Ciência, técnica, política e violência em \"O quarto selo (fragmento)\" de Rubem Fonseca

July 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: RUBEM FONSECA LITERATURA CUENTOS
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Ciência, técnica, política e violência em "O quarto selo (fragmento)" de Rubem Fonseca Abraão Carvalho abraaocarvalho.com “Virtual, inaudível, voa certeiro, sorrateiro, rápido e mortal não existe guerra alguma, apesar de todo esse barulho infernal, é só o capital cruzando o mar, hoje ele voa mais rápido que qualquer míssil, e quando retorna da missão, tudo o que deixa é terra arrasada, pois seu poder de destruição é muito mais fulminante e duradouro” Zeroquatro

Compreendemos ser a violência um dos traços marcantes da sociedade hierárquica brasileira, e por isso mesmo, a ficção de Rubem Fonseca é atravessada pela violência em suas diferenciadas e possíveis nuanças. Dito de outro modo, o romancista, contista e roteirista de cinema brasileiro, não tem como perspectiva ou interesse, dissimular a ação ou reação violenta de um ser humano sobre outro. Antes mesmo, o interesse da ficção de Rubem Fonseca não consiste na dissimulação ou encobrimento dos modos possíveis de intervenção no mundo da perspectiva da ciência e da técnica, de modo que a sua ficção, em certa medida, consiste na denúncia, não sem traços de ironia, da

ciência

e

da

tecnologia

enquanto

instrumentos

que

mediam

o

asseguramento da continuidade e permanência das desigualdades sociais radicais. De certo que, no mundo moderno, com a crescente prática da ciência e da técnica na vida e no discurso acerca da sociedade, a violência, sobretudo política, ganhou aperfeiçoamento, na medida em que a apropriação da ciência e da tecnologia tem sido utilizada e voltada hegemonicamente para a acumulação ilimitada do capital, que segundo Zeroquatro, “voa certeiro,

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sorrateiro, rápido e mortal”. Deste modo, com os recursos materiais que a ciência e a técnica abriram para a indústria bélica, pode-se, por exemplo, cometer grandiosos genocídios com o mínimo de recurso humano. Por extensão, a técnica da imprensa, sobretudo televisiva, abriu possibilidades para que o Estado, através de seus políticos profissionais e secretários de segurança, pudesse propagandear junto à opinião pública, a legitimidade da violência política. No livro de contos Lúcia McCartney, de 1969, encontramos uma ficção de Rubem Fonseca que de certo remonta, não sem traços de ironia, ao vínculo entre ciência, política e violência. Estamos nos referindo ao conto, ou antes mesmo, ao que nos parece, ao fragmento de um possível roteiro de cinema nomeado “O quarto selo (fragmento)”. Este texto, no que se refere à sua forma, consiste no modo próprio de caminhar nas ruas da urbe, ou seja, de forma entrecortada, fragmentada, e sobretudo, de maneira atravessada por alterações súbitas sem vínculos aparentes. É a técnica do corte de imagens, próprio

à

arte

cinematográfica,

entrelaçando-se

à

ficção

literária,

evidenciando portanto a relação de reciprocidade do cinema junto à literatura. A dinâmica que atravessa esta ficção de Rubem Fonseca de nome “O quarto selo (fragmento)”, evidencia o quanto a violência aproxima-se da prática política, seja a violência de Estado, seja a contra – violência que vai de encontro à violência política do próprio Estado. Se Brecht, acerca do conto “Na colônia Penal”, publicado em 1919, afirmou que “Kafka descreveu, com uma indignação grandiosa, os campos de concentração que estavam por vir, o fim da justiça, o absolutismo no aparelho de Estado1”, podemos afirmar que Rubem Fonseca, em “O quarto selo (fragmento)”, de 1969, lança à ficção a prática política da violência de Estado no Brasil, levada ao extremo nos anos que sucederam ao ano da publicação de Lúcia McCartney. Isto é, Fonseca situa em sua ficção a organização do Estado voltada para a vigilância e para a violação dos direitos humanos, que se acentuou sobretudo, de forma radical, nos anos da ditadura militar no Brasil. 1

Introdução à edição de “A metamorfose/ O artista da fome e Carta a meu pai”, de Franz

Kafka; p. 14; Martin Claret, 2001.

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Situar os temas que irrompem desde o possível roteiro de cinema, “O quarto selo (fragmento)”, significa, em certa extensão, estarmos sujeitos a desvios e devaneios, que de certo modo têm o interesse de apreender, de maneira parcial e inacabada, a dimensão que a ficção de Rubem Fonseca suscita. Neste sentido, a nossa perspectiva consiste em articular o modo, a forma e a maneira como aparece o vínculo entre ciência, política e violência nesta ficção de Rubem Fonseca, procurando situar a dissimulação enquanto aspecto diferenciador no conflito entre violência de Estado e contra-violência junto ao próprio Estado. No fragmento 1, os personagens que aparecem em diálogo, são “O Exterminador” e o “Cacique”. Uma fala do Cacique exprime a condição histórica do homem moderno ocidental, descrito por Benjamin enquanto desvinculado de uma tradição, sobretudo oral. Afirma secamente o Cacique para o Exterminador: “Hoje ninguém mais lê. Porém tudo que eu sei aprendi nos livros”. O diálogo trata da necessidade de um assassinato a ser efetivado, a saber, o assassinato do “GG (Governador Geral)”. As informações que temos neste fragmento 1 são a de que o Exterminador, “identificado pela letra R”, e o Cacique, fazem parte de uma organização que tem como interesse “matar as autoridades, técnicos e burocratas de alto nível que nunca apareciam em público e assim estavam longe do alcance dos ESQUADRÕES (grupos de especialistas em atentados pessoais com explosivos)”. Deste modo, a efetivação de tais interesses políticos junto aos “técnicos e burocratas de alto nível que nunca apareciam em público”, não são viabilizadas

sem

que

violência

e

dissimulação

estejam

articuladas

reciprocamente. Antes mesmo, a dissimulação aparece aí como um dos traços da prática política situada em um contexto em que a ciência e a técnica são apropriadas enquanto instrumentos de vigilância por parte do Estado.

É o

que lemos acerca do Exterminador e do treinamento de seus pares: “R podia ser infiltrado em qualquer parte do país ou do

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exterior. Ele assumia qualquer papel. Nem o IVE percebia sua impostura. (IVE: Identificador Vocal Eletrônico.) R controlava os mínimos gestos – comer, andar, sentar, correr, fumar, até a maneira de pensar ele condicionava ao personagem assumido. O treinamento dos Exterminadores para enganar e matar era tão elaborado e difícil quanto o dos antigos astronautas.”

O fragmento 2 do texto de Rubem Fonseca, exprime o quanto as autoridades do Estado situam-se em uma posição privilegiada em que a tecnologia e a ciência operam como instrumentos de minuciosa segurança e vigilância, capaz de fazer do isolamento algo da ordem do necessário à continuidade da vida daquele que não mais caminha distraidamente pelas ruas, pois é através das câmeras e dos microfones que este legitima a sua posição de mando. “Pelo vidro inquebrável, o GG verificou que quem estava na ante-sala era a sua secretária, d. Nova. O GG apertou um botão que acionou um mecanismo trancando uma das portas blindadas da ante-sala e abrindo ao mesmo tempo a outra porta que dava acesso à sua sala.”

Neste momento a secretária do Governador Geral é solicitada para que agende uma entrevista em sistema de “circuito fechado”, com “Pan Cavalcânti”, bem como é também orientada para avisar ao “DEPOSE (Departamento de Polícia Secreta)” para que este possa recolhê-lo no aeroporto Galeão. A partir daí evidencia-se na ficção de Rubem Fonseca a dimensão da instrumentalização da ciência voltada para a continuidade dos interesses políticos dos setores dominantes na sociedade contemporânea. A perspectiva que move a necessidade do diálogo entre o GG e Pan Cavalcânti consiste no interesse em efetivar “uma grande vitória psicossocial”, a saber , o assassinato político do Cacique. O que merece destaque aí, a partir do que lemos no fragmento 4, é o fato de que, uma vez sustentado e amparado em uma perspectiva possível de 4

ciência, bem como, em dados e informações que atendem pela alcunha de científicos, comete-se qualquer modalidade de violência. Não obstante, são criados uma cadeia em série de organizações, voltadas para a continuidade dos abismos sociais e desequilíbrios ecológicos, sem que se tenha o mínimo de cautela em efetivar grandiosos genocídios. Deste modo, aparecem aí, Institutos de pesquisa sociais, no qual atuam especialistas que orientam a ação política do Estado, da polícia e do exército. Bem como, Institutos de pesquisa científicos que atuam na elaboração, criação e instrumentalização bélica e química do sistema repressivo, etc. O interesse do GG é que Pan Cavalcânti assuma a direção do “DEUS (Departamento Especial Unificado de Segurança)”, pois o ambiente nas “FUVAGs (Favela Urbana Vertical de Alto Gabarito)” encontra-se ameaçador e causa-lhe inquietação e medo, e por isso mesmo, exige uma reação do Estado através da mediação da violência, a saber, do sistema unificado de segurança. O que acontece aí é a criminalização por antecipação da pobreza social. Esta antecipação da criminalização dos excluídos dos direitos à vida, ou antes mesmo,

esgotados

pelo

trabalho,

origina-se

e

edifica-se

desde

uma

perspectiva possível de ciência, que encontramos no mundo moderno ocidental. Quando o GG afirma para Pan acerca da necessidade deste assumir o “DEUS”, devido às constantes inquietações, observadas pelo “IPTMM (Instituto

Pesquisador

de

Tendências

Motivacionais

de

Massa)”,

nas

“FUVAGs”, o que aparece aí é a noção, fundada em uma perspectiva de ciência possível, de que a pobreza social é algo nocivo em potência, ao Estado, uma vez em contato com organizações referenciadas em uma perspectiva de contra-violência junto ao próprio Estado. Daí o Governador Geral afirmar secamente para Cavalcânti: “O IPTMM tem observado uma crescente inquietação nas FUVAGs. É quase certo que o BBB se aproveitará disso”. (“BBB: especialistas em incêndios e saques, sigla derivada do grito dos terroristas negro- americanos do século XX, burn, baby, burn”).

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Ora, essa perspectiva possível de ciência é atravessada sobretudo por uma razão técnica, emblematizada na ficção de Rubem Fonseca pelo Instituto Pesquisador de Tendências Motivacionais de Massa. O interesse próprio desta razão técnica consiste na prévia compreensão de que tudo no mundo pode ser alterado e apreendido desde uma perspectiva na qual as coisas podem ser quantificáveis, pois esta maneira de conhecer o mundo e as coisas consiste na determinação quantitativa da natureza, da sociedade, e do que pode ser enviado por meio da técnica. Tomemos como exemplo a velocidade do envio de informações, imagens e sons de um espaço para outro via Internet, onde se tornou mais importante o meio, a mediação do envio dos acontecimentos, do que o próprio conteúdo do que é enviado. Deste modo, o privilégio é dado à quantidade daquilo que atravessa o envio. Este tema, isto é, do privilégio da quantidade, ou antes mesmo, do envio através do cálculo, na narrativa da informação no mundo moderno, é tomado com demasiada ironia por Rubem Fonseca, no momento do diálogo entre o Governador Geral e Pan Cavalcânti: “ ‘Informações, com fator de exatidão oitenta, dizem que o Cacique entrou no país, vindo dos Estados Unidos.’ ‘O Cacique?’, disse Pan excitadamente, ‘aqui?’ ‘Oitenta por cento de exatidão’, disse o GG. ‘Então

precisamos

mesmo

ficar

preocupados

com

o

ambiente nas FUVAGs. Qual o estoque de GASPAR?’ (GASPAR: Gás paralizante.) ‘Suficiente. Pan, ouça, não quero que você se preocupe com as explosões urbanas. Isso é rotina. Quero que você se concentre no Cacique. Será uma grande vitória psicossocial.’ ”

No que se refere à ficção de Rubem Fonseca “O quarto selo (fragmento)”, em particular, ao emblema do IPTMM, encontramos a efetivação da dominação arbitrária através da razão técnica junto ao objeto, que aparece aí como sendo a sociedade. A razão técnica aparece, neste sentido, como maneira,

mediação,

ou

antes

mesmo,

forma

de

asseguramento

da

continuidade ilimitada dos abismos sociais. Deste modo, a ciência moderna ocidental caminhou hegemonicamente rumo ao aperfeiçoamento das técnicas 6

da indústria bélica, de modo que o Estado contemporâneo não hesita em cometer qualquer modalidade de violência quando se trata do risco da continuidade de uma sociedade assentada em desigualdades sociais radicais. É o que lemos nesta fala do Governador Geral: “‘Não podemos correr o risco, são vinte milhões de pessoas nas FUVAGs. Lembre-se que da última vez morreram quinze mil, só na Zona Sul’, disse o GG.” Ora, se por um lado o Estado contemporâneo em sua relação de reciprocidade e intimidade junto às elites econômicas, propõe e efetiva a mínima intervenção na economia, por outro, no âmbito militar e policial, o Estado capitalista leva ao extremo a violação à autodeterminação dos povos, bem como junto aos movimentos sociais. “Pior ainda: as polícias políticas começaram a agir com muito mais arrogância e desenvoltura contra os movimentos sociais e populares”2, como aponta José Arbex em artigo publicado na revista Caros Amigos, em outubro de 2001.

Entretanto, retomando a ficção de Rubem Fonseca que é de nosso interesse, o fragmento 5 privilegia a contra-violência junto ao Estado. Deste modo, o que aparece neste fragmento é uma ação política fundada na violência por parte dos grupos de especialistas em incêndios e saques, a BBB:

“Segunda feira, dia 18. O movimento na estação do metrô, na rua Uruguaiana com Presidente Vargas era intenso. Às dezessete horas explodiu a primeira bomba, próximo de um dos guichês. Em seguida, mais cinco explosões, a última destruindo vários vagões de uma composição. Muitos gritos e gemidos. Cheiro de roupas e carnes queimadas. Às dezessete e trinta cerca de duzentas mil pessoas começaram a destruir os botequins, armazéns, farmácias e lojas dos cortiços da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Os duzentos mil, em seguida, se deslocaram em direção ao centro da cidade, ao encontro da massa que destruía as estações de metrô. 2

O Reichstag de Bush, Revista Caros Amigos, número 55, outubro de 2001, p. 10.

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Grupos da BBB, comandados pelo rádio, armados de metralhadoras, espalharam-se pela cidade atirando bombas EXPLA nos edifícios. (EXPLA: explosivos plásticos)”

No fragmento 6, é a razão técnica vinculada à violência política de Estado que aparece, de maneira que a perspectiva possível de ciência que mostra-se neste trecho da ficção de Rubem Fonseca, consiste na ótica do cálculo e do privilégio à quantificação da realidade. É a primazia do cálculo e da quantidade, não sem propósito, que ofusca o olhar em torno dos acontecimentos do mundo e do aparecer e mostrar-se das coisas. Neste sentido, ocorre um modo de violência, por parte dos braços de repressão do Estado, de maneira que grandiosas catástrofes sejam efetivadas sem o mínimo de cautela, uma vez que a violência que aparece aí consiste no asseguramento da continuidade dos abismos sociais. Sendo assim, é legítimo, desde esta perspectiva referenciada em uma razão técnica, a utilização em massa de armas químicas, uma vez que o que está em risco é a segurança do Estado capitalista moderno.

“Terça-feira, 26. Pelos cálculos eletrônicos, apenas oito mil pessoas morreram nas agitações da semana. Sociólogos se surpreenderam com o pequeno número de perdas. As Forças de Repressão Anti- Social, usando GASPAR e IE- IE- IE, dominaram a situação. Trezentas mil pessoas ficaram desabrigadas. (IE- IEIE: Irritante Epidérmico Triplo Concentrado.)”

Ao fragmento 7, Pan, uma vez na direção do “DEUS”, em seu percurso “em um carro de vidro à prova de bala” pela metrópole em ruínas na qual se passa a ficção de Rubem Fonseca, chega até Santa Cruz, rumo a um edifício, mais precisamente no andar 74. Local em que, não sem dissimulação, abre a possibilidade do aprisionamento de um certo homem nomeado na ficção de “Chefe”.

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“Na porta do apartamento 7404 estava embutido um microfone tendo em cima escrito IVE. ‘Encomenda para o Chefe’, disse Pan encostando a boca no microfone. A porta abriu. Dentro da sala estava um jovem de óculos. O disparo de Pan furou a lente dos óculos... O Chefe, que estava deitado na cama, levantou-se quando viu Pan entrar no quarto... Com grande precisão Pan atirou no cotovelo esquerdo do Chefe, partindo o seu braço. ‘Eu quero você vivo’, disse Pan.”

Uma vez no “DEPOSE”, o Chefe, esgotado fisicamente devido o trato violento recebido nesta instituição de polícia secreta do Estado, não responde às indagações do GG, realizadas através de técnicas áudio-visuais que permitem a comunicação entre sua sala e o DEPOSE. As indagações do GG consistem na tentativa, de através do prisioneiro nomeado Chefe, obter informações acerca do lugar onde está situado o Cacique. Neste sentido, um acontecimento ocorrido “nos subterrâneos do DEPOSE”, que se passa no fragmento 9, abre para o encerramento da ficção de Rubem Fonseca, a saber, trata-se, antes mesmo, de um acontecimento que aparece e mostra-se de maneira um tanto quanto obscura, ou mesmo ambígua.

“Pan virou as costas para os guardas, curvando-se sobre o corpo do Chefe. Pan colocou o ouvido na boca do Chefe. ‘Silêncio’, disse Pan, para os guardas. Pan levantou a cabeça do Chefe, uma das mãos no seu queixo, a outra na sua nuca. A boca de um e o ouvido de outro ficaram algum tempo colados. ‘Ele acabou de confessar tudo. Preciso falar com o GG’, disse Pan. Pan saiu apressadamente.”

Pan, após este acontecimento obscuro ocorrido nas dependências do DEPOSE, vai rumo à sala do GG com o interesse em passar as informações 9

que ouvira do moribundo Chefe, informações estas que não aparecem no texto de Rubem Fonseca. Ora, mas com que interesse encobre-se o conteúdo da fala do Chefe, no trecho citado acima? Ou antes mesmo, ocorreu mesmo alguma fala por parte do Chefe?

Neste sentido, cabe aqui situarmos o leitor quanto aos acontecimentos que sucederam à ida de Pan na sala do Governador Geral, lembremos, alvo de um assassinato a ser efetivado pelo Exterminador R, sob orientação do Cacique, ambos partícipes de uma organização que tem por perspectiva e interesse “matar as autoridades, técnicos e burocratas de alto nível que nunca apareciam em público”. Deste modo, Pan encaminha a sua tentativa de comunicar ao GG o conteúdo da fala do moribundo Chefe, que nem mesmo nos é dado a saber.

“10. Pelo INTERCOM Pan ligou para o GG. ‘Scramble’, disse Pan. ‘Pronto. Ninguém pode entrar na linha. Adiante’, disse o GG. ‘O Chefe falou. Preciso entrevista urgente. Supersecreta. Vis-à-vis’, disse Pan. ‘Vis-à-vis? Você sabe que vis-à-vis só em casos excepcionais’, disse o GG. ‘O caso é excepcional. Sua vida corre perigo. Não confie em ninguém’, disse Pan. ‘Está bem. Pode vir’, disse o GG.”

Uma vez na sala do GG, Pan comunica que a possível informação, dada supostamente pelo moribundo Chefe, trata-se de ser a secretária do GG um suposto Exterminador. De modo que, logo após um telefonema recebido pelo GG, informando a morte do Chefe, subitamente ocorre o acontecimento planejado ao início desta ficção de Rubem Fonseca, a saber, o assassinato do GG.

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“Por um segundo o GG olhou o rosto de Pan. Subitamente o GG enfiou a mão dentro do paletó. Mas o Exterminador foi mais rápido. Sua 54 Superchata detonou abrindo um buraco acima do olho direito do GG, que caiu de bruços sobre o braço que segurava a própria arma ainda dentro do paletó. O Exterminador curvou-se sobre o corpo caído. Apoiou o cano da arma na base do crânio do GG e detonou uma segunda vez. É preciso tomar cuidado, a medicina de hoje está muito adiantada...”

Ora, o que lemos neste trecho, do possível roteiro de cinema de Rubem Fonseca, consiste na identificação de que o Exterminador é Pan. Neste sentido, é a dissimulação que opera a distinção entre um e outro, que, à nossa compreensão, são o mesmo. Deste modo, a violência política que vai de encontro ao Estado, dá-se desde o invólucro da dissimulação, que atravessa esta ficção de Rubem Fonseca em diferenciados aspectos e instantes. O emblema do GG, por sua vez, ecoa e evoca uma situação histórica que afeta o mundo moderno ocidental, a saber, a internacionalização crescente da vigilância, bem como, da militarização da prática política do Estado contemporâneo, que efetiva-se não sem a utilização e instrumentalização dos recursos científicos, que abrem a possibilidade, sobretudo, da intervenção acentuada da tecnologia, no sentido de aperfeiçoamento da indústria bélica e das polícias políticas.

Desta forma, a violência, no modo próprio como aparece nesta ficção de Rubem Fonseca, situa-se desde uma possível dissimulação, que atravessa tanto a prática política de Estado, em sua tentativa de asseguramento das desigualdades sociais radicais, voltadas para a permanência de privilégios econômicos para poucos em detrimento da morte violenta do outro, bem como, desde o conto “O quarto selo (fragmento)”, a violência que dá-se através da dissimulação, aparece também na prática política que reage de encontro à ação violenta do Estado. 11

Neste sentido, o trecho citado a pouco acerca de um acontecimento que encaminhou o enceramento desta ficção de Rubem Fonseca, a saber, o acontecimento ocorrido nas dependências do DEPOSE, que trata da suposta comunicabilidade do moribundo Chefe para Pan, que agora sabemos ser o Exterminador dissimulado, consiste, sobretudo, em uma dissimulação, uma vez que não ocorreu comunicabilidade nenhuma. Deste modo, é também a dissimulação que abre para nós a possibilidade, ao final da ficção, de olharmos o Exterminador e Pan Cavalcânti como o mesmo. Dito de outro modo, é o acontecimento súbito do assassinato do GG que abre a proximidade e a cumplicidade entre ambos, que agora aparecem como sendo um, e desta maneira, não há mais distinção desde o acontecimento que levou à morte o Governador Geral.

Não obstante, cabe ressaltar que em certa medida, o modo próprio que a perspectiva de ciência aparece nessa ficção, ou antes mesmo roteiro de cinema, consiste, sobretudo, em outra maneira possível de dissimulação. Dito de outro modo: ora, se a partir do texto de Rubem Fonseca, afirmamos a pouco, que a perspectiva de ciência que aparece dá-se de modo que esteja voltada para a continuidade dos abismos sociais, isso mostra-se desde uma possível dissimulação, na medida em que a ciência e a tecnologia, referenciadas em uma perspectiva fundada em uma razão técnica, aparecem de modo que alguns aspectos da realidade sejam evidenciados, privilegiados, e outros, ocultados, encobertos, e assim sendo, a ciência e a técnica, ao menos nesta ficção de Fonseca, mostra-se desde uma dissimulação, de maneira que a alteração e, em certo sentido, a inversão radical da condição histórica da cidade moderna na forma de ruínas, não seja o interesse ou a perspectiva visada.

Portanto, em “O quarto selo (fragmento)” de Rubem Fonseca, o que aparece nesta perspectiva possível de ciência e tecnologia, referenciada que é em uma razão técnica que instrumentaliza o Estado e a indústria bélica na sua prática política fundada na violência, consiste, sobretudo, em uma perspectiva 12

possível de ordenação hierárquica em torno do problema do conhecimento, na medida em que dissimula e encobre alguns aspectos da realidade histórica da cidade moderna em detrimento do privilégio de outros aspectos da realidade, que por sua vez, são de interesse para a continuidade e permanência das desigualdades sociais levadas ao extremo.

Referências



BENJAMIN, W. Obras escolhidas v. I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.



FONSECA, R. Contos Reunidos. Organização: Boris Schnaiderman. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.



BRITO, B. Lógica do Disparate. Vitória: Edufes; CCHN Publicações, 2001

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