\"Cinderela é de menina!\": gênero, mídia e consumo numa turma de crianças

July 24, 2017 | Autor: Michele Escoura | Categoria: Género, Consumo, Princesas, Mídia
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“Cinderela é de menina!”: gênero, mídia e consumo numa turma de crianças1. Michele Escoura (UNESP).

Pensar em gênero é, ao menos, também pensar em construções culturais sobre o corpo, sobre a subjetividade e sobre a prática cotidiana de indivíduos. Se, por curiosidade, andarmos pelos corredores de uma maternidade, tão logo perceberemos o gênero, enquanto um marcador social da diferença, definindo e delimitando as identidades: já aos primeiros suspiros de nossa existência, as classificações entre o “ser menina” e o “ser menino” começam ser operadas, adornos cor-de-rosa e azuis pendurados nas portas dos quartos passam a comunicar as “feminilidades” e “masculinidades” daquelas/es que acabam de nascer e indicam que o processo social de construção da subjetividade de gênero foi, ali, iniciado. Partindo da perspectiva feminista sobre o cinema de Teresa de Lauretis (1994), tomei o filme Cinderela de Walt Disney como uma “Tecnologia de Gênero” que, no âmbito de sua produção, é técnica e instrumentalmente construído de forma a promover e conformar identidades de gênero e, na pesquisa de campo realizada numa escola municipal de educação infantil, coloquei-o ao crivo das/os pequenas/os espectadoras/es visando compreender, também, quais são os significados dele apreendidos no âmbito de sua recepção. Dividida em dois movimentos, a pesquisa de campo foi composta primeiro pela observação das relações estabelecidas entre as crianças e entre elas e as/os adultas/os da escola cotidianamente (assunto do qual tratarei aqui) e, em seguida, pela observação dessas relações após a exibição do filme Cinderela, para analisar, então, quais as leituras feitas pelas crianças sobre o filme. Nesta pesquisa, as construções de gênero nos anos iniciais de socialização são tomadas como lócus para a análise e examinadas a partir de uma etnografia com crianças de quatro e cinco anos de camadas populares na cidade de Marília, interior do estado de São Paulo. Não se pretendendo exaustiva ou conclusiva, muito mais descritiva do que propriamente teórica, essa apresentação, atendo-se ao primeiro momento da pesquisa, busca elucidar minhas 1

Esta apresentação é fruto da Pesquisa de Iniciação Científica “De Borralheira à Princesa: Cinderela e as construções de gênero na infância”, ainda em andamento, que conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e orientação da Profª. Drª. Heloisa Buarque de Almeida, docente do departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).

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dificuldades e acertos em um campo ainda tão pouco explorado, trazer as crianças como sujeitos portadores e produtores de cultura, mostrar o gênero enquanto um importante marcador de diferença na infância e a incorporação dos produtos midiáticos entre as crianças.

Entrando no campo: constituindo laços e relações de reciprocidade. Da janela de minha casa posso ver a movimentação diária de crianças e mães rumo à escola. Localizada entre bairros residenciais de população de alta e baixa renda econômica, a EMEI2 está na intersecção entre uma das principais avenidas da cidade – onde há clínicas médicas, bares e restaurantes, condomínios de prédios residenciais, academias, agências bancárias e um dos maiores clubes recreativos de Marília – e os bairros populares de onde veem as crianças. Era cedo quando cheguei apreensiva ao primeiro dia de trabalho de campo. Devido a restrições municipais sobre o acesso de “estagiárias”3 nas escolas infantis, ao contrário do que esperava, minha entrada no campo não tinha sido acordada pelas partes diretamente envolvidas na questão, eu não havia sido aceita pelas pessoas que lá estavam, mas sim a partir de uma autorização do órgão que regulamentava aquela instituição, algo que, efetivamente, poderia ser interpretado como uma imposição da minha presença naquele espaço. A apreensão em saber como eu seria recebida, foi logo surpreendida com a reação da diretora, da vicediretora e da coordenadora: bastante receptivas, todas queriam saber sobre a pesquisa, qual o curso que eu fazia, de onde eu vinha, etc., queriam certificar-se de que eu era uma “boa menina” e não representaria um perigo às crianças ou à administração da escola.

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pareciam incomodadas com a minha presença, pelo contrário, minha disposição em “ajudar” na escola tornava-me aceita e bem quista, principalmente em tempos de falta de estagiárias. O meu posicionamento como pesquisadora-ajudante logo se tornou um importante instrumento de troca, fazendo-me ser acolhida nos espaços da escola por meio da idéia de que eu estava lá para “ajudar”: eu poderia pesquisar, desde que, em troca, desse “uma mãozinha”. Assim como no Ensaio sobre a Dádiva de Mauss (2003), o sistema de trocas recíprocas permitiu a criação de alianças dentro da escola e laços de confiança mútua entre mim e as

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Sigla oficial de “Escola Municipal de Educação Infantil”. A restrição devia-se ao tempo de adaptação à “Lei do Estagio” nas instituições municipais.

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educadoras: como ficou bastante evidente em minha relação com a professora da turma que fui indicada para acompanhar: a “Tia Joana4”. No momento em que fomos apresentadas, no primeiro dia do trabalho de campo, Joana, diferentemente das outras educadoras da escola, não demonstrou nenhuma satisfação em me ver. Andando em direção ao pátio enquanto eu explicava os objetivos da pesquisa, a professora não dava sinais de estar interessada no que eu tinha para dizer. Insegura com a situação, continuei falando sobre o projeto, sobre a Cinderela e sobre o quanto eu estava interessada em observar as crianças. Foi então que, parada diante as crianças no pátio, ela finalmente retrucou: “mas você não vai mudar a minha aula, né?”. Nesse instante percebi qual era o impasse que nós duas estávamos colocadas: Joana temia que eu “atrapalhasse” o andamento de suas atividades com as crianças, ainda mais depois do caráter quase impositivo do meu acesso, supondo que a pesquisa poderia colocar em risco a sua autoridade na sala de aula e desviar o seu ritmo de trabalho. Respondi que não. Expliquei-me dizendo que o principal objetivo era eu poder me relacionar com as crianças, observar também como elas relacionam-se entre si e, em alguma altura da pesquisa, passado mais de um mês5 e sob seu consentimento, exibir o filme da Cinderela, observando as reações das crianças. E, finalmente, coloquei-me a disposição para ajudar em que ela precisasse. A professora, tranqüilizada e já com as crianças acomodadas na “salinha”, então apresentou-me: naquele momento eu me tornei a “Tia Michele”.

Primeiras impressões: conhecendo a Tia Michele. Amontoadas em grupos referentes às turmas nas quais pertencem, as crianças esperavam suas professoras virem buscá-las no pátio da creche. Era a primeira vez que eu tinha contato com elas e me assustava perceber o quanto eram “pequenininhas”. Fiquei num canto, tentando me esconder e, ao mesmo tempo, entender toda aquela agitação. Sem saber muito bem para onde ir e o que fazer, fiquei perto de Joana tentando conhecer os rostinhos que aglomeravam ao seu redor. Minha presença, por essas alturas, já provocava a curiosidade das crianças fazendo surgir, por vezes ou outras, um “oi tia!” vindo do pátio. A presença da 4

Todos os nomes dos agentes da pesquisa foram trocados por pseudônimos. A pesquisa de campo foi feita em três dias da semana durante todo o período da manhã, enquanto as crianças estavam na escola, e percorreu os meses de março, abril, maio e junho de 2009.

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professora parecia indicar que era hora de parar de correr, pois bastou ela se aproximar para as crianças tomarem o seu rumo e organizarem-se em filas: uma “de menino” e outra “de menina”. Ao lado, eu já podia reconhecer outras três professoras, vestidas com camisetas com o emblema da prefeitura, formando suas respectivas filas. Depois de contarem de um a dez, orarem para o “Papai do céu” e rezarem o “Pai Nosso” em conjunto, as crianças seguiram a professora para a sala de aula. Apertada e pouco ventilada, a “salinha” é revezada por duas professoras durante o período da manhã: Joana fica com as crianças do Infantil II, do grupo de cinco anos, até a hora do lanche e Sueli com as crianças do Infantil I, de quatro anos, depois da refeição. No revezamento, enquanto as turmas não estão na sala de estudo, estão no parque: o ambiente preferido das/os pequenas/os. De modo geral, a rotina das crianças permanece sempre a mesma: chegam, organizam filas, rezam, fazem as atividades na “salinha”, lancham e brincam. Muito rapidamente me envolvi no cotidiano da turma e, tão logo também, as crianças se acostumaram comigo. Apesar de me reconhecerem enquanto uma autoridade perto delas, não sei se devido eu ser “grande” e adulta, ou devido o meu posicionamento como uma outra “Tia”, ainda assim eu não era tratada como uma “Tia normal”: eu brincava com elas, ficava sabendo das travessuras e não brigava, não dava bronca e não colocava de castigo como a “Tia Joana” fazia, era afinal a “Tia” diferente. E em poucos dias de trabalho de campo, já recebia flores colhidas no caminho à escola, abraços calorosos na sala de aula e “oi Tia” quando caminhava pela rua: era o que Flávia Pires (2007), em sua pesquisa com crianças em Catingueiras, na Paraíba, chamou de “relação de cumplicidade e confiança”. Assim como por ela destacado, uma das grandes dificuldades na realização da pesquisa antropológica com crianças reside na distância entre o estatuto da criança e o estatuto do adulto: uma cisão geracional que estabelece diferentes comportamentos esperados entre “mais novos” e “mais velhos”. Enquanto, por exemplo, de uma criança espera-se que ela mantenha-se comportada e respeitosa frente à autoridade do adulto, de um adulto “espera-se que ele não deixe as crianças fazerem muita algazarra ou que, pelo menos, coloque ordem na bagunça quando for preciso” (PIRES, 2007, p. 231). Assim, ser adulta e pesquisar criança, de certo modo, é assumir o desafio de cambalear entre esses dois estatutos, procurando, na maioria das vezes, não acioná-los.

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Quando a pesquisa, por sua vez, transcorre dentro de uma escola, a conquista da relação de cumplicidade e confiança entre uma pesquisadora adulta e as crianças é ainda mais difícil, pois uma das particularidades do ambiente escolar é justamente a institucionalização da autoridade adulta. Alternativa aos impasses dessa relação adulto-criança, como destaca a autora, surge a “Tia” diferente. Era a hora de, em seus termos, “ser assimilada pelas crianças como uma adulta diferente. Uma adulta que interage com elas, seja brincando, seja conversando, seja discutindo” (PIRES, 2007, p. 234). Ser a “Tia Michele” não era ser como as outras “tias”, era ser diferente, era tentar estabelecer uma relação profícua com as crianças e o universo por elas operado.

Cinderela, mídia e consumo. Desde que iniciei o trabalho de campo, meu olhar se colocava sempre a procura de vestígios de Cinderela e já na primeira semana encontrei-a. Em meio às pastas de plástico com o caderno de atividades, padronizadas pela forma e tamanho, mas diferenciadas por cores e etiquetas, reconheci a personagem dentre as Princesas do mundo Disney. Na pasta vermelha de Juliana, um enorme adesivo colorido traz Cinderela, Bela Adormecida, Branca de Neve, Bela e Ariel alegremente reunidas. Nas demais pastas, apenas pequenos adesivos pautados, às vezes ilustrados, indicam a quem elas pertencem. Assim como destaca Heloisa Buarque de Almeida (2003 e 2007), para além da promoção de imagens, a mídia tem o poder de promover também o consumo. Debruçando-se na correlação entre televisão e publicidade, a autora localiza a telenovela em dois pólos de sustentação do consumo: o consumo cotidiano da própria narrativa melodramática da novela, de suas personagens e estrutura folhetinesca, exige do público um domínio sobre a linguagem na qual a narrativa se desenrola – comumente assentada sob referenciais simbólicos de grandes centros urbanos e de consumo do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde as tramas se desenrolam – o que, por sua vez, faz da telenovela uma grande vitrine de novos produtos, valores e costumes e acaba por promover o consumo. Em se tratando de Cinderela, materiais escolares, mochilas, decorações de festas infantis, fantasias, roupas estampadas, calçados, roupas de cama e banho, brinquedos e adesivos (dentre tantas outras coisas) sob a rubrica Disney de “As Princesas”, faz com que

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Cinderela ou “A Princesa” – como é identificada entre as crianças – seja consumida, além de seu filme. Cinderela, antes do filme, é consumida pelas coisas que as crianças carregam. Curiosamente, apesar da imensa variedade de produtos estampados com a imagem da princesa, afora o adesivo na pasta da Juliana, eles pouco aparecem sendo consumidos por essas crianças. De modo geral, as crianças da creche não preenchem um pré-requisito fundamental para o consumo: o dinheiro necessário para consumir. Seja por suas roupinhas surradas, desbotadas e aparentemente de segunda mão, ou seja pelos chinelinhos de plástico e pelo material escolar modesto, a maioria das crianças da Tia Joana demonstram vir de famílias com pouco poder aquisitivo e, consequentemente de consumo. De filhas de manicures, filhos de operários da indústria alimentícia local ou netos de catadores de materiais recicláveis, a turma da creche pouco acesso tem aos produtos disponíveis pela sociedade de consumo. Não que todas aquelas crianças não pudessem consumir os produtos oferecidos a partir dos referenciais midiáticos, rotineiramente com maior custo6, mas que, até onde pude notar, grande parte delas encontram-se restringidas ao consumo da maioria desses produtos, dificultando, ao menos em termos quantitativos, suas aparições no cotidiano da pesquisa. Contudo, é necessário ainda destacar que, apesar do número reduzido, os bens de consumo especialmente voltado ao público infantil (como os produtos das Princesas) estão presentes mesmo entre as crianças provindas de camadas populares da sociedade. A enorme diversidade de produtos disponíveis no mercado, enquanto promovem a intensificação do consumo a partir da sobre-exposição das personagens nas vitrines e propagandas publicitárias, conseguem, ao mesmo tempo, atingir crianças de todas as classes sociais: ao invés de uma mochila da Cinderela, que custa por volta de 139,90 a 169,007 reais, uma criança de baixo poder aquisitivo consome um adesivo, com a mesma princesa ilustrada, vendido por dois reais no mercado popular e coloca-o em sua pasta vermelha de caderno de atividades.

Mídia e consumo: entre diferenciações de gênero e classe social.

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Um produto vendido com a marca Princesas, ou de outros personagens famosos com apelo infantil, tende a ser mais caro do que outro similar sem personagens ou com personagens menos populares entre as crianças. Esse foi o caso dos Ovos de Páscoa que serão adiante discutidos. 7 Segundo o site de comparações de preços http://www.buscape.com.br em 05/05/2009.

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Diferenciações são em todos os instantes acionadas entre as crianças. Por meio de brincadeiras de meninas e meninos, chinelos novos do Homem Aranha, ou por personagens favoritos da TV, ou ter o último DVD dos Power Rangers, as classificações e distinções de gênero e classe social são constantemente operadas. Nessas primeiras semanas de pesquisa de campo, dentre diversos momentos em que as noções de gênero e classe social revelaram-se, essas noções vinham acompanhadas também pela correlação entre mídia e consumo, como elucidado pelo caso dos adesivos e pelo caso dos Ovos de Páscoa. Como foi acima descrito, as pastas escolares utilizadas pelas crianças são todas padronizadas. Ainda que diferenciadas por cores, quatro ou cinco misturam-se entre as pastas vermelhas, as azuis, as verdes ou as amarelas, indistinguíveis entre si, a não ser pelas etiquetas. Juliana é a única que tem um adesivo enorme – o das Princesas – colado na frente de sua pasta, esquivando-se da necessidade de ter o nome escrito nela para ser identificada como sua dona, mas as demais pastas são correspondidas às crianças a partir de pequenas etiquetas adesivas coladas no rodapé do material com seus respectivos nomes. Facilitando o trabalho da professora ao distribuir as pastas para a turma de crianças alvoroçadas, as etiquetas se tornaram um importante instrumento de distinção entre as crianças. Coloridas, desenhadas, detalhadas ou simplesmente brancas, o adesivo além de cumprir com sua função de identificação, acabou cumprindo também a função de diferenciação: ter um adesivo “melhor” que o outro faz da/o dona/o da pasta mais especial. Sentado ao meu lado pela primeira vez, Alex ficou satisfeito em ver sua pasta sob a mesa. O menino tinha acabado de ouvir-me perguntando à Juliana qual das princesas em sua pasta ela mais gostava (e ela ter respondido que gostava “mais de todas”) quando, puxando minha camiseta para chamar-me a atenção, disse: “olha tia, a minha é do Hot Wheels8!”. Uma etiqueta, naquele caso, não era simplesmente uma etiqueta. A borda espessa, ilustrada por dois carros de corridas soltando faíscas de seus pneus e inscrita com Hot Wheels fazia daquela etiqueta muito mais que um instrumento de identificação: para as crianças, elas podem representar suas próprias identidades. As imagens do Hot Wheels estampadas nas pastas e cadernos de Alex personalizam o material escolar do garoto, colocando-o em correlação e distinção aos materiais escolares dos 8

Hot Wheels é uma marca de carros de brinquedo, introduzida pela indústria de brinquedos estado-unidense Mattel em 1968, que, atualmente, além das miniaturas de carros de corrida colecionáveis, produz filmes, desenhos e uma grande diversidade de bens voltados ao público infantil.

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demais: ter uma etiqueta de um famoso desenho ou ter uma etiqueta simples, branca e sem qualquer referência a personagens infantis, demarca a posição social daquelas crianças entre si. Uma vez em que estamos aqui tratando de crianças de camadas populares da sociedade mariliense, os produtos por elas consumidos tendem a ser aqueles com menores custos – por exemplo, uma pasta de plástico sem estampa ao invés de uma pasta estampada com o personagem favorito de desenho – e até mesmo aqueles que, aparentemente, são indiferenciáveis pelo baixo custo, como etiquetas adesivas, as crianças encontram formas de se diferenciarem: um adesivo das Princesas ou do Hot Wheels colado na pasta mostra que aquela criança pode ter um adesivo especial em sua pasta, e não um adesivo “comum” como as demais. Estabelecendo marcações de classes econômicas entre as crianças – e o significado de estar entre o limite de ter e não ter – os bens consumidos em sala de aula, ainda que sutilmente, revelam as classificações e diferenciações que são operadas entre os indivíduos. No bojo desse sistema, mais um marcador da diferença emerge: o gênero. Enquanto as etiquetas simples, sem desenhos, demarcam o baixo poder de consumo de quem a detém, as etiquetas “personalizadas” além de representar uma forma de diferenciação econômica, por trazerem comumente personagens infantis, exerce a diferenciação de gênero entre as crianças: meninos consumem etiquetas do Hot Wheels ou do Homem Aranha e meninas consumem das Princesas ou da Barbie. Deste modo, o consumo revela-se “generificado”, ou seja, diferenciado a partir dos produtos ofertados sob as demarcações de “feminilidade” e “masculinidade”. Nesse sentido, um processo similar de diferenciações foi evocado pelo caso dos Ovos de Páscoa. Como finalização das atividades comemorativas da Páscoa, a professora pediu para que as crianças, no caderno de tarefas do final de semana, colassem as embalagens dos Ovos de Páscoa que ganhassem e depois escrevessem embaixo o “nome da marca do ovo”. Com pastas de tarefas entre as mãos, as crianças partiram para o feriado prolongado de páscoa. Na semana seguinte, como já é de costume, fui colar nos cadernos das crianças a próxima tarefa e aproveitei para olhar como elas haviam se saído na tarefa anterior. Provavelmente, o objetivo da atividade residia no incentivo à alfabetização, em as crianças deterem-se na escrita de palavras que estão cotidianamente em seu vocabulário, como marcas de produtos. Contudo, a princípio, três questões podem ser levantadas a partir da “singela” tarefa: 1) em nenhum momento previu-se a possibilidade de alguma criança não ganhar um ovo de páscoa; 2) não se

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pensou sobre o possível estímulo ao consumo ao atentarem-se sobre marcas e produtos; 3) e, por fim, que a atividade pudesse ser utilizada como base a classificações e discriminações entre as crianças. Em primeiro lugar, a atividade proposta partia do pressuposto de que todas as crianças receberiam ao menos um ovo de páscoa para colar a embalagem na tarefa, independentemente das condições financeiras impostas ao consumo à disposição, ou não, das famílias para a comemoração que, ao fundo, é religiosa. Se uma criança provinda de uma família com restritas condições ao consumo de ovos de páscoa ou de uma religião não-cristã, por exemplo, não ganhassem o presente, elas estariam excluídas da tarefa daquele final de semana. Em seguida, a propósito da alfabetização, a atividade exigia a atenção das crianças – e daqueles que as auxiliam na tarefa – para a diferenciação dos produtos ofertados ao consumo no mercado, o que, consequentemente, abre as portas para a diferenciação entre os consumidores. Discriminações de classe e gênero foram postas em operação durante a tarefa. Enquanto via as embalagens dos ovos, percebia a nítida diferenciação econômica das crianças ali presentes: umas tinham ovos da Barbie, da Polly, do Hot Wheels e do Ben 109, de grandes marcas disponíveis no mercado nacional, enquanto outras tinham ovos da “Top Cau” ou ovos sem marca que traziam nas embalagens apenas os dizeres “Feliz Páscoa”. Eu estava com o caderno do Alex aberto, vendo seu “Kinder Ovo” quando, do meu lado, o menino reconheceu o seu ovo e exclamou: “é o meu tia!”. No mesmo instante, Luan, sentado na fileira ao lado, retrucou: “ele achou no chão, tia”. Alex, constrangido, tentou se defender. Disse que não havia encontrado no chão, como Luan o acusava, mas que tinha ganhado de presente de seu pai no dia da páscoa. Eu, no meio da discussão, virei a página do caderno com a esperança de mudar o foco das atenções e os meninos pararam de brigar. O que estava em discussão entre aqueles dois meninos era o poder, ou não, de consumir um “Kinder Ovo”, um produto com alto valor de mercado, considerado “caro” em relação aos outros ovos de chocolates. Luan, para desmoralizar o colega, atacou o seu poder

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Barbie é uma famosa boneca criada em 1959 e produzida pela Mattel que, por décadas, têm encantado crianças de todo o mundo e espelhado a criação de novas bonecas, como, por exemplo, a Polly, também produzida pela Mattel a partir de 1999, diferenciada pelo menor custo. Já Ben 10, é o personagem de uma animação estadunidense baseada em animes japoneses onde Ben, o garoto de 10 anos, após encontrar um relógio que guarda o DNA de 10 espécies alienígenas diferentes, passa a ajudar as pessoas e a combater o mal e os seres alienígenas que decidem atacar a terra. O desenho é produzido pelos estúdios de Cartoon Network desde 2005 e além de ser exibido pela rede de televisão paga, é também veiculdado pelo canal SBT da TV aberta.

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sobre o consumo – parte-se do pressuposto que quem pega algo “do chão”, não paga por ele – e a ofensa sentida por Alex advém de sua possibilidade de consumo ser questionada: agora ele “tinha” que me convencer que aquele “Kinder Ovo” realmente era dele: o que estava em jogo ali era a própria posição de classe do garoto, pelo Luan atacada e por ele defendida. Adiante nas tarefas, deparei-me com a embalagem de um ovo do High School Musical 10

3 colada no caderno do Cássio. Afora a deturpação do propósito alfabetizador da atividade, uma vez que a grande maioria das marcas dos ovos transcrita pelas crianças estava na língua inglesa já que se tratavam de produtos “internacionalizados”, chamou-me atenção um bilhete, escrito a mão e assinado pela mãe do menino, ao lado da tarefa. No recado, destinado à professora, a mãe dizia que o Cássio ganhara um ovo de páscoa do Hot Wheels, mas como já tinha comido-o e descartado a embalagem, ela “teve” que colocar o do High School Musical ganho pela irmã. Aparentemente comum, o bilhete demonstra uma preocupação da diferenciação de gênero orientada pelo consumo. Enquanto marcas mais “populares”, de custo mais acessível às famílias de baixo poder aquisitivo, não fundamentavam uma distinção de gênero entre os produtos – aparentando estarem voltados à um mercado consumidor “unissex” –, as marcas mais valorizadas (com exceção do “Kinder Ovo”) faziam uma clara distinção entre ovos de meninas e ovos de meninos. Apegados a personagens já bastante conhecidos e queridos das crianças, promovendo ainda mais o consumo do público infantil, esses ovos “generificam” o ato de consumir e direcionam às meninas o consumo de ovos da Polly e da Barbie (ou do High School Musical para meninas um pouco mais velhas) – com embalagens predominantemente cor-de-rosa e ilustradas pelos desenhos das bonecas – e aos meninos o consumo de Hot Wheels e Ben 10 – de embalagens escuras, predominantemente pretas com detalhes em azuis ou verdes, e personagens agressivos, ora são carros e ora são meninos aventureiros. De Cássio esperava-se a agressividade, aquela encontrada no Hot Wheels e ausente nas tramas românticas e musicadas do High School Musical, o que levou a mãe, 10

High School Musical (também conhecido como HSM) é um filme-musical adolescente da Disney Channel Original Movie, dirigido por Kenny Ortega, que conta a história de dois adolescentes que se conhecem por acaso, na escola, descobrem a paixão em comum pela música. É considerado um dos maiores fenômenos atuais da Disney e emplacou mais de 8 milhões de discos de sua primeira trilha sonora. A terceira versão do filme, lançada em 2008, foi a primeira da série a ser levada às salas de cinema – enquanto as outras estreiaram pela rede Disney Channel – e, assim como as demais produções midiáticas acima citadas, serviu de base para a criação de diversos produtos vendidos ao público infantil.

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preocupadamente, justificar tal ausência. Assim como no episódio das etiquetas, os ovos de páscoa evidenciam as distinções entre meninos e meninas, elucidam e reforçam as marcações de gênero e revelam as correlações entre o consumo, a produção midiática e os marcadores sociais da diferença.

Crianças, mídia e consumo: um campo possível de pesquisa. Entrar num campo permeado por crianças é entrar com elas nesse universo infantil. É conhecer personagens, aprender bater bafo, descobrir quem é o Ben 10, como se brinca de casinha, quem são as Princesas, brincar de Power Ranger, subir no trepa-trepa e rolar na areia. Estar em campo com crianças, em uma escola, é também estar o tempo todo cambaleando entre o estatuto adulto e o estatuto infantil, em um jogo de identidades que passam da pesquisadora à estagiária, da estagiária à confidente e da Tia à Michele “que brinca que nem as crianças”. Ainda que preliminares, os achados em campo revelam a predominância dos produtos midiáticos a partir dos bens consumidos pelas crianças e, o que aqui mais importa, que essas crianças, provindas de camadas populares da sociedade, tem acesso aos produtos Disney não pelos famosos enredos animados da produtora, mas pelos adesivos, lápis e decorações de festas estampadas com as imagens das famosas personagens do cinema. Ao contrário de uma parcela da população que conhece a Cinderela pelas inúmeras repetições do filme em canais pagos de televisão (como o Disney Chanel), as crianças da creche a conhecem pelos produtos que podem por elas serem consumidos. Cássio veste a blusa do Ben 10, Juliana carrega a pasta vermelha com o adesivo das Princesas, Alex brinca de Cavaleiros do Zoddíaco e Lucas anda com o chinelinho de plástico do Bob Esponja. Entre adesivos, chinelos, blusas e brincadeiras, as crianças aprendem a consumir e a diferenciarem-se. Uma diferenciação feita por um consumo generificado, perpassada pela cisão entre o poder – ou a falta – de consumir e pela conformação de subjetividades na infância.

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