Cineasta do Terceiro Mundo: o Pensamento do Sul no ideário de Glauber Rocha

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09 a 11 de Novembro, Universidade Federal do Amazonas - UFAM Manaus - Amazonas

CINEASTA DO TERCEIRO MUNDO: O PENSAMENTO DO SUL NO IDEÁRIO DE GLAUBER ROCHA1 Rosiel do Nascimento Mendonça2 “Cada pensamento indisciplinado, questionador, includente, dialoga, pratica a epistemologia Sul”. Adriana Banana

Resumo: Este artigo tem o objetivo de investigar em que medida o posicionamento político e estético do cineasta Glauber Rocha (1939-1981), um dos ideólogos do movimento do Cinema Novo, esteve sintonizado com as correntes intelectuais e militantes dos anos 1950 e 1960 que culminaram com a emergência do chamado Pensamento do Sul, sob o qual tem sido aglutinado o conhecimento e as experiências sociais produzidas no contexto do Sul Global, em oposição a um Norte hegemônico. Palavras-chave: Terceiro Mundo; Pensamento Sul; Epistemologia; Glauber Rocha. Entre 1965 e 1966, o cineasta baiano Glauber Rocha esteve no Amazonas para rodar um documentário sob encomenda do governador Arthur Reis. Filmado em cores, “Amazonas, Amazonas” faz uma abordagem socioeconômica do Estado àquela época e aponta para a necessidade de se promover o desenvolvimento do mesmo. Enquanto esteve em Manaus, o diretor concedeu sua única entrevista ao crítico e jornalista José Gaspar, do Jornal A Crítica, a quem disse: “Embora muitos não queiram admitir, os velhos cânones que regem o mundo entraram, há muito, em agonia e caminham, inevitavelmente, para o fim” (GASPAR, 1965, p. 8). O que isso teria a dizer sobre atuação de Glauber como artista e sujeito politicamente engajado? Assumindo sua condição terceiro-mundista e periférica diante da produção artística hegemônica, Glauber foi reconhecidamente o integrante do Cinema Novo a 1

Artigo submetido à Sessão Temática 2: Processos culturais e desenvolvimento. Parte dessa pesquisa foi financiada pelo Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2015, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult). 2 Jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/Ufam). Desenvolve a pesquisa “O documentário Amazonas, Amazonas à luz dos pensamentos nacionalistas de Arthur Reis e Glauber Rocha”. E-mail: [email protected]

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quem se atribui a estruturação das bases ideológicas do movimento surgido nos anos 1960, que propunha uma revolução estética e política a partir da Sétima Arte. Entendemos, contudo, que esse pensamento transcendia os limites do fazer artístico do cineasta, pois trazia em seu bojo questões de fundo epistemológico, resultado de uma profunda reflexão sobre o jogo de forças presente no mundo naquele momento histórico. É a este questionamento que o presente artigo se dedica. A emergência de um Pensamento do Sul É sabido que durante a Guerra Fria (1945-1991) predominou uma disputa militar, ideológica e econômica entre as duas superpotências que lideraram a derrota do Eixo durante a Segunda Guerra. Nesse período, Estados Unidos e União Soviética buscaram ampliar sua influência no mundo, de modo a manter o poderio de seus respectivos blocos. O fim da hegemonia europeia dava início a tempos de acirramento da polaridade entre os modelos capitalista e comunista de organização política e social, mas também abria espaço a outros arranjos nas relações internacionais, o que muitas vezes passa ao largo das análises históricas. Essas movimentações aconteceram no contexto da afirmação de uma nova força no cenário global: o chamado Terceiro Mundo, que se referia àqueles países subdesenvolvidos, de passado colonial, e relativamente neutros em relação à disputa entre o Primeiro Mundo, representado pelo bloco capitalista liderado pelos EUA, e ao Segundo Mundo, liderado pelo bloco soviético. O pai da expressão que deu origem à Teoria dos Mundos foi o economista francês Alfred Sauvy, ainda nos anos 50. O pensador anticolonialista Frantz Fanon, considerado um dos principais teóricos do terceiro-mundismo, assim definia essa linha de interpretação da dinâmica mundial: O Terceiro Mundo surge hoje diante da Europa como uma massa colossal cujo projeto deve ser o de tentar resolver os problemas aos quais essa mesma Europa não soube oferecer soluções (...) Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa (...) temos de mudar de procedimento, desenvolver um pensamento novo, tentar colocar de pé um homem novo (FANON, 1961, pp. 274-275). 2

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Um ponto de partida para compreendermos os antecedentes dessa reconfiguração é a Carta da ONU, assinada em junho de 1945, quando as nações que se envolveram na guerra ainda digeriam os traumas do conflito. Nesse sentido, o documento reafirmava “a fé na igualdade das nações grandes e pequenas” e estabelecia como um dos seus propósitos o respeito ao princípio de autodeterminação dos povos (ONUBR, 2016). Estava criado o ambiente propício a um amplo processo de descolonização, principalmente na Ásia e na África, quando diversas nações puderam se tornar independentes de suas antigas colônias europeias. As primeiras foram a Índia (1947) e a Indonésia (1949), seguidas por cerca de 40 países africanos entre os anos de 1951 e 1968. Outro marco do rearranjo geopolítico durante a Guerra Fria foi a Conferência de Bandung, realizada em 1955 na Indonésia, na qual se reuniram lideranças de 29 países asiáticos e africanos. Em comum, havia o interesse de estimular a cooperação mútua entre essas nações, com uma clara orientação para o desenvolvimento econômico autônomo, e ao mesmo tempo marcar posição contra o (neo)colonialismo, o racismo e a interferência das superpotências em seus assuntos internos (soberania nacional). Assim, o comunicado final do encontro dedicou algumas linhas aos problemas comuns aos povos “dependentes”, dentre eles: “A Conferência concordou: a) Em declarar que o colonialismo, em todas as suas manifestações, é um mal ao qual se deve rapidamente pôr fim” (UDESC, s/d, p. 5). Da mesma forma, havia a preocupação com o estado de beligerância entre as superpotências e com as consequências da corrida armamentista, passível de conduzir a uma guerra nuclear de proporções inimagináveis. Nesse caso, conforme destacou o primeiro-ministro indiano Nehru em discurso proferido na conferência, uma potencial aniquilação entre EUA e URSS não diria respeito somente a eles, mas também “àqueles que poderão ser destruídos por ondas radioativas a milhares e milhares de milhas”. Tinha-se clara, cada vez mais, a ideia da interdependência entre as nações como fator para a promoção da paz mundial, cujos caminhos passariam 3

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pela cooperação, garantia de segurança internacional e liberdade para os povos periféricos alcançarem seu progresso. Um dos herdeiros do “espírito de Bandung”, na visão de Bernardo Kocher (2005), foi o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), lançado em 1961 por um grupo de 25 nações que desejavam afirmar sua postura de neutralidade frente à pressão dos blocos representados por EUA e União Soviética 3. A reunião de Bandung ainda possibilitou outros desdobramentos nas relações internacionais, como a criação do Grupo dos 77, fundado em 1964 com o objetivo de defender os interesses econômicos dos seus membros (países subdesenvolvidos) na ONU, e a realização da Tricontinental de Havana, em 1966, que marcou o início da Organização de Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina – OSPAAAL e postulou uma aliança inédita contra o imperialismo norte-americano, reconhecendo na luta armada um meio legítimo para os movimentos de libertação nacional (YOUNG, 2005). A emergência do Terceiro Mundo como esfera política organizada também ensejou discussões no âmbito da ONU no intuito de se solidificar uma Nova Ordem Econômica Internacional. Essas tratativas alcançaram maior sucesso a partir de 1974, quando foram assinados resoluções e planos de ação com esse viés. Nessas negociações globais, que Patrícia Soares Leite (2011) atribui ao êxito das articulações do Terceiro Mundo, buscou-se propor estratégias para suplantar as velhas assimetrias das relações entre as nações, então focadas no eixo Leste-Oeste típico da Guerra Fria, de modo a reorientá-las para um eixo Norte-Sul4, que incluísse e desse visibilidade aos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.

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Kocher (2005) relativiza o sentido e a viabilidade real da “neutralidade” nesse período, tendo em vista que as duas superpotências tinham mais capacidade de influenciar o jogo internacional que o Terceiro Mundo. Assim, é válido afirmar que a busca pelo distanciamento da bipolaridade que estava posta revelava mais um desejo de efetiva participação nas decisões que pudessem afetar os países da periferia. 4 Para Roger Hansen (1979), conforme citado por Leite (2011), a ideia de Norte e Sul se refere a unidades diplomáticas surgidas a partir dos anos 50, no âmbito do aparecimento de novos atores na

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Ao mesmo tempo, de acordo com a análise que o professor Cançado Trindade (1984) dedicou ao tema, começou-se a evidenciar a necessidade de uma cooperação Sul-Sul mais sistemática, nos campos da economia, da técnica e da cultura, com vistas a minar a dependência em relação ao Norte. ...a crescente importância dos problemas econômicos refletida nos esforços em prol do estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional está ligada ao fenômeno da descolonização e cristalização do direito de autodeterminação assim como ao da evolução do multilateralismo com a ascensão e multiplicação dos organismos políticos internacionais (e o aparente declínio da estrutura bipolar do mundo) (p. 223).

Para Leite (2011), a década de 70 marcou o auge da cooperação Sul-Sul, que vinha se institucionalizando de diversas maneiras, dentro e fora da ONU, desde Bandung. Em relação a esse conceito, que considera válido e operante até hoje, para além de sua agenda menos ambiciosa, a autora afirma que ele se resume à “noção de que países em desenvolvimento identificam determinados interesses e problemas comuns e se articulam, a fim de resolvê-los (p. 76). Embora Terceiro Mundo tenha se tornado uma terminologia quase ausente no vocabulário pós Guerra Fria, a concepção de um Norte e Sul Global permanece atual e, com o tempo, extrapolou a área da política internacional, sendo assimilada pelas Ciências Sociais como um capítulo dos estudos pós-coloniais. Ao dar a sua contribuição epistemológica partindo da crítica a uma estrutura geopolítica do conhecimento, a australiana Raewyn Connell (2012) destaca a reprodução das desigualdades periferia/metrópole na elaboração das teorias sociais, que se pretendem universais. Para ela, as especificidades da parcela do mundo que passou pelo processo colonial – ou seja, o Sul Global – historicamente não são levadas em conta pelo conhecimento elaborado pelos intelectuais e instituições de elite do Norte. Por isso, política global. Assim, o Norte diz respeito aos países industrializados e hegemônicos, enquanto o Sul agrupa aqueles em desenvolvimento.

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“qualquer forma de teoria social que não discute o encontro colonial define-se automaticamente como um assunto de menor importância” (CONNELL, 2012, p. 12). Essa concepção se aproxima do conceito de “epistemicídio” adotado por Boaventura de Sousa Santos (2010), segundo o qual o colonialismo promoveu a subjugação e o “desperdício” de experiências cognitivas estranhas aos interesses ou ao sistema de ideias do Norte, dominado pelos cânones da ciência moderna5. E uma vez que essa “razão fechada” se encontra em crise6 diante dos desafios planetários contemporâneos, Edgar Morin (2011) entende que a hegemonia do Norte se faz presente hoje no mundo por meio da hipervalorização da técnica, da economia, do cálculo, da racionalização antiafetiva, da rentabilidade, da eficiência e da prática da disjunção, que reduz substancialmente a complexidade do mundo. Enquanto isso, os vários “suis” costumam ser estigmatizados pelo Norte como redutos do atraso e do subdesenvolvimento. “Essa visão impede perceber que nos ‘suis’ existem qualidades, virtudes, artes de viver, modos de conhecimento que deveriam não apenas ser salvaguardados, mas também propagados pelos ‘nortes’” (p. 10). O autor rejeita, porém, quaisquer tipos de maniqueísmos na caracterização tanto do Norte quanto do Sul. Para ele, a melhor forma de abordar a questão não é idealizando ou desvalorizando uma ou outra, mas reconhecendo as qualidades e imperfeições de ambas: se o Norte nos deu a democracia, em alguns pontos do Sul ainda persiste a dominação patriarcal, por exemplo. Portanto, um pensamento contra-hegemônico, fundado no Sul, deve partir da conjunção entre heranças culturais.

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Ramón Grosfoguel (2016) chama a atenção para a “injustiça cognitiva” advinda daí. Segundo ele, o cânone das ciências sociais e humanas se baseia no conhecimento produzido, basicamente, por homens de quatro países da Europa Ocidental (Itália, França, Alemanha e Inglaterra), além dos Estados Unidos. 6 Para Morin (2011), embora contenham perigos de regressão, as crises também trazem um sentido de esperança: “encerra chances de imaginação criativa, de diagnóstico pertinente, de elaboração de um caminho para a saída” (p. 20).

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Por sua vez, Santos (2010) propõe a superação do pensamento abissal característico do Norte por meio de um maior espaço à contribuição das Epistemologias do Sul, passíveis de se materializar por meio do que ele chama de ecologia dos saberes, que considera válido o diálogo entre diferentes formas de conhecimento, temporalidades, etc. Não se trata de dizer qual conhecimento é mais verdadeiro ou não, mas de tornar presente o que se tem feito ausente ao longo dos processos seculares de dominação: “O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada” (p. 51). Connell (2012) também considera ser possível uma revolução na teoria social. Para relocalizar e democratizar a produção de conhecimento, as estratégias devem se fundar na busca pelas especificidades do Sul, na valorização dos sistemas indígenas de conhecimento e na crítica pós-colonial do pensamento europeu. Por fim, as teorias do Sul sedimentarão as bases para um universalismo alternativo. A ‘poética política’ de Glauber Rocha Ferreira Gullar (2014), ao comentar sobre as questões político-ideológicas que serviram para legitimar o golpe de 64 no Brasil, destaca a influência que a Revolução Cubana de 1959 exerceu sobre as esquerdas da América Latina, que passaram a ver na resistência da ilha caribenha ao imperialismo norte-americano um exemplo a ser seguido. Para Young (2005), o efeito cubano foi tão significante que trouxe a América Latina, pela primeira vez, para a mesma órbita de resistência da Ásia e da África. Enquanto os movimentos de guerrilha se espalhariam por alguns países da região, o ideal revolucionário também se tornaria popular no Brasil. Nesse contexto, movimentos como o da reforma agrária ganharam força no País, e a atuação de instituições como as Ligas Camponesas e o Centro Popular de Cultura da UNE se tornaram motivo de preocupação para os setores alinhados aos interesses do bloco 7

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liderado pelos Estados Unidos, temerosos em face de uma “comunização” do continente. Assim, o golpe civil-militar no Brasil pode ser encarado como uma intervenção de urgência no sentido de inverter uma nova dinâmica que começara a se delinear na região a partir de 1959. A Revolução Cubana também causou um forte impacto em Glauber Rocha, que ficou exilado durante um ano na ilha, no início da década de 70, período em que iniciou a produção do filme “História do Brasil” em parceria com o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (Icaic). Em sua investigação sobre a inserção da “poética política” na vida e na obra do cineasta, Tereza Ventura (2000) registra o entusiasmo com que Glauber via o movimento liderado por Fidel Castro, embora admitisse as dificuldades do Brasil em reproduzir essa utopia: “Precisamos fazer a nossa [revolução] aqui. Cuba é o máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração do capitalismo. São machos, raçudos, jovens geniais” (VENTURA, 2000, p. 110). Apesar de identificar-se naturalmente com as ideias de esquerda, ele rejeitava os dogmatismos partidários e não admitia imposições ideológicas a seu fazer artístico. “Ter alguém mandando na gente era inconcebível. Em nosso ideal libertário, o artista tinha que permanecer livre”, afirmou o amigo do diretor, Luiz Carlos Maciel (1996, p. 75), em seu livro de memórias. Por ter optado pela insubordinação, seguramente Glauber nunca aderiu a células políticas tradicionais como o Partido Comunista, ao qual se filiaram muitos dos seus companheiros. As relações de Glauber com a esquerda brasileira, inclusive, nem sempre foram harmônicas – essa indisposição se acentuou a partir dos anos 70, quando ele passou a defender o projeto de reabertura política do presidente Geisel. Até o fim da vida, Glauber teve que lidar com a rejeição que esse episódio provocou: “Os senhores, que antes me chamaram de gênio, agora me chamam de burro. Devolvo a genialidade e a burrice” (ROCHA; REZENDE, 1986, p. 125).

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Para Glauber, a emancipação do pensamento era uma preocupação constante, afinal, só assim era possível pensar em revolução cultural. Por isso, o “novo” é um signo constante nas leituras que Glauber fazia do mundo, como aponta Maciel (1996). De acordo com o autor, a atitude iconoclasta (e romântica), em seu anseio por renovação e superação das estruturas obsoletas, era uma das características daquela “geração em transe”, à qual também pertenceram Zé Celso e Caetano Veloso: “O jovem visionário pregava uma reformulação; o teatro novo, a música nova, o cinema novo. Gostava dessa palavra: novo, e a aplicava como sendo demarcatória de um novo tempo para as artes brasileiras” (p. 55). Movido por esse espírito, Glauber propunha um projeto de cinema brasileiro que se distanciasse da influência tanto de Hollywood quanto da Europa, embora o Cinema Novo tenha devido muito ao Neorrealismo italiano e à Nouvelle Vague francesa. Mas, no fim das contas, os cineastas do Brasil deveriam buscar a especificidade da sua própria linguagem estética, na forma e no conteúdo. Como as bases do movimento que se delineava estavam de acordo com os princípios de um cinema autoral, radicalizador e comprometido com a revolução da sociedade, a técnica era um elemento até secundário; antes de tudo, era necessário registrar criticamente e tornar públicas as contradições e a condição de miséria do povo brasileiro, o que não constituía interesse para as famosas chanchadas da época, gênero popular que dominava a produção nacional. Em ensaios teóricos como “O processo cinema”, de 1961, e “O Cinema Novo”, de 1962, Glauber teve a oportunidade de discorrer sobre essas e outras questões (ROCHA, 2004): A colonização cultural do nosso cinema gera a colonização cultural de nosso povo. O povo brasileiro é inconscientemente deformado pela visão moral e artística do cinema americano e por isto, inconscientemente, venera e respeita os Estados Unidos. O fenômeno é igual na América Latina. Hollywood, impondo sua civilização através do cinema, debilita psicologicamente o povo e consolida sua penetração econômica (p. 81). Não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade (...) 9

09 a 11 de Novembro, Universidade Federal do Amazonas - UFAM Manaus - Amazonas nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa. (...) Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate na hora do combate (p. 52). A técnica é haute couture, é frescura para burguesia se divertir. No Brasil, o cinema é uma questão de verdade e não de fotografismo (p. 52, grifo do autor). O cinema como veículo de ideias só pode ser honestamente aceito enquanto servir ao homem no que ele mais precisa para viver: pão (p. 48).

A visão de cinema engajado de Glauber estava alinhada, portanto, com a cultura política da época, especialmente aquela formada no contexto das discussões a respeito do Sul Global e do Terceiro Mundo. Em “Eztetyka da Fome” (1965), por exemplo, considerado o manifesto do Cinema Novo, o cineasta resgata a dicotomia colonizador/colonizado para abordar as realidades díspares entre Norte e Sul (termos que ele não usa no texto): Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. (...) Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que [sic] satisfazem sua nostalgia do primitivismo; (...) Aí reside a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida (ROCHA, 2004, pp. 63-67).

Ademais, Glauber enxergava a América Latina como parte de um mesmo bloco submetido à exploração imperialista, com problemas comuns de miséria e subdesenvolvimento, aspectos sociais geralmente ofuscados por certo cinema de vocação digestiva. Frente a esse cenário, o cinema latino necessitava se integrar ao processo revolucionário com a missão de promover a autonomia econômica, política e cultural da região. Nessa sua tarefa de lançar os fundamentos para outro fazer cinematográfico, que levasse em conta a interpretação crítica de uma sociedade desigual, o baiano rejeitava igualmente a “ditadura estética e econômica” do cinema 10

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ocidental e os ditames do “cinema demagógico socialista”. Então, urgia construir uma terceira via estética para o Terceiro Mundo – justamente o mote do movimento Tercer Cine, surgido em Cuba no fim dos anos 60, ao qual o Cinema Novo viria a se filiar. Ainda na perspectiva das novas experiências que um protagonismo do Terceiro Mundo poderia proporcionar à dinâmica global, Glauber também distinguia a existência de “nortes” e “suis” mesmo dentro do Brasil 7, como sugere Maciel (1996) ao relembrar de quando conheceu o cineasta, em Salvador: “Ele começou a me falar que a Bahia seria o berço da nova cultura brasileira. (...) Não no Rio, muito menos em São Paulo: a transformação sairia dali” (p. 55). Diagnóstico semelhante apareceu na entrevista que o diretor concedeu ao Jornal A Crítica, logo após a sua chegada em Manaus, em dezembro de 1965. Partindo da constatação de que os “velhos cânones” que regiam o mundo estavam em declínio, Glauber declarou que os problemas fundamentais daquele momento eram o subdesenvolvimento de grandes regiões como a América Latina, a África e a Ásia, e o conflito entre “moral e ciência” no mundo considerado superdesenvolvido. “É o fim de uma era e o nascimento de outra. E, sem dúvida, será das regiões ora atrofiadas que a nova civilização surgirá” (GASPAR, 1965, p. 8). Diante disso, pode-se dizer que o pensamento de Glauber carregava uma forte conotação epistemológica, de crítica ao sistema de conhecimento dominante, representado pela hegemonia do Norte e pelos efeitos do imperialismo do mesmo. Acreditamos que essa interpretação está de acordo com a posição que o cineasta ocupava na intelectualidade da época, tendo transitado entre acadêmicos e outros atores políticos e sociais. Mesmo sem ter sido um homem de ciência, ao menos no sentido clássico do termo, Glauber frequentemente vocalizava um julgamento nascido no âmbito do saber científico, que é a revisão dos modelos de objetividade, racionalidade e da primazia do quantificável: “Sofremos do economicismo 7

Aqui, parte-se das leituras de Boaventura de Sousa Santos, que critica o “desperdício” de experiências promovido pelas monoculturas do saber, mas não considera Norte e Sul como noções monolíticas.

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acadêmico. Eu me refiro às pessoas que se perdem em estatísticas, em citações, em números. É um modo de pensar retrógrado” (ROCHA; REZENDE, 1986, p. 164). O artista dizia negar estruturalmente tanto a racionalidade quanto a objetividade; o Cinema Novo foi, portanto, o meio teórico e prático que ele encontrou de ir contra uma configuração de cinema que estava posta tanto no nível das ideias quanto da técnica: “Sou metafórico e barroco e assumo isso. A metáfora é a linguagem da poesia, o nível mais profundo da linguagem” (ROCHA; REZENDE, 1986, p. 164). Nesse ponto, o pensamento de Glauber se aproxima da reflexão de Morin (2011) sobre a razão fechada, que faz da relação Norte/Sul uma disputa entre prosa e poesia. Diz o sociólogo: “Será que o pensamento do Sul teria como missão relembrar unicamente o caráter essencial da poesia do viver?” (p. 17). Considerações Em 2013, o Relatório do Desenvolvimento Humano, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), debruçou-se sobre a chamada “ascensão do Sul”. Àquela altura verificava-se no cenário mundial uma crescente influência política de um grupo de países que acumulava processos de transformação socioeconômicos significativos, como no caso do Brasil, China e Índia. A expansão desse “reequilíbrio mundial há muito esperado”, segundo o documento, ganhou impulso com as parcerias comerciais e tecnológicas no âmbito de uma cooperação Sul-Sul, o que justifica uma maior integração e intercâmbio regional. Como se verificou, tal configuração remonta a discussões iniciadas há mais de 50 anos, quando agentes globais passaram a questionar o jogo de forças dominante. Impossível, no entanto, dissociar essa discussão de um caráter mais epistemológico, pois os sistemas de conhecimento e saber estão imbrincados a seus contextos históricos e socioeconômicos. Vê-se, por isso, a necessidade de ampliar o campo de mudanças e, nesse exercício, todas e quaisquer ideias includentes, indisciplinadas e questionadoras – como as que Glauber Rocha expressou em vida – só têm a agregar. 12

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