Cilla e Rolf Börjlind: Maré viva (Springfloden) — amostra de tradução do sueco

June 29, 2017 | Autor: Luciano Dutra | Categoria: Swedish Literature, Translation and literature, Brazilian Portuguese, Nordic Noir
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Cilla e Rolf Börjlind

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... enquanto a noite cai inexorável. Cornelis Vreeswijk

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Final do verão de 1987

Normalmente, a diferença entre as marés alta e baixa na Hasslevikarna, a enseada da ilha de Nordkoster, é de cinco a dez centímetros, salvo quando há maré viva, fenômeno que ocorre quando o Sol e a Lua entram em alinhamento com a Terra. Então, a diferença é de quase meio metro. A cabeça de uma pessoa tem por volta de 25 centímetros de altura. Naquela noite, haveria maré viva.

No momento, porém, ainda era maré baixa. Há várias horas, a lua cheia fazia o mar indômito recuar, deixando à mostra uma longa faixa encharcada do fundo do mar. Caranguejos pequenos e reluzentes se espalhavam por todos os lados na areia, como se fossem reflexos brilhantes da claridade azul. Os caracóis se agarravam com força às rochas, onde passavam o tempo. Todas as criaturas vivas do fundo do mar sabiam que, em breve, a maré iria subir, cumprindo o seu ciclo. Três vultos na praia também sabiam disso. Na verdade, sabiam quando aquilo iria ocorrer, precisamente dali a quinze minutos. Então, as primeiras ondas suaves se espraiariam lentamente, molhando tudo o que havia ressecado, e logo a pressão daquele estrondoso escuro arremeteria uma onda atrás da outra até que a maré alta atingisse o seu pico. Era a maré viva. Mas eles ainda tinham algum tempo. O buraco que estavam cavando estava quase finalizado. Era de pouco mais de metro e meio de profundidade e uns sessenta centímetros de diâmetro. Um corpo se ajustaria perfeitamente nele. Somente a cabeça ficaria de fora.

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A cabeça do quarto vulto. A cabeça que pertencia à mulher que estava parada logo adiante, com as mãos amarradas. Seus longos cabelos negros flutuavam com suavidade sob a brisa intermitente. Seu corpo nu reluzia, o rosto sem maquiagem e sereno. Os olhos revelavam uma ausência assombrosa. Alheia, ela assistia enquanto os outros vultos cavavam a cova. O homem que segurava a pá tirou a lâmina curva do buraco, jogou a areia para a direita e se virou. Havia terminado o trabalho. A distância, no rochedo onde o menino estava escondido, pairava uma tranquilidade extraordinária naquela praia enluarada. O que estariam fazendo aqueles vultos escuros na areia lá longe? Ele não sabia, mas escutou o ruído vindo do mar e viu a jovem nua sendo arrastada pela areia molhada, aparentemente sem oferecer resistência, e em seguida enfiada em um buraco. O menino mordeu o lábio inferior. Um dos homens jogava areia com a pá. A areia empapada moldavase como cimento molhado em volta do corpo da mulher. O buraco foi preenchido com rapidez. Quando as primeiras ondas esparsas avançaram na direção da praia, apenas a cabeça da mulher ainda estava de fora. Aos poucos, a água foi molhando seus cabelos longos e escuros. Um caranguejo ficou preso numa das madeixas. Calada, ela olhava fixamente para a lua. Os vultos se afastaram um pouco em meio às dunas. Dois deles pareciam irrequietos, hesitantes, enquanto o terceiro se mantinha calmo. Todos os três observavam aquela cabeça solitária iluminada pelo luar, ao longe, acima da linha da água. E esperavam. A maré viva chegou subitamente. A altura das ondas subia a cada marulho, passando por cima da cabeça da mulher, entrando por sua boca e seu nariz. A garganta se encheu de água. Então, ela se encolheu, mas outra onda atingiu seu rosto em cheio. Um dos vultos foi até perto dela e se agachou. Seus olhos se encontraram.

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Da distância onde estava, o menino conseguia observar como o nível da água ia subindo. A cabeça desaparecia embaixo da água, depois voltava a aparecer apenas para desaparecer mais uma vez. Dois dos vultos já tinham ido embora, o terceiro ia se esgueirando praia acima. De repente, ouviu-se um grito assustador. A mulher dentro daquele buraco estava fora de si. Seu grito ecoou na planura da enseada e subiu até o rochedo onde o menino se encontrava, antes que a onda seguinte engolfasse sua cabeça, abafando o grito. Então, o menino saiu correndo.

O mar subiu e se acalmou, escuro e reluzente, e a mulher fechou os olhos debaixo da superfície. A última coisa que sentiu foi outro pontapé, suave e delicado, dentro de seu ventre.

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Verão de 2011, Estocolmo

Vera “Zarolha” na verdade tinha dois olhos normais e um olhar capaz de paralisar até mesmo um falcão em pleno voo. Sua visão era perfeita, mas falava com a sutileza de uma matraca. Começava expondo a sua própria opinião e depois prosseguia, distribuindo contrapontos a torto e a direito. Zarolha. Mas amada. Naquele momento, deitada de bruços sob um sol poente, os últimos raios de luz avançavam sobre a baía de Värta, subiam pela ponte de Lidingö e chegavam até o parque de Hjorthagen com intensidade suficiente para criar uma bela aura de contraluz em volta da silhueta de Vera. — Essa é a minha realidade! A veemência de sua afirmação impressionaria qualquer bancada parlamentar, embora sua voz estridente devesse soar bastante deslocada em qualquer plenário. E talvez sua indumentária também: duas camisetas velhas de cores diferentes e uma saia de tule que já viu dias melhores. Além dos pés descalços. No entanto, ela não se encontrava em plenário algum, mas sim num parque perto do porto de Värta, e a bancada parlamentar era formada por quatro moradores de rua espalhados em alguns bancos entre os carvalhos e arbustos do parque. Um deles era um sujeito alto e taciturno que estava sentado sozinho, absorto em seus pensamentos. Noutro banco, estavam Benseman ao lado de Muriel, uma jovem drogada do bairro de Bagarmossen que tinha no colo uma sacola plástica com o logotipo de um supermercado.

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Arvo Pärt dormitava no banco bem em frente. Num dos cantos do parque, escondidos em meio aos arbustos espessos, dois rapazes vestidos de preto estavam agachados e, em silêncio, espreitavam atentamente aqueles bancos. — Essa é a minha realidade, não a deles! É ou não é? — perguntou Vera Zarolha, apontando para um ponto, a certa distância. — Eles simplesmente chegaram e bateram na janela do trailer, não me deram tempo nem de colocar meus dentes! Eram três caras. Eles ficaram ali só olhando, então eu perguntei que diabos eles queriam. — Somos da prefeitura. O seu trailer tem que sair daqui. — Mas por quê? — Porque vai haver uma obra no parque. — Que obra? — Vamos construir uma pista. — Uma o quê? — Uma pista para caminhadas que vai passar bem por aqui. — Mas que história é essa? Não tenho como tirar o trailer daqui! Eu não tenho carro! — Lamento, mas esse não é problema nosso. O trailer deve ser retirado daqui até a próxima segunda-feira. Vera Zarolha respirou fundo e Jelle aproveitou para bocejar, o que fez discretamente, pois Vera detestava que alguém bocejasse quando ela fazia um de seus discursos. — Vocês estão entendendo? Lá estavam aqueles três caras, aqueles filhotes dos arquivos de aço dos anos 1950, me dizendo que eu tinha que saltar fora. E pra quê? Pra que uns idiotas barrigudos possam correr pra se livrar da pança caminhando bem pelo meio da minha casa? Vocês estão entendendo por que eu fiquei tão furiosa? — Sim, entendemos — disse Muriel, a única a responder. Muriel tinha uma voz de taquara rachada, muito fina e ao mesmo tempo áspera, e não conseguia fazer nada se antes não aplicasse um pico na veia. Vera balançou os seus ralos cabelos ruivos e voltou à carga:

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— No fundo, não é por causa da porra de uma pista, mas sim por toda essa gente que sai pra passear por ali com os seus ratos peludos e acha que alguém como eu só serve pra estragar a paisagem dessa merda de bairro chique deles! Não, eu não me encaixo na realidade elegante deles! É isso aí! No fundo, estão cagando pra gente! Então, Benseman se inclina um pouquinho à frente e diz: — Mas, Vera, eu até consigo entender que eles... — Vamos embora já, Jelle! Vamos! — disse Vera, dando duas ou três passadas bem largas e segurando Jelle pelo braço. Ela realmente não estava nem um pouco interessada em ouvir a opinião de Benseman. Jelle se levantou, deu de ombros e acompanhou-a. Não sabia muito bem para onde. Benseman fez uma careta complacente, pois conhecia Vera muito bem. Com as mãos um pouco trêmulas, acendeu uma bagana toda amassada e abriu uma cerveja — som que fez Arvo Pärt despertar: — Agora nóis se diverte! Arvo Pärt era um estoniano de segunda geração, seus pais haviam fugido para a Suécia durante a guerra. Ele tinha uma forma peculiar de se expressar. Muriel esperou Vera se afastar e, então, se virou na direção de Benseman e disse: — Acho que ela tem razão no que diz, se a gente não se encaixa num lugar, mandam a gente embora... Não é? — É, acho que sim... Benseman era do norte da Suécia, conhecido por seu aperto de mãos desnecessariamente forte demais e pelo branco dos olhos macerado pelo álcool. Corpulento, tinha um sotaque acentuado e um hálito rançoso exalado de quando em quando entre os poucos dentes que ainda tinha na boca. No passado fora bibliotecário em Boden, era bastante letrado e também bastante dado às bebidas alcoólicas. A todas elas: desde o licor de amora silvestre até a clandestina aguardente caseira. Abuso que, num período de dez anos, levou a sua vida social ao fundo do poço, até que acabou levando ele próprio, num furgão roubado, até Estocolmo. Lá chegando, ele ia sobrevivendo de esmolas ou pequenos furtos, ou então juntando restos de comida no lixo.

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Mas era letrado. — ... a gente vive meio que por caridade — disse Benseman. Pärt meneou a cabeça concordando e se esticou para pegar a cerveja. Muriel puxou um saquinho de plástico e uma colher. Benseman reagiu irritado: — Você devia era se livrar desta porcaria! — Eu sei. Vou me livrar disso. — Quando? — Agora! E se livrou mesmo, no ato. Não porque ela não quisesse um pico, mas porque viu de repente dois rapazes se aproximando lentamente de trás das árvores. Um deles vestia um casaco preto com capuz. O outro, um casaco verde-oliva. Ambos com calças de moletom, coturnos e luvas. Eles estavam à caça. O trio de moradores de rua reagiu relativamente rápido. Muriel agarrou o seu saquinho plástico e saiu correndo. Benseman e Pärt foram atrás dela, aos trancos e barrancos. De repente, Benseman se lembrou da segunda lata de cerveja que tinha escondido atrás da lixeira. Aquilo podia fazer a diferença entre uma noite bem dormida ou maldormida. Então, deu meia-volta e correu aos solavancos até a frente de um dos bancos. Seu equilíbrio não estava dos melhores. Tampouco seu tempo de reação. Quando tentou se erguer, levou um tremendo pontapé direto no rosto e caiu de costas. O rapaz de casaco preto estava bem na sua frente. O outro rapaz tirou o celular do bolso e ligou a câmera. Esse foi o prelúdio de uma sessão de espancamento especialmente sádica, filmada por eles ali, numa parte do parque de onde ninguém ouvia nada, e à vista de apenas duas testemunhas apavoradas que se esconderam atrás de um arbusto ao longe. Muriel e Pärt. Porém, mesmo a distância, eles conseguiram ver o sangue escorrendo pela boca e por uma das orelhas de Benseman, e também conseguiram escutar os gemidos abafados a cada golpe que atingia o diafragma e o rosto.

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Um golpe depois do outro. E mais outro. O que eles não conseguiram ver foi quando os poucos dentes de Benseman se chocaram contra a parte de dentro das faces e atravessaram a carne até sair pela pele. Porém, eles viram quando aquele robusto cidadão do norte tentou proteger seus olhos. Os olhos que ele usava para ler. Muriel chorava baixinho, cobrindo a boca com o braço coberto de cicatrizes de injeção. Seu corpo descarnado tremia por inteiro. Até que, por fim, Pärt pegou a jovem pela mão e a levou para longe daquela cena abominável. Não havia nada que eles pudessem fazer mesmo. Bem, poderiam chamar a polícia. Sim, isso podiam fazer, Pärt pensou, arrastando Muriel consigo o mais rápido que conseguia, na direção de uma avenida movimentada, a Lidingövägen.

Levou um tempo até o primeiro carro aparecer. Pärt e Muriel começaram a gritar e agitar os braços quando o carro ainda estava a uns cinquenta metros de distância. Ao ver aquilo, o motorista se desviou deles e passou batido. — Filhos da puta! — Muriel gritou. O próximo motorista a passar abraçava a esposa sentada no banco do passageiro, uma senhora elegante que usava um lindo vestido vermelho. Então, a mulher olhou pela janela do carro e disse: — Não vá atropelar esses drogados logo hoje, lembre-se que você andou bebendo umas e outras. Assim, aquele Jaguar prateado também passou batido.

No momento em que uma das mãos de Benseman era quebrada a pontapés, o crepúsculo começava a cair sobre a baía do Värta. O rapaz que estava filmando desligou a câmera e o outro pegou a cerveja que Benseman tinha deixado para trás.

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Depois, fugiram dali correndo. Restaram apenas a escuridão e aquele homenzarrão do norte caído ali no chão. Sua mão fraturada se arrastou um instante pelo cascalho, ele tinha as pálpebras fechadas. Laranja mecânica — foi a última coisa que passou pela cabeça de Benseman. Quem foi mesmo que escreveu aquele livro? Depois disso, sua mão parou de se mexer.

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