos pares. (HOCHMAN, 1994, p. 209).

Os cientistas possuem um pouco do “Prometeu”, ao não aceitarem, muitas vezes, a possibilidade de interferências às suas “obras-primas”. No entanto, diferentemente do mítico personagem, que fora castigado por Zeus, geralmente essa prática científica é ratificada pelos pares. Perpetua-se o que Pierre Bourdieu descreve como habitus: [...] sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 15

representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcança-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2009, p. 87).

E não somente entre os pares e o campo científico tal prática discursiva é aceita e ratificada. Geralmente, quando há “descobertas científicas”, é noticiada midiaticamente, em formas de discursos jornalísticos, ou seja, para que a população compreenda, a fim de que “popularizem”, sem questionamentos, tais saberes e “verdades”. Ou seja, ao invés de colaborar na validação de tal conhecimento, questionando, refutando, dialogando, refletindo sobre tais conhecimentos, o papel da mídia acaba por colaborar na construção de verdadeiros “mitos” em torno dos discursos científicos. Vera Portocarrero, ao estudar as concepções de saber e verdade nas obras de Michel Foucault, nos indica uma resposta plausível para essa “mitificação científica”, ou melhor seria, a “mitificação da verdade e do saber” na sociedade contemporânea: [...] vivemos em uma sociedade que caminha “ao compasso da verdade” […], ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, e que por isso representam poderes específicos. Um dos principais problemas da civilização ocidental é a produção de discursos “verdadeiros”, que, por sinal, mudam sempre. (PORTOCARRERO, 1994, p. 56).

A circulação dessas “verdades”, mesmo que dinâmicas, pois como diz a autora “mudam sempre”, acabam por criar tais “mitos”. Mais quais seriam os reais interesses nessa “mitificação” das “verdades”, dos “saberes” e da “ciência”? Para Michel Foucault, a ciência é um dos instrumentos para as classes que detêm o poder de construir um conjunto de verdades que será aceito pelas demais classes. Portanto, para ele, a ciência e/ou o saber está vinculado ao jogo das relações de poder na sociedade: Sem dúvida, um dos aspectos mais importantes desta história da verdade é a relação por ele estabelecida entre a produção de verdades e as relações de poder: A produção de verdade é inteiramente infiltrada pelas relações de poder. (PORTOCARRERO, 1994, p. 46). 16 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Diante do exposto, é possível compreender o quão difuso e opaco são os discursos construídos pela “ciência”. Afinal, ela está vinculada às estruturas econômicas, às relações de poder, mas o seu objeto em si é a construção de “verdades”, às vezes limitada por estes jogos de poder. Voltamos ao “Prometeu”. Seria possível, diferentemente desse personagem, a ciência enfrentar “Zeus” e conseguir se livrar da eterna ligação ao “rochedo”? Em outras palavras, seria possível a ciência apresentar toda a isenção e imparcialidade diante dos interesses políticos e econômicos que a cercam (e principalmente a financiam)? A resposta que teríamos para hoje seria que inevitavelmente o discurso científico sempre estará à mercê das relações de poderes. Portanto, trata-se de um categórico “não!” em relação ao questionamento. Por que não? Oras, durante todo este texto temos demonstrando o quão humano é a prática científica, e que por mais que ela busca se “livrar do rochedo”, o aspecto humano é o anel do “Prometeu” que a ciência terá que levar eternamente. Ou seja, “Zeus” venceu! Mas ainda não terminamos. Mesmo não havendo saída para as questões que levantamos, podemos pensar e repensar as condições de práticas científicas, sem perder de vista o ponto de partida do fazer ciência: a racionalidade humana. O historiador alemão Jörn Rüsen facilitará nosso trabalho: [...] o pensamento é um processo genérico e habitual da vida humana. A ciência é um modo particular de realizar esse processo. O homem não pensa porque a ciência existe, mas ele faz ciência porque pensa. Se se puder estabelecer que esse modo particular, científico, do pensamento humano está enraizado no pensamento humano em geral, ter-se-á um ponto de partida para responder à pergunta: por que o pensamento se dá e se deve dar no modo científico? (RÜSEN, 2010, pp. 54-55).

Assim como em determinado tempo histórico, o “Prometeu” foi possível e responsável para atender explicações levantadas pelos gregos, a ciência hoje é um meio para explicar nossas angustiantes questões. A ciência é, antes de tudo, um meio de materialização (podemos dizer, uma forma objetiva disso) do pensamento humano. Nada mais é esse meio de “racionalização do pensamento” que uma construção histórica humana. É por meio disso que conseguimos significar nossa vida. E provavelmente será por meio dele, que nos guiaremos por um longo espaço de tempo. Mais uma vez Rüsen nos ajuda a compreender tal situação, e diminuir nossas possíveis angústias: O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 17

O homem necessita estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta como mudança de si mesmo e de seu mundo, ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ou seja, assenhorar-se dele de forma tal que possa realizar as intenções de seu agir. Nessas intenções há igualmente um fator temporal. Nelas o homem vai além, também em perspectiva temporal, do que é o caso para si e para o seu mundo; ele vai, por conseguinte, sempre além do que experimenta como mudança temporal, como fluxo ou processo do tempo. Pode-se dizer que o homem, com suas intenções e nelas, projeta o tempo como algo que não lhe é dado na experiência. (RÜSEN, 2010, pp. 57-58).

O que podemos aprender com essa posição de Rüsen é que, antes de tudo, o homem é um ser histórico por natureza. É nas relações temporais que ele consegue se “encontrar” no mundo e, a partir dessa capacidade de construir um quadro interpretativo daquilo que se é e onde se vive, buscará apresentar modelos explicativos para tais interrogações. Como ser que se relaciona diretamente com as dimensões temporais, buscará sempre reencontrar e reorganizar um quadro explicativo para a sua existência. Retomamos nesse momento Kuhn. Todas as vezes que o “quadro explicativo” não atender aos questionamentos, deverão ocorrer crises e rupturas até um “novo quadro” ser constituído, validado e aceito, diante de todas as características que buscamos apresentar no texto. Antes de tudo, precisamos aceitar e compreender a ciência, a tecnologia e o cientista como uma criação, invenção, respostas dadas a questionamentos feitos pelos seres humanos para os próprios seres humanos. Humanizar a ciência não é transformá-la em algo menor; é compreendê -la como algo “real”, constituído de questões concretas, buscando explicações “reais”. Vivemos hoje em uma realidade um tanto quanto distópica. Esperamos, ansiosos, no entanto ceticamente, por uma “novidade”, uma “invenção”, uma “descoberta”. Mas tudo isso dentro de uma perspectiva muito mais próxima de uma ficção científica do que diante de uma “realidade”. Tudo nos parece distante e, a ciência, a tecnologia e o cientista parecem ser as “estradas” que buscam manter tal distanciamento. Os textos que, vocês leitores, terão a possibilidade de apreciar neste livro, foram motivados justamente para debater, dialogar e refletir sobre esse cenário que buscamos apresentar nesta (tentativa de) intro-

18 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

dução. Resultado de comunicações apresentadas em um seminário, cujo objetivo foi justamente tentar compreender qual o papel da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento social. Buscamos apresentar neste singelo artefato textual, justamente esse questionamento: apesar de ser apresentado como um “discurso constituinte”, divulgado e perpetuado de forma “mítica”, organizado por profissionais que buscam sempre distanciar-se dos demais agentes sociais, e se confinam em seus “campos científicos” e trabalham a partir de seus habitus, disseminando um conhecimento, a distribuição de uma “verdade”, muitas vezes sem conceber as “relações de poder” que as envolve, quais seriam os “reais” papéis da ciência e da tecnologia para nossa atual sociedade? Após as leituras e diálogos que buscamos realizar, provavelmente poderíamos responder da seguinte maneira o questionamento: a ciência e a tecnologia são, justamente, o resultado do trabalho humano, da capacidade humana de inventar e se reinventar, criar mecanismos, ou melhor, novos quadros explicativos para sua existência (e para sua melhor existência) sempre que necessário. Precisa-se, para isso, humanizar o conhecimento científico. Mesmo estando sujeito, assim como “Prometeu”, a ficar eternamente ligado ao rochedo, a ciência, por ser um conhecimento realizado pelo homem, sempre terá a capacidade, sagacidade, inteligência de construir “anéis” que lhe oportunizarão uma vida melhor.

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 19

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Petrópolis: Vozes, 2009. FERREIRA, F. H.; Odsson A. Prometeu e a caixa de Pandora. Portal Templodeapolo.net, Porto Alegre, RS. Disponível em:: Acesso em: 02 mar. 2015. GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. 2. ed. Tradução: V. Jabouille. Lisboa: DIFEL, 1993. HOCHMAN, Gilberto. A ciência entre a comunidade e o mercado: leituras de Kuhn, Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina. In: PORTOCARRERO, V. (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. Disponível em: Acesso em: 02 fev. 2016. KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da Enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. PORTOCARRERO, Vera. Foucault: a história dos saberes e das práticas. In: PORTOCARRERO, V. (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. Disponível em: Acesso em: 02 fev. 2016. RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. 1. reimpr. Brasília: EdUNB, 2010.

20 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

CAPÍTULO II

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia Stella Cristiani Gonçalves Matoso Paulo Guilherme Salvador Wadt

Introdução Era intenção, aqui, fazer uma introdução sobre a construção do conhecimento científico, seus métodos de investigação e publicação. Mas, após a analogia realizada entre a metáfora de Prometeu acorrentado e a nossa ciência atual, por Mauro Henrique Miranda de Alcântara no primeiro capítulo deste livro, nossas colocações tornam-se dispensáveis e até irrelevantes. Apenas como contextualização, podemos citar que o processo de construção do conhecimento científico, e das tecnologias decorrentes desse, é predominantemente acumulativo. A Ciência do Solo, como nesse aspecto não difere das outras áreas, está inserida nesse cenário. À medida que se acumula conhecimento sobre a natureza e as propriedades do solo, podem-se construir modelos teóricos sobre a dinâmica dos diversos processos que ocorrem no mesmo de modo que posteriormente seja possível desenvolver inovações, originando processos tecnológicos (como técnicas de manejo de solo) ou novos produtos (como inoculantes ou fertilizantes). Essa inovação tecnológica; sendo incremental ou radical, ou mesmo quando restrita a um contexto peculiar de investimentos em tempo, recursos e conhecimentos; é produto do conhecimento adquirido pela coletividade. Há quarenta anos, o Brasil estava se reorganizando no âmbito da pesquisa agropecuária. Com relação aos órgãos governamentais, destaca-se a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária no início da década de 1970; e a criação dos primeiros programas de Pós-Graduação na área e subáreas da Ciência do Solo, nas Universidades Federais e em algumas Estaduais, onde hoje se concentra a maior parte da capacidade criativa e inovadora. Reconhece-se, portanto, o significativo avanço obtido pela Ciência do Solo nesse período. Podendo pressupor que os profissionais possuem melhor formação e criticidade para enfrentar os desafios que se colocam frente à contínua modernização da agricultura brasileira. Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 21

Apesar do reconhecimento do avanço coletivo da Ciência do Solo e da melhoria individual do profissional, temos que retomar a discussão do primeiro capítulo, sobre as particularidades da construção da ciência, construção essa que é uma prática humana e discursiva. A falta de aceitação de que o ser humano interfere em sua obra e de dialética nas publicações científicas da Ciência do Solo constitui um empecilho ao avanço intelectual, qualitativo, inovador e tecnológico dessa área do conhecimento e contribui ainda para a propagação de “verdades absolutas”, mitos e crenças. Quando a comunidade científica aceita a comprovação de uma hipótese que foi testada pelo método científico, essa afirmação se torna uma “verdade”. Muitas vezes ouvimos entre leigos em qualquer assunto a expressão: “comprovado cientificamente”. Desse modo, se dá veracidade àquilo que está sendo dito. Como a ciência é dinâmica, por vezes, essas “verdades” são modificadas ou até mesmo rejeitadas, mas uma nova aceitação pode demorar, ou mesmo não acontecer. A mídia, o poder público e grandes empreendedores podem ter influência direta nesse aspecto. Discursos interessantes à determinada parcela da sociedade podem perdurar, mesmo não sendo mais considerados “verdades”. Nesse capítulo, vamos apontar alguns conhecimentos com relação à região amazônica que, em dado momento, foram tidos como “verdades” e que tamanha foi sua propagação que viraram verdadeiras crenças. Apresentamos a seguir três crenças que alguns seguem como verdadeiros credos.

1.ª Os solos da Amazônia são pobres e improdutivos É muito comum veicular na mídia e em publicações científicas caracterizações dos solos amazônicos como sendo de baixa fertilidade natural, elevada acidez, porém sem impedimentos físicos para a mecanização. O que viria onerar os custos de produção na região, devido à necessidade de insumos, como corretivos e fertilizantes. Muito similar aos adjetivos dados aos solos do Cerrado. Para entender de onde vem essa generalização, temos que fazer alguns apontamentos. Primeiramente, vamos fazer uma síntese sobre o processo de formação dos solos. O solo se forma a partir de cinco fatores: material de origem, clima, organismo, relevo e tempo. Esses fatores em conjunto passam por processos pedogenéticos e tipos de formação do solo. O produto de todo esse processo origina um perfil composto por horizontes e camadas com relações pedogenéticas entre si que, no Brasil, pode ser classificado em treze ordens (OLIVEIRA, 2008). 22 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

No bioma amazônico, devido ao seu clima equatorial quente e úmido, ênfase exacerbada é dada a esse fator (clima) no processo de formação do solo, deixando-se de lado os demais. Aliado a isso, o relevo predominante da região é de terras baixas, tais como, planícies, planaltos rebaixados e planaltos (QUESADA et al., 2011). Desse modo, a região amazônica seria uma vasta extensão territorial quente e úmida, com uma condição de paisagem ligeiramente aplainada. Para visualizarmos essa situação, podemos observar na Figura 1 o trajeto em linha reta entre a cidade de Porto Maldonado, Peru, até a foz do Rio Amazonas. Essa cidade localiza-se às margens do rio Madre de Dios, afluente de rios que formam a bacia do rio Madeira e do rio Amazonas, possui altitude média de 210 metros e se encontra em linha reta a mais de 2.500 km da foz do rio Amazonas, no Atlântico. Considerando então, o desnível e a distância até a foz do Amazonas, a declividade média seria de apenas 0,00875%. Se desconsiderarmos as variações de altitude do relevo local durante o percurso, o relevo macrorregional pode ser considerado praticamente plano (QUESADA et al., 2011). Figura 1. Trajetória em linha reta entre Porto Maldonado, Peru, e a foz do Rio Amazonas, formando um relevo macrorregional plano

Fonte: Google Earth (2016).

Esse cenário, além de trabalhos pontuais com caracterização de solos de baixa fertilidade, levou a comunidade científica a assumir alguns posicionamentos. Os pedólogos concluíram que os solos da Amazônia Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 23

seriam invariavelmente maduros,1 lateríticos2 e intensivamente lixiviados.3 Já os biólogos inferiram que a disponibilidade de nutrientes

no sistema seria obtida exclusivamente por meio de processos de ciclagem dos nutrientes dentro da própria floresta.

Além do processo de formação do solo, a própria ocupação da região amazônica pode ter contribuído para essa visão reducionista dos solos amazônicos. Até meados da década de 1980, a maior parte da expansão agropecuária e das cidades sobre a região ocorreu sobre solos formados sobre o Escudo Brasileiro, na região leste do bioma amazônico, em áreas com idade geológica de 2,0 a 3,6 bilhões de anos, enquanto que na região mais a oeste, com solos de menor idade geológica, persistiam as atividades urbanas e agrícolas as margens dos rios navegáveis (Figura 2). Figura 2. Máxima idade geológica associada as formações geológicas no bioma amazônico

Fonte: Quesada et al. (2011). 1 Solos que passaram por longo processo de intemperismo. O intemperismo, por sua vez, é conjunto de processos mecânicos, químicos e biológicos que ocasionam a desintegração e decomposição das rochas, e a consequente formação do solo. 2 Solos lateríticos são formados pelo processo de laterização, o qual se caracteriza pela ocorrência de intensa lixiviação de bases, que ocorre pelo excesso de chuvas, formando solos profundos, ricos em óxidos de ferro e alumínio. Quando o processo é muito intenso pode e a laterização é quase total, o solo se chama laterita, após desidratação originam-se crostas, cangas e concreções, que impedem o desenvolvimento das raízes. 3 Lixiviação é o processo de extração de uma substância presente em componentes sólidos através da sua dissolução em um líquido. Portanto solos lixiviados são aqueles que perderam nutrientes, por percolação no perfil, a partir da dissolução dos mesmos em água.

24 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Figura 3. Evolução da geologia na bacia amazônica a partir dos últimos 23 milhões de anos anteriores à época atual

Fonte: adaptado de Hoorn et al. (2010).

CRENÇAS E CREDOS EM CIÊNCIA DOS SOLOS NA AMAZÔNIA 25

O início da ruptura do paradigma da baixa fertilidade dos solos amazônicos somente foi possível ao se desconsiderar a magnitude do efeito do clima na formação os solos na região e dar maior ênfase aos outros fatores de formação (QUESADA et al., 2011). A relevância de fatores como evolução geológica e modelagem da paisagem foi, por muito tempo, ignorada. Somente nos dias mais recentes, alguns autores (HOORN et al., 2010) têm argumentado que grande parte da diversidade dos solos da Amazônia origina-se das diferenças geológicas e geomorfológicas que ocorrem através da bacia, destacando-se como processos promissores o soerguimento da Cordilheira dos Andes e a consequente formação das antibacias de depressão à leste da cordilheira, local onde acumularam sedimentos, transformando profundamente a geologia local (Figura 3). Desses processos geológicos relacionados ao soerguimento das Cordilheiras do Andes originaram solos extremamente imaturos4 em um ambiente com enorme pressão de intemperismo químico e biológico (devido às condições climáticas), resultando em grande variabilidade de ambientes e condições edafológicas. Como exemplos típicos, temos a ocorrência de Cambissolos5 com características vérticas6 na porção mais a oeste da bacia amazônica ou dos Plintossolos7 na porção mais central (Figura 4), além da ocorrência de solos como os Vertissolos8 e Luvissolos9 na porção central da bacia 4 Solos que sofreram pouca atuação das forças do intemperismo. Ainda se encontram no início do processo de formação. 5 Solos pouco desenvolvidos. Possuem o horizonte B incipiente, que resumidamente, caracteriza-se pela presença de 4% ou mais de minerais primários, elevada relação silte/ argila (acima de 0,7), capacidade de troca de cátions acima de 17 cmolc dm-3 e 5% ou mais do volume do solo apresenta estrutura da rocha original. 6 Presença de minerais de argila de alta atividade expansivos, que devido aos movimentos de expansão e contração dos minerais formam fendas e “slickensides” (superfícies de fricção), ou estrutura cuneiforme e, ou, paralepipédica, em quantidade e expressão insuficientes para caracterizar o próprio horizonte vértico. 7 Solos minerais, formados sob condições de restrição à percolação da água, sujeitos ao efeito temporário de excesso de umidade, de maneira geral imperfeitamente ou mal drenados, que se caracterizam fundamentalmente por apresentar expressiva plintitização com ou sem petroplintita 8 Solos constituídos por minerais de argila de alta atividade e expansivos. Em época seca apresentam fendas profundas, e evidências de movimentação da massa do solo, sob a forma de superfície de fricção (slickensides). São desenvolvidos normalmente em ambientes de bacias sedimentares ou a partir de sedimentos com predomínio de materiais de textura fina e com altos teores de cálcio e magnésio, ou ainda diretamente de rochas básicas ricas em cálcio e magnésio. 9 Solos com B textural de argila de atividade alta, saturação por bases alta, ligeiramente ácidos a alcalinos e pouco profundos.

26 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

do Acre (ANJOS et al., 2013) ou Planossolos Nátricos10 nas savanas de Roraima (VALE JR et al., 2010). Figura 4. Distribuição de Cambissolos (à esquerda) e Plintossolos (à direita) na bacia amazônica

Fonte: Hoorn et al. (2010).

Associado a esse processo, destaca-se também a energia erosiva atuando na modelagem atual do relevo regional. Devido ao soerguimento da Cordilheira dos Andes, foram formadas sucessivas camadas deposicionais de materiais sedimentares com diferentes granulometrias e tipos de argilas. Com a atuação das forças erosivas11 sobre essas camadas, tem-se como resultado “inversões” da paisagem (Figura 5), como observado em algumas regiões do sudoeste amazônico, com a ocorrência de Vertissolos nos topos da paisagem e Argissolos nas áreas baixas (LOSS et al., 2014).

10 Solos minerais imperfeitamente ou mal drenados, com horizonte superficial de textura mais leve, que contrasta abruptamente com o horizonte imediatamente subjacente, adensado, geralmente de acentuada concentração de argila, permeabilidade lenta ou muito lenta. Com elevada saturação por sódio (≥ 15% da capacidade de troca de cátions). 11 Agentes mecânicos que atuam na erosão do solo. A erosão, por sua vez, é o deslocamento das partículas do solo, que pode ser feito por agentes como o vento (erosão eólica) e a água (erosão hídrica). Nesse caso, nos referimos principalmente a erosão hídrica.

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 27

Figura 5. Sequência de sedimentação de materiais onde sedimentos previamente intemperizados, e/ou mais grosseiros, ocorrem nas camadas de maior profundidade e sedimentos pouco alterados e mais leves ocorrem nas camadas mais superficiais, e após processo de modelagem da paisagem pela erosão atual, afetam a gênese dos solos, resultando em solos mais imaturos nos topos e solos mais evoluídos nas baixadas.

Nesse ambiente, forças do intemperismo químico (temperatura, umidade e acidez elevadas) passam a atuar sobre materiais de origem ricos em minerais primários12 ou secundários13 ainda pouco intemperizados, resultando em solos muitas vezes de alta fertilidade natural, embora associados a indicadores como elevada acidez e grandes quantidades de alumínio extraível por solução salina concentrada. Esses processos têm levado, por exemplo, à ocorrência de solos com propriedades químicas extremas, como os solos com argilas do tipo 2:114 associados a altos teores de alumínio trocável (GAMA; KIEHL, 1999; MARQUES et al., 2001; CUNHA, 2013). Além dos processos citados, a deposição material vulcânico também já foi comprovada nos solos amazônicos. No Estado do Acre foi confirmada, por análises químicas e mineralógicas, a influência de material vul12 Os minerais primários são herdados do material originário; mantém-se praticamente inalterado na sua composição. Resultam da combinação dos oito principais elementos da litosfera: oxigênio, silício, alumínio, ferro, cálcio, potássio, magnésio e sódio. Os principais exemplos são: feldspatos, feldspatóides, anfibólios e piroxênios, micas, olivina e quartzo. 13 Os minerais secundários são formados a partir da intemperização dos minerais primários. Os mais frequentes no solo são os minerais de argila, óxidos e hidróxidos de alumínio e ferro e carbonatos de cálcio e de magnésio. 14 Minerais secundários pouco intemperizados com elevada atividade.

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cânico sobre a gênese de parte de seus solos. Por sua posição geográfica infere-se que esse material seja originário dos Andes (GAMA et al., 1992). Recentemente (em 2011) o vulcão chileno Puyehue retornou à atividade, formando uma nuvem de cinzas de 10 km de altura, que se espalhou pela América do Sul, chegando a atingir Porto Alegre, RS, depositando materiais vítreos ricos SiO2 e Al2O3, e com conteúdos baixos de álcalis e FeO (LIMA et al., 2012) (Figura 6). Atividades semelhantes podem ter ocorrido em tempos passados, atingindo a região amazônica. Figura 6. Localização do complexo vulcânico Puyehue-Cordón Caulle (à esquerda) e imagem de satélite, em 4 de junho de 2011, da nuvem de cinzas formada pela erupção do vulcão (à direita)

Fontes: Lima et al. (2012); NASA (2011).

Outros exemplos de solos férteis podem ser encontrados na Amazônia. Não vamos tomar aqui como exemplo as Terras Pretas de Índio ou como também conhecidas Arqueológicas, pois a estas se atribui origem antropogênica. Mas temos manchas férteis no Estado de Rondônia atribuídas à sua formação geológica: Domínio dos sedimentos cenozoicos a mesozoicos, pouco a moderadamente consolidados, associados a profundas e extensas bacias sedimentares (DCM) (Formação Solimões) (Figura 7a), Domínio do vulcanismo fissural mesozoico do tipo plateau (DVM) (com predomínio de rochas basálticas) (Figura 7b), Domínio de corpos máfico-ultramáficos; básicos e ultrabásicos alcalinos e vulcanismo associado (DCMU) (Figura 7c). Domínio de sequências vulcanossedimentares proterozoicas dobradas e metamorfizadas de baixo a alto grau (DSVP2) (com exceção do predomínio de quartizitos) (Figura 7d), Domínio de sequências vulcanossedimentares tipo greenstone belt, arqueano até o mesoproterozoico (DGB) (Figura 7e), além de outras formações com materiais variáveis que originam solos distintos em fertilidade (ADAMY, 2010). Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 29

Figura 7. Domínios geológico-ambientais do Estado de Rondônia que apresentam condições de originar solos férteis

Fonte: Adaptado de Adamy (2010).

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Não é regra que em cada domínio desses os solos serão obrigatoriamente férteis, pois como citado o processo de formação do solo depende da atuação dos fatores em conjunto. O município de Chupinguaia, onde hoje as terras são valorizadas para o cultivo de grãos, localiza-se no domínio DMV (Figura 7b). Os municípios de Colorado do Oeste e Ouro Preto do Oeste, os quais apresentamos a caracterização química de solos na Tabela 1, encontram-se no domínio DSVP2 (Figura 7d) e no Domínio de complexos granitoides deformados (DCGR2), respectivamente. O DCGR2, que ocupa grande parte do Estado, não foi apresentado na figura acima devido a sua variabilidade mineralógica e fertilidade dos solos. Podemos observar na Tabela 1 que o solo de Colorado do Oeste possui elevada fertilidade, caracterizada pelos altos teores de fósforo disponível, bem como de cálcio e magnésio trocáveis, pH elevado e ausência de alumínio trocável. Os solos de Ouro Preto do Oeste demonstrados, apesar dos baixos teores de fósforo, possuem fertilidade de média a alta, considerando principalmente os níveis de potássio disponível e cálcio e magnésio trocáveis, ausência de alumínio trocável e pH adequado ao desenvolvimento da maioria das culturas. Tabela 1. Características químicas de um perfil de solo localizado em Colorado do Oeste-RO Horizonte

Espessura

pHH2O

pHCaCl2

cm

P

K Ca Mg Al+H Al -3 --------------------cmol dm ---------------c mg dm-3 ----Colorado do Oeste

MO g dm-3

A

0-30

6,7

5,5

2,0

0,06

29,84

17,60

2,75

0,00

4,00

Bi

31-65

7,1

5,7

44,3

0,02

22,92

11,30

1,88

0,00

4,00

A

-

5,9

-

1,0

0,04

2,30

0,80

0,18

0,00

1,40

Bt1

-

5,9

-

1,0

0,04

2,14

0,80

0,18

0,00

2,40

Ouro Preto do Oeste

Ouro Preto do Oeste A

-

6,9

-

4,0

0,46

4,00

1,50

2,0

0,00

4,10

Bt

-

6,4

-

3,0

0,04

2,90

1,20

1,5

0,00

7,50

Ouro Preto do Oeste A

-

5,9

-

2,0

0,21

2,30

1,20

3,3

0,00

12,80

Bt

-

5,5

-

1,0

0,16

0,90

0,90

2,3

0,00

19,20

Fonte: Matoso et al. (2015) e Pequeno et al. (2001).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 31

Mais exemplos de solos férteis podem ser encontrados em outros Estados, como no caso de Roraima, onde se registra a ocorrência de Nitossolos, Chernossolos e Cambissolos de alta fertilidade, com pH variando de 5,7 a 7,0, e teores de cálcio trocável de 2,3 a 9,31 cmolc dm-3 e de magnésio trocável de 0,04 a 3,16 cmolc dm-3 (Melo et al., 2011). No Pará, também se encontram solos naturalmente férteis condicionadas ao material de origem, tais como Domínio dos corpos máfico-ultramáficos (DCMU), contendo rochas básicas (JOÃO, 2013). Com esta sumária análise podemos então contribuir para a desmitificação de que os solos da Amazônia são invariavelmente de baixa fertilidade e improdutivos. Sequer mencionamos os recursos disponíveis para trabalhar agronomicamente os solos que realmente possuem baixa fertilidade, mas deixemos isso para outra oportunidade. Nossa intenção, esperamos que cumprida, foi apenas mostrar que em matéria de solos a Amazônia não é essa vastidão homogênea e pobre pregada e seguida por muitos, mas sim um mosaico de solos de fertilidade variada que vai de baixa a alta.

2.ª A Amazônia é o “pulmão do mundo” Essa é uma crença que, apesar de vir sendo desmistificada nas últimas décadas, ainda está arraigada no senso comum da sociedade. Primeiramente vamos debater por que essa afirmação está equivocada para, em seguida, discutir quais seriam os aspectos de real importância ecológica, social e cultural do bioma amazônico. José Lutzenberger, em entrevista a Ney Gastal em 1989, já mencionava o duplo equívoco da afirmação de que a Amazônia é o pulmão do mundo: Existe aí um duplo equívoco. O pulmão consome, e não produz oxigênio, ao contrário do que pretendem os que utilizam esta imagem para dizer que a Amazônia é uma espécie de fábrica de oxigênio. Mas ela também está incorreta sob outro ponto de vista. Se a floresta, ou qualquer outro ecossistema, produzisse mais oxigênio do que consome, a concentração deste gás na atmosfera terrestre estaria em constante aumento. E isto não acontece. Pelo que sabemos, desde que houve a primeira transformação da atmosfera inicial, que era reduzinte, para uma atmosfera oxidante (dois e meio ou três bilhões de anos atrás), os níveis de oxigênio mudaram muito pouco (LUTZENBERGER, 1989).

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As duas afirmações de Lutzenberger poderiam ser contrapostas. A primeira por constituir uma figura de linguagem e, usar da liberdade de um termo conotativo, representa a Amazônia como uma fornecedora de oxigênio. O fato de um ecossistema produzir mais oxigênio do que consome pode ocorrer, sem que haja aumento dos níveis desse gás na atmosfera, desde que ocorra o consumo por outro compartimento, seja biótico ou não. Entretanto, ele tinha razão em não concordar com a crença de que a Amazônia é o pulmão do mundo. Para entender o porquê, vamos relembrar dois processos biológicos básicos, fotossíntese e respiração celular. A respiração celular é um processo metabólico que pode ocorrer de duas formas: aeróbia (usando oxigênio) e anaeróbia (na ausência de oxigênio). A respiração aeróbia predomina na natureza e é mais eficiente na produção de energia. A produção de dióxido de carbono (CO2) ocorre nos dois tipos de respiração, e em qualquer organismo. A diferença entre plantas e animais está na forma de obtenção da fonte de energia (carboidratos). Os animais são denominados heterótrofos, pois obtém seu alimento de outrem, a partir da ingestão de vegetais e outros animais. As plantas e alguns microrganismos realizam o processo chamado fotossíntese, no qual, de uma forma simplificada, a partir de alguns comprimentos de onda da luz solar, gás carbônico e água, produzem carboidratos e oxigênio. Portanto, durante o dia as plantas da floresta amazônica absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio. Entretanto, no período noturno, ocorre o processo de respiração, e os carboidratos produzidos na fotossíntese são queimados, produzindo energia para a planta e liberando dióxido de carbono para a atmosfera, como explicado acima. Desse modo, fotossíntese e respiração celular completam um ciclo, não havendo saldo positivo de oxigênio na atmosfera, pois aquilo que não é consumido pela respiração da planta é utilizado pela microbiota e fauna do solo no processo de decomposição da matéria orgânica (Figura 8), mantendo assim o nível de oxigênio praticamente estável nos últimos bilhões de anos como explicado por Lutzenberger (1989).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 33

Figura 8. Ciclo simplificado dos processos que envolvem o carbono e o oxigênio

Assim, podemos nos remeter ao ponto seguinte. Se ocorre a liberação de dióxido de carbono no período noturno e pela decomposição da matéria orgânica, a Amazônia realmente sequestra carbono em quantidades significativas? O próprio leitor, após ter relembrado alguns conceitos básicos de biologia, já deve pressupor a resposta. Mas, podemos fazer mais algumas considerações a respeito. A primeira pergunta a ser respondida é: todo o carbono fixado na planta via fotossíntese é perdido pela respiração celular? A resposta imediata é não. Parte desse carbono compõe a estrutura (tecidos e órgãos) da planta. E, como vimos, após a decomposição da matéria orgânica, parte desse carbono retorna a atmosfera (Figura 8), mas ainda existe outro reservatório, dessa vez abiótico, que é o solo. Portanto, a floresta só é um reservatório significativo de carbono enquanto permanece viva. Atualmente, se aceita que os organismos que realmente possuem a capacidade de retirar o carbono do ciclo por longo período estão na água e não na terra. São microrganismos que constituem o fitoplâncton (Figura 9). O fitoplâncton absorve o CO2 da água do oceano e o

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converte em carbonato de cálcio (CaCO3), que passa a constituir seus esqueletos e escudos. O ciclo de vida desses microrganismos é extremamente curto, cerca de vinte e quatro horas, se não for consumido, por outros organismos marinhos, eles morrem e são depositados no fundo do oceano. Dessa forma, o carbono neles fixado leva pelo menos quatrocentos milhões de anos para voltar à atmosfera, por emissões vulcânicas e hidrotérmicas. Essa é a principal forma natural e em escala global de sequestro de carbono em longo prazo. Existe ainda o processo físico (circulação termoalina) que também ocorre nos oceanos e o sequestro geológico, processo artificial sendo realizado por grandes indústrias (BARBOSA et al., 2013). Figura 9. Explosão de crescimento de fitoplâncton na costa da Nova Zelândia no perídodo de 11 a 25 de outubro de 2009

Fonte: NASA (2009).

Observa-se, desse modo, que as florestas são reservatórios de carbono enquanto vivas, e o fitoplâncton, após sua morte. Essa diferença é primordial para entender o processo, pois com a eventual retirada da floresta ela deixa de ser reservatório de carbono, passando a ser fonte de emissão. Com isso, as afirmações de que a floresta amazônica sequestra carbono, veiculadas na mídia e nas publicações científicas, não condizem com a verdade. É preciso considerar a sua preservação em um curto espaço de tempo, como exemplificadas, abaixo: O Brasil lança por ano na atmosfera o equivalente a 1,5 bilhão de toneladas de dióxido de carbono (CO2, molécula formada por um átomo de carbono e dois de

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oxigênio). A Amazônia tem capacidade para retirar por ano da atmosfera, por fotossíntese, entre 1 bilhão e 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Subtraia um pelo outro e a contribuição do Brasil para o aquecimento global pode chegar a zero. Tudo que o Brasil joga para cima, a floresta puxa de volta para baixo (ESCOBAR, 2007). Os números são baseados em estimativas do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), comparadas com o inventário nacional de emissões e cálculos do Centro de Estudos Integrados sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (Centro Clima) da Coordenação dos Programas de PósGraduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O cruzamento de dados foi feito pelo Estado e os resultados, confirmados por especialistas (ESCOBAR, 2007). O sequestro de carbono é a absorção de grandes quantidades de gás carbônico (CO2) presentes na atmosfera. A forma mais comum de sequestro de carbono é naturalmente realizada pelas florestas. Na fase de crescimento, as árvores demandam uma quantidade muito grande de carbono para se desenvolver e acabam tirando esse elemento do ar. Esse processo natural ajuda a diminuir consideravelmente a quantidade de CO2 na atmosfera: cada hectare de floresta em desenvolvimento é capaz de absorver nada menos do que 150 a 200 toneladas de carbono (CUNHA, 2011).

O conceito de sequestro de carbono foi concebido durante a conferência de Kyoto em 1997, da qual participaram representantes de mais de cento e sessenta países e foi criado um tratado internacional que determina metas de redução de emissões de gases do efeito estufa. Desde então, outras reuniões e tratados desse cunho foram firmados entre diversos países. A preservação das florestas tropicais sempre está entre essas metas. O que intriga a muitos e, por vezes, revolta, é o fato de países desenvolvidos como os Estados Unidos da América (EUA) nunca assinarem esses acordos. Não é nosso intuito aqui analisar a fundo a razão pela qual países como esse tomam essa postura, mas um dos fatores pode estar ligado ao ciclo geológico do carbono. A importância de preservar a floresta amazônica, evitar desmatamentos e queimadas, pode estar relacionada a outros aspectos

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ecológicos, sociais, socioambientais e culturais, mas a sua principal relevância talvez não esteja relacionada ao ciclo do carbono. Em um primeiro momento, essa afirmativa pode causar estranheza, todavia, estamos analisando o ciclo do carbono, e não a importância do bioma amazônico para a vida no planeta e no modo que vivemos hoje. O fogo, por exemplo, é um processo natural para a renovação da vegetação em escala planetária. Nas vegetações caducifólias, semicaducifólias, ou mesmo nas regiões onde ocorrem períodos de estiagem é comum a presença do fogo. Algumas espécies até se adaptaram a essa intempérie. Suas sementes só quebram o período de dormência após a passagem do fogo. A queima da biomassa libera para a atmosfera grande quantidade de CO2, além de outros gases. Contudo, em seguida, ocorre renovação da vegetação. Nessa fase há grande demanda por fotoassimilados para o crescimento das plantas. Ocorre então, novamente a fixação de CO2, a partir da fotossíntese (Figura 10). Figura 10. Renovação da vegetação do Yellowstone National Park (EUA) após um grande incêndio em 1988.

Fonte: NASA (2011).

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A retirada da floresta e a consequente diminuição do reservatório de carbono não ocorrem somente pelo desmatamento e queima da vegetação. Em um artigo publicado recentemente pela revista Nature foi demonstrado que na última década a floresta amazônica está perdendo sua capacidade de armazenar carbono da atmosfera devido ao aumento acelerado na mortalidade de suas árvores. Segundo os pesquisadores, o aumento de CO2 na atmosfera, nas últimas três décadas, proporcionou um surto no crescimento de árvores na Amazônia. Entretanto esse carbono adicional teve consequências inesperadas. Pois, do mesmo modo que estimula às taxas de fotossíntese, fazendo com que as árvores se desenvolvam rapidamente, faz com que elas morram mais cedo (BRIENEN et al., 2015). Portanto, a menor longevidade das árvores e maior decomposição da matéria orgânica fazem com que a floresta diminua seu potencial de reservatório de carbono. A diminuição da cobertura vegetal, seja por processos naturais ou antrópicos, expõe o solo aos processos erosivos. Barbosa e Fearnside (2000) estimaram a perda de solo no Estado de Roraima em função de seu uso em 1.128 kg ha-1 ano-1 sob cultivo de pastagem (Brachiaria humídicola) e em 150 kg ha-1 ano-1 sob floresta primária. Nunes et al. (2012) determinaram a tolerância a perda de solo em diferentes ordens, sendo que os Argissolos foram os menos tolerantes e os Cambissolos, Gleissolos, e Latossolos foram os mais, perdendo até cerca de 15 t ha-1 ano-1 de solo. Por um lado, o processo erosivo causa danos diversos, desde ambientais a socioeconômicos. Entretanto, em outra perspectiva, o solo erodido na bacia amazônica é depositado no Oceano Atlântico em uma região denominada Delta do Amazonas (Figura 11). Esses sedimentos levam consigo nutrientes que elevam a multiplicação do fitoplâncton pela adição de nutrientes contidos nos sedimentos erodidos que, por sua vez, aumentam a retirada de CO2 da atmosfera. Portanto, do ponto de vista do ciclo geológico do carbono, a retirada da floresta amazônica exporia o solo à erosão e, mesmo emitindo toneladas de CO2 para a atmosfera via decomposição, com o aumento da reprodução do fitoplâncton, o ciclo seria novamente equilibrado.

38 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Figura 11. Fluxo de sedimentos na foz do Rio Amazonas (Delta do Amazonas)

Fonte: Google Earth (2016).

Países desenvolvidos como os EUA e membros da União Europeia têm como políticas ambientais prioritárias a conservação do solo, da água, da flora e da fauna endêmica, com menor ênfase no sequestro de carbono por meio de restrições impostas ao uso da terra. Com essa explanação pretendemos desmitificar a crença de que a Amazônia é o “pulmão do mundo” e, como vimos, basta uma revisão básica de biologia para atingir o objetivo. Quanto à mesma ser um reservatório de carbono, percebemos também que este é temporário e, caso venha a findar, o planeta tem mecanismos para equilibrar o ciclo desse elemento. Nesse momento, devemos passar então a discutir qual a importância desse bioma local e globalmente, nos aspectos ecológicos, sociais e socioambientais. Discussão essa que nos remeterá automaticamente a próxima crença.

3.ª A “conservação” da Amazônia gera riquezas para as populações locais O Brasil, como é bastante divulgado, é um país megadiverso, mas ainda se conhece muito pouco em termos quantitativos e qualitativos sobre a sua biodiversidade (GAETANI et al., 2012). A Amazônia se encaixa nesse contexto, e os diversos genótipos presentes nessa região podem Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 39

fornecer além de serviços ambientais, produtos, tais como, fármacos, cosméticos, alimentos, dentre outros. Entretanto, pouco se sabe em número de espécies, menos ainda da ecologia desses organismos. O meio de preservação da floresta adotado hoje é o pagamento por serviços ambientais, além da própria legislação que prevê os limites e formas do desmatamento. Serviços ambientais, ou serviços ecossistêmicos, são os benefícios que as pessoas obtêm dos ecossistemas, os quais são essenciais não só para a sobrevivência humana, mas, também, para a redução da pobreza. A degradação dos recursos naturais tem muitas causas, inclusive a demanda excessiva por eles, decorrentes de crescimento da economia, mudanças demográficas e escolhas individuais. Assim quanto maior a força de exploração maior a vulnerabilidade dos sistemas. Ecossistemas bem manejados reduzem os riscos e vulnerabilidades, sistemas mal manejados podem aumentar os riscos de enchentes, secas, perdas de safra, fome e doenças. E esses riscos são particularmente maiores nas áreas rurais (PEIXOTO, 2011). Os mecanismos de mercado para os serviços ambientais não são eficazes tanto para a conservação dos recursos naturais quanto para a melhoria da qualidade de vida das populações locais. Peixoto (2011) destaca dois fatores importantes: a falta de mercado para determinados serviços, tais como os culturais ou de regulação, e a dificuldade que as políticas e as instituições impõem às pessoas que vivem dentro do ecossistema de se beneficiar dos serviços para proporcioná-los a outras que estão distantes, seja em espaço físico ou temporal. O principal meio de pagamento por serviços ambientais de ecossistemas florestais é o crédito de carbono, que hoje beneficia geralmente grandes empreendimentos e empresas e muito pouco a população local do ecossistema. Podemos citar como exemplo o caso dos projetos Purus, Valparaiso e Russas no Estado do Acre. Esses projetos são em regiões de seringais e preveem restrições e até paralisação das atividades tradicionais de cultivo agrícola de famílias de seringueiros e posseiros para que emissões assim evitadas possam ser vendidas no mercado internacional de créditos de carbono. Contudo, as famílias dos seringais foram induzidas a assinarem documentos reconhecendo a posse das terras em favor de uma empresa denominada Moura e Rosa Investimentos Ltda., mesmo morando no local há mais de quarenta anos. O caso hoje envolve o Centro de Memória das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia e Ministério Público do Acre. Mas mesmo resolvendo a questão da posse da terra, se 40 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

o projeto for levado a cabo, haverá rupturas extremas no modo de vida dessas comunidades. A advogada do Centro de Memória das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia aponta algumas questões equivocadas relativas ao caso: Para justificar o Projeto Purus, baseado na hipótese do “desmatamento evitado” para a geração de créditos de carbono, a empresa Moura & Rosa alegou que, como proprietária, poderia converter parte da floresta dos seringais em pastagem (prevendo o corte raso de 20% de sua extensão total para acomodar de 10 a 12 mil cabeças de gado), além de desenvolver atividades madeireiras. Numa lógica inversa e perversa, explica a advogada, criminaliza-se então o manejo tradicional dos pequenos agricultores, impondo-lhes restrições que justifiquem a venda de carbono (apesar de o próprio governo do Acre ter reconhecido que o uso do fogo é essencial na agricultura familiar de pequeno porte, e sua proibição poderia causar insegurança alimentar), e limita-se definitivamente o desenvolvimento futuro da comunidade através da restrição da área disponível. “Além da agricultura, as famílias também usam as áreas florestadas para caçar, para o extrativismo, retirada de madeira para casas ou construção de canoas. Isso passaria a ser proibido, bem como o estabelecimento de atividades produtivas das próximas gerações. Como ficariam os filhos dos posseiros se não puderem estabelecer futuramente seus próprios lotes produtivos, com casas e roças?” (GLASS, 2013).

Além de casos como esses, sabemos que grandes empreendimentos têm acesso muito mais facilmente ao crédito de carbono do que a população local. A exemplo disso, temos os casos das hidrelétricas tropicais, que são hoje um dos principais destinos dos fundos no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Na Amazônia temos o complexo de Jirau que, em 17 de maio 2013, foi contemplado pelo MDL para obtenção de crédito de carbono, tornando-se o maior projeto de “energia renovável” do MDL até agora em termos de toneladas de CO-eq supostamente mitigados (FEARNSIDE, 2014). Entretanto, há gran2 de controvérsia se as usinas elétricas realmente mitigam a emissão de CO2 (KEMENES, 2007). Portanto, além desses empreendimentos alterarem o modo de vida da comunidade local possibilitam que os países que compram os créditos emitam carbono para a atmosfera, sem qualquer compensação Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 41

verdadeira das emissões pelos projetos de MDL. Projetos hidrelétricos no MDL também consomem uma parte substancial do dinheiro que o mundo tem para combater o aquecimento global (FEARNSIDE, 2014). Se pensarmos na qualidade de vida como proteção ao modo de vida das comunidades tradicionais, vemos que as políticas de pagamento por serviço ambiental são ineficazes. Se considerarmos o acesso à educação, saúde, saneamento básico, lazer e cultura, esse mecanismo é ainda menos eficaz. Como comunidades tradicionais ou sociedades tradicionais entendem-se o conceito de Diegues e Arruda (2001): Utiliza-se neste estudo a noção de “sociedades tradicionais” para definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos.

Projetos com comunidades extrativistas também não têm se mostrado efetivos para a conservação da biodiversidade e elevação da qualidade de vida. O Banco Mundial publicou dados referentes 2,6 bilhões de dólares gastos em 289 projetos em florestas de 75 países, entre 2002 e 2011, dentre os quais, no Brasil foram financiados a demarcação de 45 milhões de hectares de terras indígenas e outros 26 milhões em reservas ambientais. O relatório aponta como uma das causas do fracasso a insistência de ONGs e de governos em considerar que as atividades de subsistência e extrativistas como a melhor opção para o desenvolvimento das comunidades pobres (COUTINHO et al., 2013). Na visão do Banco Mundial a atividade de subsistência não deveria ser o objetivo final dos projetos, mas apenas um meio para as pessoas sobreviverem enquanto se organizam para uma atividade econômica capaz de produzir maior riqueza. Em outras palavras, na maioria dos programas financiados pelo banco, os moradores das reservas garantem o mínimo para sobreviver e não obtêm autonomia financeira. Outro fator negativo trata da falta de efeito das políticas públicas sobre a população do entorno das reservas que muito pouco ou em nada foi beneficiada. Apenas a Costa Rica e o México são citadas como exemplo de sucesso pelo relatório, eles adotam políticas totalmente diferentes do Brasil (COUTINHO et al., 2013). 42 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Outro fator de relevância é a proteção das comunidades tradicionais e seu conhecimento associado que, por vezes, são expostos por políticas públicas, empreendimentos, fluxo migratório e até mesmo pesquisas científicas. A conservação da floresta relaciona-se ainda com a preservação dos recursos hídricos. Recursos esses de suma importância em escala local e global. Contudo, nosso país e região não possuem sequer política de controle de erosão do solo. Os mecanismos adotados hoje para pagamento de serviços ambientais não contemplam nenhum dos fatores considerados relevantes quanto à conservação da floresta amazônica. Desse modo, acreditamos que a pressão exercida dentro e fora de nosso país pela conservação da Amazônia voltada às mudanças climáticas, em especial ao ciclo do carbono, está equivocada. Deixamos a pergunta ao nosso leitor: esse equívoco é de forma ingênua ou não?

Considerações finais Com essa explanação, podemos observar que o processo de criação e disseminação do conhecimento e o conflito de interesses entre atores da sociedade como o poder público, o mercado privado e a mídia podem vir a criar mitos em relação a determinados assuntos. Com relação à Amazônia, consideramos que esses mitos se tornaram verdadeiras crenças pregadas e seguidas por muitos, por motivações e interesses diversos, os quais não foram objeto de nossa discussão. Objetivamos, apenas, contribuir para a desmistificação dessas “verdades” absolutas. Como não rompemos aqui nenhum paradigma com relação ao processo de construção do conhecimento atual, utilizamos para nossa análise as mesmas ferramentas inerentes ao método científico, resultados pautados na observação e experimentação. Entretanto, nos permitindo usar da subjetividade e inferências, valores esses intrínsecos ao ser humano. Com isso demonstramos três aspectos principais relacionados ao bioma amazônico: a) a Amazônia não é constituída de solos invariavelmente de baixa fertilidade, mas sim de um mosaico de solos de fertilidade variável; b) a floresta amazônica não é o pulmão do mundo e a sua retirada por meios naturais ou antrópicos não resultaria, em longo prazo, em consequências sérias ao ciclo do carbono, pois o planeta possui mecanismos de sequestro não relacionados à floresta; c) Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 43

os mecanismos utilizados para a conservação da floresta atualmente não geram riquezas para as populações locais, autonomia financeira, tão pouco, melhoria na qualidade de vida. Desse modo, pretendemos elevar o debate das questões amazônicas, adicionando um novo olhar sobre as mesmas.

44 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

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CAPÍTULO III

Meio ambiente e sociedade: transformação e história Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda

O meio ambiente está em risco e as ameaças são provenientes de diversas fontes: poluição, contaminação, má distribuição de renda, resíduos sólidos, químicos e biológicos. Todas essas ameaças são originadas do consumo exagerado e tem como consequência tragédias que vêm se repetindo ao longo do tempo. O capitalismo é o ponto de partida dos problemas ambientais atuais. Se as leis fossem cumpridas e a Educação Ambiental saísse do papel não haveria, por exemplo, pilhas jogadas em bueiros, peixes contaminados com mercúrio e pessoas morrendo intoxicadas. A tecnologia se constitui como ponto de incremento de doenças na atualidade. Enquanto os ecossistemas sofrem com doses diárias de venenos que se acumulam na biota, o homem continua levando a vida sem prever o que pode acontecer com o planeta se o consumismo continuar moldando a sociedade.

O consumismo e a transformação da sociedade e do meio onde ela se encontra É fato: o homem está em constante busca. Dentre as suas diversas buscas estão o celular com o maior número de funções e aplicativos; a televisão com a melhor definição; além do carro mais equipado e com o motor mais potente. As buscas por essas novidades tecnológicas e suas vantagens fazem com que o homem substitua frequentemente o bem, considerado por ele ultrapassado, por outro considerado o sucesso do momento. Eis um exemplo clássico de consumismo. O consumo insustentável no dia a dia da sociedade traz consequências drásticas para o homem e para o meio ambiente: o homem torna-se escravo do consumo, em meio a dívidas; e o ambiente é alterado, como consequência do descarte inadequado de produtos e subprodutos industriais e residenciais que o envenenam. Onde está a justiça socioambiental? Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 49

Diante da crise socioambiental atual, o tema desenvolvimento sustentável vem sendo debatido nas reuniões internacionais, a fim de evitar o esgotamento dos recursos naturais. Porém a responsabilidade ambiental, econômica e social está longe de ser aplicada, diante da lógica capitalista que ameaça as gerações presentes e futuras. Na prática, o consumismo, fruto do capitalismo, vem transformando gradualmente a sociedade e o meio onde ela se encontra.

Capitalismo como origem do desequilíbrio ambiental Segundo Velasco (2002), o equilíbrio dos sistemas não-humanos “meio ambiente” e vida humana estão ameaçados pelo capitalismo, justamente pelos efeitos destrutivos da ciência e da tecnologia. Isso pode significar que a teórica busca pelo desenvolvimento sustentável é, na verdade, um histórico e permanente retrocesso que traz como consequência o envenenamento da biota. A História revela que o desenvolvimento de muitos países, hoje desenvolvidos, ocorreu à custa da exploração e da deterioração dos recursos naturais. Esse modelo capitalista de desenvolvimento gerou um desequilíbrio ambiental que ultrapassou fronteiras e ainda traz consequências para os ecossistemas. Muitas das agressões ao meio ambiente são perceptíveis, outras não são tão evidentes, embora sejam drásticas. Dentre as consequências desse desenvolvimento não sustentável estão à erosão, a lixiviação, o assoreamento e a perda da fertilidade do solo; contaminação das águas, do solo e do ar; extinção de espécies; além do surgimento e disseminação de doenças associadas aos problemas ambientais que, segundo Ruscheinsky e Costa (2002), parecem ser agravados pelos efeitos da organização da sociedade. O avanço da produção no sistema capitalista trouxe consigo também o problema do lixo: O que fazer com os resíduos sólidos? Onde descartar telefones celulares, baterias, monitores de computadores e televisores? Sabe-se que o lixo eletrônico pode contaminar o lençol freático com produtos altamente nocivos à saúde dos ecossistemas. Dessa forma, é necessário reconhecer que este problema existe cada vez mais próximo da população. É necessário dar a ele a devida importância, para que haja o descarte correto do lixo eletrônico ao final de sua vida útil.

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Elementos-traço Dentre os resíduos dos componentes eletrônicos estão os elementos-traço, mais conhecidos como metais pesados. Segundo Esteves (2011), os elementos-traço são encontrados naturalmente na natureza na ordem de partes por milhão (ppm). Alguns deles possuem funções biológicas conhecidas, sendo assim elementos essenciais, como o ferro (Fe), constituinte da molécula de hemoglobina, pigmento que transporta o oxigênio; o magnésio (Mg), componente da clorofila, principal pigmento responsável pela fotossíntese, e o cobre (Cu), um dos nutrientes atuantes na cadeia transportadora de elétrons (TAIZ; ZEIGER, 2013). Os elementos-traço que não possuem funções biológicas conhecidas são, na maioria das vezes, tóxicos podendo bioacumular nos seres vivos e biomagnificar ao longo dos níveis tróficos. Dentre eles estão, o mercúrio (Hg), que é um dos mais preocupantes, por ser neurotóxico, representando risco à saúde humana, particularmente quando ingerido sob a forma de metilmercúrio (BASTOS; LACERDA, 2004); além do chumbo (Pb) e do cádmio (Cd) que apresentam potencial cancerígeno (CETESB, 2012). O homem tem colaborado para o incremento das concentrações desses e outros elementos-traço no meio ambiente, através do descarte inadequado de baterias, pilhas, lâmpadas, além de atividades industriais. No Art. 22. da Resolução n.º 401/08 está disposto: Não serão permitidas formas inadequadas de disposição ou destinação final de pilhas e baterias usadas, de quaisquer tipos ou características, tais como: I – lançamento a céu aberto, tanto em áreas urbanas como rurais, ou em aterro não licenciado; II- queima a céu aberto ou incineração em instalações e equipamentos não licenciados; III – lançamento em corpos d´água, praias, manguezais, pântanos, terrenos baldios, poços ou cacimbas, cavidades subterrâneas, redes de drenagem de águas pluviais, esgotos, ou redes de eletricidade ou telefone, mesmo que abandonadas, ou em áreas sujeitas à inundação (CONAMA, 2008).

É possível observar que a proibição do descarte inadequado de pilhas e baterias está claro na legislação brasileira, entretanto ainda falta a adoção de medidas básicas para o cumprimento da lei, além da

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conscientização da própria população. Os elementos-traço transformam o ambiente e ameaçam a vida do próprio ser humano. Nesse sentido, a tabela 01 apresenta alguns elementos-traço que constituem o lixo eletrônico, mais presentes no dia-a-dia da população e os danos que estes podem causar a sua saúde. Tabela 01: Elementos-traço constituintes do lixo eletrônico e os possíveis danos causados por eles Elemento-Traço Chumbo

Arsênio

Onde é encontrado Computadores, celulares e televisores Computadores, monitores e televisores de tela plana, conservante de vacinas, cosméticos, agrotóxicos Computadores, monitores antigos e baterias de notebooks Celulares

Berílio Lítio

Computadores e celulares Pilhas e baterias

Níquel

Pilhas e baterias

Zinco Cobalto

Pilhas e baterias Baterias de lítio

Mercúrio

Cádmio

Danos causados Danos aos sistemas nervoso e sanguíneo Danos ao cérebro e ao fígado

Envenenamento, danos aos ossos, rins e pulmões Doenças de pele, danos ao sistema nervoso e pode causar câncer no pulmão Câncer no pulmão Afeta o sistema nervoso central, gerando visão turva, ruídos nos ouvidos, vertigens, debilidade e tremores Dermatites, distúrbios respiratórios, gengivites, “sarna de níquel”, efeitos carcinogênicos, cirrose e insuficiência renal Vômitos e diarreias “Sarna do cobalto”, conjuntivite, bronquite e asma.

Fonte: UFSM e CETESB, 2012.

O descarte inadequado de constituintes do lixo eletrônico torna o meio ambiente e o próprio homem, que dele faz parte, suscetíveis à contaminação pelos elementos-traço. Essa contaminação pode ser pontual, difusa, aguda ou crônica. A história revela que com o avanço da tecnologia houve também o surgimento de novos “problemas” socioambientais. Uma forma de contaminação trágica e com consequências dolorosas.

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Algumas tragédias químicas que marcaram a história Doença de Minamata No ano de 1956, em Minamata, Japão, ocorreu o maior caso já registrado de contaminação por mercúrio (Hg). Essa contaminação ocorreu devido ao despejo indiscriminado de duzentas a seiscentas toneladas de mercúrio metálico e metilmercúrio (MeHg) na baía de Minamata, durante o período de 1930 a meados de 1950. O resultado dramático desse crime ambiental foram os efeitos neurológicos irreversíveis que se manifestaram na população daquela cidade, devido ao consumo de peixes contaminados da baía de Minamata (COLASSO, 2011; KUGLER, 2013). O despejo indiscriminado de mercúrio naquelas águas contaminou o plâncton, os moluscos, peixes, gatos, cachorros, as aves e os humanos. O mercúrio é um elemento lipofílico, bioacumulativo e que possui a capacidade de biomagnificar-se ao longo dos níveis tróficos. Com essas características foi possível que esse elemento-traço atingisse toda a cadeia alimentar daquela cidade, incluindo os moradores da comunidade que apresentaram os sintomas de intoxicação por mercúrio: convulsões, febre alta, tremores, e diminuição do campo visual. (CETESB, 2012; KUGLER, 2013). Segundo Colasso (2009) e CETESB (2012), o mercúrio atravessa facilmente a barreira placentária e hematoencefálica. Dessa forma ele atingiu os fetos das mulheres da cidade de Minamata, contaminadas com MeHg. Estas crianças apresentaram anormalidades no desenvolvimento e paralisia cerebral. A origem de toda essa tragédia foi o lançamento de mercúrio na baía de Minamata, por uma fábrica que produzia plásticos. Por que não evitaram o despejo do mercúrio no ambiente, recolhendo-o? Descaso? Falta de conhecimento dos prováveis problemas que poderiam ocorrer? O fato é que a tragédia aconteceu e ainda vive entre os japoneses. A fim de prevenir que possíveis contaminações de origem industrial aconteçam no Brasil, o artigo primeiro do Decreto-lei n.° 1.413/75 expõe que “As indústrias instaladas ou a se instalarem em território nacional são obrigadas a promover as medidas necessárias a prevenir ou corrigir os inconvenientes e prejuízos da poluição e da contaminação do meio ambiente” (BRASIL, 1975). Que se faça cumprir a lei. Cabe ao ser humano evitar que novas tragédias aconteçam através da adoção de medidas preventivas.

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Separando o joio do trigo A aplicação de um fungicida à base de mercúrio em sementes de trigo ocasionou uma tragédia no Iraque, na década de 1970. Este fato protagonizou um dos maiores acidentes de contaminação por mercúrio naquele país, tendo em vista que a principal fonte de intoxicação por este elemento químico foi o pão (KUGLER, 2013). Mais uma vez, pessoas foram alvo dos efeitos toxicológicos do mercúrio. O motivo foi o uso errôneo deste elemento químico no tratamento de sementes de trigo. Essa tragédia não foi suficiente para prevenir possíveis desastres, pois atualmente o uso de agroquímicos com metais pesados na agricultura tem sido comum. Soma-se ainda o uso de xenobióticos como base de agroquímicos. Rocha et al. , (2009) relatam que atualmente é difícil imaginar a não -utilização de pesticidas/herbicidas na agricultura. O controle químico pode ser o mais eficaz a curto prazo, mas é o mais perigoso: vários estudos demonstram seus efeitos nocivos ao ambiente (RAMALHO et al. , 2000; GIBBONS et al. , 2015). Separar o joio do trigo não é fácil, mas é possível. Existem formas alternativas de tratar sementes sem efeito residual, controlar pragas e ervas daninhas (EMBRAPA, 2006; DALZOTO; UHRY, 2009; MENTEN et al. , 2010). Aí está o desenvolvimento ambiental sustentável.

Dicloro-difenil-tricloroetano: um dos inseticidas mais letais O livro Primavera Silenciosa apresenta a história de pássaros que não conseguiam voar, abelhas que não polinizavam flores, mortandade de peixes, além de mortes súbitas entre adultos e crianças no norte da América. Carson (2010) explica o motivo: o uso do inseticida DDT nas plantações. O DDT é um composto orgânico, formado por hidrocarbonetos clorados, que faz parte da lista de poluentes orgânicos persistentes (POPs) (CARSON, 2010; CETESB, 2012). Após ter sido muito utilizado em plantações e no combate à malária, descobriu-se seu potencial para atravessar a placenta, ser excretado pelo leite materno, bioacumular nas cadeias alimentares, além de ser cancerígeno. Por essas características, o uso do DDT foi banido. Os danos à saúde dos ecossistemas e, consequentemente, da população onde esta substância foi amplamente utilizada, foram detalhadamente retratados por Carson, mas os efeitos do uso do DDT também chegaram ao Brasil, conforme relatado por Tauil (1985). Além dos mosquitos

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que com o tempo adquiriram resistência, os agentes da Superintendência de Combate à Malária (SUCAM), hoje denominada Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) foram e são os que mais sentiram os efeitos do DDT. Os agentes da antiga SUCAM desenvolveram um trabalho muito importante do ponto de vista de saúde pública, mas enquanto trabalhavam estavam expostos diretamente ao DDT. Hoje, investigações clínicas apontam que seu estado de saúde debilitado é consequência de intoxicação com DDT. Segundo Muniz (2015), os ex-agentes da SUCAM estão “na fila da morte”.

Agroquímicos, agrotóxicos ou defensivos agrícolas? Atualmente são várias as denominações que existem para os inseticidas, os herbicidas e os fungicidas. Os biólogos podem preferir o termo agrotóxico, os engenheiros agrônomos podem preferir utilizar defensivos agrícolas. Seja qual for a denominação escolhida, a verdade é que o nome não esconde o mal que tais produtos químicos podem causar à saúde do meio ambiente e à saúde do homem. Sendo assim, deste ponto em diante será adotado o uso do termo agrotóxico. Segundo o artigo primeiro, inciso IV do decreto n.º 4.074/02, agrotóxicos e afins são: Produtos e agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou plantadas, e de outros ecossistemas e de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos, bem como as substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento (BRASIL, 2002).

A repetição dos mesmos erros do passado pode ser observada atualmente, pois o uso de inseticidas, herbicidas e fungicidas continua. O crescimento exponencial da população requer a modernização das práticas agrícolas e o uso de produtos químicos. É clara a impossibilidade de produzir em grande escala sem utilizar o controle químico, mas... Por que não combiná-lo com outras formas de controle? Controle físico e biológico, por exemplo, (BEGON et al. , 2007).

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 55

Segundo Carson (2010), a ameaça química recai sobre a própria plantação “Alguns inseticidas afetam plantas sensíveis como o feijão, o trigo, a cevada ou o centeio, retardando o desenvolvimento da raiz ou reduzindo o crescimento das mudas”. Mas a ameaça também pode recair sobre populações, a exemplo da Desordem do Colapso da Colônia (ROCHA e ALENCAR, 2012) e câncer (INCA, 2006). A fim de minimizar os danos que podem ser causados pelos agrotóxicos ao ambiente, cabe ao poder público o papel de fiscalização, conforme está disposto no artigo setenta do decreto n.º 4.074/02: Serão objeto de inspeção e fiscalização os agrotóxicos, seus componentes e afins, sua produção, manipulação, importação, exportação transporte, armazenamento, comercialização, utilização, rotulagem e a destinação final de suas sobras, resíduos e embalagens (BRASIL, 2002).

Cabe ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e ao Ministério da Saúde monitorar os resíduos de agrotóxicos e afins em produtos de origem vegetal (Art. 3.º, decreto n. º 4.074/02), entretanto o agricultor também tem uma importante função no combate a contaminação humana por agrotóxicos, por meio de medidas simples, tais como usar a quantidade recomendada e respeitar o período de latência do produto químico. Uma questão importante acerca do cumprimento das leis é o pequeno número de agentes ambientais, o que inviabiliza a fiscalização. Quando há a abertura de concursos públicos para os órgãos de fiscalização ambientais, observa-se um pequeno número de vagas e, muitas vezes, essas vagas não contemplam apenas profissionais da área ambiental, mas de todas as áreas. Somam-se a isso os diversos mecanismos de “fuga” do cumprimento de leis adotados por muitos extrativistas, mineradoras e agricultores, cujas atividades são desenvolvidas fora da lei. O desconhecimento da lei também dificulta sua implementação. O uso de pesticidas oferece risco à biodiversidade e aos ecossistemas terrestres e aquáticos. Neonicotinoide e fipronil são exemplos de inseticidas que são absorvidos pelas plantas através da aplicação direta no solo ou no tratamento de sementes. Ambos apresentam efeitos negativos sobre o crescimento e a reprodução de insetos, anfíbios, peixes, répteis, pássaros e mamíferos, podendo levá-los a morte (GIBBONS et al. , 2015).

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Neonicotinoide e fipronil estão associados ao fenômeno da Desordem do Colapso da Colônia (DCC). Observado inicialmente pelos apicultores europeus, este fenômeno é decorrente da perda rápida da população adulta de uma colmeia, após a aplicação desses inseticidas (ROCHA; ALENCAR, 2012). Há indícios de que os agrotóxicos estejam entre os três principais causadores do desaparecimento de abelhas no Brasil (NICOLETTI, 2013). Sabe-se que, além de neonocotinoides e fipronis, existe uma gama de agrotóxicos sendo utilizados indiscriminadamente pelo mundo. A fim de minimizar os danos que podem ser causados por eles devido à ocorrência de interações e modificações invisíveis entre eles (CARSON, 2010), no artigo setenta e um do decreto n.° 4.074/12, a lei é clara: A fiscalização dos agrotóxicos, seus componentes e afins é da competência: I - dos órgãos federais responsáveis pelos setores da agricultura, saúde e meio ambiente, dentro de suas respectivas áreas de competência, quando se tratar de: a) estabelecimentos exportação;

de

produção,

importação

e

b) produção, importação e exportação; c) coleta de amostras para análise de controle ou de fiscalização; d) resíduos de agrotóxicos e afins em produtos agrícolas e de seus subprodutos; e e) quando se tratar do uso de agrotóxicos e afins em tratamentos quarentenários e fitossanitários realizados no trânsito internacional de vegetais e suas partes; II - dos órgãos estaduais e do Distrito Federal responsáveis pelos setores de agricultura, saúde e meio ambiente, dentro de sua área de competência, ressalvadas competências específicas dos órgãos federais desses mesmos setores, quando se tratar de: a) uso e consumo dos produtos agrotóxicos, seus componentes e afins na sua jurisdição; b) estabelecimentos de comercialização, armazenamento e de prestação de serviços;

de

c) devolução e destinação adequada de embalagens de agrotóxicos, seus componentes e afins, de produtos

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apreendidos pela ação fiscalizadora impróprios para utilização ou em desuso;

e

daqueles

d) transporte de agrotóxicos, seus componentes e afins, por qualquer via ou meio, em sua jurisdição; e) coleta de amostras para análise de fiscalização; f) armazenamento, transporte, reciclagem, reutilização e inutilização de embalagens vazias e dos produtos apreendidos pela ação fiscalizadora e daqueles impróprios para utilização ou em desuso; e g) resíduos de agrotóxicos e afins em produtos agrícolas e seus subprodutos” (BRASIL, 2012).

Cabe ao poder público, aos produtores e a população em geral fazer com que a lei seja cumprida e adotar outras medidas que venham prevenir intoxicações semelhantes às ocorridas em Minamata, no Iraque e no norte dos Estados Unidos.

Considerações Finais Uma crise socioambiental vem se estabelecendo no mundo: poluição de solos, rios e da atmosfera, contaminação por elementos-traço e agrotóxicos, tragédias, doenças e mortalidade tem sido amplamente divulgadas. A História revela que problemas atuais são o reflexo de problemas que já ocorreram no passado. O consumismo tem colaborado para o desperdício e para a degradação do meio ambiente. O lixo eletrônico é um exemplo de fonte de contaminação que, associado ao modo de produção agrícola, gera um passivo ambiental que talvez jamais seja remediado. O Brasil é referência na elaboração de leis que visam proteger o meio ambiente, mas o cumprimento dessas leis está limitado ao pequeno número de agentes ambientais, o que possibilita mecanismos de descumprimento das leis e até o próprio conhecimento das leis que não são divulgadas na medida em que deveriam sê-lo.

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CAPÍTULO IV

Trabalho, consumo e preservação ambiental: Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema Marcos Antonio Oliveira Rodrigues William Kennedy do Amaral Souza

Introdução Na sociedade regida pelo capital, o movimento real das classes e de seus antagonismos é transformado em algo invisível. O trabalhador e o capitalista são vistos como agentes dos imperativos do consumo. Os planificadores desse modelo de sociedade querem nos fazer crer que as classes não são portadoras de projetos, são apenas compradores ávidos da última moda transformada em necessidade. A propósito da questão em causa, Dias (1998), em um artigo muito esclarecedor, destaca que: Para os seus teóricos e práticos o capitalismo apareceu sempre como o fim da história, plena realização da espécie humana, negação da existência de classes antagônicas. Para eles os antagonismos são coisas do passado. Capital e trabalho são parceiros ativos (p. 45).

Esse é um processo antigo, iniciado quando o artesanato foi substituído pela maquinaria. A produção em massa exige consumo desenfreado, as coisas deixam de ser usadas para ser consumidas. Ou, como explicitou Hannah Arendt (2005, p. 137): “Consiste em tratar os objetos de uso como se fossem bens de consumo, de sorte que uma cadeira ou uma mesa seria consumida tão rapidamente como um vestido, e um vestido tão rapidamente como um alimento”. Com o advento da sociedade capitalista e a consequente divisão de trabalho, o homem perdeu a relação com o produto final de seu trabalho; aos poucos foi se tornando uma máquina que executa apenas uma atividade no processo produtivo, e que lhe impõe um cerco do qual não consegue sair, como exemplificaram Marx e Engels. A propósito veja o que disseram esses autores sobre o processo em causa: Trabalho, consumo e preservação ambiental: 63 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

Com efeito, a partir do instante em que o trabalho começa a ser dividido, cada um tem uma esfera de atividade que ele não pode fugir, ele é caçador, pescador, pastor ou crítico, e deverá permanecer assim se não quiser perder seus meios de sobrevivência e permanecer na esfera que lhe é dedicada (MARX & ENGELS, 2001, p. 28).

Justamente com a estruturação da propriedade privada dos meios de produção e com a consequente divisão do trabalho dela decorrente, produz-se uma falta de sentido na relação do trabalhador com o produto final do seu trabalho, ou seja, produz-se um “estranhamento”. Para Lukács, o “estranhamento” ocorre: [...] quando as formas objetificadas da sociedade adquirem ou assumem funções que põem a essência do homem em contraposição à sua existência, submetem a essência humana ao ser social, a deformam ou dilaceram é que se produz a relação objetivamente social do estranhamento (LUKÁCS, 1974, p. 26).

Assim, o trabalho se converte em meio de subsistência. A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produção de novas mercadorias. O que deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduz-se à única possibilidade de subsistência do despossuído. Esta é a radical constatação de Marx: a precariedade e a perversidade do trabalho na sociedade capitalista. Desfigurado, o trabalho torna-se meio de subsistência e não “primeira necessidade” de realização humana. Assim, “o trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como mercadorias” (MARX, 2002, p. 111). Desse modo, a conversão da força de trabalho em mercadoria acaba por adequar e submeter à energia humana a diferentes formas de controle e finalidades de produção. O controle é necessário porque existe uma “defasagem do capitalismo”, o processo de produção está fora de sintonia com a posse dos meios de produção, “o trabalho já se encontra coletivizado, mas a posse dos meios de produção jaz individualizada” (CODO, 1988, p. 93). Segundo Marx, todo esse processo-alienação do trabalho se dá em razão dos produtores não serem os donos dos meios de produção. Consequentemente, a sua produção não lhes pertence, o que gera insatisfação tamanha ao próprio trabalhador. Isso ocorre tanto nas indústrias, em que

64 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

o trabalhador tem em mãos o produto final, seja ele um alfinete, uma mesa, um carro, ou outros, e não pode possuí-lo, quanto no setor de serviços, no qual o trabalhador vê as metas definidas pela empresa serem alcançadas sem poder usufruir dos benefícios delas decorrentes. Tal situação reforça ainda mais as observações de Marx quando diz que o trabalhador: [...] não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas, infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgotase fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio (MARX, 2002, p. 114).

Nesse contexto, o indivíduo muda o que tem de melhor: a sua essência e a sua subjetividade. O estranhamento, como expressão de uma relação social fundada na propriedade privada e no dinheiro e, consequentemente, na separação entre os produtores e os meios de produção, é a abstração da natureza pessoal do ser social, do indivíduo desumanizado. O estranhamento traz a ideia de “barreiras sociais” (ANTUNES, 1999, p. 125) que obstaculizam o desenvolvimento da personalidade humana. Tem-se, então, ao contrário da expansão do indivíduo e das faculdades humanas, a redução ao que lhe é instintivo e animal. Como explanou Marx: “[...] o homem só se sente livremente ativo nas suas funções animais — comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno etc., - enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal” (MARX, 2002, pp. 114-115). Assim, o trabalho torna-se responsável pela fetichização e coisificação dos homens e mulheres que vendem a sua força de trabalho. Por incrível que pareça é neste ponto reside a chave do sucesso no mundo capitalista. A vontade de se embelezar e de comprar itens que vá torná-lo belo faz com que o indivíduo torne-se cada vez mais escravo de um sistema que o oprime. Esta implosão de massificação é efeito de um trabalho muito bem estruturado pelo que ficou conhecido por indústria cultural, termo cunhado e popularizado pelos integrantes da Escola de Frankfurt. Como afirma Adorno: Trabalho, consumo e preservação ambiental: 65 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

A indústria cultural pode se vangloriar de haver atuado com energia e de ter erigido em princípio a transposição — tantas vezes grosseira — da arte para a esfera do consumo, de haver liberado a diversão da sua ingenuidade mais desagradável e de haver melhorado a confecção das mercadorias. Quanto mais total ela se tornou, quanto mais impiedosamente obriga cada marginal à falência ou a entrar na corporação, tanto mais se fez astuciosa e respeitável. (ADORNO, 2002, p.17).

Para o filósofo húngaro Karel Kosik, o problema atinge os indivíduos em sua essência: O preocupar-se é a práxis no seu aspecto fenomênico alienado, que já agora não alude à gênese do mundo humano (o mundo dos homens, da cultura humana e da humanização da natureza), mas exprime à práxis das operações diárias, em que o homem é empregado no sistema das coisas já prontas, isto é, dos aparelhos, sistema em que o próprio homem se torna objeto de manipulação. A práxis da manipulação (faina, labuta) transforma os homens em manipuladores e objetos de manipulação (KOSIK, 2011, p. 74)

Todo este processo de alienação do trabalho que culmina com uma sociedade de consumo extremado vai afetar o planeta e seus habitantes de maneira radical. O crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes cidades, da água potável e do meio ambiente em geral; o aquecimento do Planeta, o começo da fusão das calotas polares, a multiplicação das catástrofes “naturais”; o início da destruição da camada de ozônio; a destruição, numa velocidade cada vez maior, das florestas tropicais e a rápida redução da biodiversidade pela extinção de milhares de espécies; o esgotamento dos solos, a desertificação; a acumulação de resíduos, nomeadamente nucleares, impossíveis de controlar; a multiplicação dos acidentes nucleares e a ameaça de um novo Chernobyl; a poluição alimentar, as manipulações genéticas, a “vaca louca”, o gado com hormônios. É evidente que a corrida louca atrás do lucro, a lógica produtivista e mercantil da civilização capitalista/industrial leva-nos a um desastre ecológico de proporções incalculáveis. Como reagir frente a esse perigo? O socialismo e a ecologia — ou pelo menos algumas das suas correntes — têm objetivo comuns, os quais implicam questionar a autonomização da economia, do reino da quantifica66 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

ção, da produção como um objetivo em si mesmo, da ditadura do dinheiro, da redução do universo social ao cálculo das margens da rentabilidade e às necessidades da acumulação do capital. Ambos pedem valores qualitativos: o valor de uso, a satisfação das necessidades, a igualdade social para uns, a preservação da natureza, o equilíbrio ecológico para outros. Ambos concebem a economia como “inserida” no meio ambiente: social para uns, natural para outros. Dito isso, divergências fundamentais têm separado até aqui os “vermelhos” dos “verdes”, os marxistas dos ecologistas. Os ecologistas acusam Marx e Engels de produtivismo. É essa acusação justificada? Sim e não. Na realidade, encontramos nos escritos de Marx e Engels a sustentação para ambas as interpretações. A questão ecológica é, a meu ver, o grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no início do século XXI. Tal questão exige dos marxistas uma revisão crítica profunda da sua concepção tradicional de “forças produtivas”, bem como uma ruptura radical com a ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial moderna. Walter Benjamin foi um dos primeiros marxistas do século XX a colocar esse tipo de questão: já em 1928, no seu livro Sentido Único, ele denunciava a ideia de dominação da natureza como um “ensino imperialista” e propunha uma nova concepção da técnica como “domínio da relação entre a natureza e a humanidade”. Ainda hoje, o marxismo está longe de ter preenchido o seu atraso nessa área. No entanto, algumas reflexões começam a dedicar-se a essa tarefa. Por exemplo, é preciso acrescentar à primeira contradição do capitalismo, examinada por Marx, a que há entre as forças e as relações de produção, uma segunda contradição, a que há entre as forças produtivas e as condições de produção: os trabalhadores, o espaço urbano, a natureza. Pela sua dinâmica expansionista, o capital põe em perigo ou destrói as suas próprias condições, a começar pelo meio ambiente natural — uma possibilidade que Marx não tinha levado suficientemente em consideração. Quer seja marxista ou não, o movimento operário tradicional na Europa — sindicatos, partidos socialdemocratas e comunistas — permanece ainda profundamente marcado pela ideologia do “progresso” e pelo produtivismo, chegando até mesmo, em alguns casos, a defender, sem se questionar muito, a energia nuclear ou a indústria automobilística. É verdade que um princípio de sensibilização ecologista está em vias de desenvolvimento, notadamente nos sindicatos e partidos de esquerda nos países nórdicos, na Espanha, na Alemanha, etc. Trabalho, consumo e preservação ambiental: 67 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

Crise de civilização e uma possível alternativa A grande contribuição da ecologia foi — e ainda é — fazer-nos tomar consciência dos perigos que ameaçam o Planeta em consequência do atual modo de produção e consumo. O crescimento exponencial das agressões ao meio ambiente, a ameaça crescente de uma ruptura do equilíbrio ecológico configura um cenário-catástrofe que põe em questão a própria sobrevivência da vida humana. Confrontamo-nos com uma crise de civilização que exige mudanças radicais. O problema é que as propostas feitas pelas correntes dominantes da ecologia política europeia são muito insuficientes ou levam a becos sem saída. A sua principal fraqueza é ignorar a conexão necessária entre o produtivismo e o capitalismo, o que leva à ilusão do “capitalismo limpo” ou de reformas capazes de o controlar os “excessos” (como, por exemplo, as eco taxas). Ou então, tomando por pretexto a imitação, pelas economias burocráticas do comando, do produtivismo ocidental, tais correntes põem capitalismo e “socialismo” de costas grudadas, como variantes do mesmo modelo — um argumento que perdeu muito do seu interesse após o desabamento do pretenso “socialismo real”. Os ecologistas enganam-se ao pensar que podem fazer a economia da crítica marxiana do capitalismo: uma ecologia que não se dá conta da relação entre “produtivismo” e lógica do lucro está votada ao fracasso — ou pior, à recuperação pelo sistema. Os exemplos abundam... A ausência de uma postura anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos verdes europeus — na França, Alemanha, Itália, Bélgica — a tornarem-se simples partidários “eco reformistas” da gestão social-liberal do capitalismo pelos governos de centro-esquerda. Considerando os trabalhadores como irremediavelmente votados ao produtivismo, alguns ecologistas não tomam uma posição sobre o movimento operário, e inscreveram na sua bandeira: “Nem esquerda, nem direita”. Alguns ex-marxistas convertidos à ecologia dizem apressadamente “adeus à classe operária” (ANDRÉ GORZ), ao passo que outros (ALAIN LIPIETZ) insistem que é preciso deixar o “vermelho” — isto é, o marxismo ou o socialismo — para aderir ao “verde”, novo paradigma que traria uma resposta para todos os problemas econômicos e sociais. Talvez um misto disso tudo seja a solução. Este misto atende pelo nome de eco socialismo. Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que faz suas as aquisições fundamentais do marxismo — ao mesmo tempo em que o livra das suas escórias produtivistas. Esta corrente tem no sociólogo Michel Lowi sua maior expressão. Para os ecos

68 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

socialistas a lógica do mercado e do lucro — assim como a do autoritarismo burocrático de ferro e do “socialismo real” — são incompatíveis com as exigências de preservação do meio ambiente natural. Essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas a maioria dos seus representantes partilha alguns temas comuns. Em ruptura com a ideologia produtivista do progresso — na sua forma capitalista e/ou burocrática — e oposta à expansão até ao infinito de um modo de produção e de consumo destruidor da natureza, tal corrente representa uma tentativa original de articular as ideias fundamentais do socialismo marxista com as aquisições da crítica ecológica. Talvez a definição de eco socialista seja para as teorias e os movimentos que aspiram a subordinar o valor de troca ao valor de uso, organizando a produção em função das necessidades sociais e das exigências da proteção do meio ambiente. O seu objetivo, um socialismo ecológico, seria uma sociedade ecologicamente racional fundada no controle democrático, na igualdade social e na predominância do valor de uso. O raciocínio eco socialista repousa em dois argumentos essenciais: 1) O modo de produção e de consumo atual dos países capitalistas avançados, fundado numa lógica de acumulação ilimitada (do capital, dos lucros, das mercadorias), do esgotamento dos recursos, do consumo ostentatório e da destruição acelerada do meio ambiente, não pode, de modo algum, ser expandido para o conjunto do Planeta, sob pena de uma crise ecológica ainda maior. 2) Seja como for, a continuação do “progresso” capitalista e a expansão da civilização fundada na economia de mercado — mesmo sob essa forma brutalmente desigual — ameaça diretamente, a médio prazo (qualquer previsão seria arriscada), a própria sobrevivência da espécie humana. A preservação do meio ambiente natural é, portanto, um imperativo humanista.

A racionalidade limitada do mercado capitalista, com o seu cálculo imediatista de perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica, que leve em conta a longa temporalidade dos ciclos naturais. Não se trata de opor os “maus” capitalistas “ecocidas” aos “bons” capitalistas verdes: é o próprio sistema, fundado na impiedosa competição, nas exigências da rentabilidade, na corrida atrás do lucro rápido, que é o destruidor dos equilíbrios naturais. O pretenso capitalismo verde não passa de uma manobra publicitária, de uma etiqueta que Trabalho, consumo e preservação ambiental: 69 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

visa vender uma mercadoria, ou, na melhor das hipóteses, de uma iniciativa local equivalente a uma gota de água sobre o solo árido do deserto capitalista. As reformas parciais são de todo insuficientes: é preciso substituir a micro racionalidade do lucro pela macro racionalidade social e ecológica, o que exige uma verdadeira mudança de civilização. Isso é impossível sem uma profunda reorientação tecnológica, que vise à substituição das atuais fontes de energia por outras, não poluentes, renováveis, tais como a energia eólica ou solar. Portanto, a primeira questão que se coloca é a do controle dos meios de produção, e, sobretudo, das decisões de investimento e de mutação tecnológica, que devem ser arrancadas dos bancos e das empresas capitalistas para se tornar um bem comum da sociedade. É necessária uma reorganização de conjunto do modo de produção e de consumo, fundada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população (não necessariamente “pagáveis”) e a preservação do meio ambiente. Por outras palavras, uma economia de transição para o socialismo, porque fundada na escolha democrática das prioridades e dos investimentos pela própria população. Essa transição levaria não apenas a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, a uma civilização nova, eco socialista, para além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e da produção até ao infinito de mercadorias nocivas ao meio ambiente. Utopia? Sim, mas a utopia é indispensável para a mudança social com a condição de que seja fundada nas contradições da realidade e nos movimentos sociais reais. É o caso do eco socialismo, que propõe uma estratégia de aliança entre os “vermelhos” e os “verdes” — não no sentido político estreito dos partidos socialdemocratas e dos partidos verdes, mas no sentido amplo, ou seja, entre o movimento operário e o movimento ecológico — e de solidariedade para com os oprimidos e explorados do Sul. A ecologia social tornou-se uma força social e política presente na maior parte dos países europeus, bem como, em certa medida, nos EUA. Porém, nada seria mais fácil do que considerar que as questões ecológicas só dizem respeito aos países do Norte — um luxo das sociedades ricas. Cada vez mais se desenvolvem nos países do capitalismo periférico — o “Sul” — movimentos sociais de dimensão ecológica. Vemos, também, surgir nos países do Sul um movimento de mobilizações populares em defesa da agricultura campestre e do acesso comum aos recursos naturais ameaçados de destruição pela expansão agressiva 70 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

do mercado (ou do Estado), bem como lutas contra a degradação do ambiente provocada pela troca desigual, pela industrialização dependente, pelas manipulações genéticas e pelo desenvolvimento do capitalismo (o “agro-business”) nos campos. Em geral, tais movimentos não se definem como ecológicos, mas nem por isso o seu combate deixa de ter uma dimensão ecológica determinante. Inúmeras manifestações da “ecologia dos pobres” apareceram ao longo destes anos e podemos citar como exemplo, pelo seu alcance ao mesmo tempo social e ecológico, local e planetário, o combate de Chico Mendes e a Coligação dos Povos da Floresta em defesa da Amazônia brasileira, contra a obra destrutiva dos grandes proprietários fundiários e do agronegócio multinacional. O famoso marxista italiano Antonio Gramsci dizia que o revolucionário socialista deve combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Precisamos destes dois preceitos para discutir as alternativas de desenvolvimento para superar o modelo produtivista-consumista. O problema do aquecimento global, essa acumulação de gases na atmosfera, vem da Revolução Industrial. Começou em meados do século XVIII, quando esses gases foram se acumulando, e se intensificaram enormemente nas últimas décadas, as décadas da globalização capitalista neoliberal. Portanto, o culpado dessa história não é o ser humano em geral, mas um modelo específico de desenvolvimento econômico, industrial, moderno, capitalista, globalizado, neoliberal: esse é o responsável pela atual crise ecológica e pela ameaça que pesa sobre a humanidade. Aqui está o pessimismo da razão. Quais são as soluções que propõem os representantes da ordem estabelecida? Há uma proposta que é a seguinte: as energias fósseis são as responsáveis pelo problema, por isso, é imperativo substituí-las por formas de energia limpas, que não produzem gases, e são seguras, como a energia nuclear. Está aí uma solução técnica e fácil para o problema: construir usinas nucleares. Isso foi feito em grande escala nas últimas décadas. Em 1986, houve um incidente desagradável, em Chernobyl, na União Soviética. Cientistas calculam que as vítimas de Chernobyl que foram morrendo no curso dos anos, resultado das irradiações, chegam a oitocentos mil mortos — mais do que todos os mortos de Hiroshima e Nagasaki, por decorrência da bomba atômica. O argumento dos responsáveis pela energia nuclear era de que isso aconteceu na União Soviética, um país totalitário, burocrático, com tecnologia e gestão atrasadas; no ocidente, com empresas privadas, isso não aconteceria. Esse discurso foi repetido muitas vezes até que ocorreu o acidente de Fukushima, no JaTrabalho, consumo e preservação ambiental: 71 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

pão, em 2011. A empresa responsável pela usina, Tokyo Electric Power Company (TEPCO), é a maior empresa privada de eletricidade do mundo. É a mais esplêndida manifestação do capitalismo privado no terreno da energia nuclear. Desse modo, fica claro que essa não é uma alternativa aos combustíveis fósseis, temos que procurar outras. Obviamente, há tentativas mais sérias de solução, como a ideia de que precisamos desenvolver energias alternativas: hidrelétrica, eólica e solar. Com exceção da hidrelétrica, que já tem um desenvolvimento importante, em países como o Brasil, as outras são pouco desenvolvidas. E por uma razão bem simples: são menos rentáveis do que o petróleo e o carvão. Por isso, não interessa às empresas e aos Estados, com algumas exceções, investir maciçamente nessas energias. Em alguns países, chega a 10% o índice de energia produzida por fontes alternativas, mas o resto continua com o carvão e o petróleo. Seria necessária uma mudança, em grande escala, com vistas a acabar com os combustíveis fósseis e desenvolver energias alternativas. Por enquanto, nenhum governo está fazendo isso, embora os cientistas já tenham dado o recado: se não mudarmos drasticamente o padrão de matriz energética, nos próximos dez ou vinte anos a situação fugirá do controle. É uma questão de rentabilidade — que é o que conta — e de competitividade. Outra coisa que se deve dizer é que mesmo se as energias fósseis fossem substituídas pelas energias renováveis, estas também têm seus probleminhas, como os impactos socioambientais da energia hidrelétrica. Portanto, é uma ilusão achar que é só uma questão técnica, de mudar a matriz energética, embora isso seja fundamental. De qualquer maneira, teremos de reduzir significativamente o consumo de energia e, consequentemente, a produção econômica e o consumo. O desenvolvimento alternativo ao produtivismo e ao consumismo implica uma redução da produção e do consumo, a começar pelos países capitalistas avançados, evidentemente, que são os principais responsáveis e os maiores produtivistas e consumistas. Segundo Löwy (2014), aqui vem a proposta do eco socialismo que é uma crítica, por um lado, do socialismo não ecológico, que foi a experiência fracassada soviética e de outros países que, do ponto de vista ecológico, não representou nenhuma alternativa ao modelo ocidental. Pelo contrário, tratou de copiar o modelo produtivo do capitalismo ocidental. Eco socialismo é uma crítica desse socialismo — ou pseudossocialismo — não ecológico, soviético, etc. Por outro lado, é uma crítica à ecologia não socialista, que acha que podemos ter um modelo alternativo de desenvolvimento nos quadros 72 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

do capitalismo, do mercado capitalista. Do ponto de vista eco socialista, achamos que isso é uma ilusão, pela própria dinâmica de expansão necessária ao capitalismo, de crescimento, que leva necessariamente a uma colisão com a natureza e com os equilíbrios ecológicos. É uma crítica também, ou autocrítica, a certas concepções tradicionais na esquerda em geral, e no marxismo em particular, sobre o que é uma transformação socialista. Há uma visão clássica de que é preciso mudar as relações de produção — propriedade coletiva, em vez da privada — para permitir que as forças produtivas se desenvolvam, já que as relações de produção são um obstáculo ao livre desenvolvimento das forças produtivas. Mas não passa por aí. Primeiro, porque não é possível o desenvolvimento ilimitado das forças produtivas. E, em segundo lugar, porque pensar em uma transformação e em um modelo alternativo de desenvolvimento implica questionar não só as formas de propriedade e as relações de produção, mas as próprias forças produtivas, o próprio aparelho produtivo. Aqui se estabelece o otimismo da vontade.

Considerações finais Esse aparelho produtivo, criado pelo capitalismo ocidental, industrial, moderno, é incompatível com a preservação do meio ambiente, por sua matriz energética e por sua forma de funcionamento, que inclui o agronegócio, o uso de pesticidas, entre toda uma série de características que mostram que esse aparelho produtivo não serve. Temos que pensar em uma profunda transformação, não só das relações de produção, mas do aparelho produtivo. Mas não é só isso: precisamos pensar em uma transformação do padrão de consumo. É insustentável o padrão de consumo do capitalismo moderno, mas há uma diferença enorme entre o consumo ostentatório das elites dominantes e o consumo das classes populares: uns comem feijão e milho e outros compram iates enormes, helicópteros, etc. Não é a mesma coisa. Não é o que come milho que vai ter que comer menos milho. É o que compra palácios de luxo que deve reduzir drasticamente seu consumo ostentatório. Além disso, segundo Löwy (2014), existe no capitalismo algo que se chama “obsolescência planificada dos objetos de consumo”. Dentro do capitalismo, os objetos de consumo já têm, em sua própria concepção, sua obsolescência prevista para o mais rápido possível. Todo mundo sabe que a geladeira de quarenta anos atrás durava quarenta anos, e as geladeiras de agora duram três anos. Isso é necessário: para o capital vender mais Trabalho, consumo e preservação ambiental: 73 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

e mais geladeiras, produzir mais e mais, precisa ter uma duração muito menor. É parte do padrão produtivista e consumista, e também precisa ser modificado. Precisamos, portanto, de mudanças nas formas de propriedade, no aparelho produtivo, no padrão de consumo, no padrão de transporte. Tudo isso deve configurar uma mudança bastante radical no padrão de civilização. Na verdade, a proposta eco socialista, de um novo modelo de desenvolvimento mais além do produtivismo e do consumismo, coloca em questão o paradigma da civilização capitalista ocidental, industrial, moderna. É uma proposta bastante profunda. É uma proposta revolucionária, mas talvez a revolução tenha que ser redefinida. Como bem nos explica Walter Benjamin, “nós, marxistas, temos o hábito de dizer que as revoluções são a locomotiva da história. Mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam a humanidade puxando os freios de emergência para parar o trem. ” É uma imagem bastante atual. Hoje em dia, somos todos passageiros de um trem, que é a civilização capitalista, industrial, ocidental, moderna. Esse trem está indo, com uma rapidez crescente, em direção ao abismo. Lá na frente há um buraco que se chama aquecimento global ou crise ecológica. Não se sabe a quantos anos de distância se encontra esse abismo, mas ele está lá. Portanto, a questão é parar esse trem suicida e mudar de direção. É o desafio colocado pela proposta eco socialista.

74 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

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Trabalho, consumo e preservação ambiental: 75 Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

CAPÍTULO V

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — olhares sobre as relações de trabalho no Brasil Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

Introdução A existência lhes foi negada, da mesma forma que um espaço próprio no Lebenswelt (mundo da vida). Foram desse modo destruídas — porém com uma destruição criativa. “Eliminar”, afirmou admiravelmente Mary Douglas, “não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente”. Zygmunt Bauman / Vidas Desperdiçadas

Não tenho o hábito de escrever na primeira pessoa, fui orientada a utilizar a terceira pessoa ou o infinitivo verbal, orientação que, desde as primeiras experiências de pesquisa aceitei, por compreender que toda escrita resulta de um trabalho conjunto, que parte de um diálogo com autores, mediado por uma visão de mundo que comporta muito do lugar em que estamos e das relações que estabelecemos. Este texto é fruto de um conjunto de relações estabelecidas, especialmente após ter ingressado no Doutorado em História do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e por escolhas um pouco minhas, mas, também de uma gama de fatores que nos fogem ao controle durante a realização de nossos projetos pessoais e profissionais. Também por isso, ingressei no Grupo de Pesquisa em História, Terra e Trabalho (GPHTT), ligado ao Núcleo de Pesquisa em História (NPH), coordenado pelo professor Vitale Joanoni Neto. Na ocasião em que ingressei no NPH, o foco do meu projeto de pesquisa, apresentado ao PPGHIS, era a produção discursiva na construção do ideal de modernidade e progresso no contexto dos novos arranjos Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 77 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

produtivos e trabalhista do campo brasileiro, entretanto as vivências no GPHTT permitiram-me que passasse a pensar mais o humano que os processos produtivos. As leituras feitas no período em que estive ligada ao Projeto Ação Interinstitucional para a Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo e/ou Situação de Vulnerabilidade, parceria entre Ministério do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE (MT)), Ministério Público do Trabalho através da Procuradoria Regional do Trabalho 23.ª Região (PRT (MT)) e UFMT, representada pelo GPHTT e, posteriormente, quando participei do “Projeto de Inclusão Produtiva para o uso de mão de obra de egressos do trabalho análogo ao escravo, em atividades de construção civil, a partir da experiência da Arena Pantanal em Cuiabá, MT”, juntamente com o Professor Vitale Joanoni Neto, a Professora Luciene Aparecida Castravechi e o Professor Adriano Knippelberg Moraes, me ajudaram nesta mudança. Larrosa (2013), ao refletir sobre a importância da leitura que resulta em possibilidades de interpretação acerca de si e do mundo, em um texto para pensar a formação humana, dialoga com a produção mais pessoal de Rousseau. O texto “Confissões”, que se propõe ser um relato das experiências pessoais daquele filósofo, que geralmente é lido como um pensador do político e das dimensões humanas, sob este viés que não o pessoal, porém o texto escolhido por Larrosa nos apresenta um Rousseau mais “íntimo e mais espontâneo”, a outra face de Rousseau. Lida a partir das narrativas de Larrosa, permite deduzir que toda escrita traz a marca das relações que estabelecemos ao longo de nossas vidas, “As obras nas quais Rousseau pretende pintar seu retrato ao natural estão também construídas com os retos de sua biblioteca, com as convenções narrativas de seu tempo” (LARROSA, 2013, p. 25). A escolha, por me colocar neste texto na primeira pessoa, não deixa de considerar todas as relações que se entrelaçam em minha escrita. Faço-o por tratar-se de um tema acerca do qual tenho me dedicado nos últimos anos e por se constituir em reflexões mediadas pelo trabalho de pesquisa, o qual diz muito das minhas trajetórias e das relações humanas que venho mantendo para além do universo da pesquisa, os deslocamentos resultantes de novas opções de trabalhadores para sobreviver dizem muito do que foi minha própria trajetória. Essas trajetórias pessoais, que contam as experiências vividas por grupos humanos, são atravessadas por disputas políticas que transcendem o limite do pessoal, como palimpsestos, constantemente apagados para dar origem a novas escritas, do mundo e de si mesmo. Neste sentido, Haesbaert 78 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

(2012), ao pensar o que intitula “O Mito da Desterritorialização”, alerta para o fato de que a nova dinâmica do capitalismo está promovendo o “fim dos territórios”, o que impera neste cenário é a multiterritorialidade, entendendo que o território pode ser “definido, em primeiro lugar, pela ‘consciência’ ou pelo ‘valor’ territorial, no sentido simbólico”. (HAESBAERT, 2012, p. 42). No Brasil, a problemática da perda de territórios passa pelo aspecto material, uma vez que a concentração de terras gera a perda daqueles espaços por um grande contingente de grupos humanos que, ao buscarem na fronteira novos espaços de existência, vão promovendo a multirretorialização de seus espaços geográficos e de suas experiências pessoais, narradas por muitos trabalhadores como se constituindo em experiências de perda e de negação das condições de existência, conforme dois relatos com os quais trabalharemos ao longo deste texto. O primeiro narrado por José Pereira, trabalhador rural da região de Confresa, no Mato Grosso; o segundo, de Aparecida Barbosa da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa, ambos gravados durante a V Reunião Científica sobre o Trabalho Escravo e Questões Correlatas. A constituição territorial brasileira marcada por inúmeras narrativas de negação de territorialidade teve grande influência do poder estatal, e há um significativo número de pesquisas que se dedicaram a refletir sobre esta questão, dentre elas destaco um conjunto de dissertações que foram produzidas por estudantes ligadas ao NPH/ UFMT e ao Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos (NERU (UFMT)), que apontam para a intrínseca relação entre Políticas de Estado e desterritorialização: Deleuze e Guatarri (s.d.) vão dar ênfase a este processo de desterritorialização porque é assim que eles entendem a criação do Estado e a dinâmica do capitalismo. Eles afirmam que o Estado e o capital vão operar por desterritorialização e sobrecodificação. Mas enquanto o Estado e as sociedades capitalistas se constituem pelo processo de desterritorialização, as sociedades pré-capitalistas são efetivamente territoriais, pois sua relação com a terra é totalmente distinta. (HAESBART, 2012, p. 134).

Deduz-se disso que, para os projetos capitalistas de sociedade, as ações empreendidas pelos governos brasileiros foram consoantes com a lógica do capital, da qual resulta grande produção de “refugo”, tanto maEntre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 79 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

terial quanto humano, a partir da ótica de Bauman (2005), quando cita a produção de “redundantes”, portanto, faz coro as medidas impostas pelo Estado Capitalista e fundamentadas nos discursos de progresso e modernização que atravessam a História do Brasil.

A terra no Brasil: um breve histórico da ocupação A distinção entre os grupos humanos em território brasileiro remonta ao período colonial, ao desembarcarem em terras brasileiras, embriagados por sua visão de mundo, os europeus entenderam que tinham direito sobre um território ocupado por selvagens que não dominavam as técnicas de modificação e apropriação dos espaços nos moldes da cultura europeia. O imaginário eurocêntrico entendeu que as nações que habitavam este espaço eram formadas por grupos de selvagens que, portanto, poderiam e deveriam ser subjugados. Ao retroceder tão longínquo período da História do Brasil, tenho como meta apontar alguns discursos em relação a certos grupos humanos que historicamente foram sendo “eleitos” como “imprescindíveis” e “redundantes”, tais conceitos carregam consigo a concepção de que existem grupos aptos a produzirem um processo de modernização no qual o ambiente natural é transformado, tal proposta é resultante do pensamento moderno que entendia a natureza como passível de transformação humana. O projeto de modernidade, fundamentado, sobretudo, no pensamento de Descartes e que acabou por impor um paradigma ao Ocidente no período posterior ao século XVII, promoveu uma dissociação entre Sujeito e Objeto, tal paradigma trazia como marca fundamental a proposta de progresso, neste sentido, progredir seria alterar o ambiente. O paradoxo do advento de tal paradigma, sustentado em um ideal de modernidade e progresso, foi a produção de refugo, foram alteradas as estruturas do planeta ao produzir em linhas de produção, mercadorias descartadas a todo momento. No sentido de se propor pensar as problemáticas resultantes de tal projeto de modernidade, Bauman (2005) propõe uma leitura chocante sobre os lugares que um número cada vez maior de pessoas passou a ocupar neste planeta, onde o projeto de modernidade triunfou. Se as interpretações marxistas entendiam que a divisão de classes havia criado um exército de trabalhadores que comporiam a reserva do mercado de trabalho, mantendo os níveis salariais baixos, mas tendo a expectativa de retornarem às atividades produtivas, a novidade da interpretação proposta por Bauman é que este grupo humano, alijado dos 80 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

postos de trabalho, em um momento de predomínio dos processos de modernização, tende a não voltar ao mercado de trabalho resultando em “produção de ‘refugo humano’, ou, mais propriamente de seres humanos refugados [...]” (BAUMAN, 2005, p. 12). No Brasil, a problemática dos redundantes, efeito colateral de um projeto moderno iniciado com a colonização deste território, passa a compor os discursos políticos com maior intensidade durante a “Era Vargas”. Em 1937, ao transmitir mensagens radiofônica de fim de ano, foi lançado pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, o programa “Marcha para o Oeste”, movimento de ocupação do território central do país que, nas palavras do presidente, representava o “verdadeiro sentido da brasilidade”. A campanha contou com a adesão de vários intelectuais dentre eles o jurista, jornalista, escritor, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, Cassiano Ricardo. Nos dois volumes da obra intitulada “Marcha para Oeste”, Ricardo retoma o movimento bandeirante, atribuindo a este o processo de formação do Brasil e defendendo o advento de um novo movimento de ocupação em direção ao interior do país, “Desaparecida a bandeira na sua feição histórica, original, repete-se em outro horizonte cultural. No mínimo, repetem-se atos de bandeirismo, e quem os pratica é, portanto, bandeirante” (RICARDO, 1970, p. 994). A obra de Cassiano Ricardo foi uma forma de propaganda dos projetos de interiorização pensados pelo Governo Federal, os efeitos de tal projeto podem ser notados no estado de Mato Grosso, onde “[...] a Marcha para Oeste se concretizou na Colônia Agrícola Nacional de Dourados, na criação do Território Federal de Ponta Porã, na Fundação Brasil Central e na criação da Expedição Roncador Xingu” (BARROZO, 2010, p. 12). A justificativa do Governo para implantar o Programa foi a existência de excedentes pobres na Região Centro-Sul do país o que gerava uma situação de potencial tensão social. A dinâmica de movimento em direção à fronteira, entendida como o território a ser “desbravado” pelo colonizador pode ser lida na ótica da tese formulada por Turner15, que encontrou interlocutores nos estudos sobre fronteira realizados no Brasil, as interpretações dadas por Barro15 As leituras da fronteira turneriana presentes neste texto, são resultantes do contato com uma dissertação (ÁVILA, 2006), em que o autor aponta para o fato de Turner (18621931), ser considerado o grande pai da historiografia moderna nos Estados Unidos. O autor nos apresenta a trajetória de Turner que lançou ao mundo sua Frontier Thesis, em 1893, durante uma feira de exposição em Chicago, postulando que o desenvolvimento histórico dos Estados Unidos havia se dado graças à existência das chamadas “terras livres” a Oeste, únicas em quantidade e extensão. Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 81 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

zo (2010) mostram que a tese de Turner teve como possibilidade teórica para pensar a dinâmica de ocupação territorial ocorrida no Brasil no contexto da Marcha para Oeste, “Para esvaziar estes potencias focos de tensão social, o governo passou a orientar as correntes migratórias para as cidades do Centro-Sul, e para as novas fronteiras agrícolas, fixando parte destes migrantes em lotes familiares nas Colônias Agrícolas Nacionais” (BARROZO, 2010, p. 13).

Elementos para pensar a problemática da concentração de terras no Brasil Os projetos de interiorização, dinamizados pelo Governo Vargas, foram reintroduzidos durante a vigência dos Governos Civis Militares no Brasil, momento em que o nacional-estatismo foi retomado, bem como as propostas de modernização que “sob as asas do terror do AI-5, construíram-se complexas relações entre a ditadura e a sociedade do que resultou um país próspero e dinâmico” (AARÃO REIS, 2014, 78). O período entre os anos de 1967 e 1973 foi marcado por euforia econômica habilmente apelidada de “Milagre Econômico”, entretanto essa modernização econômica do país foi sendo feita a preço de vidas, houve neste período, ainda, a configuração de um modelo de propriedade rural que ainda predomina no país: No campo, o projeto reformista fundamentado na distribuição de terra e na agricultura familiar cedera lugar, com estímulo do governo, a grandes unidades agrícolas, mecanizadas — aumentando a produção e possibilitando o aparecimento de novas culturas, como a da soja, campeã de exportações, e a dos cítricos. (AARÃO REIS, 2014, p. 80).

A apropriação dos conceitos propostos por Turner, ao pensar a fronteira Oeste dos Estados Unidos, está presente em narrativas que pensam o avanço da fronteira em direção ao interior do Brasil, “A colonização em Mato grosso e Rondônia, nos anos setentas e oitentas, serviu como ‘portão de escape’ para os problemas fundiários dos agricultores familiares do sul do Brasil, onde ocorria a modernização da agricultura” (CARDOSO e MULLER, 1997). Para Turner, a história da colonização americana foi, em grande medida, a história da civilização do velho Oeste, as terras livres e o avanço da colonização em direção ao Oeste, fatores que explicam o desenvolvimento americano. As instituições americanas foram compe-

82 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

lidas a se adaptarem às mudanças de um povo em expansão, “desbravando as terras selvagens — wildernees”, driblando as condições econômicas e políticas da fronteira, criando os limites do contato entre o “mundo selvagem” e a “civilização”. Os discursos de sucessivos governos brasileiros refletem esta visão de uma necessidade de transcender os limites impostos pela fronteira.

Discurso dos Governos Militares — novos apelos à ocupação de “terras livres” Em 1964, resultado de um conjunto de alianças e de relações complexas entre setores da sociedade civil e militares, insatisfeitos com os rumos políticos propostos por João Goulart, ocorreu o Golpe Militar, que destitui o presidente legalmente escolhido e dá início à fase política cuja marca foi a repressão levada a cabo pelo Estado. A historiografia que trata do período não é unânime, sendo que um conjunto de autores estabelece como marcos os anos de 1964 e 1985. Para Aarão Reis, o período de ditadura durou quinze anos (1964-1979), considerando que a partir de 1979, o país passou por uma fase de transição democrática. Durante este período, foi criado o Estatuto da Terra16, que conceituava em seu artigo quinto que na Colonização Oficial: [...] o Poder Público tomará a iniciativa de recrutar e selecionar pessoas ou famílias, dentro ou fora do território nacional, reunindo-as em núcleos agrícolas ou agroindustriais, podendo encarregar-se de seu transporte, recepção, hospedagem e encaminhamento, até a sua colocação e integração nos respectivos núcleos. (ESTATUTO DA TERRA, 1964, p. 34).

Desta forma, foi organizado um discurso do Governo Civil Militar, de que a transferência de agricultores para os núcleos de colonização na Amazônia era apresentada como um processo de Reforma Agrária, porém as condições de acesso à terra da região por estas pessoas se deu de forma diferenciada. O órgão criado pelo Governo Federal para fiscalizar e promover o processo de ocupação das terras devolutas cometeu diversas irregularidades, “em São José do Povo foram liberados R$ 165 000,00 para a construção de quinze quilômetros de estradas e 16 Lei n.º 4504 de 30 de novembro de 1964.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 83 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

dois poços artesianos. Nada foi feito. Há uma placa indicando a construção de um único poço no valor de R$ 320 000,00 que não foi construído” (JOANONI NETO, 2007, p. 25). A má gestão do dinheiro público contribuiu para a concentração de terras nas regiões centrais do país. A solução encontrada pelo Estado, para gerir a colonização oficial nos moldes propostos pelo Estatuto da Terra, foi a criação de órgãos como a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o Banco da Amazônia (BASA), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Estes órgãos do governo atuavam em conjunto, o INCRA aprovava os projetos fundiários, entretanto tais espaços eram vazios apenas nos discursos oficiais, desta forma a intervenção da FUNAI ocorria no sentido de deslocar os grupos indígenas para outras regiões e a SUDAM analisava os projetos propostos. A rede que se organizou em torno de um projeto de Reforma Agrária que, ao final das contas, não promoveu distribuição, mas concentração territorial. Para isso, estavam os bancos para liberar os financiamentos com dinheiro público e, aí, entrava o BASA e o Banco do Brasil (BB). Neste cenário de tensão entre grande e pequeno produtor, muitos trabalhadores rurais não conseguiram se manter nas propriedades, sobretudo porque não recebiam auxílio no tocante à infraestrutura, descapitalizados e sem condições de trabalho acabaram entregando as terras aos grandes produtores capitalizados que contavam com financiamento via Estado. A impossibilidade de se manter na terra ou tendo a mesma negada, contingentes de trabalhadores passaram a se deslocar em busca de um território que os abrigasse, levando consigo os sonhos de uma vida melhor, em geral depararam-se com a exploração de suas forças de trabalho. Os projetos de colonização cumpriram o objetivo proposto pelo regime político civil militar, de ocupar e aproveitar a região amazônica para o desenvolvimento dos setores agrícolas e pastoris; neste processo, entretanto, foi negado ao trabalhador rural tanto a condição de acesso quanto de permanência nessas “novas áreas de ocupação”. Pensando que a preocupação com o conceito de tempo é inerente ao trabalho do historiador, proponho aqui que pensemos acerca da constituição de um tempo da fronteira, entendendo as permanências de um conjunto de mazelas sociais decorrentes das Políticas de Governo que foram pensadas para o campo durante o período militar. Naquele período havia fatores que incentivavam a migração, sobretudo de natureza econômica, mas não só estes, o sonho, as perspectivas de novas 84 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

condições de vida e trabalho, a esperança são todos constituintes dos ideais que levaram homens e mulheres a se deslocarem pelo país sempre em busca de um território que os abrigasse, todos esses fatores: [...] continuam a levar milhares de trabalhadores a se deslocar com frequência em busca de emprego ou de um pedaço de terra. Esses migrantes às vezes acabam sendo submetidos a condições de trabalho desumanas, tendo sua liberdade tolhida, não podendo sair do local onde trabalham (JOANONI NETO et al. , p. 17, 2008).

Este cenário de negação e privação constitui o locus de advento de um tipo de trabalho oficialmente extinto em 1888, o trabalho escravo.

Os Redundantes em um Território de tantos espaços A prática escravagista constituiu-se em elemento para a formação da sociedade brasileira, tendo sido abolida oficialmente em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. A permanência da escravidão, ao longo dos anos posteriores à oficialização de sua proibição, pode ser notada na presença de documentos oficiais que visualizam a problemática e institucionalizam formas para coibi-la, exemplo disso é o texto do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, cujo Art. 149 caracteriza como crime previsto no Código Penal o ato de “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. O mesmo artigo foi reformulado na redação dada pela Lei n.º 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que passou a caracterizar o crime a partir da prática de “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. No tocante ao termo “trabalho forçado”, a Convenção n.º 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o define como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. Os dados a seguir mostram o quanto esta forma de trabalho ainda está presente em certos setores de atividades produtivas no Brasil. Entre 1995 e 2008, os estados de Mato Grosso e Pará aparecem como os de maior número de resgatados. Após 2008, Bahia, Tocantins e Maranhão tiveram crescimento significativo nessa estatística e,

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 85 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

após 2010, o sul do país (Santa Catarina e Paraná), também passou a compor o topo da lista, saltando de menos de 4% do total dos resgatados em 2007 para 15% em 2010. As principais atividades em que este tipo de relação de trabalho foi verificado (2010/2012) foram na pecuária e no cultivo de café, algodão, soja e cana de açúcar. Ainda aparecem nos dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT): carvoaria e desmatamento, atividades que já estiveram entre as principais no uso dessa mão de obra (antes de 2007). Historicamente no Brasil o trabalho escravo contemporâneo é uma atividade rural, ou diretamente ligada a ela. Apenas recentemente temos tomado conhecimento de casos em áreas urbanas. Por questões que extrapolam os propósitos desse texto, não tratarei do alcance urbano da escravidão contemporânea. A maioria absoluta dos egressos é homem adulto, tomando a série histórica (1995-2012), o percentual se aproxima dos 96%. Dados do Atlas do Trabalho Escravo apontam para o fato de que “no trabalho escravo contemporâneo no Brasil, as vítimas são predominantemente homens, provenientes de outras regiões que não aquelas onde são escravizados”. A procura por trabalho e por uma melhoria em sua condição humana, “[...] os trabalhadores são aliciados e saem de seus lugares por desconhecerem as condições reais de trabalho que os esperam, ou pela falta de alternativa em seus lugares de origem, mesmo conscientes das condições aviltantes que vão enfrentar” (THÉRY et al. 2009, p. 15). O mapa a seguir apresenta as regiões com maiores índices de vulnerabilidade de trabalhadores, territórios onde há um poder incipiente do Estado e nos quais os detentores do poder local “[...] tomam para si a prerrogativa da violência legítima, ou seja, de ações sociais intencionalmente desenvolvidas para negar a alteridade humana, legitimada pela cumplicidade do direito”. (RUIZ, 2009, p. 91. apud JOANONI NETO; CASTRAVECHI, 2009, P. 114).

86 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Fonte: THÉRY et al. Atlas do Trabalho Escravo. P. 11

A dinâmica da fronteira comporta aspectos que se interligam, por mais que a impulsão dos deslocamentos na origem se dê por questões econômicas, aspectos sociais, são visíveis nos relatos de sonho do eldorado, de enriquecimento, de alteração no status, no campo ideológico os discursos promovidos no intuito de fustigar os desejos, as esperanças, traziam olhares sobre o território a ser ocupado como compondo os lugares de realização de sonhos, terras de fácil cultivo Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 87 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

e fartura. A movimentação de pessoas alterou os cenários naturais, nos territórios de expansão, promoveu-se a abertura da mata para o cultivo de produtos comercializados em grande escala especialmente a soja, cujos debates acerca das problemáticas resultantes deste tipo de cultivo agrícola, neste texto, ficará restrito às considerações de Vankrunkelsven: Não há nada de errado em si com a soja. É um milagre. Há mais de cinco mil anos é uma planta sagrada para os chineses. O escândalo é que mais de 70% da soja em grão produzida mundialmente vá parar na ração que alimenta porcos, galinhas, perus, patos, vacas e peixes. Para farelo de soja este percentual sobe para 90%, sendo a mais alta fonte de proteína vegetal em nosso planeta. Além disso, o modo de cultivo e de comercialização de toda essa soja causa impactos negativos não só na natureza e na paisagem, mas também para os agricultores familiares (VANKRUNKELSVEN, 2008, p. 17).

Foram nos espaços em expansão, que trabalhadores provenientes, sobretudo do Nordeste brasileiro, tiveram suas vidas subsumidas pela exploração.

88 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Mapa II — Avanço do desmatamento em direção à Amazônia Produzido por IPAM, 2012

Fontes de dados: INPE, 2011.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 89 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

As narrativas desses trabalhadores rurais me afetam profundamente, por entender que mais que alterar os rumos da economia do país, as medidas tomadas em nome da coletividade, projetos pretensamente ou discursivamente democráticos alteraram trajetórias pessoais, extinguiu sonhos, calejou as mãos, entristeceu a alma: No ano de 1976, eu vim para o Mato Grosso, trabalhei em fazendas, dormi em matos, debaixo de chuva, correndo [fugindo], para não morrer naquela situação mais triste. Dentro da fazenda, trabalhando, apresentando meu suor e sem ganhar nada. Hoje o que eu ganhei não vale nada, eu não tenho nada. Hoje eu tô naquela situação de doença e sem ninguém. Eu, trabalhando, me jogaram para rua, me abandonaram e eu fiquei na rua sozinho, sem condições de um tratamento. Então hoje é, como se diz o outro, é na favela ou na chácara onde a gente trabalha hoje ninguém dá valor em ninguém, né? Como lá, mesmo eu trabalhando, ninguém nunca me deu valor […]. Porque o povo que eu trabalhei lá me abandonou, me jogou na rua, saiu fora de mim e nem pagou o meu trabalho. Esse povo mora lá dentro da cidade. Eu não pude fazer nada porque é mais fraco do que eu, não tem nada. Tivesse trabalhando para mim já tinha achado uma família. Então, hoje a gente não tem que cuidar da gente e quem cuida, a gente tem que agradecer. Então eu estou neste problema aí, porque as fazendas por onde eu trabalhei desde 1976, nunca adquiri nada. Toda vida também o que eu adquiri também não valeu nada... (JOSÉ PEREIRA, trabalhador rural na região de Confresa. Depoimento dado durante a V Reunião Científica sobre Trabalho Escravo e Questões Correlatas apud JOANONI NETO, 2013, p. 243).

As narrativas revividas pela memória de José Pereira transparecem profundo pesar por uma existência de perda. A exploração do trabalho nas fazendas de Mato Grosso lhe impediu de ter família, encontra-se em um mundo marcado pela doença e por favores alheios, vivendo em uma sociedade que reforça o discurso do trabalho, a este se dedica ao longo da vida, entretanto ao invés da reprodução pelo trabalho o mesmo lhe nega a vida. Ele foi jogado à rua, envelheceu, adoeceu, não tem de quem cobrar. A mim, enquanto narradora destas trajetórias e também parte delas, tendo ouvido ao longo da vida relatos de trabalhadores que eram assassinados no momento do acerto com o patrão da fazenda, ou de pequenos proprietários, posseiros/roceiros que eram jogados nos rios em Itiquira (MT) e em Sonora (MS), vidas sumidas em 90 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

rios apelidados de “Sumidouros”, mortos, inexistentes, com as trajetórias encerradas abriam caminho para a grilagem de terras, restam-me o pesar e a revolta. Este foi o contexto da formação de grandes propriedades no Brasil. O sonho do acesso à terra, da possibilidade de tomar os rumos da própria vida ainda povoa o imaginário de um grande número de trabalhadores no Brasil: Isso é experiência que nós visualizamos em todos os egressos do trabalho escravo, pois geralmente não sabem ler nem escrever. E no meu entendimento, para resolver essa questão do trabalho escravo, seria a questão agrária: seria através da terra. Pelo emprego acredito que não resolverá essa problemática do trabalho escravo não. Porque a maioria não sabe nem ler, nem escrever e quando sabe é pouquinho, então o emprego só se for servente de pedreiro, e não vai resolver o problema de todos. E não sei por onde iria resolver essa questão agrária, que é tão emperrada, que só patina e nunca vai (APARECIDA BARBOSA DA SILVA. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa. Depoimento dado durante a V Reunião Científica sobre Trabalho Escravo e Questões Correlatas apud JOANONI NETO, 2013, p. 247).

Desde 1964, com a promulgação do Estatuto da Terra, poucas foram as alterações na realidade agrária do país. Muitos trabalhadores reivindicam a possibilidade de voltar para o campo e as medidas adotadas por sucessivos governos, desde então, pouco avançaram neste sentido. Aparecida aponta uma questão fundamental para pensar o trabalho escravo, em geral os trabalhadores egressos, por possuírem baixa ou nenhuma escolaridade, tendem a formar um ciclo vicioso de resgate e regresso a essa condição de trabalho. Foi pensando em quebrar este ciclo que o Projeto Ação Integrada, referido anteriormente, identificamos como público alvo indivíduos, predominantemente do sexo masculino, adultos, tanto de áreas urbanas quanto rurais, que tem em comum baixa ou nenhuma escolaridade, habitando áreas urbanas ou rurais periféricas e economicamente frágeis e desassistidas socialmente pelos poderes públicos. Entretanto, em uma sociedade marcada pelo consumo “Talvez não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade”. (BOURDIEU apud BAUMAN, Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 91 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

2008, P. 07). A inserção pelo consumo foi negada, uma vez que nem ao menos salário esses trabalhadores recebiam. Reside aí um paradoxo do capitalismo no Brasil, pensando a respeito das novas modalidades financeiras que esse sistema gera, Bauman dialoga com as reflexões feitas por Habermas: Ele apontou que, se a reprodução da sociedade capitalista é obtida mediante encontros transnacionais interminavelmente repetidos entre o capital no papel de comprador e o trabalho no de mercadoria, então o Estado capitalista deve cuidar para que esses encontros ocorram com regularidade e atinjam seus propósitos, ou seja, culminem em transações de compra e venda (BAUMAN, 2008, p. 14).

Ao estar inserida em uma lógica de consumo, considerando que o mundo contemporâneo caracteriza o ser humano como consumidor, a negação do trabalho ou de uma forma de trabalho não remunerada e exploratória, cerceia deste sujeito a condição humana. Minhas percepções sobre estas trajetórias de vida negadas dialogam com os escritos de Larrosa (2013) que, ao pensar o que intitulou de uma “Pedagogia Profana”, entende a transformação que tanto o processo de leitura quanto de escrita promove nas pessoas. Neste sentido, a escrita destas vidas me transforma, na medida em que me permite por meio da leitura das narrativas das experiências desses trabalhadores “prestar atenção: o que ficou na penumbra, semiconsciente, não formulado, privado de consciência e de linguagem, ou ocultado pela própria instituição da consciência e da linguagem” (LARROSA, 2013, p. 47). Ao trabalhador que tem sua condição de consumo negada pela ausência do trabalho, cada vez mais escasso em uma sociedade tributária dos investimentos em modernização, Bauman (2005), incluiu nessa categoria aqueles que não têm lugar nesse mundo, os prescindíveis, ou, nas palavras do próprio autor, o lixo. A característica distintiva mais marcante do público alvo deste projeto está no fato de que eles foram objetos de uma exploração tão exacerbada que os levou de consumidores falhos a não humanos, ferramentas de trabalho. Essas considerações feitas nos levam a afirmar que encaminhá-los para uma possibilidade real de emancipação de sistemas, relações pessoais e institucionais de dominação opressiva não se fará em uma única etapa, mas necessariamente em fases sucessivas. Desde sua libertação pelos Grupos Móveis de Fiscalização do MTE, passando por ações pon-

92 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

tuais dos poderes públicos (da emissão dos documentos pessoais às ações judiciais cabíveis), estando a elevação do nível educacional e a formação profissional, entre essas etapas. No ano de 2013, em parceria com os pesquisadores do NPH, professores Vitale Joanoni Neto, Luciene Aparecida Castravechi e Adriano Knippelberg Moraes, fiz um diagnóstico do trabalho escravo no Brasil, a pedido da empresa Mendes Junior que já havia participado da experiência com o Projeto Ação Integrada e a inserção de trabalhadores egressos da escravidão nos canteiros de obra da Arena Pantanal. A convite desta empresa, tracei o perfil dos egressos da escravidão, os dados que seguem são resultantes deste estudo. Em um total de 2.491 trabalhadores resgatados pelos Grupos de Fiscalização Móvel no ano de 2011, 77,6% dos trabalhadores entrevistados declararam ter nascido em algum estado desta região, vindo o Centro Oeste em segundo lugar com 8,3%. Um grande exportador dessa mão de obra é o estado do Maranhão (41,2%). Os dados da série histórica do MTE apresentam 61,8% dos egressos nascidos no Nordeste, também com a predominância do MA (34,3%), o que indica uma mesma tendência entre os números apresentados, embora nesta última, tem-se um maior detalhamento com a presença de todas as regiões, mesmo que com percentuais bem menores. Quanto à procedência, ou residência, antes do aliciamento para o trabalho, majoritariamente encontra-se na Amazônia Legal com percentual acima de 65%. Maranhão (25,6%), Mato Grosso (20,7%), e Pará (19%) aparecem com destaque. Mapa III a: Perfil dos Egressos da Escravidão Contemporânea

Fonte: Atlas do Trabalho Escravo, p. 22.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 93 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

Mapa III b: Perfil dos Egressos da Escravidão Contemporânea

Fonte: Atlas do Trabalho Escravo, p. 22.

A educação como alternativa às problemáticas sociais é o horizonte de possibilidades apresentadas por um número significativo de autores que trabalham com a temática da exclusão humana. Bauman (2005), ao descrever os processos que levam à produção do “Refugo Humano”, defende que “A educação superior se tornou a condição mínima de esperança até mesmo de uma duvidosa chance de vida digna e segura […]. O mundo, ao que parece, deu outro giro, e um número maior de seus habitantes, incapazes de aguentar a velocidade, caiu do veículo em aceleração...”. Dentre os pesquisadores que entendem a educação como alternativa, está a escritora Le Breton. Ao finalizar “Vidas Roubadas: a escravidão moderna no Brasil contemporâneo”, a autora aponta cinco medidas que, em sua opinião, podem ser tomadas pelo governo brasileiro para erradicar o trabalho escravo no Brasil, aqui destaco a última: [...] investir recursos suficientes, na casa de milhões de reais, na erradicação da escravidão e sua prevenção via a educação do público. Essa despesa só representaria uma fração do que custa ao Brasil cada nova matéria publicada pelo New York Times a respeito do trabalho escravo embutido nas exportações brasileiras (LE BRETON, 2002, p. 73).

Bastante consciente das limitações presentes neste texto, e já à guisa de conclusão, entendo que as narrativas que resultam em minha escrita são diálogos com narrativas, além de outras que se inscrevem 94 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

em meu texto e em minha existência. As privações de trabalhadores afetam-me, juntamente com os discursos de igualdade proferidos ao vento enquanto amplia-se o fosso que separa os grupos humanos. Os projetos modernizantes atingiram o auge. Desde os anos de 1970, a população trabalhadora aguarda pelo crescimento do bolo econômico para que, uma vez rico, o país pudesse socializar a riqueza. As propostas de progresso trouxeram grande avanço econômico e na esteira de tal desenvolvimento vão se constituindo trajetórias de vidas perdidas, roubadas, subtraídas. Eis uma escrita atravessada por outras. Deparo-me com uma dezena de textos que se inscrevem em mim, nas trajetórias que vivi, tanto por meio de experiências pessoais quanto pelo engajamento nos grupos de pesquisa. As vozes que vibram na linguagem, ora apresentada, dialogam neste texto com autores que vêm dedicando suas vidas a pensar esses processos de degradação. Propor mecanismos de alteração de uma tragédia humana anunciada desde os primórdios da ocupação do solo brasileiro é necessário e urgente. No passado, grupos humanos como índios e negros foram segregados de direitos em nome de um ideal de superioridade, sustentado em discursos que se propunham científicos e que distinguiam a humanidade em escalas civilizatórias que colocavam o branco europeu no topo. Tais discursos não se sustentam em um momento em que as teorias que os sustentam estremecem frente aos avanços do conhecimento que possibilitou entender que a humanidade não se divide em raças. As diferenças existentes não servem para nos fazer inferiores ou superiores e sim para nos fazer plurais. Entretanto, ainda perduram discursos que garantem o controle de grupos humanos, dando a entender que as distinções econômicas sejam naturais e, portanto, devem ser aceitas. Entendo que os lugares atribuídos aos “imprescindíveis” e aos “redundantes” são criações humanas, portanto, perenes e passíveis de alteração. Coloco-me entre os estudiosos que veem na educação um caminho interessante, entendendo que a capacidade de ler o mundo altera o ser que o lê, por textos, por viagens, por relações com outros. Neste sentido, a leitura/escrita/releitura, forma o ser ao mesmo tempo em que o transforma. A nós envolvidos com a educação, cabem os questionamentos acerca de como estamos formando. As universidades estão possibilitando a reflexão acerca da condição humana na sociedade do consumo? Os cursos de formação na área agrícola, nos estados da região central do país, estão repensando as práticas de Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 95 olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

trabalho com a terra, de maneira a não a contaminar, a promover a produção que alimente o humano? São questões que devem estar presentes em nossas vidas, para pensarmos alternativas aos projetos de modernização que não pensam o humano e sendo assim não nos dizem respeito.

96 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

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98 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

CAPÍTULO VI

A Ciência, a Tecnologia e o Desenvolvimento: Em busca de um caminho voltado para o homem Alisson Diôni Gomes

Este trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito das formas pelas quais a produção científica e tecnológica se relacionam com o contexto da sociedade capitalista, bem como as suas limitações em meio a esta sociedade e uma perspectiva de superação deste modelo social, com vistas à construção voltada para o desenvolvimento do próprio gênero humano. Um elemento central desta discussão diz respeito ao conceito de desenvolvimento. Conforme se discutiu em Gomes (2013), este é um conceito, em certa medida, difuso no que tange ao seu significado, na medida em que é utilizado, por diversos grupos, como uma forma de legitimação diante do conjunto do contexto social em que estes grupos se encontram imersos. Entretanto, ainda que se observe este caráter de conflito na apropriação do significado do termo, é possível tecer considerações que vão para além deste conflito. Neste sentido, é possível observar que, tanto no que diz respeito à história social humana quanto na própria história natural, ocorre um processo de desenvolvimento objetivo, ou seja, algo que vai para além daquilo que a subjetividade humana, por si só, é capaz de influenciar. Em Gomes (2013), o conceito de desenvolvimento é discutido nos seguintes termos: O conceito de desenvolvimento diz respeito a um processo em que um determinado elemento da realidade, em suas relações com o seu ambiente circundante, vai, gradativamente, angariando novas estruturas, habilidades e aptidões, que vão, ao longo do tempo, permitindo-lhe um melhor relacionamento com este ambiente (GOMES, 2013, p. 16). A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 99 Em busca de um caminho voltado para o homem

Tais circunstâncias podem ser observadas na medida em que, ao longo de seu processo histórico de desenvolvimento, a natureza não apenas foi capaz de produzir aglomerados autônomos e auto-reproduzíveis de elementos químicos — a vida — como também produziu uma forma de vida que, além de adquirir a consciência de si e de sua relação com o ambiente circundante, submeteu a natureza aos seus próprios desígnios. Este é o homem. O desenvolvimento histórico do homem fez com que, no início de sua existência, ele tivesse que, não apenas garantir sua alimentação, mas garantir também que ele próprio não se convertesse na alimentação de um predador de maior porte. Nos dias atuais, ele apresenta tal domínio da natureza que não só o torna capaz de viver em residências providas com energia elétrica e toda uma série de eletrodomésticos, como também fez com que os antes temidos predadores se tornassem uma mera diversão de fim de semana em um zoológico. Ainda que eventualmente a natureza termine dando respostas de determinadas formas que os indivíduos têm de lidar com o seu funcionamento, o homem, socialmente, é capaz não só de elaborar análises que buscam compreender a razão destas respostas, como também de buscar formas alternativas de levar adiante a produção de sua vida material, interferindo de forma menos nociva nos processos naturais. O conceito de desenvolvimento é aqui tratado à luz das discussões encampadas pelo materialismo histórico-dialético (MARX, 1985; 2007; MARX & ENGELS, 2006; 2007). Neste sentido, tomam-se como ponto fundamental as categorias modo de produção, forças produtivas e relações de produção. O momento atual do desenvolvimento histórico da humanidade é marcado pela predominância global do modo de produção capitalista e, na esteira deste, os Estados Unidos da América possuem o status de potência capitalista hegemônica, ainda que ocorra uma gradativa projeção de Rússia e China neste cenário, o que num momento futuro pode vir a colocar em xeque a hegemonia estadunidense. O modo de produção capitalista, do ponto de vista de sua prática histórica concreta, é marcado pela tendência fundamental de seu pautar na potencialização cada vez maior de sua própria acumulação, mediada pelo processo de produção de mercadorias e pela extração da mais-valia do trabalho. Na frente ideológica, o capital — ou seja, a classe formada pelos seus detentores — busca se apresentar como o grande indutor do desenvolvimento humano, bem como o grande responsável pelas conquistas científicas e tecnológicas alcançadas pela Humanida100 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

de. Entretanto, uma breve análise histórica permite verificar que tal perspectiva constitui uma meia verdade. Neste ponto entram os conceitos de forças produtivas e relações de produção. Um aspecto da perspectiva que o capital apresenta no campo ideológico é em parte verdadeiro: este modo de produção se marca por um alto grau de desenvolvimento de novas tecnologias produtivas, na medida em que, em vistas de seu impulso de acumulação, ele precisa continuamente investir em novas tecnologias que permitam a extração cada vez maior de mais-valia do trabalho, e um efeito colateral deste investimento é o fato de que estas mesmas tecnologias podem ser aplicadas no aprimoramento da qualidade de vida humana. Entretanto, este mesmo impulso faz com que a pesquisa científica e tecnológica tenda a estar voltada para aqueles aspectos que representem maior lucratividade para o próprio capital, o que faz com que esta tenda a não priorizar outros aspectos da realidade que podem ter efeitos — tanto úteis quanto nocivos — reais ou potenciais para o homem. Um grande expoente desta condição é o ramo farmacêutico da indústria. A pesquisa farmacológica é um campo da atividade humana capaz de trazer à tona uma série de benefícios para o homem, na medida em que pode levar à descoberta de medicamentos que permitem não só o prolongamento da vida, mas também a construção de uma vida saudável. Entretanto, o foco da indústria farmacêutica não se pauta neste aspecto da questão, mas sim nas condições que vão lhe permitir a maior lucratividade possível. A este respeito, Kanashiro (2005) discute que: A despeito da necessidade de investimento em pesquisa e desenvolvimento, sinalizada desde meados da década de [19]70 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e embora existam altos índices de ocorrência e mortalidade, doenças tropicais como malária, leishmaniose ou doença de Chagas não têm sido um alvo privilegiado pela indústria farmacêutica. ONGs, médicos e pesquisadores afirmam que o desinteresse ocorre porque doenças tropicais, recorrentes em países subdesenvolvidos, não representam um mercado lucrativo para as indústrias. A organização Médicos Sem Fronteira (MSF) revela que somente 1% dos 1393 novos medicamentos, registrados entre 1975 e 1999, destinava-se a doenças tropicais e tuberculose. (KANASHIRO, 2005, grifo nosso).

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 101 Em busca de um caminho voltado para o homem



Mais adiante, observa que: Sérgio Queiroz [economista da UNICAMP] afirma que o interesse da indústria farmacêutica pela saúde é um mito, algo que faz parte do marketing, e explica as motivações: “Não estou dizendo que por conta disso a empresa não está nem um pouco interessada na saúde. Existem várias situações em que buscar a saúde é ao mesmo tempo buscar o lucro, há uma coincidência de objetivos sanitários e econômicos. Isso ocorre frequentemente, mas a empresa não está orientada por motivos de saúde, e sim pela lucratividade. Se resolver o problema de saúde, mas não resolver o problema do lucro, ela não fará”. (KANASHIRO, 2005, grifo nosso).

A autora afirma ainda que, ao mesmo tempo em que se observa estes fatos, ocorre também, a partir de um determinado momento, o surgimento de uma outra tendência que impulsiona esta mesma indústria à produção de pesquisas que visem à busca de tratamentos para doenças tropicais, mas esta mesma tendência também é subordinada à perspectiva do lucro, na medida em que, com a difusão das Tecnologias da Informação e da Comunicação, as informações passam a fluir de um modo mais ágil, e informações negativas podem implicar em diminuição da lucratividade de determinada empresa. Outro ponto importante desta discussão é o fato de que a DiretoraGeral da Organização Mundial da Saúde, Margareth Chan: [...] criticou a indústria farmacêutica por não ter desenvolvido uma vacina contra o ebola, mesmo após 40 anos do surgimento da doença. Segundo ela, “como o vírus está confinado a países pobres da África, a indústria, que é motivada pelo lucro, não investe em mercados que não podem pagar (AGÊNCIA BRASIL, 2014).

A ciência e a tecnologia, de modo geral, possuem um grande potencial no sentido de aprimorar cada vez mais as relações que o homem possui tanto com a natureza quanto consigo mesmo. Entretanto, o fato de estar subordinada aos interesses do capital faz com que este potencial seja aproveitado em um grau que fica muito aquém daquilo que poderia ser feito. Este termina sendo um elemento que configura uma dimensão da contradição que se constrói historicamente durante a vigência do modo de produção capitalista, tal como propõe o materialismo histórico-dialético.

102 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Entende-se aqui que esta contradição será resolvida na medida em que ocorrer a superação do modo de produção capitalista e a consequente construção do socialismo enquanto fundamento do processo de produção da vida material humana. A grande diferença entre estes modos de produção diz respeito ao fato de que, enquanto o capitalismo se funda no aprofundamento gradativo do processo da acumulação capitalista, o socialismo se presta essencialmente à realização do gênero humano. Desta forma, temos que, em vista dos fins distintos que cada um busca, os meios para a sua consecução também se distinguirão, sendo que no capitalismo neste meio se traduz na produção de valor de troca (mercadorias) e na extração-apropriação da mais-valia do trabalho pelo capital, enquanto que no socialismo o meio de consecução se configura na produção de valor de uso (materializado nos bens e serviços destinados ao conjunto da população) e na reapropriação da mais-valia do trabalho pelo próprio trabalho, na medida em que esta mais-valia, ou seja, aquela porção da jornada laboral que não se vincula diretamente ao salário será aplicada na produção dos valores de uso que o próprio trabalho desfrutará fora do ambiente de serviço. Considerando estes aspectos, pode-se verificar que a discussão referente à produção científica e tecnológica e ao desenvolvimento é uma discussão eminentemente política. A construção de uma sociedade socialista, entretanto, é um processo que não se dá por meio de saltos súbitos. Mesmo as experiências históricas de construção deste modelo de sociedade — ao menos as mais relevantes — levadas a cabo durante o século XX, tiveram de transigir em algum grau com a propriedade privada e com formas de produção de caráter capitalista, no que se observa, por exemplo, a aplicação do trabalho social voltada para a produção de mercadorias. Neste sentido, pode-se observar o fato de que a União Soviética, em pleno processo de construção do socialismo, em alguns momentos teve de se utilizar da produção de trigo com vistas à exportação para assim angariar recursos que lhe permitissem a construção e consolidação de um setor industrial em seu território (HUBERMAN, 2008). Ainda assim, estes traços de produção capitalistas não se reproduziram sem que estivessem submetidos à diretriz social geral, que era a própria viabilização do projeto de sociedade cuja edificação era levada adiante. Estas mesmas experiências, ainda que marcadas pelas condições objetivas à sua volta, permitem observar a capacidade que o socialismo possui no que diz respeito à melhoria das condições de vida das massas. A A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 103 Em busca de um caminho voltado para o homem

União Soviética, construída a partir do esforço empreendido pela Revolução Russa, em 1917, foi capaz de, no período que compreende este ano e o início da década de 1950, duas grandes façanhas: (I) a de ter saído da condição de um país semifeudal — condição essa que lhe fora legada pelo absolutismo czarista — à condição de ter sido o país que contribui de forma mais significativa para a vitória sobre a máquina de guerra nazista na Segunda Guerra Mundial, tendo, neste contexto, refreado o avanço das tropas alemãs em seu território e, posterior a isso, as fez retroceder até Berlim, quando ocorre a rendição e o fim das batalhas no front ocidental (HUBERMAN, 2008; LOSURDO, 2010b; MARTENS, 2003). (II) após o fim da guerra, da qual foi o país que teve mais baixas — tanto civis quanto militares — e para a qual uma das consequências foram grandes estragos em sua infraestrutura interna, a URSS se recuperou em um curtíssimo período de tempo, e já no início da década de 1950, mostrava que já se encontrava recuperada do conflito (MARTENS, 2003; MARCOU, 2013).

Vale destacar que tal feito foi alcançado sem apoio externo. Neste período, os Estados Unidos chegaram a oferecer apoio por meio do Plano Marshall, mas tal apoio não foi aceito, pois tinha como uma de suas condições a aceitação, por parte da URSS, da inspeção de sua infraestrutura por parte de técnicos vinculados ao Plano (MARCOU, 2013), o que, tendo em vista o contexto posto, poderia significar um problema de segurança nacional. Desta forma, observa-se que, contando apenas com suas próprias forças, a URSS foi capaz não apenas de se levantar dos escombros da guerra, como também sair dela como a segunda potência econômica e militar do planeta, fazendo frente a hegemonia estadunidense. Outro exemplo que pode ser tomado como um demonstrativo da potencialidade do socialismo é Cuba. Este país passa, sobretudo após o fim da URSS, por numerosas dificuldades materiais, fruto do embargo econômico que por mais de cinquenta anos lhe foi imposto pelos EUA, e apenas recentemente foi posto abaixo. Ainda que nestas condições, Cuba mostra uma série de importantíssimas conquistas sociais, e seus sistemas de educação e saúde são reconhecidos como exemplos por instituições de grande prestígio em nível global. No que tange ao campo da educação, o sistema cubano é reconhecido pelo Banco Mundial como 104 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

o melhor da América Latina e do Caribe (LAMRANI, 2014a), e o de saúde é reconhecido como um modelo pela Organização Mundial da Saúde (LAMRANI, 2014b). Observar estes casos permite verificar que, ao mesmo tempo em que os países socialistas mostram conquistas como as elencadas acima, observa-se que o capitalismo, em seu momento histórico atual, é marcado pela escalada da concentração de renda conjugada com os efeitos da crise econômica de 2008, seguida pelas assim chamadas medidas de austeridade, um eufemismo utilizado pelos representantes políticos do capital para o corte sistemático de direitos dos trabalhadores na Europa. Outro efeito que se vislumbra é o surgimento de movimentos ultraconservadores neste continente e mesmo no Brasil, o que é um perigoso prenúncio, uma vez que este tipo de movimento foi a base para a escalada do nazi-fascismo na década de 1930, em meio também a um contexto de crise profunda do capitalismo. Estes elementos permitem vislumbrar a dimensão essencialmente política que baliza a discussão sobre desenvolvimento, visto que o século XX colocou frente a frente dois modelos socioeconômicos fundamentalmente antagônicos entre si e que buscavam expandir sua hegemonia para o âmbito global. Ao fim deste século, o modelo capitalista mostrou que, pelo menos neste momento histórico, se encontra mais fortalecido, e desfruta atualmente de uma relativa hegemonia em nível global.17 Mas, concomitantemente, vai mostrando as contradições que lhe permeiam, e busca compensá-la por meio do recurso da guerra, tal como o fez no Afeganistão, logo após os ataques de 11 de setembro de 2001, e no Iraque, em 2003. Esta dimensão política se desvela na medida em que, quando se fala em construção do socialismo, deve-se necessariamente tratar da perspectiva de superação do capitalismo enquanto modo de produção fundante do modelo de sociedade que se deseja construir. Construir o socialismo implica em, de algum modo e em alguma intensidade, negar o caminho capitalista ou ao menos aquele desenhado pelas grandes potências capitalistas. Ao passo que se trabalha 17 Há discussões em meio ao Movimento Comunista Internacional a respeito dos fatores que levaram à derrocada da União Soviética. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2015. Losurdo (2004, 2010a) também discute o tema, atribuindo um forte fator relacionado à própria estratégia adotada pelos EUA com vistas a eliminar seus reais ou potenciais adversários geopolíticos, ou mesmo aliados que se mostrassem reticentes aos seus interesses, estratégias e/ou ações.

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 105 Em busca de um caminho voltado para o homem

tendo por base esta visão de mundo, as forças que buscam manter o caminho capitalista ou o caminho das grandes potências capitalistas naturalmente reagirão, buscando inviabilizar, de todas as formas possíveis, a construção da via socialista de desenvolvimento. Um grande expoente desta forma de atuação das grandes potências capitalistas são os serviços secretos, dentre os quais se destaca a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), agência essa sistematicamente engajada em ações de sabotagem e terrorismo contra países ou líderes políticos de algum modo se mostrem hostis ou ao menos reticentes em relação aos interesses estadunidenses (LOSURDO, 2010a). Este tipo de serviço, bem como outros, foi largamente utilizado contra os países socialistas que se formaram ao longo do século XX. Observem-se as palavras de Losurdo (2004)18 a respeito: […] em 1947, no momento em que formulou a política de “contenção” [do avanço do socialismo a nível global], seu teórico, George Kennan, enfatizou a necessidade de influenciar “os acontecimentos no interior da Rússia e do movimento comunista internacional”, e não apenas através da “atividade de informação” dos serviços secretos, a qual, porém, como acentua o autorizado conselheiro da embaixada norte-americana em Moscou e do Governo dos EUA, não deveria ser negligenciada. Em termos mais gerais e ambiciosos, trata-se de “aumentar enormemente as tensões (strains) sob a qual a política soviética deve operar”, de modo a “estimular tendências que devem ao final desembocar ou na ruptura ou no enfraquecimento do poder soviético”. Aquela que comumente, com singular eufemismo, é chamada de “implosão”, é aqui definida com precisão: uma “ruptura” (break-up), que, por ser tão pouco espontânea, pode ser prevista, programada e ativamente promovida com mais de quarenta anos de antecipação. No plano internacional, as relações de força econômicas, políticas e militares são tais que — prossegue ainda Kennan — permitirão ao Ocidente exercer algo semelhante a um “poder de vida e morte sobre o movimento comunista e sobre a União Soviética” (LOSURDO, 2004, p. 26, citando Hofstadter & Hofstadter, 1982, pp. 418-9 grifo nosso). 18 Os textos citados pelo autor que forem apresentados aqui serão referenciados no final deste artigo, como forma de dar ao leitor um meio — por mínimo que seja — para que possa se reportar ao texto original, caso assim deseje. A referência será feita conforme os métodos do autor citante.

106 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade



Em outro trabalho Losurdo, faz as seguintes observações: Tomemos um livro dedicado à reconstrução das atividades dos “primeiros anos da Agência Central da Inteligência (CIA)”. Seu autor, um jornalista do semanário estadunidense Newsweek, refere-se a inumeráveis tentativas de assassinar Fidel Castro19. Ele se detém nisso por longos trechos, concentrando-se sobretudo nos detalhes técnicos ou nos aspectos mais ou menos pitorescos: os “agentes tóxicos” a utilizar, os “charutos preferidos” pela vítima designada, o “lenço tratado com bactérias”, o papel confiado à “máfia”, o dinheiro a pagar ao assassino […]. [Os serviços secretos estadunidenses], entre as décadas de 1950 e 1960, elaboraram planos engenhosos para neutralizar ou eliminar fisicamente Stalin na União Soviética, Arbenz na Guatemala, Lumumba no Congo, Sukarno na Indonésia, e dirigentes políticos e militares de outros países. A cúpula da CIA parte do pressuposto — refere o livro sem nenhum distanciamento crítico — de que todo meio é lícito quando se trata de desembaraçar-se dos “cães raivosos”. (LOSURDO, 2010a, citando THOMAS, 1995, pp. 225-9, 233 passim).

Com base nestes elementos, Losurdo (2004) afasta a tese de que teria havido uma implosão, um colapso ou um desmoronamento da URSS e de boa parte do mundo socialista no início da década de 1990, dando preferência à terminologia “ruptura” (break-up), utilizada pelo próprio serviço secreto dos EUA, para se referir ao fenômeno. 19 Castro figura no Guiness Book como a pessoa que mais sofreu tentativas de assassinato ao longo de sua vida, totalizando 638 delas (UOL NOTÍCIAS, 2011). O Jornal Tribuna Hoje (2014) divulgou uma entrevista concedida por um ex-guarda costas de Castro ao portal RT Notícias (2014) em que são relatadas, de acordo com o jornal, as dez formas mais curiosas que a CIA se utilizou para tentar assassinar o líder cubano, dentre as quais se destaca um charuto explosivo, que “tão potente que poderia explodir sua cabeça pelos ares”. Além desta, “um plano de esboço médio [!] foi elaborado para colocar sal de tálio (um produto químico usado em depilatórios) nos sapatos de Fidel Castro ou um de seus charutos. O produto químico seria absorvido pela pele ou inalado pelo líder, fazendo com que sua barba caísse”. Tal plano, ainda que não tenha sido realizado, é cogitado porque “de acordo com o relatório do Comitê de Inteligência do Senado dos EUA, em 1975, havia o pensamento de que o poder de Castro estava em sua barba. A CIA estimava que a perda da barba mostrasse aos cubanos que Castro era fraco e falível”. O mais curioso a se observar nestas circunstâncias, ainda que seja necessário observar que se trata de situações de alta gravidade, é o fato de a superpotência se utilizar de planos dignos do personagem Willy Coyote, dos desenhos animados, para se desfazer de um de seus inimigos.

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 107 Em busca de um caminho voltado para o homem

Observa-se, portanto, que tratar da discussão referente à produção científica e tecnológica conjugada com o desenvolvimento não implica discutir estes conceitos por si próprios, no sentido de apenas discutir, por exemplo, as novas tecnologias em si e eventuais aplicações delas. Implica, sobretudo, reconhecer que se trata de uma discussão eminentemente política e que implica na escolha de um determinado caminho de desenvolvimento que se vincula, ele próprio, a um projeto específico de sociedade, cuja construção depende da correlação formada entre as diversas forças sociais que se encontram dispostas nesta arena.

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REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. OMS critica indústria por falta de investimentos em vacina contra ebola. Disponível em: Acesso em: 22 jan. 2015. GOMES, Alisson Diôni. Desenvolver p’ra quê(m)? Uma reflexão acerca do conceito de desenvolvimento e seu lugar em meio à sociedade capitalista. Monografia. 78 f. (Graduação em Ciências Sociais). Porto Velho Fundação Universidade Federal de Rondônia. Núcleo de Ciências Humanas, 2013. HOFSTADTER, Richard; HOFSTADTER, Beatrice K. Great Issues in American History (1958). New York: Vintage Books, 1982. v. 3. HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Tradução: Waltensir Dutra. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008. KANASHIRO, Marta. Sem lucro não há interesse. Revista ComCiência. 333. ed.. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2015. LAMRANI, Salim. Banco Mundial diz que Cuba tem o melhor sistema educativo da América Latina e do Caribe. Opera Mundi. Opinião. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2015. ______. Cuba: um modelo de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Opera Mundi. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2015. LOSURDO, Domenico. Fuga da História? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004. 1. reimpr. fev. 2009. ______. A linguagem do império: léxico da ideologia dominante. Tradução de Jaime A. Clase. São Paulo: Boitempo, 2010. ______. Stalin: história crítica de uma lenda negra. 2. ed. Tradução de Jaime A. Clase. Rio de Janeiro: Revan, 2010. março de 2011. MARCOU, Lilly. A vida privada de Stálin. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 109 Em busca de um caminho voltado para o homem

MARTENS, Ludo. Stalin: um novo olhar. Ludo Martens. Tradução de Pedro Castro e Pedro Castilho. Rio de Janeiro: Revan, 2003. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Martin Claret, 2007. ______. O Capital: crítica da economia política Apresentação de Jacob Goerender. Coordenação e revisão de Paul Singer. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Livro Primeiro: O Processo de Produção do Capital , Tomo 1, v. 1. Prefácios, Seções I-II, cap. I-IV, pp. 3-145.) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Claret, 2006. ______. Manifesto do Partido Comunista. Tradução: Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2007. RT. Las diez formas más curiosas que la CIA empleó para tratar de acabar con Fidel Castro. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2015. THOMAS, Evan. The Very Best Men: four who dared: the early years of the CIA. Nova York: Simon and Schuster, 1995. TRIBUNA HOJE. As dez formas mais curiosas que a CIA usou para tentar matar Fidel Castro. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2015. UOL NOTÍCIAS. Fidel Castro é a pessoa que mais sofreu tentativas de assassinato. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2015.

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CAPÍTULO VII

Ciência, Gênero e Sexualidade: A influência epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico Emerson R. de A. Pessoa Franciele Monique Scopetc dos Santos Gustavo Piovezan

O surgimento do sexo e da sexualidade O filósofo francês Michel Foucault (2011), em sua História da sexualidade, mostrou-nos o modo de conduta da sexualidade humana. Os códigos morais no século XVII eram mais tolerantes com o imoral, o obsceno e a decência. Porém, o surgimento da burguesia fez com que a sexualidade passasse a ser assunto da instituição familiar, tendo sua principal função a reprodução biológica e seu espaço legítimo o quarto do casal. Com isso, iniciou-se um processo de transformação, no qual foram instaurados modelos e normas para a sexualidade. Aqueles que transgridem e se mostram, serão designados sob o espectro da anormalidade. Não apenas isto, pois o espectro da anormalidade acaba, também, por atrair, de algum modo, a repressão. Neste contexto histórico, a repressão funcionava como uma máquina cujo principal mecanismo era o silêncio. Não falar da anormalidade, das sexualidades ilegítimas seria um dos modos de se gerar o preconceito e reproduzir o normal, instituindo a heterossexualidade como norma de conduta. É interessante destacar que o discurso de repressão sexual coincide com o desenvolvimento do capitalismo e dos valores burgueses. A repressão está ligada à incompatibilidade da sexualidade com o trabalho. Em uma “[...] época que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se?” (FOUCAULT, 2011, p. 12). O século XVII foi marcado por um aprisionamento do sexual, inclusive no aspecto linguístico, com o discurso médico, por exemplo, que visavam o controle dos discursos e instaurando o silêncio. Contudo, a Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 111 dos estudos de gênero no discurso biológico

partir do século XVIII, o cerceamento das regras de decência provocou uma valorização e uma intensificação do discurso “indecente”. Assim, a Contrarreforma se dedicou a acelerar o ritmo anual de confissões, devido à importância das penitências a todas as insinuações da carne (FOUCAULT, op. cit.). Neste sentido, Foucault alude que: A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso (FOUCAULT, 1986, p. 230).

O corpo tornou-se a origem de todos os pecados. Se, por um lado, não se falou sobre sexo, por outro, o assunto foi encurralado por um discurso que não permitia obscuridade, nem sossego, procurando uma normatização da sexualidade. A moral cristã exigia a confissão de atos, transformando todos os desejos humanos em discurso. Era necessária decência, por isso censuras no vocabulário foram incorporadas no seio social, tendo como objetivo torná-lo moralmente aceitável e tecnicamente útil. O sexo não foi censurado e, tampouco, silenciado. Entretanto, foi regrado, medido, analisado, educado e categorizado. Tudo isto aos moldes do capitalismo que se erigia e, à medida que necessita, incorpora a anormalidade, reorganiza-se a si e aos sujeitos. Neste sentido uma profusão discursiva surgiu à medida que o sexo se tornou um objeto de investigação e controle social. Escreveu Foucault: “[...] Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia” (FOUCAULT, op. cit., p. 29). Há que se ressaltar que o crescimento discursivo não estava conectado apenas à espiritualidade cristã, mas, também, à economia dos prazeres individuais e ao interesse público da medicina social. O essencial deste espectro discursivo não era a moralidade, mas, sim sua inserção em sistemas de utilidade mercantil, estabelecendo um padrão. O sexo passou a ser administrado, surgiu algo como que a “polícia do sexo: isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, op. cit., p. 31). No século XVIII, uma das técnicas de poder de manutenção corporal estabeleceu-se devido ao amplo crescimento da população, haja 112 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

vista que este fato acarretou em problemas econômicos e políticos. No centro desses problemas políticos, inseriram-se aspectos relacionados à sexualidade, tais como a natalidade, esperança de vida, taxa de fecundidade, saúde, doenças e outros. Desta forma, a conduta sexual do povo foi considerada objeto de análise e de intervenção. As condutas sexuais analisadas, suas determinações e seus efeitos, o Estado sentiu necessidade de conhecer a sexualidade de seus cidadãos, “[...] entre o Estado e o indivíduo, o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram” (FOUCAULT, op. cit., p. 33). Outro exemplo nomeado por Foucault (2011) deu-se nos discursos relacionados à sexualidade das crianças. Segundo o filósofo, não se fala menos do sexo infantil, fala-se de outra forma, a partir de outros pontos de vista e para obter outros efeitos. Neste sentido, ao analisar a educação escolar, nota-se que “basta atentar para os dispositivos arquitetônicos, para os regulamentos de disciplina e para toda a organização interior: lá se trata continuamente de sexo” (FOUCAULT, op. cit., p. 34). Os mecanismos adotados dentro da escola para vigiar as crianças mostram que tudo fala de alguma forma sobre a sexualidade das crianças. Com relação ao sexo colegial, o filósofo afirmou que, no decorrer do século XVIII, isto passou a ser um problema público, inclusive uma das tentativas de solução foi a criação de uma escola experimental que tinha como objetivo educacional controlar e impedir a prática sexual dos jovens. O século XVIII imprimiu modos de condicionamento corporal. As escolas, como as de educação infantil nos mostraram como foi se sedimentando a necessidade de controle do sexo. Os discursos médicos deste período, tal como aponta Foucault (2011), intensificaram-se. As bases da conduta sexual foram estabelecidas e firmadas, a saber, nomeia-se uma pedagogia do sexo. Ciências como a pedagogia, a medicina e a psiquiatria formularam seus saberes, criando normas para a produção de corpos dóceis. A docilidade do corpo é essencial também à manutenção do capitalismo. Controla-se com mais facilidade um corpo dócil do que um corpo rebelde. Disse Foucault (1987, p. 126): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado [...]”. Em um sentido semelhante ao proposto por Foucault, as investigações de Laqueur (2001) caminham para uma argumentação em que o discurso é tópico central da análise. Desde a antiguidade clássica, até o final do século XVII, existia a concepção de um sexo único, o que a literatura chamou de isomorfismo. Para os estudiosos deste período, as muCiência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 113 dos estudos de gênero no discurso biológico

lheres tinham os seus órgãos genitais internos devido à falta de um calor vital. Assim a vagina corresponderia ao pênis, os testículos aos ovários, inclusive tinha a mesma nomenclatura do corpo-referência, deste modo, as mulheres eram homens invertidos e os homens mais perfeitos que as mulheres, pois tinham excesso de calor. Laqueur (2001) mostrou, ainda, que foi somente em 1759 que a anatomia feminina começou a ser estudada em contraste com o esqueleto masculino. Antes desse período aplicava-se um único tipo de referência ao corpo humano: a masculina. Portanto, “a sexualidade como atributo humano singular e muito importante com um objeto específico — o sexo oposto — é o produto do final do século XVIII” (LAQUEUR, 2001, p. 24). Assim, as diferenças anatômicas e fisiológicas foram criadas quando se tornaram importantes à economia do Estado. As lutas por poder e posição nas esferas públicas decorrentes da Revolução Francesa, por exemplo. A criação de dois sexos, com órgãos distintos, o dimorfismo, instaurou a diferença. Homens e mulheres não eram mais um mesmo corpo com maior ou menor calor, mas de naturezas distintas (LAQUEUR, 2011). Foi essa construção discursiva/científica que colaborou na criação dos estereótipos de gêneros e diferenças biológicas e sociais. Consequentemente, os discursos sobre sexo foram vistos a partir do século XIX, primeiramente, com a medicina ocupando-se das “doenças de nervos”, em seguida, com a psiquiatria, preocupando-se com a “extravagância” e, por fim, com o onanismo e as “fraudes contra a procriação” (FOUCAULT, 1986). No século XX, a diferença tornou-se tópico do debate social. O movimento de mulheres intensificou-se, emergindo, então, o feminismo. O feminismo nasceu, nomeado como tal, desde as lutas abolicionista e sufragista do final do século XIX. Categorizou-se em diferentes momentos históricos, diferentes pautas e reinvindicações, os quais, de modo geral, dividem-se em três ondas. A defesa da igualdade foi o pleito para considerarmos o feminismo como um campo cultural, filosófico e político. A primeira onda feminista, desde o final do século XIX até o final do século XX, caracteriza o feminismo como igualitário, cujas principais brigas davam-se, até meados da década de 50, com o pleito ao voto, os direitos trabalhistas justos e a igualdade perante o Estado. A conjuntura pós-guerra mundial, assim como a guerra do Vietnã, provocou inúmeras manifestações sociais e culturais, principalmente na América do Norte e Europa, de onde podemos enunciar a Revolução sexual vivida na década de 70, período compreendido como segunda onda do feminismo, a qual em linhas mais gerais destinava-se ainda sobre a esteira da igualdade di114 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

reitos junto ao Estado e a sociedade, liberdade sexual e reprodutiva assumiam premissas importantes na segunda onda (FRASER, 2000). Nos anos oitentas, os estudos da linguagem, na filosofia francesa da diferença proporcionou a eclosão de inúmeras características já enunciadas na segunda onda feminista da década de setenta, e consolidadas em suas bases epistemológicas e práticas a partir da década de oitenta com o feminismo da diferença, o qual reverberou pautas únicas feministas atreladas às opressões comuns, porém acentuou perspectivas de não mais haver um feminismo e sim feminismos. Os feminismos acentuam as dinâmicas da diferença. A Igualdade, historicamente localizável, de cunho Iluminista outrora conquistada pela cidadania, racionalidade não radicalizadas nas diferenças, sendo assim, Joan Scott nos diz: “[...] o feminismo era um protesto contra a exclusão política da mulher: seu objetivo era eliminar as ‘diferenças sexuais’ na política, mas a reivindicação tinha de ser feita em nome das ‘mulheres’ (um produto do próprio discurso da ‘diferença sexual) [...]” (SCOTT, 2002, p. 27). Acerca dos feminismos nos diz: Quando as mulheres se tornaram cidadãs, a impressão geral era a de que o indivíduo abstrato se pluralizara; na verdade ele ficou, na melhor das hipóteses, neutralizado, e é provável que seja mais correto dizer que ele ficou masculino. As mulheres foram absorvidas pela categoria “masculino” e declaradas uma versão do homem para que pudessem exercer o direito de votar. [...] Quando as mulheres se tornaram cidadãs, elas puderam ser representadas como indivíduos (abstratos), mas de que modo poderiam ser representadas como mulheres? (SCOTT, 2005, p. 282).

O isomorfismo biológico do século XVII, de maneira análoga, operava no social ao tentar representar as mulheres. Sendo assim, as ondas do feminismo apresentam a manutenção de algumas demandas e a transformação de muitas. Cabe então ressaltarmos o sentido dinâmico que os feminismos apresentam nos dias atuais. Sendo assim, hoje os feminismos possuem pautas específicas deste ou daquele grupo de mulheres, indígenas, negras, lésbicas, transexuais, porém une-se ainda nas dimensões maiores da opressão social. Os estudos da terceira onda, cujos mecanismos teóricos tratam o ser humano como um complexo de natureza e cultura, onde o corpo é o meio do qual o gênero se apresenta, foram os estudos que mais influenciaram o pensamento biológico, nas ciências da natureza. De modo geral, pensar Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 115 dos estudos de gênero no discurso biológico

o gênero como o corpo vivido permite-nos conceber diversos modos de ser homem e mulher em nossas sociedades. Até mesmo porque não há um único tipo de homem e tampouco de mulher. Assim, este aspecto peculiar das teorizações feministas serviu para repensar algumas regras do jogo, na ciência. Estas regras alteraram-se, proporcionando uma nova visão da realidade, talvez, mais próxima daquilo que ela é de fato.

O paradigma, as regras da ciência normal e o caso da Biologia Em linhas gerais, a discussão em teoria da ciência remete-nos à filosofia contemporânea e às diversas correntes de pensamento epistemológico. Thomas Samuel Kuhn, expoente do relativismo científico, é um dos nomes mais conhecidos no debate metodológico e teórico em ciência. Sua noção de paradigma, um corpo argumentativo por meio do qual toda a atividade desenvolve, é referida, nas universidades, para diversas áreas do conhecimento. Muitas vezes, por meio das discussões nas disciplinas de Metodologia Científica, Metodologia da Pesquisa ou Epistemologia é que as ideias kuhnianas são apresentadas aos acadêmicos como um modo de se pensar a atividade científica nas universidades e institutos de pesquisa e, sobretudo, em sua própria área de formação. Ao desenvolver sua teoria da ciência, Kuhn recorre inúmeras vezes a ilustrações para seus argumentos. Estas ilustrações ou exemplos repousam no campo da física quântica, da mecânica dos corpos celestes, das substâncias químicas e suas interações, do movimento dos planetas, isto é, objetos de estudo que são distantes de muitos de nós, educadoras e educadores. Aqui cabe uma observação, pois dizemos nós, na medida em que consideramos uma escola, um grupo de alunos, uma proposta didática, uma proposta pedagógica, um grupo social, minoria ou outros grupos potenciais de se estabelecer uma relação didático-pedagógica. Com isso queremos dizer que os fenômenos naturais, bem como suas descrições teóricas, em nada se assemelham aos objetos de investigação das ciências humanas, das artes, enfim, das diferentes esferas do saber que não pertencem ao ramo das ciências naturais. Do ponto de vista histórico, a humanidade, por meio de suas relações com a realidade, produz análises teóricas desde a Grécia Antiga. À medida que o tempo cronológico avançou, as estruturas sociais foram se transformando e, da mesma forma, o conhecimento. Neste caminho, todas as ciências, antes de se constituírem como tal, foram filosofia e me116 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

tafísica. Os discursos de Aristóteles, na Grécia antiga, são, por exemplo, ideias sobre o movimento. Entretanto, nos moldes epistemológicos estabelecidos por Kuhn, somente com o surgimento das leis newtonianas sobre o movimento é que se configurou o conhecimento científico da forma como o concebemos hoje, nesta segunda década do século XXI. Foi exatamente no período que percorre o início do século XVI até a primeira metade do século XI que as ciências emanaram, uma a uma, no seio social. Surgiram, a princípio, as ciências da natureza (física, química, biologia) e, posteriormente, na segunda metade do século XIX e início do século XX, surgiram a antropologia, a sociologia e a psicologia. Neste contexto, ao descrever o conceito de paradigma, Thomas Kuhn o fez propondo uma reflexão sobre o modo como um pesquisador isola as regras aceitas pela comunidade científica. Em linhas gerais, um grupo de pesquisadores tem um modo próprio de prosseguir, características comuns que acabam por defini-lo como comunidade. Este modo de prosseguir concebe toda uma estrutura metodológica e técnicas de análises, os quais se fundamentam, também, no paradigma. Na Biologia, por exemplo, a estrutura teórica que guia a pesquisa científica é o darwinismo contemporâneo, também conhecido como neodarwinismo ou teoria sintética da evolução, que conecta o pensamento evolutivo, proposto por Darwin, às leis da genética e epigenética e, recentemente, em fins do século XX e início do século XXI, à ecologia. A teoria sintética da evolução permite-nos investigar questões comportamentais conectadas à estrutura genômica ou à estrutura física. A descoberta dos chimpanzés bonobos, Pan paniscus, foi um caso deste. Ernest Schwarz, na Bélgica, em 1829, após a morte de um chimpanzé de comportamento demasiado afável e amoroso — comportamento este fora do comum para os chimpanzés Pan troglodytes — procedeu à análise anatômica daquele chimpanzé, que se acreditava ser juvenil, tendo em vistas a sua pequena estrutura craniana (nos Pan troglodytes os jovens têm o crânio menor que os adultos, estes crânios juvenis assemelhamse ao crânio do adulto Pan paniscus). As diferenças procederam além do crânio e possibilitaram a descoberta de uma nova espécie, pois as diferenças tanto no âmbito anatômico quanto comportamentais eram demasiadas. Tais diferenças depois foram confirmadas pela análise genômica. As técnicas de análise, sejam elas da anatomia ou da genética, permitiram identificar um padrão desconhecido e trazer luz à realidade misteriosa daquele chimpanzé afável e amoroso que vivia no zoológico e morreu de ataque cardíaco durante a tempestade. Permitiu ainda conhecer um Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 117 dos estudos de gênero no discurso biológico

pouco mais da história da vida na terra e sua manifestação nas diferentes formas de seres. As regras que permitem descobertas como estas são partilhadas senão por todos, ao menos pela maioria dos pesquisadores. Kuhn alerta-nos que uma comunidade científica exerce uma concordância na identificação paradigmática, isto é, em uma determinada imagem de realidade, uma visão de mundo. Esta imagem produz um discurso de verdade sobre o real, porém, gostaríamos de ressaltar, esta concordância não é a mesma no que diz respeito à interpretação e à racionalização do paradigma. Kuhn afirma: A falta de uma interpretação padronizada ou de uma redução a regras que goze de unanimidade não impede que um paradigma oriente a pesquisa. A ciência normal pode ser parcialmente determinada através da inspeção direta dos paradigmas. Esse processo é frequentemente auxiliado pela formulação de regras e suposições, mas não depende dela. Na verdade, a existência de um paradigma nem mesmo precisa implicar a existência de qualquer conjunto completo de regras (KUHN, 2011, p. 69. Grifo nosso).

Segundo Kuhn, as regras de um paradigma não implicam em sua existência ou sucesso ante à comunidade científica. Dito em outras palavras, não é porque uma regra pode mudar no ato de fazer ciência que a ciência deixará de ser ciência — há que se considerar que o paradigma traz consigo métodos e técnicas próprios, assim, uma regra para a obtenção de resultados pode ser substituída por outra sem causar danos na estrutura paradigmática. Ainda a pensar a Biologia neste contexto, alguns exemplos podem ser explorados para tornar claro o modo com as regras do jogo podem mudar regras da atividade da ciência normal, sem, no entanto, descaracterizar o paradigma. A etologia e as pesquisas em ecologia comportamental auxiliam-nos neste caminho. Estas disciplinas científicas tem um problema quanto à concordância das regras do jogo. O modo de descrição comportamental enfrenta um problema que surgiu graças ao feminismo e às ciências humanas. Em linhas gerais, a Biologia pode ser considerada a ciência natural em que os estudos feministas e de gênero tiveram mais impacto. Os motivos pelo seu sucesso na biologia ainda são estudados por pesquisadoras e pesquisadores20. Contudo, alguns indícios servem como apontamentos, 20 Aqui podemos referenciar: Nancy Leys Stepan (2005); Richard C. Lewontin (1987). 118 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

a saber: as analogias e metáforas que descrevem certas áreas da biologia são realizadas nos modelos heterossexuais e de gênero. A linguagem figurativa na descrição, principalmente, da reprodução de seres contém indícios generizados que, muitas vezes, implicam em uma interpretação dos resultados apreendidos, distanciando-se daquilo que potencialmente ocorre na natureza (SCHIEBINGER, 2001). Efetuar descrições de corte e casamento para plantas e animais em moldes heterossexuais, por exemplo, pode impor um obstáculo à compreensão do fenômeno biológico da reprodução. Neste sentido, escreve a feminista Londa Schiebinger: As bactérias eram consideradas como sendo estritamente assexuadas, até a década de 1940, quando sua “vida sexual” foi, pela primeira vez, descrita em termos fortemente heterossexuais. As bactérias não possuem células de óvulos nem de esperma; de fato, nas palavras de Lynn Margulis, “a extrema promiscuidade da transferência de genes nas bactérias torna a ideia de sexos fixos sem sentido”. As bactérias foram, não obstante, definidas como machos ou fêmeas com base na presença ou ausência de uma “fertilidade” ou fator F (machos são F+; fêmeas são F-). Para transferir material genético, o “doador” ou “macho” estende seu pili sexual ao “recipiente” ou “fêmea”. Diferentemente do que ocorre em organismos mais elevados, a transferência cromossômica é unidirecional do macho para a fêmea e o macho, não a fêmea, produz crias. Além disso, quando uma célula F+ transfere uma cópia de seu fator F- para uma parceira F-, o recipiente torna-se macho ou F+. Porque a célula doadora replica seu fator F- durante a conjugação, ela também permanece F+. Assim, todas as células em culturas mistas tornam-se rapidamente células doadoras machos (F+): as fêmeas transformam- se em machos, os machos permanecem machos, e todos ficam felizes. Uma célula recombinante F- (fêmea) resulta apenas de uma transferência “rompida” ou falha de DNA (o que Aristóteles teria chamado de um erro da natureza) (SCHIEBINGER,2001, pp. 278-279).

Uma consequência deste tipo de descrição das interações sexuais bacterianas nos moldes heterossexuais solidifica noções tradicionais de sexualidade e gênero. Em outras palavras, solidifica o dualismo macho dominador versus fêmea passiva. Em uma perspectiva retórica

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 119 dos estudos de gênero no discurso biológico

poderíamos inferir, também, que a analogia ao modelo heterossexual da descrição das transferências bacterianas pode nos impedir de enxergar a transexualidade existente no fenômeno da reprodução. Schiebinger (2001) menciona ainda a ênfase dada às explicações homossexuais em comportamento animal (que não a espécie humana): durante a procura pela existência de relações e acasalamentos homossexuais foram descobertas treze espécies de lagartos de cauda de chicote que vivem no sudoeste dos Estados Unidos da América. Embora as fêmeas destas espécies possam se reproduzir sozinhas, ao “estabelecerem uma união” com outras fêmeas, estas produzem mais ovos. Este exemplo, simples, mostra que algumas regras do jogo mudaram ou necessitam de mudança, mas, a ciência ainda permanece como tal. As ciências sociais, com os estudos de gênero, permitiram que algumas estruturas do mundo natural, sobretudo aquelas relacionadas à sexualidade, fossem identificadas de outra forma. Não apenas identificadas, permitiu que percebêssemos a natureza talvez mais próxima daquilo que ela realmente é. O fenômeno é o mesmo: o sexo, entretanto, o modo como se faz sua descrição mudou. Ele acompanha, graças às investigações do movimento feminista, novas percepções de como a realidade se manifesta ante nossos olhos. As bactérias, então, seriam transexuais, se é que assim podemos chamá-las. Não tínhamos consciência disto até que os estudos feministas sobre gênero e sexualidade trouxessem à tona as investigações e informações sobre a transexualidade. Outro exemplo, mas, sobre o ser humano também nos serve aqui. O comportamento sexual humano é objeto de estudo na ciência em suas correntes naturalista e culturalista. De um lado, os naturalistas incumbem-se de investigar sistemas de interação entre seres humanos como atração sexual, estratégias de corte e acasalamento, histórias de vida, diferenças sexuais, influência da voz, da face, altura e outras características sexuais. Essas investigações contribuem para desmistificar padrões de pensamento em nossas sociedades, como ocorreu nos EUA, mais especificamente no Estado do Texas, quando estudos sobre interações entre indivíduos do mesmo sexo foram utilizadas na corte texana para revogar a lei que condenava a sodomia. Contudo, há ressalvas a esse caráter positivo (como referido no Texas), pois, a história da ciência mostra-nos casos que o que ocorre é a patologização do ser humano e, como consequência, um aprisionamento do sujeito — durante o nazismo na Alemanha, por exemplo, o parágrafo 175 condenava os homossexuais masculinos e femininos aos campos de concentração apenas em função de suas identidades sexuais (ELÍDIO, 2010). 120 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

Do ponto de vista naturalista, inúmeros casos de interação entre indivíduos do mesmo sexo têm sido observados em diferentes espécies, incluindo nos mamíferos, aves, répteis, anfíbios, insetos, moluscos e nemátodos. De modo geral, há duas grandes áreas de investigações: a primeira descreve os mecanismos que fundamentam o comportamento sexual entre indivíduos do mesmo sexo, esses estudos mecanicistas foram elaborados com Drosophilas melanogaster, Caenorhabditis elegans e tentilhões-zebra, e especularam sobre os fundamentos genéticos, neurológicos, hormonais e sociais do problema; a segunda área de estudo foca o sentido adaptativo do comportamento sexual entre indivíduos do mesmo sexo (BAILEY, 2009). O segundo tipo de investigação, conforme indica-nos Bailey (2009), tem seu objeto de estudo no paradoxo que esse comportamento aparentemente apresenta. Há uma ideia superficial de que o comportamento entre indivíduos do mesmo sexo seria incompatível com o ponto de vista evolutivo, algo como uma violação da lei natural ou da lei da procriação. Nesse sentido, as investigações tentam conciliar esse fenômeno comportamental com a teoria da seleção natural e sexual, de modo que os resultados, até o presente momento, sugerem explicações adaptativas que Bailey (2009) divide em três grupos: 1. O comportamento homossexual providencia os laços necessários para manter e reforçar as relações sociais, como é o caso dos golfinhos; 2. O comportamento homossexual intensifica ou diminui a agressão intrasexual e de conflito, como ocorrem em algumas espécies de besouros, que montam outros machos para conseguirem mais chances de acalamentos com as fêmeas; 3. As interações sexuais do mesmo sexo forneceriam experiência na prática de corte, montagem e outros comportamentos associados à reprodução, o que melhoraria o sucesso reprodutivo no caso de uma interação heterossexual em um futuro possível.

O trabalho de Bailey (2009) mostra-nos que os estudos sobre interações entre indivíduos do mesmo sexo apontam, também, para algumas conclusões: as interações macho-macho ocorrem com maior frequência em espécies poligâmicas, ao passo que as interações fêmea-fêmea ocorrem em espécies com acasalamentos monogâmicos. A sexualidade e a reprodução no comportamento animal têm sido objetos de investigação desde o final do século XX. Roughgarden, com Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 121 dos estudos de gênero no discurso biológico

influência do movimento feminista, publicou, em 2007, um artigo na Science, que resultou dois anos depois em sua obra O gene genial, uma crítica à teoria da seleção sexual de Darwin e ao neodarwinismo de Richard Dawkins. Em Do we need a sexual selectio 2.0? escreveu que a comunidade científica necessita de uma teoria que suplante ou substitua a teoria de Darwin tendo em vista os erros descritivos e de observação que ela apresenta. Entretanto, no plano epistemológico, a teoria de Roughgarden consiste em uma alternativa à de Darwin e também apresenta erros metodológicos e de observação. Nesse sentido, não ocorre um confronto teórico na explicação fenomênica da natureza. Antes, há uma proposta de substituição no modo como se realiza a descrição do real. Aqui, neste ponto, voltamos ao início de nosso texto: mudam-se as regras do jogo, mas, o jogo continua. Alguns cientistas partilham dos anseios de Roughgarden, ao passo que outros acham-na apenas mais uma voz a gritar contra o darwinismo e, por fim, há aqueles que mesclaram algumas ideias de Roughgarden aos seus trabalhos e atividades de ciência normal. Além dos argumentos pelo exemplo de Roughgarden, a explicação evolutiva angaria figuras metafóricas nas obras do psicólogo Franz De Wall. Suas pesquisas com primatas não humanos trazem, ao grande público, informações sobre a natureza benevolente de nossos parentes mais próximos. A novidade na abordagem feita por De Wall (2007) se dá em consequência da recente descoberta dos chimpanzés bonobos, Pan paniscus. Os bonobos possuem uma natureza mais tranquila do que as outras espécies de primatas não-humanos que conhecemos. Além disso, são animais sociais, membros de colônias matriarcais, onde o sexo reina como principal mecanismo para o controle do poder e manutenção das tensões sociais. As fêmeas estão no topo da hierarquia social e fazem a distribuição da comida. Em De Wall (2007; 2009), a metáfora da comunidade é também evocada. Conhecidos pela frase “faça amor e não guerra” os bonobos serviram para contrapor as pesquisas sobre a natureza da agressividade e do egoísmo, posicionando-se no lado altruísta da discussão sobre a natureza humana. Um fator importante é que, além de explorar a sexualidade, De Wall investiga o grooming e a resolução de conflitos. Tais temas, antes considerados ‘femininos’ por causa de preconceitos sociais e históricos, somente agora são pensados na biologia e, nesse sentido, mostram a influência resultante da crítica que as humanida122 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

des efetivaram ao pensamento biológico. Tal mudança, em um sentido estrito, constitui uma influência epistemológica na abordagem fenomênica do real. Uma influência que impulsiona a mudança de regras no jogo paradigmático da ciência.

Sexualidade, epistemologia e ciência De modo geral, o papel da ciência no decorrer da história moderna foi produzir discursos de verdade. No caso de questões sociais que envolvem sujeitos o discurso direcionou-se ao louco, ao onanista, à histérica e ao homossexual. O principal intuito deste discurso, segundo Foucault (1986), foi a produção de corpos dóceis. A psiquiatria, por exemplo, ao desenvolver um campo exclusivo de atuação, denominado perversões sexuais, criou o homossexual moderno, contrapondo-o ao sodomita. A partir de 1870, a homossexualidade passou a ser constituída pelos psiquiatras como objeto da análise médica. Tais corpos foram marcados linguisticamente por dispositivos de saber-poder que controlam as relações entre sexo, desejos e subjetividades (FOUCAULT, 2011): O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa a sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita em seu pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém, como natureza singular (FOUCAULT, op. cit., p. 50. Grifo nosso).

Não houve censura, o que houve foi uma fomentação do discurso regulador e polimorfo. E foi a partir da necessidade, urgência de natureza econômica e política, que os discursos foram criados, sempre limitados, codificados, para mantê-los em segredo. Contudo, este segredo, à medida que o movimento feminista e de liberação sexual procederam em suas análises sobre a natureza e o discurso científico, foi se esvaindo. As análises identificaram problemas, os quais entravam em desacordo com o discurso biológico — como no caso que mencionamos da reprodução bacteriana ou das descrições comportamentais. Com a intensa produção

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 123 dos estudos de gênero no discurso biológico

intelectual das teorias feministas e de gênero estas áreas das ciências naturais que tratam, também, do tema sexo e sexualidade acabaram por se contaminar, mudando algumas regras do jogo. Este processo ainda se encontra em mudança, mas, já de antemão, afirmamos que o discurso da verdade, por exemplo, em interações sexuais de indivíduos do mesmo sexo é encarado de outra forma. Com um olhar menos heterossexual, favorecendo, talvez, a realidade, mostrando-a mais próxima daquilo que ela é. Esta verdade só foi possível graças ao desenvolvimento de dois campos distintos de conhecimento. De um lado as ciências naturais com suas investigações sobre os viventes, do outro lado as ciências humanas e suas investigações sobre o fenômeno do sexo em nossa espécie. Joan Roughgarden e Franz de Wall são exemplos de cientistas que fornecem um tratamento mais adequado a estas questões. Ambos sofreram influências do movimento feminista e de questões empáticas presentes na natureza. Suas pesquisas alcançaram grande repercussão na comunidade científica neste início do século XXI, culminando em aceitação por parte de alguns e rejeição por parte de outros (menos abertos às diferenças, talvez). Isto, no final das contas, não nos vem ao caso, pois o que nos importa aqui é o caráter processual que a ciência se apresenta, onde os discursos de verdade mudam.

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CAPÍTULO VIII

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade Raphaela Rezzieri João Paulo Rossatti Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original para qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama povos policiados. A necessidade levantou os tronos; as ciências e as artes os fortaleceram. Potências da terra, amai os talentos e protegei aqueles que os cultivam. Povos policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis esse gosto delicado e fino com que vos excitais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes, que tornam tão afável o comércio entre vós, em uma palavra: a aparência de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas Jean-Jacques ROUSSEAU. Discurso sobre as ciências e as artes.

A história da humanidade é marcada por uma sequência de transformações na maneira de se ver e compreender o mundo. Nas ciências (em todas as suas instâncias e grandes áreas), conforme pontuou Thomas Kuhn, podemos denominá-las por “paradigmas”. Esta sequência de mudanças nas formas de se compreender o mundo que, para este autor, podem ser caracterizadas como as realizações científicas que, por algum tempo, são capazes de fornecer soluções e problemas com os quais um agrupamento humano trabalha. No que concernem as artes, essas mu-

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danças assinalaram a maneira do homem se expressar e de representar a sociedade e a si próprio, ou seja, as diferentes maneiras pelas quais a literatura, pintura, escultura, entre outras, foram produzidas pelos homens. Umas das mais emblemáticas transformações na maneira de perceber o universo que nos cerca ocorreu na Itália, a partir do século XIV e colocou em movimento uma série de questões (se seguirmos a concepção de Kuhn, podemos dizer que esse momento estabeleceu uma série de paradigmas) que até hoje ressoam em nossa sociedade. Ao final do período que conhecemos como Idade Média, o homem voltou-se para si e passou a procurar e a conceber novas fontes de saber, antes, limitadas pelo poder político e dominação espiritual da Igreja. Desse ato, descobriu que a verdade, para além dos muros da religião e do misticismo, estava dentro de si. Novos paradigmas ou formas de se compreender surgiram, atribuindo novas “cores” ao mundo. Ao assumir o seu compromisso com o saber, o homem da renascença nomeou o período anterior como “Idade das Trevas” que, a partir de então, dava lugar a “Idade da Luz”. Como efeito, teve início um movimento que pouco a pouco diminuiu a importância da escatologia cristã no cotidiano, colocando o homem, desde então, como o soberano de seu próprio destino21. Nesse período, surgiu na Europa o movimento humanista, que buscou no racionalismo o cerne de seus desdobramentos. Os humanistas foram buscar na antiguidade clássica a inspiração para o seu modelo de produção intelectual e artística. Dessa maneira, o declínio da influência doutrinal e mística da religião somada às ideias propostas por esses pensadores, influenciou sobremaneira os estudos da época. A difusão do pensamento humanista ganhou força com o desenvolvimento da imprensa, a partir da segunda metade do século XV, o que, sem dúvida alguma, alavancou o estabelecimento de instituições de ensino que valorizavam, sobretudo, a razão. O papel da imprensa como meio de divulgação do conhecimento e também de representações artísticas, tornou-se um ponto evidente diante da dimensão das transformações na própria difusão do conhecimento, que passou a circular de forma mais rápida nos espaços urbanos do período. A maior e mais dinâmica circulação de ideias contribuiu para a efetivação da busca empírica para a explicação do mundo, impulsionando o desenvolvimento das Ciências, conforme aponta John B. Thompson: 21 É necessário frisar que o desenvolvimento da ciência e da arte não ocorreu sem que houvesse um contra movimento de reação, por exemplo, o caso de Giordano Bruno que foi queimado na fogueira pelo Santo Ofício acusado de blasfêmia.

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O desenvolvimento dos meios de comunicação se entrelaçou de maneira complexa com um número de outros processos de desenvolvimento que, considerados em sua totalidade, se constituíram naquilo que hoje chamamos de “modernidade”. Por isso, se quisermos entender a natureza da modernidade — isto é, as características institucionais das sociedades modernas e as condições de vida criadas por elas — deveremos dar um lugar central ao desenvolvimento dos meios de comunicação e seu impacto (THOMPSON, 2013. p. 25).

Foi nesse ambiente de efervescência cultural que começaram a surgir os primeiros clubes de leitura, bibliotecas e acervos de arte,22 e, principalmente, os salões, espaços frequentados por intelectuais e homens das letras que, nesse lugar de socialização, uma esfera pública segundo Jürgen Habermas, utilizavam da razão para discutir e tecer apreciações sobre o mundo.23 Todo esse movimento estimulou uma nova maneira de os homens (especificamente o europeu) observarem o mundo e, consequentemente, de se expressarem. Tal período ficou conhecido como Renascimento Cultural, cujo “renascer” legou à humanidade uma nova estética. Historicamente, o período entre o final da Idade Média e o início da Moderna foi representado por inúmeras transformações sociais, econômicas e políticas. Com o renascimento cultural veio também o renascimento urbano, assinalado pela intensificação do comércio e o aparecimento de grandes feiras em cidades europeias. O comércio, sabe-se, intensificou as trocas não só de mercadorias, mas também de ideias, além de promover a locomoção de pessoas, que, devido à melhoria das estradas, passaram a ter maior mobilidade. Movimento que não cessou até o século XX, quando a maior parte da população mundial já se concentrava em espaços urbanos.24 Em outras palavras, o crescimento das cidades era ditado pelo ritmo do mercado, isto é, pelas relações mercantis ali estabelecidas. As transformações de ordem econômica incentivaram um novo panorama cultural. Ao passo em que o pensamento mercantil, e poste22 Cf.: CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: EdUNESP, 2003. 23 A discussão mediante “razão”, para Habermas, acontece quando dois sujeitos, ou mais, que se compreendem como iguais, reúnem-se para discutir política, arte, etc., mediante processos argumentativos racionais. A imprensa tem importante papel nesse processo, pois, por meio dela se estabeleceu uma audiência crítica de indivíduos. Cf.: HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo: Edunesp, 2014. 24 Cf.: LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Edunesp, 1998.

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riormente o capitalista,25 se cristalizava uma figura singular: o mecenas. Senhores ricos interessados em patrocinar as artes.26 A busca pelo prestígio e a tentativa de conservar a estrutura social da época moviam os detentores do poder econômico e político. Interessados em manter o poder hegemônico e, sobretudo, alcançar a confiança (consenso) do povo, muitos governantes e religiosos utilizaram a arte para difundir suas mensagens políticas. Desse modo, a arte fora utilizada como forma de propagar entre as camadas populares representações sociais, políticas e estéticas da sociedade. Atividade esta facilitada pelo desenvolvimento técnico da imprensa na reprodução de textos e imagens, como apontamos anteriormente. Foi uma característica notória dos artistas do Renascimento, a capacidade de dialogar com as diferentes manifestações artísticas e científicas. Muitos de seus artistas eram matemáticos, escritores, anatomistas, escultores, entre outros, dos quais podemos destacar a genialidade polivalente de Leonardo Da Vinci que “passeou” pela engenharia, arquitetura, pintura, escultura, anatomia, matemática, astronomia e vários outros campos. Da Vinci, por exemplo, por meio de seus estudos sobre anatomia humana e sobre a dinâmica do movimento corporal, ajudou a desenvolver a técnica da pintura realista. Ora, a ciência veio oferecer suporte para a produção artística e em linhas gerais, não há como estabelecer fronteiras claras entre a permanente influência da arte na ciência e da ciência na arte. Sendo a cultura o resultado de uma elaboração do homem, entendendo que a ciência e a arte são atividades ou processos humanos, ambos são desdobramentos da produção humana, logo, uma atividade cultural. Mas há aí uma hierarquização da produção cultural, onde comumente (e por vezes, preconceituosamente), a esquematizamos entre erudita e popular. Porém, as trocas entre o que se convencionou caracterizar como “popular” e “erudito” sempre existiram nas sociedades pré-industriais, assim, podemos asseverar para o movimento fluído do contato entre ambas, pois, conforme dois famosos estudiosos (Mikhail Bakhtin e Carlo Ginzburg) existiu um movimento de circularidade cultural, uma vez que as obras (que a princípio não haviam sido produzidas para determinado público) acabavam circulando em diferentes estratos sociais, o que por 25 Para uma noção mais ampla sobre o desenvolvimento do pensamento capitalista no seio da sociedade europeia a partir do século XV, ver os três volumes de “Civilização material e capitalismo” do historiador francês Fernand Braudel. 26 Cf.: BURKE, Peter. O renascimento cultural italiano. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

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sua vez deixa explícito “um relacionamento circular feito de influencias recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo” (GINZBURG, 2008. p. 10). Para os homens do renascimento, ainda era possível observar o mundo em conexão. Isto é, como escreveu Da Vinci: “Para desenvolver uma mente completa estude a arte da ciência; estude a ciência da arte. Aprenda a enxergar. Perceba que tudo se conecta a tudo” (DA VINCI apud ARAÚJO-JORGE, 2004, p. 15). A partir do século XIX, contudo, a sociedade ocidental entrou em uma era de especialização e acabou por negligenciar essa capacidade, valorizada em outros tempos, pois, como sabemos, foi a partir desse momento que as ciências começaram a se desenvolver e, logo em seguida, foram colocadas em escaninhos próprios. Decorrente a isto, a estrutura universitária foi dividida em especialidades e cátedras, conforme conhecemos hoje em dia. Agora que apontamos os meandros do desenvolvimento da ciência e suas influências na cultura, podemos construir um esboço sobre como se constituiu o caminho contrário. Como resultado do estabelecimento concreto da disciplina de Antropologia, que ocorreu em meados do século XIX, é possível buscarmos, já no século XX, uma definição antropológica para o conceito de cultura — conforme já apresentado — como o resultado de toda e qualquer produção humana. Todos os seres humanos, independente dos recursos materiais ou intelectuais que possuem, produzem cultura. Desse modo, a cultura seria o “cimento” para as demais produções, inclusive a própria arte, bem como, para a ciência. Ou seja, a cultura além de funcionar como a “cola” que une os homens, também funciona como uma “jaula” que o aprisiona certas determinações sociais27. Bom, já sabemos que a ciência faz parte da esfera cultural, agora, podemos compreender a cultura como ciência? Tanto nas chamadas ciências biológicas ou naturais, como nas humanas e sociais, o elemento subjetivo, isto é, a presença do sujeito observador, traz consigo sua própria cultura, seus sentimentos, sua maneira de olhar o mundo. Essa perspectiva subjetivista está atrelada à mudança do paradigma científico advinda, sobretudo, da física de partículas (a mecânica quântica) que, no início do século XX (principalmente após a publicação da Teoria Geral da Relatividade em 1916), causou uma transformação na forma e na relação entre o observador e o objeto. Sob esta perspectiva, o obser27 Segundo Ginzburg a cultura funciona como “uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”. In: GINZBURG. C. op cit. p. 20. Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 131

vador carrega consigo as condicionantes do seu espaço de experiência, isto é, o seu ponto de vista depende diretamente dos referências culturais em que está inserido, e, portanto, é subjetivo, fato que pode alterar o resultado da pesquisa. Tal constatação teve grande repercussão nas ciências humanas, principalmente na antropologia que, daquele momento em diante, passou a considerar a perspectiva do observador com relação ao observado e vice-versa28. Para solucionar este problema e atribuir a “neutralidade” necessária aos estudos, o que passou a caracterizar a cientificidade da pesquisa foram basicamente os métodos de investigação, entretanto, o sujeito observador sempre existirá, preconizando o “relativismo cultural” como perspectiva analítica29. As transformações que ocorreram no período renascentista desembocaram no que compreendemos por modernidade ou Idade Moderna, cujo auge foi representado pelo movimento iluminista no século XVIII. A razão, ou a “iluminação” pelo conhecimento, proposta nesse momento, encontrou seus fundamentos na libertação do homem das crenças que o prendiam à escuridão — e mais importante –, na própria subjetividade dos indivíduos. Assim, a modernidade construiu seus alicerces sobre o racionalismo expresso na questão do método, debate que culminou com a crítica da razão proposta por Kant: “até onde é possível conhecer?”. Segundo Rousseau: É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo lançar-se, pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim (ROUSSEAU, 2000, p. 189).

O louvor de Rousseau ao restabelecimento das artes e das ciências encontra alguns pontos negativos. A advertência que o genebrino faz em seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes” objetiva levar seus leitores a refletirem sobre a deturpação/corrupção dos valores morais engendrada pelas artes e pelas ciências. 28 Cf.: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 29 Conforme defende, por exemplo, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz em artigo chamado “o anti antirrelativismo”. In: GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 47-67.

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Retomemos a citação inicial. Ora, para Rousseau a arte e a ciência escondem caminhos perigosos, sobretudo, por terem se transformado em objetos de distinção social e legitimidade política, isto é, por terem sido transformadas em instrumentos do poder hegemônico. Arte e ciência para Rousseau seriam nocivas aos bons costumes principalmente porque os filósofos ilustres pouco se interessavam pelos saberes rústicos, sobrepondo-os aos saberes científicos, julgando que, sem acessar estes últimos, a população em si não poderia compreender suas verdades. Um dos males das artes e das ciências seria então, a vaidade e o luxo. Conforme Rousseau: Tal é o luxo, como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos homens. O luxo, raramente, apresentase sem as ciências e as artes, e estas jamais andam sem ele. Eu sei que a nossa filosofia, sempre fecunda em máximas singulares, pretende, contra os séculos, que o luxo seja o esplendor dos Estados; [...] Os antigos políticos falavam constantemente de costumes e de virtudes, os nossos só falam de comércio e de dinheiro. [...] Avaliam os homens como gado. (ROUSSEAU, 2000, p. 205).

Na ciência, por meio do método e da razão, construímos modelos de explicação do real. Na arte, ao contrário, utilizamos da experiência sensível para compreender e, em alguns momentos, transformar a maneira como interpretamos o mundo. Costumamos entender a experiência sensível provocada pela arte como gratuita e desinteressada. Será mesmo? Como o próprio Rousseau antecipou e Marx posteriormente reelaborou; a arte, como produto individual do sujeito, revela também a psicologia social de uma época, ou, a ideia que se quer construir sobre tal época. Então chamamos a atenção para pensarmos a arte não como um objeto estético com fim em si mesmo, mas como um instrumento político. “Toda a arte surge de uma concepção ideológica do mundo; não existe [...] qualquer obra de arte que será inteiramente livre de conteúdo ideológico” (EAGLETON, 2011, p. 37). Mesmo impregnada de conteúdo ideológico, a arte consegue nos distanciar do objeto artístico ao ponto de nos pe rmitir “sentir” a origem dessa ideologia, ou seja, é um recurso de mão dupla. Ciência e arte podem se debruçar sobre um mesmo objeto, contudo, da ciência objetivamos extrair o conhecimento conceitual puro, enquanto a arte Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 133

nos possibilita “experienciar” situações. Ao “experiênciá-las”, somos conduzidos a um entendimento completo, que pode ser interpretado como científico. A arte transforma a experiência vivida em objeto do conhecimento por meio dos sentimentos, ou seja, não depende necessariamente da ciência, pois a sua relação com o público é muito mais subjetiva, já que visa atingir o “sentir” do homem, ao contrário da ciência que se ancora na objetividade. Aí reside a importância da crítica. É indispensável se pensar acerca dos objetos artísticos, pois estes tendem a legitimar com maior facilidade nosso olhar sobre o mundo e, portanto, podem ser utilizados (e com frequência o são), tanto para libertar, como para aprisionar os homens à sua condição. Numa sociedade como a nossa, onde a criação dos desejos de consumo encontra seu suporte mais elementar na experiência sensível, ou seja, na estética, o olhar crítico sobre os objetos de arte se faz imprescindível. Entenda-se aqui “objetos artísticos” em um sentido bastante amplo, podendo englobar literatura, pintura, fotografia, teatro, música, cinema e até mesmo as peças publicitárias, altamente estetizadas na atualidade (pop art). Mesmo com sua objetividade intrínseca (vender um produto) as criações publicitárias recorrem a elementos emotivos, podendo alterar a nossa compreensão da realidade, criando novas possibilidades para a imaginação. Segundo Jean-Paul Sartre (2013), o ato imaginativo tem seus perigos e vantagens. A imaginação nos liberta do real, mas não nos separa dele. Trata-se de um certo tipo de consciência, representado como ato, não como coisa. Em outras palavras, a imagem é a consciência que construímos de alguma coisa. Um processo que atua como mediador entre o vivido e o pensado. A experiência sensível transforma o mundo em imagens e a imaginação decorrente desse processo alarga o campo do real percebido, conferindo-lhe sentidos. O problema dos significados passa necessariamente pelos sentidos. Na experiência estética, a imaginação manifesta a relação dialética que os sujeitos estabelecem com natureza. O sentimento que o objeto desperta resulta em imagens. As potencialidades despertadas pela experiência estética, não são apenas de um sentimento em relação a uma obra, mas de um mundo que se descortina. A consciência é o centro da atividade do conhecimento. Os significados produzidos pela arte permitem que as coisas adquiram sentido para nós e a imaginação permite aos sujeitos irem além do visível. O que se faz necessário, portanto, é refletir como a obra nos atinge e como ela age em nós. Ao se encarnar no sujeito, a obra se objetiva e se 134 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

abre para uma nova história. A cada experiência o sujeito torna-se apto a descobrir mais “sentidos”, dos quais ele não acrescenta à obra, mas acrescenta a obra dentro de si. Grosso modo, o que pretendemos com esse texto foi chamar a atenção para pensarmos um pouco em como nossa percepção se relaciona com os fenômenos e com a realidade que nos cerca. A desnaturalização do nosso olhar sobre esse processo é essencial para tornar cognoscível o que engendra o movimento capaz de tornar visível ou invisível um discurso. Como pesquisadores, estudantes, cidadãos e sujeitos críticos que objetivamos ser, pensar para além do que está posto se faz indispensável. Precisamos nos tornar ávidos observadores da realidade social. Esse pequeno, mas complexo exercício nos permite compreender como certas “verdades” são estabelecidas e legitimadas. Essa é a primeira atitude do pesquisador; partir da dúvida, elaborar perguntas, procurar repostas, encontrar os porquês. Essa é a primeira atitude capaz de devolver a soberania de nosso próprio espírito. Ao longo dos últimos séculos, a experiência histórica no mundo Ocidental, em significativos momentos, evocou o partidarismo político consciente e a capacidade de produzir uma arte política, desenvolvendo-os simultaneamente. Devemos ter em mente que a arte pode ser um objeto, um produto da consciência social, uma visão de mundo; mas também, na sociedade contemporânea, é caracterizado como um produto a ser consumido/vendido no mercado do lucro, conforme aponta Theodore Adorno, em seu famoso ensaio sobre a arte na era da reprodução técnica. E, conforme Marx e Engels alegaram, a arte pode ser o produto social mais mediado em sua relação com a base econômica e política, sendo também parte constitutiva dessa estrutura. Mesmo produto da sociedade capitalista, sendo com frequência convertida em mercadoria e deformada pela ideologia; a arte é capaz de nos atingir e de nos proporcionar uma espécie de verdade ou conhecimento, e revelar como os homens vivem, como compreendem sua condição e como agem sobre ela. “Ler” criticamente a arte é um requisito elementar para interpretarmos nosso presente. Deste ato, talvez, possamos nos tornar capazes de transformá-lo. Lembramonos sempre: “só ajo sobre aquilo que conheço”. O exercício crítico da arte e de seus desdobramentos nos permite apreender com profundidade os objetos artísticos e consequentemente, estimulam a criação de uma arte e de uma sociedade melhor. A crítica é indispensável para a libertação de todo o tipo de opressão. Nessas veredas que percorremos agora (de maneira muito breve), da Idade Média até a contemporaneidade, tivemos como norte deArte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 135

monstrar como arte e ciência caminharam juntas por muito tempo, como se “divorciaram” em alguns momentos, a fim de atender interesses de determinados setores sociais, ou mesmo, quando a dicotomia entre ambas foi estabelecida, rompendo com um possível diálogo. Contudo, é necessário frisar: para uma compreensão mais profunda das relações sociais, não é possível negligenciar a contribuição expressiva da arte que, por excelência, foi a depositária mais fiel das vontades e desejos que moveram os homens no tempo.

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REFERÊNCIAS ARAUJO-JORGE, Tania Cremonini. Ciência e arte: caminhos para a inovação e criatividade. In: ______.(Org.). Ciência e Arte: encontros e sintonias. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004. BURKE, Peter. O renascimento cultural italiano. São Paulo: EdUNESP, 2010. CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: EdUNESP, 2004. EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo: EdUNESP, 2011. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo: EdUNESP, 2014. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Cia. das Letras. 2008. KUHN, Thomas S. As estruturas das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2013. LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: EdUNESP, 1998. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Nova Cultural, 2000. SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Porto Alegre: L&PM, 2013. THOMPSON, John. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

OBRE OS AUTORES

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SOBRE OS AUTORES Capítulo I

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução

Mauro Henrique Miranda de Alcântara – Professor do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Graduado, Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.

Capítulo II

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia

Stella Cristiani Gonçalves Matoso – Professora do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Graduada em Agronomia pela Universidade Federal de Rondônia. Mestre em Produção Vegetal pela Universidade Federal do Acre. Doutoranda em Biodiversidade e Biotecnologia pela Rede BIONORTE. Paulo Guilherme Salvador Wadt – Pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, bolsista Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora (nível 2) do CNPq e, docente permanente nos Programas de Pós-Graduação: Doutorado e Mestrado em Agronomia (UFAC) e doutorado em Biodiversidade e Biotecnologia (Rede Bionorte). Graduado em Engenharia Agronômica e Mestre em Ciência do Solo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorado em Solos e Nutrição de Plantas pela Universidade Federal de Viçosa. Realizou pós-doutorado em Geomática pela Universidade da Flórida.

Capítulo III

Meio ambiente e sociedade: transformação e história

Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda – Professora do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Rondônia. Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Rondônia. Doutoranda em Fisiologia Vegetal pela Universidade Federal de Viçosa.

Capítulo IV

Trabalho, consumo e preservação ambiental: discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema

Marcos Antonio Oliveira Rodrigues – Acadêmico do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Formado em Técnico em Agropecuária pelo Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. William Kennedy do Amaral Souza – Professor do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Graduado em Ciências Sociais e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso.

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Capítulo V

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — olhares sobre as relações de trabalho no Brasil

Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa – Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis. Graduada, Mestre e Doutoranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Fez especialização em Metodologia do Ensino de História, pelo Instituto Cuiabano de Educação (ICE).

Capítulo VI

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: em busca de um caminho voltado para o homem

Alisson Diôni Gomes – Professor da Universidade Federal de Rondônia. Bacharel em Informática, em Ciências Sociais e Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Rondônia

Capítulo VII

Ciência, gênero e sexualidade: a influência epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico

Emerson Roberto de Araujo Pessoa – Professor da Universidade Federal de Rondônia, Campus de Vilhena. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre nesta mesma área e instituição. Franciele Monique Scopetc dos Santos – Doutoranda em Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP/Araraquara. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Educação para o Ensino de Ciências e a Matemática na Universidade Estadual de Maringá. Gustavo Piovezan – Professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Rondônia, Campus Ji-Paraná.. Graduado em Filosofia, mestre e doutor em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática pela Universidade Estadual de Maringá.

Capítulo VIII

Arte e Ciência: contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade Raphaela Rezzieri – Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Barra do Bugres. Graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. João Paulo Rossatti – Graduado em História pela Universidade Estadual do CentroOeste e mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.

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Revisão Ortográfica - Normalização Bibliográfica Carlos Otávio Flexa — MC&G Design Editorial Ficha Catalográfica Soraya Lacerda | CRB1/1320 — MC&G Design Editorial Criação de capa Programação Visual Glaucio Coelho —MC&G Design Editorial Programação Visual MC&G Design Editorial Editoração Eletrônica Glaucio Coelho — MC&G Design Editorial Produção Editorial e Gráfica Maria Clara Costa — MC&G Design Editorial CTP e Impressão Gráfica Reproset Gráfica e Editora — MC&G Design Editorial

Formato 15 x 21cm Tipologia das famílias Helvética Neue , Apex Serif e Diogenes Couchet Foscco 300g/m2 capa • Off set 75g/m2 miolo 144 p. Tiragem: 500 exemplares Ano: 2016

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Colorado do Oeste

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA Colorado do Oeste

ISBN 978-85-67589-44-2

Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade

As discussões e diálogos travados durante o I Seminário de Ciência e Tecnologia, do Instituto Federal de Rondônia - Campus Colorado do Oeste -, realizado em novembro de 2014, resultou nesta obra onde pesquisadores e professores, de diferentes e diversas áreas de formação, desenvolveram ideias, concepções e conceitos sobre a importância da Ciência e da Tecnologia para nossa sociedade contemporânea. Duas palavras tão usuais e tão presentes em nosso cotidiano, mas que são, ao mesmo tempo, um mal necessário e um bem nefasto para os homens e mulheres do século XXI. Os textos aqui expostos apresentaram interessantes perspectivas sobre essa intrigada relação. Leiam aqui até onde a ciência é nosso Belerofonte e, ao mesmo tempo, nossa Quimera contemporânea.

ENTRE BELEROFONTE E A QUIMERA: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA (ORGs)

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