Cinema, academia, Coutinho

May 28, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: Literary Theory, Art and image theory, Eduardo Coutinho
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Cinema, academia, Coutinho

Luiz Felipe Soares

A posição periférica de um curso superior pode se tornar um privilégio
acadêmico, o que para mim fica mais claro, obviamente, no caso particular
deste ainda novo curso superior (periférico) de cinema, o da UFSC, em que
leciono. Um dos poucos alunos já formados por este curso, em seu discurso
como orador da (como sempre caretíssima) solenidade de formatura, defendeu
o caráter precário do curso, dizendo esperar que essa precariedade seja
mantida no futuro. O potencial do caráter periférico, quase o mesmo do
caráter precário, percebido por esse aluno inteligente, aparece no contato
direto com instituições centrais e estruturadas. Alguns momentos desse
contato, embora azedos, tornam-se produtivos justamente ao reafirmar esse
potencial. Destaco dois desses momentos azedos, ambos da última Semana de
Cinema, mês passado.[1]

O primeiro foi uma mesa redonda com um aluno do Curso, André Zacchi, e
os críticos Francis Vogner – apresentado pelos alunos como colaborador de
revistas importantes como Filme Cultura, La Furia Umana (Itália), Miradas
del Cine (Cuba) e Cahiers du Cinéma España – e José Geraldo Couto, também
tradutor, mais conhecido por seu trabalho na Folha de São Paulo. Zacchi, o
primeiro a falar, apresentou sua proposta para uma teoria da crítica
cinematográfica com base em conceitos de Clarice Lispector, como o do
instante-já, defendendo assim uma crítica diante da qual o filme passa a
ser visto, corajosamente, em sua potência de imagem, como o inapreensível –
o que insere sua proposta na visão blanchotiana que associa o literário
(analogamente, aqui, ao fílmico) ao exterior, àquilo com que o autor não
tem como ter contato.[2] Couto, o terceiro e último da mesa, expôs com a
elegância e a modéstia costumeiras alguns dilemas de sua experiência
profissional, chamando atenção para o fenômeno da redução do espaço para
reflexão nos antigos grandes veículos impressos, paralelamente à migração,
não totalmente compensatória, desse espaço para os meios eletrônicos.
Defendeu (com exemplos de sua própria atividade) a resistência ao didatismo
exigido frequentemente pelos tais grandes veículos, lembrando o quanto a
facilitação é nociva não só à formação de novos leitores, mas à cultura
como um todo.

A segunda fala da mesa, entre um e outro, foi a de Vogner, voz
destoante que começou a me fazer ver o que tento expor aqui. O crítico
demonstrou (e assumiu) não ter preparado absolutamente nada para apresentar
na mesa para a qual havia sido convidado semanas antes. A partir disso,
brindou a plateia com um desfile narcísico de obviedades moralistas,
pretensamente abordando a "crítica", mas todas elas ditas com a empáfia do
crítico de arte estereotipado – como se suas opiniões fossem o momento mais
esperado pelos ouvintes da periferia. Subestimou os alunos de cinema (de
modo geral, e os presentes em particular) com considerações superficiais
sobre o trabalho do crítico – conjecturando, por exemplo, sobre se o texto
deve ser curto ou longo, sobre o fracasso e o sucesso, ou sobre o "estilo"
como algo que define a individualidade ou a originalidade do crítico – um
tipo de discussão que os alunos são estimulados a superar desde o início, é
claro, de um curso superior de cinema. De quebra tentou comentar a proposta
apresentada antes, por André Zacchi, demonstrando nada ter entendido dela,
mas, de novo, com a mesma empáfia.

O episódio, de fato constrangedor, foi apenas mais um caso entre
tantos havidos nas cinco Semanas de Cinema e em eventos periféricos
similares: uma escolha infeliz de convidados. Acontece. E o nome Francis
Vogner, para a maioria, nem era conhecido, portanto a expectativa em torno
dele estava longe de ser importante. (Lembro-me de, há uns 10 anos, ter
assistido, também na UFSC, a uma palestra de Zuenir Ventura, em auditório
bem maior, e em momento bem mais solene, sendo nome já bem mais conhecido,
em que ele, homenageado, ao se deparar com perguntas difíceis, confessou:
"se eu soubesse que o nível aqui era esse teria me preparado melhor".)

O segundo momento azedo a destacar, horas mais tarde naquela sexta-
feira – este sim, cercado de expectativa –, foi o "bate-papo com Eduardo
Coutinho e João Moreira Salles". Pouco antes da hora marcada, muita gente
já esperava diante da porta do auditório, de 120 lugares, ainda fechada,
sob alegação do enfrentamento de problemas técnicos. Pouco depois, as mais
de 120 pessoas mais ou menos acomodadas, a professora Cláudia Mesquita, ex-
professora do mesmo Curso, agora também convidada, e principal articuladora
da vinda de Coutinho, abriu a sessão com a delicadeza que lhe é própria,
explicando que houve ali a intenção de exibir o filme Um dia na vida, de
Coutinho (tendo João Salles participado da concepção e da montagem), mas
que isso não foi possível. Anunciou então que exibiria outro filme dele, As
canções, mais recente, premiado no Festival do Rio, e que a conversa
posterior à exibição seria somente com Coutinho.

Após a exibição de As canções, começa a conversa entre Cláudia
Mesquita e Coutinho, ajeitados em duas poltronas colocadas sobre o tablado
do auditório (numa certa informalidade sem mesa). Diante da pergunta
inicial da mediadora, ele reagiu: "não vim aqui para isso". E começou a
falar sobre o filme não exibido, Um dia na vida, que pelo jeito lhe
interessava mais – trata-se de um experimento de montagem, em uma hora e
meia, de 19 horas de imagens gravadas da TV aberta. De sua torrente de
considerações sobre o assunto – televisão, cultura de massa, direitos
autorais –, o público podia entender pouco: Coutinho mantinha o microfone
longe demais da boca, apesar do apelo do público. Pude ao menos perceber
que, além de não ter agradecido o convite, de ter sido descortês com a
mediadora e com o público, reiterando gratuitamente o caráter ranzinza de
seu personagem-de-si, Coutinho se equivocou, de modo geral, quanto à
"academia", o que por fim me fez ver o potencial de que falo.

Mas o principal da arrogância apareceu, pelo menos para mim, depois,
já na segunda-feira, quando alunos organizadores da Semana revelaram que Um
dia na vida deixou de ser exibido, não por problemas técnicos, mas porque o
próprio Coutinho se enganou nas cópias: trouxe, alegadamente por engano da
secretária, dois dvds em branco e mais a cópia de As canções.

Em vez de explicar esse detalhe às mais de 120 pessoas que vieram
participar da "conversa" com ele, Coutinho seguiu direto em seu monólogo
pretensamente contrário à academia e à cultura de massa, porém dependente
de ambas – contradição que, para não perdermos o fio da meada, faz ver o
potencial acadêmico da periferia. Disse, por exemplo, que o mesmo Um dia na
vida (exibido para cerca de 300 pessoas na Mostra de São Paulo de 2010) vem
sendo exibido justamente em universidades, como teria sido o caso aqui,
tendo acumulado, sem propaganda, coisa de dois mil espectadores (salvo
engano devido ao microfone). E isso não foi dito (sem chance do mesmo
engano) sem vanglória. Ora, se o nome Eduardo Coutinho vem sendo celebrado
desde 1984, quando saiu seu Cabra marcado para morrer, e principalmente
desde fins dos anos 90 (principalmente depois de Babilônia 2000, de 1999),
isso se deve, claramente, à academia.

Sua relação com a academia é profunda, não tem como ser negligenciada.
Se o próprio Cabra, em sua primeira tentativa, em 1962, é resultado da
corajosa atitude de resistência própria ao movimento estudantil, um marco
importante dessa relação está obviamente no texto de Roberto Schwarz sobre
o filme, incluído em sua coletânea Que horas são?, de 1987. Digo marco
importante porque o texto já nos antecipa a necessária visão da
complexidade da academia que nos interessa. Em outras palavras, o texto de
Schwarz não mostra apenas uma espécie de débito que a respeitabilidade do
nome de Coutinho tem para com a academia, mas também faz ver qual academia,
qual parte dela, sustenta essa relação. Trata-se justamente (e
tautologicamente) da parte da academia que, cega à imagem como tal, aprecia
o valor social do cinema que se propõe contar, narrar (lukácsianamente, em
oposição a mostrar ou descrever) a atividade, a ação do pobre, do oprimido,
do excluído. Ou seja, trata-se da parte da academia que aprecia,
justamente, a proposta de Coutinho – alinhado desde sempre a um conceito de
cinema (como o de Schwarz) comprometido com o humanismo marxista, em parte
alinhado à teologia da libertação, que aliás sustentava os CPCs da época do
início da saga de Cabra.

Como já argumentou, daqui mesmo, da periferia, Renata Telles, em sua
tese de doutorado, Schwarz vai ao cinema, defendida no Programa de Pós-
Graduação em Literatura da UFSC (2005), Schwarz


vê o filme sobre um diretor e uma equipe, cuja presença e
intervenção são a matéria filmada, mas, interessado na
mensagem, não enxerga o meio que faz questão de se expor. Não
vê para além do significado coletivo de uma expressão
individual, que, ao contrário do seu julgamento, é justamente
o estímulo visual, e não a narração, que, ao justapor
fragmentos de imagens dos anos 60 e dos 80, documentos,
entrevistas, fotografias, recortes de jornais, produz uma nova
significação. Não percebe para além do resgate de uma história
interrompida, que é a imagem que ativa a memória
possibilitando, através da constatação e da associação, da
coexistência dos opostos, a visibilidade da diferença. Não
repara para além da inevitável mercantilização do cinema e da
extraordinária potência da TV, para além da distância entre o
enredo e a constatação que constroem os dois planos do filme
permitindo a leitura da transformação, que não são só as
pessoas e as condições históricas que mudam, o que muda é a
idéia do filme, é a maneira de narrar uma história. Se o
projeto inicial era filmar a história linear da vida e do
assassinato de João Pedro com camponeses-atores que
improvisavam a cena, a realização do filme transforma esses
atores em personagens que se exibem orgulhosos diante da
câmara e posam estáticos com a família como para uma
fotografia. De um filme sobre um acontecimento real esquecido
pela história oficial a um filme que é uma colagem de
elementos já existentes em outro contexto.[3].

De fato, Schwarz vê a imagem em sua metafísica humanista. Se os
personagens mudam de 1962 aos 1981, "Esta mudança, que está inscrita em
bruto na matéria documentária do filme," propõe Schwarz, "é sua densidade e
seu testemunho histórico. Por causa dela as imagens pedem para ser vistas
muitas vezes, inesgotáveis como a própria realidade".[4] Para ele, que não
deixa de perceber complexidades no procedimento de Coutinho, a relação
convencional, representativa (humanista) entre câmera e realidade não se
altera no filme: "A câmara atenta e documentária – homenagem de Coutinho à
clareza da luta popular, que dispensa explicações – diante de figuras
inferiorizadas, a quem a História roubou a articulação, tem efeito de
voyeurismo. É frieza amiga, remédio contra a perda de realidade própria ao
sentimentalismo, ou é interesse de câmara indiscreta?"[5].

É essa teoria da imagem, compartilhada por crítico e cineasta, no
contexto humanista marxista, que sela o casamento, a dependência mútua: "o
filme mostra quanto os oprimidos podem dar aos intelectuais, e vice-versa
(não esqueço as objeções que se podem fazer a esse ponto de vista)".[6]
Dependência que se aprofunda no próprio filme, segundo o crítico:


se meditarmos no universo do filme, em que estão presentes
somente populares e intelectuais, penso que reconheceremos que
esta composição é o fundamento de seu clima tão particular. É
como se no momento mesmo em que a parte melhor e mais
aceitável da burguesia brasileira assume o comando no país –
um momento a ser saudado! – o filme também melhor dos últimos
anos dissesse, pela sua própria constituição estética e sem
nenhuma deliberação, que num universo sério esta classe não
tem lugar. Mas é claro que nem sempre a vida imita a arte.[7]

Ou seja, pelo menos desde Cabra o cinema de Coutinho vem nutrindo e
sendo nutrido por uma parte da academia que, como ele, não enxerga a imagem
para além, ou para aquém, do limiar do humano. Quem o testemunha, aliás, é
Consuelo Lins, autora do outro marco importante desse casamento de Coutinho
com parte da academia: seu livro O documentário de Eduardo Coutinho.[8]
Lins é igualmente pesquisadora do Cinema, que trabalhou com Coutinho e foi
co-autora, com Cláudia Mesquita (nossa mediadora já referida), de Filmar o
real.[9] Diz ela:


Coutinho é um crítico contumaz de uma certa teoria que afirma
que cinema é essencialmente imagem. Um pensamento estreito que
não vê a riqueza e a complexidade da imagem e do som da
palavra do outro, "os silêncios, tropeços, ritmos, inflexões,
retomadas diferenciadas do discurso. E gestos, franzir de
lábios, de sobrancelhas, olhares, respirações, mexer de ombros
etc." Desconfia, por isso, dos documentários estrangeiros
cujos diretores não conhecem profundamente a língua do país em
que filmam e que "a despeito das melhores intenções, acabam
reproduzindo o estereótipos do etnocentrismo ou, de qualquer
forma, passando longe do real".[10]

O casamento, portanto, de Coutinho com essa parte da academia, passa
por fora de outras tantas partes da academia, aquela, por exemplo, que
busca, com relação ao cinema, teorias da imagem como potência, como aberto
– como exterior, como algo em vias de significar – jamais valorizando a
representação interior ao humano. Tanto Schwarz quanto Coutinho obviamente
rejeitam essa concepção da imagem. Isso nos traz duas consequências
importantes, talvez simétricas. A primeira é, de um lado, o equívoco básico
de Coutinho quanto ao próprio casamento. A segunda é a cegueira de parte da
academia para sua própria complexidade, o que por sua vez também tende a
escamotear o casamento.

A primeira consequência pode ser vista na menção que Coutinho fez aqui
(de novo, sem chance de engano devido ao microfone) a Guy Debord,
considerando-o um "francês débil-mental". Mais uma vez ele pareceu reforçar
o casamento com a atitude nacionalista já costumeira de desconfiar
previamente, em nome de Schwarz, de qualquer ideia estrangeira como "fora
do lugar". Mais importante do que isso, o que aparece nessa rejeição
altamente performática a Debord é um equívoco. Como já mostrou, há 15 anos,
Jean-Luc Nancy,[11] Debord, apesar da radicalidade e do anarquismo
situacionista, ainda nutria uma visão da sociedade (a do espetáculo) oposta
a uma outra, idealizada em verdade, ainda que inatingível. Tinha, portanto,
percebe Nancy, uma concepção de sociedade (junto com uma concepção de
imagem) que se inseria sem problemas na tradição platônica. Faltou a
Debord, sugere Nancy, ter visto que toda sociedade é, sempre-já, espetáculo
(faltou-lhe considerar o espetáculo da sociedade).

Com isso, se o humanista marxista Coutinho rejeita Debord como
situacionista, como aquele que (de fato) não vê o ser humano do modo como o
humanismo marxista (o de Coutinho) pretendia, ao mesmo tempo não percebe em
Debord uma visão geral da sociedade ainda aliada à sua num âmbito
metateórico mais amplo: em resumo, Nancy mostra que Coutinho poderia, sem
perder coesão, usar a seu favor o radicalismo de Debord contra a cultura de
massa. Se não o fez, isso parece se dever à moral de seu humanismo e à
parca fundamentação de sua leitura, ou seja, a um apego ingênuo a sua
performática retórica "anti-intelectualista".[12]

A segunda consequência, retomo, a cegueira de parte da academia para
sua própria complexidade, aparece todas as vezes em que alguém se refere à
academia de modo generalizado, monolítico. Aparece também, dentro do âmbito
acadêmico (de suas instituições, das universidades etc), quando os próprios
acadêmicos demonstram aquela rejeição mediocrizante (pretensamente
democratizante) a quaisquer formalizações (quando o professor, por exemplo,
sugere ao aluno não estar em outro nível hierárquico, recusando-se a
assumir a posição de poder que ocupa). Em meio aos restos do humanismo
marxista, e a outros restos, essa atitude se mantém, igualmente, na
generalização da falta de rigor dentro da academia. Esse comportamento,
portanto, sem rigor, faz parte da academia tanto quanto o contrário; o
sério e aprofundado, fundamentado, tanto quanto o superficial e
irresponsável; o ridiculamente formal, solene e empolado, tanto quanto
aquele da formalização necessária, ou mesmo aquele ridiculamente informal;
o correto tanto quanto o desonesto ou criminoso; o deslumbrado tanto quanto
o apocalíptico etc. Essa heterogeneidade, é claro, se estende, em todos os
níveis, a todas as divisões de áreas e de linhas teóricas, num universo
impossível de ser visualizado.

Se há algo em comum, na tal academia, a todas essas divisões
incontroláveis, eu prefiro localizá-lo, com Derrida, na necessidade da
incondicionalidade (tão negligenciada).[13] O espaço acadêmico precisa ser
aquele "sem condição", absolutamente incondicionado, ou seja onde
absolutamente tudo pode e deve ser questionado, onde absolutamente tudo
está sob questão. Em outras palavras, um espaço de liberdade radical (de
raiz, de início de conversa sem fim) para o pensamento e para a profissão
do professor (aquele que professa). Em outras palavras, ainda, um espaço de
briga, de necessária heterogeneidade, de infinita complexidade. Nunca "a
academia".

De qualquer modo, essa academia nunca vai acontecer com rejeição
(performática ou constatativa) à intelectualidade. Rejeição que vem sendo a
grande responsável, não só pela morte do espaço pretensamente acadêmico,
mas da cultura como um todo. Rejeição, aliás, como demonstra Coutinho em
seu anti-intelectualismo (performático, sem dúvida) e em sua ingênua
aversão a Debord (performática também), vem, ao contrário do pretendido,
reforçando a indústria cultural como valor. É sintomático, por exemplo, que
o regime discursivo em torno do cinema de Coutinho – cinema que de modo
geral já foi tão criativo, arejado e inteligente – permaneça girando em
torno do que ele tem de mais conservador, ou seja, esse apego inquestionado
ao humanismo marxista: justamente o contrário do cinema de Guy Debord,
conforme lido por Agamben, enquanto arma estratégica.[14] É sintomática a
cegueira quanto a semelhanças produtivas entre os dois: Coutinho também
pode ser visto como estrategista (e não como filósofo, tanto quanto
Debord).

Além disso, como já disse a partir de Nancy, Debord opõe a sociedade
do espetáculo, midiatizada, a um ideal que lhe é exterior, e isso, repito,
também está em Coutinho. Ainda, a iniciativa de Coutinho de editar, no
filme sobre a televisão, apenas imagens já prontas, acaba obviamente
aproximando-o ainda mais de Debord. O que, então, o afasta de Debord?
Justamente o conceito de imagem que, em Debord, aos olhos de Agamben,
sustenta essa estratégia: a imagem estreitamente relacionada à história
messiânica, aquela de um tempo não homogêneo, imagem em suspensão, numa
tensão dialética que faz ver todo o passado no cruzamento entre o ocorrido
e o agora. Imagens repetidas e cortadas (em cesuras) apontando, não para a
representação, mas para a "hesitação prolongada entre a imagem e o
sentido", ou seja, para a poesia, para o cinema, ou ainda, para a história
em suspensão: para tudo o que poderia ter sido. Ainda que não abandone a
oposição platônica quanto à sociedade, o estrategista Debord deixa
absolutamente em aberto o por-vir em sua montagem: absolutamente sem
programa. Em resumo, sintomática é a insistência de Coutinho na estratégia
interior à dialética materialista convencional, a ponto de rejeitar, em
Debord, a estratégia que se produz a partir da imagem dialética
benjaminiana.

Coutinho, portanto, trabalha, em geral (e vem sendo valorizado por
isso), no tempo platônico, teleológico, no tempo cronológico do sonho do
ser humano autogerado e autotélico, o ser demasiado humano que, embora
performatizando um anti-intelectualismo democrático, tem capacidade de
reunir e conduzir os desgarrados, usando o caráter representativo das
imagens para fazê-lo. Não é outra coisa que afirmam ele próprio e vários de
seus comentadores, que enxergam, no centro organizador de seu documentário,
o sábio que sabe não julgar e que ainda descarta toda a sociologia numa
simples reticência:


A primeira coisa, a pessoa não quer ser julgada. (...) A
pessoa fala, e se você, como cineasta, diz: essa pessoa é
bacana porque ela é típica de um comportamento que pela
sociologia... aí acabou. (...) o essencial é a tentativa de se
colocar no lugar do outro sem julgar, de entender as razões do
outro sem lhe dar razão. Cada pessoa quer ser ouvida na sua
singularidade. (...) eu tento abrir dentro de mim um vazio
total, sabe?"[15]

As mesmas imagens são quase sempre opostas às da TV, alvo (ainda vago)
da pretensa crítica constante. Alvo, portanto, do qual o próprio crítico
acriticamente depende. Consuelo Lins, por exemplo, incluindo a si mesma e a
seu próprio leitor num grupo, num "nós", supostamente escravizado pela
mídia e por ideias pré-concebidas, elogia enquadramento e montagem de
Coutinho em oposição à TV – ou, de modo geral, a uma concepção moral apenas
mais costumeira (menos "rigorosa") e explicitamente obediente à monarquia
da representação:


Coutinho consegue resgatar um vigor dos depoimentos através de
radicais deslocamentos tanto no processo de filmagem quanto na
montagem dos seus filmes. Contrariamente a reportagens e
documentários que se aproximam do assunto com um saber
estabelecido, Coutinho se concentra no presente da filmagem
para dali extrair todas as possibilidades e tenta, nesse
movimento, libertar-se de alguma maneira das idéias pré-
concebidas que povoam, à revelia, nossas mentes.

Contudo, o que perpassa essas escolhas e opõe radicalmente
seus filmes à produção televisiva é uma moral rigorosa em
relação a quem filma. Coutinho dá tempo a seus personagens de
formularem algumas idéias sobre suas vidas e efetivamente os
escuta. Faz poucas perguntas mas obtém respostas que
surpreendem cineasta e personagens. Tem-se a nítida impressão
que muitos estão pensando certas coisas pela primeira vez, ali
diante da câmera. Como se até então não tivessem tido tempo
nem estímulo para tal.[16]

Historicamente, e qualquer manual de teoria do cinema o atesta, o
cinema fascina não só o público, mas também seus teóricos. O preocupante –
como Benjamin reiterou – é que a parte fascinante inclui o controle.
Premeditadamente ou não, o cineasta consegue obter respostas mais ou menos
previsíveis do público, e o modo como o faz vem ocupando teóricos de
variadas linhas metateóricas, pelo menos desde Münsterberg. No nível mais
pragmático, é curioso como a possibilidade de contar com respostas
determinadas é pressuposta, tanto pelo teórico quanto pelo realizador, o
que normalmente gera, de um lado, manuais de realização (fotografia,
direção, montagem etc), de outro "teorias" descritivas, mais ou menos
alinhadas ao modelo de Arnheim (desdobramento emblemático, no âmbito da
teoria do cinema, do funcionalismo encorajado pela fenomenologia
husserliana).

O que desde os anos 90 vem sendo louvado, entre outras coisas, no
cinema de Coutinho é a ética da realização de seus documentários: ele de
fato respeita o entrevistado e faz questão de mostrar esse respeito no
filme. É curioso, porém, o quanto, em boa parte apesar dele, essa ética
paradoxalmente virou norma. Coutinho virou modelo (repito, apesar dele
próprio). O procedimento de Coutinho – o modo como ele respeita o
entrevistado! – vem sendo absorvido por vários comentadores como
procedimento, e muitas vezes como norma. O que está pressuposto nesse
movimento de construção teórica é, mais uma vez, a possibilidade de
controle pragmaticamente valorizada: "respeite o entrevistado e você
receberá respostas fascinantes".

Obviamente, o que é mais grave nisso é – ironicamente em se tratando
da herança marxista – a diferença de classe. Esse procedimento que
surpreendentemente virou norma é relativo ao trato dispensado pelo cineasta
intelectualizado (ainda que pseudo-anti-intelectualista) ao pobre ou àquele
que não dispõe de qualquer erudição ou sofisticação cultural. O respeito ao
pobre passa a ser norma de conduta numa espécie de código de ética do
documentário dito ético.

Talvez tanto quanto a tendência à normatização, esse resultado é outro
filho do mesmo humanismo marxista – obviamente em suas estratégias de
oposição à truculência. Isso fica especialmente claro justo quando Coutinho
encara, e estimula o espectador a encarar, fatias cruéis da "realidade
social". Ao comentá-lo, a partir de Bazin e Rosset, Consuelo Lins localiza
aí um procedimento avesso a um "humanismo piedoso". O equívoco, porém,
tanto de Lins quanto de Bazin, é absolutamente claro, ou seja, é justamente
nessa observação que o humanismo se faz presente com mais força:


Essa ética da crueldade estabelecida por Rosset tem
ressonâncias com a forma com que o crítico André Bazin define
o cinema da crueldade, crueldade que rejeita um "humanismo"
piedoso, criando uma ética/estética que pode ser encontrada em
autores diferentes. Buñuel é um deles. Sobre Los olvidados
(1950), Bazin escreve:

"Buñuel não emite sobre seus personagens adultos qualquer
juízo de valor. (...) Esses seres não tem outra referência
além da vida, essa vida que pensamos ter domesticado pela
moral e pela ordem social, mas que a desordem social da
miséria restitui às suas virtualidades primeiras (...) Nada
mais oposto ao pessimismo 'existencialista' que a crueldade de
Buñuel. (...) Porque não elude nada, não concede nada, porque
ousa desenfrear a realidade com uma obscenidade cirúrgica, ele
consegue redescobrir o homem em toda a sua grandeza e obrigar-
nos (...) ao amor e admiração. Paradoxalmente o principal
sentimento que se desprende (...) é o da inalterável dignidade
humana (...) essa presença da beleza no atroz, essa perenidade
da nobreza humana na decadência (...) não suscita no público
nenhuma complacência sádica ou indignação farisaica."

Essa crueldade, segundo Bazin, não é senão a medida da
confiança que Buñuel depositava no homem e no cinema [itálico
meu]. É nessa convergência entre um conceito da filosofia de
Rosset com o que diz Bazin da crueldade que me parece ser
interessante pensar o cinema de Eduardo Coutinho. As
realidades abordadas são geralmente duríssimas, mas as imagens
encontram pouco a pouco um tom que deixa essa dureza em
segundo plano. O interesse passa a ser o cotidiano: as
dificuldades, as pequenas alegrias, os medos, os momentos de
descanso, os amores, os encontros, os amigos, a educação e a
preocupação com os filhos. A aproximação cineasta/personagens
se dá não a partir do princípio que a vida deles é um horror,
mas a partir de um olhar terno e, o que é fundamental, sem
nenhuma piedade, que quer ver como eles se viram no dia-a-dia
[itálicos meus], seja onde for. Mesmo quando aborda temas que
causam uma certa repulsa – repulsa de fazer parte de uma
sociedade que produz cenas de crianças, adultos e velhos
revolvendo o lixo para comer, o que é, para dizer o mínimo,
constrangedor –, os filmes de Coutinho revitalizam: revelam
sintomas de saúde e de vida em meio a uma degradação evidente
e mostram um pouco do que podemos continuar a gostar nesse
Brasil submerso em corrupção, miséria, individualismo,
indiferença. (...) [Pessoas que] vivem com dignidade e até
mesmo com uma certa alegria.[17]

Esse humanismo supostamente "sem nenhuma piedade" é ao mesmo tempo
"terno" em relação a "eles", produzindo um olhar para o modo "como eles se
viram" e produzindo imagens que deixam a dureza em segundo plano. No mesmo
texto sobre Os esquecidos, aliás, Bazin deixa claro que não se trata de
superação ou eliminação da piedade. Sugere inclusive que Buñuel "consegue a
proeza de reconstituir dois sonhos na pior tradição do surrealismo freud-
hollywoodiano e de deixar-nos, entretanto, arquejantes de terror e
piedade";[18] e ainda que "se a piedade está excluída de seu sistema
estético [de Buñuel], é porque o envolve por todos os lados".[19] De fato,
Bazin mantém, aqui plenamente, seu olhar humanista piedoso, enxergando em
Buñuel alguém que visa "a uma verdade transcendente à moral e à sociologia:
a uma realidade metafísica, a crueldade da condição humana".[20] Trata-se,
mais uma vez, do banimento da imagem, talvez da imagem dura, de qualquer
modo da imagem enquanto imagem, aquela da qual não se pode mesmo esperar
que apreenda o inapreensível.[21]

Ainda dentro do humanismo (marxista) equivocado, da conseqüente noção
arrefecida de imagem, da igualmente equivocada rejeição da academia e da
construção pragmática de um manual técnico de procedimentos, o que costuma
aparecer nos comentários é a valorização da pesquisa – da pesquisa humana.

antes de filmar, [Coutinho] realiza um trabalho de pesquisa
bastante extenso. É necessário ter uma idéia do que vai
encontrar no universo escolhido para diminuir os custos de
filmagem. Em Edifício Master, cinco pesquisadores
entrevistaram e filmaram alguns minutos todos os moradores que
se dispuseram a falar. Coutinho seleciona aqueles que vai
filmar a partir dos relatórios, de conversas com a equipe de
pesquisa e de imagens. Só entra em contato com os
entrevistados no momento da filmagem, já com a equipe técnica
completa. O fundamental, para ele, é que as pessoas com quem
vai conversar partam do princípio que é a primeira vez que ele
está escutando suas histórias. Coutinho tem a convicção de que
o fato de ser uma equipe maior, com sete pessoas, não
prejudica a interação, muito pelo contrário. As pessoas sentem
que naquele momento tem que dar o melhor de si. (...)
Babilônia 2000 é quase oposto à [sic] Santo Forte, que coloca
em cena 13 personagens, selecionados previamente depois de uma
longa pesquisa e montados em longos depoimentos.[22]

Tendo sido Lins uma das pesquisadoras mencionadas, Felipe Bragança
comenta:

A pesquisa realizada por Consuelo Lins demonstra a importância
dessa meticulosa metodologia do diretor, que começa pelo
delineamento espaço-temporal restrito de sua interação. (...)
Como ele mesmo [Coutinho] diz, ou se faz uma pesquisa de 7, 8
anos num lugar, ou joga-se quase cru sobre aquele espaço – o
meio termo não existe, tem de ser 8 ou 80... Como não lhe
interessa ficar 8 anos pesquisando um espaço, acumulados todos
os perigos que isso pode trazer, Coutinho opta pelo
emergencial, pelo abrupto.[23]

A pesquisa é frequentemente valorizada nos comentários sobre Coutinho
(inclusive por ele próprio, em entrevistas). Trata-se, porém, em geral, de
procedimento vago, pragmático, investimento direcionado à visão, segundo
Escorel, de "uma insuspeitada empatia com homens e mulheres cuidadosamente
pré-selecionados".[24] Tais comentários frequentes, porém, em geral não se
arriscam a investigar a própria seleção, objetivo da pesquisa.[25] De
qualquer modo, essa pesquisa não parece ser um per-quaere, um querer-
através; parece, antes, pragmática e vagamente, uma busca de resultado (o
que seria um prejuízo à interação? o que seria, de cada personagem, o
"melhor de si"?). A vontade de controle, a imposição do resultado futuro
que organiza a "longa pesquisa" corresponde, assim, à prevalência da
tendência definida pelo materialismo clássico, que segundo Raul Antelo
reprimiu o per-quaere, tanto dentro quanto fora das universidades,


ao substituir a causa pelo dever ser, o quaere pelo quamobrem,
o determinismo pelo destino, o passado pelo futuro. Como já
observava Georges Bataille, no papel funcional que,
inconscientemente, deu-se à idéia de ciência, a necessidade de
uma autoridade exterior impôs o dever ser de toda aparência,
sequestrando o querer, esquecendo-se do meio (per) e, assim,
para a maior parte dos materialistas – ao menos, dos
materialistas sublimes – a conformidade da matéria morta com a
idéia de ciência acabou por substituir as relações, no fundo
religiosas, estabelecidas anteriormente entre a divindade e
suas criaturas. Mesmo Octavio Paz, tão cauteloso sempre,
quando de baixos materialismos se tratava, definia o querer
como uma busca apaixonada, amorosa. "Búsqueda no hacia el
futuro ni el pasado sino hacia ese centro de convergencia que
es, simultáneamente, el origen y el fin de los tiempos: el día
antes del comienzo y después del fin". O ativo e o passivo, o
informativo e o entrópico, o transitivo e o corolário.[26]

A pesquisa valorizada por parte da academia em Coutinho, e que o
aproxima dessa parte, é a pesquisa materialista, "científica", própria à
maior parte. Por que não desejar, ao contrário, ao menos desejar, tanto nos
filmes quanto na academia, uma outra ideia de pesquisa, ou de imagem,
aquela que desmonta, desativa, aquela em que o pesquisador


pesquisa sempre uma vertigem e um vazio. Cria, aliás, vertigem
e vazio com sua pesquisa. Agir de modo contrário seria
corroborar a fábula e o mito, quando a tarefa do pesquisador
é, pelo contrário, desmontar ficções. Porque talvez o mais
importante na pesquisa nem seja tanto o quaere, mas o per. O
pesquisador atravessa diversos regimes de verdade para iluminá-
los como outras tantas construções discursivas, em nada
naturais, necessárias ou infalíveis. Pesquisar é pensar e agir
sobre os meios.

(...) o trabalho da pesquisa é como o trabalho da imagem, ou o
trabalho da política, eles também, um puro meio. A pesquisa é
um sintoma (uma interrupção no saber acumulado, meramente
opinativo) e, ao mesmo tempo, enquanto experiência, ela é
também conhecimento (uma interrupção no caos da simples
vivência). Um aspecto estabiliza; o outro, desestabiliza. E o
pesquisador equilibra-se entre ambos, desequilibrando-se.[27]

Cada vez mais, porém, Coutinho se estabiliza, se afirma, ou melhor, é
afirmado, reafirmado. Esse último filme, As canções, o confirma. A pesquisa
humanista-materialista mais uma vez é oposta (portanto relacionada) a
métodos mais comuns na chamada "mídia", na "TV", ao mesmo tempo, mais uma
vez, em que dialoga com ela. Aqui mais diretamente. É na "TV" que aparecem
os shows de calouros, em que o público busca se surpreender com o anônimo
que "canta bem", melhor do que muitos famosos – o que reafirma a
dependência (afirmativa) em relação ao critério da própria "mídia". A
pesquisa prévia, ao invés de gerar vertigens ou vazios, foi buscar esses
cantores anônimos, modestos, humanos, que "cantam bem" e que se dispuseram
a contar seus dramas à câmera de Coutinho.

Ao contrário dos filmes anteriores, porém, esse me provocou uma
sensação nova (não boa, nova), uma sensação absurda: como é possível eu
estar diante do mais novo filme de Coutinho, premiado como os outros,
diante do documentarista emblemático, que rejeita os valores da mídia com
seu cinema ético, só que agora tendo a incômoda sensação da memória do
tempo em que eu via o Programa do Jô? Nada pode haver em comum entre
Coutinho e Jô, que bobagem! Mas a sensação não só permanece como se
intensifica. E se mantém hoje, dias depois. (Um dos alunos, décadas mais
jovem que eu, diz ter tido sensação análoga: com Luciano Huck.)

A rigor a sensação não é tão absurda. Obviamente a comparação, a
memória da "TV", é atiçada pela analogia com os calouros, o que não parece
de todo estranho ao projeto do filme. Mas sua intensificação sintomática se
alimenta daquilo que normalmente não aparece nos comentários sobre
Coutinho. Certamente ela ficará mais visível se assumirmos logo as
diferenças, embora óbvias: Coutinho é inteligente, Jô tenta ser elegante e
bem humorado; o conservadorismo de um é, repito, alinhado ao humanismo
marxista, enquanto o do outro traz a visão pseudo-aristocrática da direita
relativista que supostamente conversa com todos; um critica a TV, com quem
já teve uma relação complexa, através do cinema, enquanto o outro aprecia
apenas a superfície glamourosa, pseudo-intelectual do cinema, com quem já
teve uma relação complexa, através da TV; um demonstra preocupação ética em
relação aos personagens, o outro, apenas cortesia profissional, quando
muito; um faz o chamado "cinema de dispositivo", reforçando o sentido
restrito de "dispositivo" como "máquina que provoca e permite filmar
encontros",[28] enquanto o outro reforça violentamente, na emissora
hegemônica, o sentido amplo, foucaultiano-agambeniano de dispositivo, como
tudo aquilo que, na cultura como um todo, está pronto para entrar em ação
no exercício disseminado do biopoder.[29] Além, é claro, de um ter feito
filmes, mais ou menos regularmente, de modo mais ou menos heterodoxo,
enquanto o outro tem um programa cotidiano de TV, já tradicional, obediente
a um formato largamente consagrado (principalmente por David Letterman).

E quanto às semelhanças? Começam pelo humanismo, pela noção de projeto
humano em cuja defesa trabalham, cada um a seu modo. Ambos os personagens
aqui comparados são, intensamente, personagens de si mesmo. Ambos aparecem
como centro organizador das imagens, ainda que um esteja em quadro e o
outro não (exceto pela voz). Ambos são associados, na memória (pelo menos
por mim), a uma regularidade de entrevistas com tipos diversos,
regularidade que (pelo menos para mim) se tornou maçante em Jô há muito
tempo e que agora, com As canções, se tornam igualmente maçantes em
Coutinho – inclusive com alguns entrevistados repetidos. Ambos
(principalmente agora) valorizam as canções. Ambos reduzem as canções: ao
prestígio do programa de TV, em Jô; à determinação de sentido em ambos.

Essa última semelhança me parece mais importante quanto à perplexidade
que senti e que me leva ao potencial acadêmico da periferia: assim como "a
TV", esse último filme de Coutinho traduz as imagens. Pelo menos um dos
personagens explica o sentido da pesquisa (sem per) que possibilitou o
filme: algo como "esta canção mantém para mim, na memória, num lugar fixo,
este momento da minha vida, momento especial, especialmente dramático, esta
canção se reduz a esse significado; isso acontece com todo mundo, e eu sou,
modestamente, apenas um caso específico". O pressuposto aí fica bem claro:
é a canção como determinante, o movimento interrompido, fixado no filme, o
cantar como o contrário da produção de vertigem e vazio própria a quem
canta (a quem pesquisa-através, sem ouvir um dever-ser), própria às
sereias, é claro, cujo canto monstruoso, inumano, indefinível, caso tivesse
convencido Ulisses a se desamarrar, teria mudado radicalmente toda a
história, todo o por-vir (toda a música, todo o cinema).[30]

As pessoas, os personagens, vão ao teatro, ao palco armado pelo
cineasta – assim como em Jogo de cena, elas é que vão ao diretor, a seu
espaço de organização, de direção segura, com sua atmosfera controlada. Vão
enquanto tais (pessoas, personagens de Coutinho), portanto enquanto seres
de teatro (um teatro coutinhizado desde Jogo de Cena), seres de um circo
humano cuja visão, classificação, é produto de sua pesquisa. Chegando lá,
sentam-se e se definem através da canção definidora. Desmontam-se ao
chorar? Não: definem-se humanamente ao cantar, amarradas que estão à
cadeira, ao enquadramento, à submissão ao princípio organizador do filme –
tanto quanto nós. A única exceção é a senhora que chora já ausente, já fora
do palco, cadeira vazia. Mesmo assim se define, define o significado da
canção em sua afirmação, na afirmação de si, apenas fazendo ver que, para
nós, já está ausente, tanto quanto os outros, tanto quanto todos os outros,
demasiado humanos, definidos pela redução de suas canções a seus dramas.
Muito diferente da "TV"?

A sensação se delineia melhor quando Coutinho mesmo afirma algo (de
novo, o microfone) em torno de não mais saber o que fazer depois de Jogo de
cena (reafirmando Escorel). Retroativamente, surge o risco (que valorizo
aqui) de que toda sua filmografia seja lembrada agora a partir desse filme
redutor, em que o Coutinho humanista, ético, libertador e afirmador das
identidades (como fez com a de Elizabeth Teixeira em Cabra e com outras),
deixa aparecer ali, no equívoco das cópias trazidas a Florianópolis (entre
Um dia na vida e As canções), a carga redutora que define o próprio (do)
humanismo.[31]

Mas se foi na periferia que isso aconteceu, que isso pôde acontecer,
então a periferia se apresenta realmente como um espaço de investigação (de
per-quaere) privilegiado: ali (aqui) podemos finalmente assumir que o que
há (o que houve) de inteligente, arejado e criativo nas imagens de Coutinho
só pôde aparecer assim, vibrante, brilhante, na verdade, contra o fundo de
conformismo das imagens prevalentes – não só as de Jô, é claro, mas também
as de todo o cinema conformista ao qual Coutinho de fato fez frente. Ou
seja, apareceu na dependência desse fundo. Cai na periferia – suposto lugar
do conformismo lasso diante da arrogância dos centros, lugar de carência
(terreno fértil para heroicizações) – a visão até então generalizada,
centralizada, do gênio ético do documentário nacional.

Cai o modelo diante de alunos de cinema periféricos – alguns,
lembremos, já intelectualmente mais sofisticados que críticos profissionais
centrais, como o demonstrou o primeiro momento azedo comentado acima. O
dispositivo se indispõe no sentido restrito, costumeiro aos olhos do centro
que o produzia, e aprofunda-se no sentido amplo, biopolítico, que a
periferia desumanizada, precária, percebe e faz ver desde sempre.[32] É boa
a sensação desse vazio capaz de interromper o olhar humanista tradicional,
definidor – olhar adâmico talvez: o tranquilo olhar de Deus, que fez as
feras e as aves "E as apresentou ao homem para ver com que nome ele as
chamaria"[33] –, olhar análogo à lente central do diretor que, ao se voltar
à periferia, promove a visão de "como eles se viram".[34] Espero agora que
esse olhar periférico contamine também alunos geograficamente centrais,
ainda éticos e igualmente periféricos enquanto alumnos, sem luz, sem
modelos, sem heróis...

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[1] A Semana de Cinema é realizada anualmente por alunos do curso, esta
última foi a quinta edição. Eles escolhem temas e convidados, e conseguem
da instituição recursos mínimos para arcar com passagens e hospedagens.
Recebem alguma ajuda de professores em termos conceituais ou operacionais,
mas o grosso é feito por eles.
[2] O texto que André apresentou está aqui na Punctum, em [link para o
texto do André]
[3] Telles, Renata. Roberto Schwarz vai ao cinema: imagem, tempo, politica.
Tese de Doutorado. Florianopolis: UFSC, 2005, p. 151-2.
[4] Schwarz, Roberto. "O fio da meada". In: ____. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 72.
[5] Schwarz, Roberto. "O fio da meada". In: ____. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 76.
[6] Schwarz, Roberto. "O fio da meada". In: ____. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 73 (grifo meu).
[7] Schwarz, Roberto. "O fio da meada". In: ____. Que horas são? São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p.77
[8] Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
[9] Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[10] Lins, C.. "O cinema de Eduardo Coutinho,
http://publicaciones.fba.unlp.edu.ar/wp-content/uploads/2011/08/Lins_O-
cinema-de-Eduardo-Coutinho.pdf. As falas de Coutinho na citação (já em
itálico no texto da autora) são referidas a Coutinho Eduardo, Un cinéma de
dialogue rejeté par la télévision, in Catalogue du cinéma du réel, Paris:
Centre Georges Pompidou, 1992.
[11] Cf. Nancy, Jean-Luc. Être singulier pluriel. Paris: Galilé, 1996.
[12] Performance aliás coerente com a de seu personagem da cena engraçada
de Câncer, de Glauber Rocha, em que, para se desvencilhar, diante do
delegado (Hugo Carvana), da acusação de ser militante de esquerda, diz-se
um teórico, e para prová-lo acrescenta: "eu tenho um caderninho".
[13] Cf. Derrida, Jacques. A universidade sem condição. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
[14] Agamben, Giorgio. "O cinema de Guy Debord" (conferência em Genebra,
1995). Tradução (do francês) de Antônio Carlos Santos (fotocopiado).
Original em Agamben, Giorgio. Image et memoire: écrits sur l'image, la
danse et le cinéma. Paris: Desclée de Brouwer, 2004.
[15] Eduardo Coutinho em entrevista na Cinemais nº 22, p. 65. Citado por
Lins, C. "O cinema de Eduardo Coutinho", em
http://publicaciones.fba.unlp.edu.ar/wp-content/uploads/2011/08/Lins_O-
cinema-de-Eduardo-Coutinho.pdf.
[16] Lins, C. "O cinema de Eduardo Coutinho", em
http://publicaciones.fba.unlp.edu.ar/wp-content/uploads/2011/08/Lins_O-
cinema-de-Eduardo-Coutinho.pdf
[17] Lins, C. "O cinema de Eduardo Coutinho: uma arte do presente", em
http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/clins_6.htm
[18] Bazin, André. "Los olvidados". In: ___. O cinema da crueldade.
Tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
52.
[19] Bazin, André. "Los olvidados". In: ___. O cinema da crueldade.
Tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
54.
[20] Bazin, André. "Los olvidados". In: ___. O cinema da crueldade.
Tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
51.
[21] Banimento que fica mais visível sob o olhar que Deleuze dirige ao
mesmo Buñuel, a partir do mesma proposta de Bazin, aquela do "cinema da
crueldade", mas também a partir de um olhar que há muito havia se despedido
do humano como valor. Cf. "Imagem-pulsão". In: Deleuze, Gilles. Cinema 1:
imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Vale a pena conferir também, quanto a isso, a resposta de Sloterdijk à
Carta sobre o humanismo, de Heidegger, em Regras para o parque humano: uma
resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de
Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade.
[22] Lins, C. "O cinema de Eduardo Coutinho", em
http://publicaciones.fba.unlp.edu.ar/wp-content/uploads/2011/08/Lins_O-
cinema-de-Eduardo-Coutinho.pdf.
[23] Bragança, Felipe. "Edifício Master, de Eduardo Coutinho: Brasil,
2002", em http://www.contracampo.com.br/criticas/edificiomaster.htm.
[24] Escorel, Eduardo. "Coutinho não sabe o que fazer". Piauí, n. 35, em
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-35/questoes-
cinematograficas/coutinho-nao-sabe-o-que-fazer.
[25] Seria indicado (não é meu assunto aqui) pesquisar, de fato, sobre um
possível critério de seleção, sobre aquilo que leva um personagem
pesquisado a entrar ou não no filme, aquilo que a seleção de Coutinho faz
ver quanto a bom e ruim, quanto ao que "funciona" e o que "não funciona":
aparentemente esse pragmatismo (esse funcionalismo) é biopolítico, como o
mesmo texto de Escorel já citado indica: "O método de Coutinho, desde Cabra
Marcado para Morrer, de 1984, sempre foi estabelecer uma relação intensa
com pessoas que têm o desejo represado de serem ouvidas e de terem seus
depoimentos registrados" (Escorel, E. "Coutinho não sabe o que fazer".
Piauí, n. 35, em http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-35/questoes-
cinematograficas/coutinho-nao-sabe-o-que-fazer.)
[26] Antelo, R. "Verbete Pesquisador", em
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/verbetes/pesquisador.html. A citação
de Bataille está em Bataille, Georges. "Materialisme". In: Oeuvres
Complètes I, Paris, Gallimard, 1971, p.179-80 (tradução de Antelo). A de
Paz, em Paz, Octavio. Los signos en rotación y otros ensayos. Prólogo y
selección Carlos Fuentes. Madrid, Alianza, 1971, p.163.
[27] Antelo, R. "Verbete Pesquisador", em
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/verbetes/pesquisador.html.
[28] "Dispositivo é, nesses dois contextos, um procedimento produtor,
ativo, criador – de situações, imagens, mundos, sensações, percepções que
não preexistiam a ele. Não é, em absoluto, algo que se dá em toda obra de
forma semelhante, mas criado a cada trabalho, imanente, contingente às
circunstâncias do presente e submetido às pressões do real. Em Eduardo
Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O fim e o
princípio) o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que provoca e
permite filmar encontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais
(uma favela, um prédio, um vilarejo), temporais (o tempo de filmagem de
cada documentário), tecnológicas (os equipamentos utilizados), acionadas
por ele cada vez que se aproxima de um universo social. Como falar de
religião no Brasil? Percorrendo o país inteiro? Como falar da favela?
Filmando várias? A abordagem de Coutinho é clara: filmar em um espaço
delimitado e, dali, extrair uma visão, que evoca um 'geral', mas não o
representa nem o exemplifica, mas nos diz imensamente sobre o Brasil".
Lins, C. O documentário expandido de Maurício Dias e Walter Riedweg, em
http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier028/ensaio.asp.
[29] Cf. Agamben, G.. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução
de Vinicius Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
[30] Blanchot, M. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
[31] Como aliás já percebia Schwarz quanto ao retorno de Coutinho à Paraíba
em 1981: "Da primeira vez, em 1962, tratava-se do encontro entre os
movimentos estudantil e camponês, através do cinema, num momento de
radicalização política nacional. O que estava em jogo era o futuro do país,
e as pessoas só mediatamente seriam o problema. Agora trata-se da
obstinação e solidariedade de um indivíduo, armado de uma câmara, que em
condições de degelo político ajuda outra pessoa a voltar à existência
legal, o que além do mais lhe permite completar o antigo filme" (Schwarz,
Roberto. "O fio da meada". In: ____. Que horas são? São Paulo: Companhia
das Letras, 1987, p. 75).
[32] Fenômeno, aliás, que levou Agamben, em sua visita a Florianópolis em
2005, pedir para visitar uma favela local.
[33] Gênesis, 2:19. Cf. Bíblia sagrada: edição pastoral. Tradução,
introdução e notas de Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1990,
p. 15 (grifo meu). Derrida chama atenção a este "para ver" em Derrida,
Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Unesp,
2002, especialmente p. 37 (v. também p. 15-6).
[34] Aproveitando, é claro, especialmente em relação a Cabra, o duplo
sentido de "viram".
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