Cinema como mediação de transcendência: apontamentos a partir do texto “Entre ícone e narrativa”, de Bruno Forte

June 2, 2017 | Autor: W. de Góis Silva | Categoria: Cinema, Teologia, Bruno Forte
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WALLACE DE GÓIS SILVA

CINEMA COMO MEDIAÇÃO DE TRANSCENDÊNCIA: APONTAMENTOS A PARTIR DO TEXTO “ENTRE ÍCONE E NARRATIVA”, DE BRUNO FORTE

Monografia, apresentada ao Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro, com vistas à aprovação e conclusão da disciplina Teologia e Cultura — Programa de PósGraduação em Ciências da Religião — Universidade Metodista de São Paulo.

São Bernardo do Campo — agosto de 2013

Cinema como mediação de transcendência: apontamentos a partir do texto “Entre ícone e narrativa”, de Bruno Forte Introdução Este trabalho pretende apontar alguns aspectos percebidos no texto de Bruno Forte, que propõe uma percepção de como o cinema, enquanto instrumento de expressão da linguagem, pode se fazer mediação de transcendência e, portanto, linguagem teológica, a partir de sua dimensão analógica. Os elementos da linguagem utilizados na análise de Forte e postos em discussão aqui são os que associam o ícone (símbolo) à narrativa. Em diálogo com a teoria sobre símbolo na experiência religiosa (sob uma perspectiva fenomenológica), de José Severino Croatto, e com os apontamentos de Júlio Cesar Adam, que analisou o filme Avatar sob o olhar das implicações da teologia prática, procuraremos entender como o cinema tem ocupado o papel de mediação entre humanos e o Transcendente, ou até mesmo substituto do papel das instituições religiosas. Por fim, pretendemos expor que mesmo diante das limitações da linguagem, através da dinâmica da analogia – que aproxima pontos diferentes e distantes por meio daquilo que tem em comum – o cinema se coloca no lugar de mediação com o Mistério, mas, nem sempre ele o faz de forma positiva: quando descaracteriza o sagrado ou quando desumaniza as relações interpessoais.

Aspectos preliminares sobre cinema e sagrado A pergunta inicial de Bruno Forte é se é possível que o cinema seja mediação de transcendência, ou que seja também um documento (ou locus theologicus, lit. local da teologia) de onde se possa, a partir da “inteligência que crê”1, isto é, pressupondo a fé e a reflexão, se reconhecer reflexos ou traços do transcendente na arte cinematográfica. Com base no pensamento de Paul Tillich, o teólogo Júlio Cesar Adam afirma que “Como expressão da cultura, o cinema não teria como não ser religioso”2. Adam prossegue justificando seu argumento: 1

FORTE, Bruno. A porta da beleza: por uma estética teológica. Aparecida: Ideias e Letras, 2006. p.135. ADAM, Júlio César. Religião e culto em 3D: o filme Avatar como vivência religiosa e as implicações para a teologia prática in Estudos Teológicos, vol. 50, nº 1. EST: São Leopoldo, 2010, p. 105. Disponível em < http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/46/49> Acesso 28 ago 2013 2

Além do mais, o cinema como meio e como conteúdo, trabalha de forma eficiente, implícita ou explicitamente, com os dramas, os mitos, as perguntas existenciais e a incansável busca humana por pertencimento, reconhecimento e sentido. Numa cultura onde tantas mudanças são produzidas, do excesso de informação, do individualismo, da insegurança frente ao futuro, o cinema se apresenta não só como uma válvula de escape, mas como um sistema orientador da vida, como síntese. O cinema constrói sentido, forma identidade, cria ordem, oferece uma síntese aparentemente destituída de uma instituição, de uma ideologia ou de um líder, algo como o foi anteriormente a igreja, a família, o Estado. É algo que parece vir de fora, “desprovido” de interesse e de controle. Isso o torna ainda mais poderoso como máquina de sentido.3

Bruno Forte, em contrapartida, coloca seu trabalho como uma busca por verificar a possibilidade de encontrar aspectos de mediação de transcendência no cinema, “tanto no sentido de uma abertura para o Mistério absoluto como também de uma possibilidade vinda do Outro, transcendente e soberano.”4 Com isso, procura trabalhar em termos análogos à palavra teológica, que se encontra na fronteira, isto é, se faz mediadora entre divino e os seres humanos, mesmo diante da limitação da linguagem, ainda que teológica, de falar sobre Deus: O crente que fala de Deus sabe que fala Daquele perante o qual deveria calar-se. Ciente dessa sua condição paradoxal, ele sabe, contudo, que não pode deixar de falar Dele [...]. A palavra teológica, enquanto ato de correspondência obediente ao expressar-se divino na revelação, é por isso, tão inevitável, quanto grávida de silêncio, de interrupção e de espera, enquanto histórica e contingente como toda linguagem humana: ele fala, calando-se; cala-se, falando; escuta, interrogando; interroga, escutando. [...] Enquanto discurso humano, a palavra da fé fala a partir do homem; no entanto só é verdadeiramente ela mesma quando aceita falar a partir daquilo que o Outro disse de si mesmo: “Omnis recta cognitio Dei, ab oboedientia nascitur” (Calvino).5

Nesse sentido, percebem-se dois movimentos que se cruzam: o do “peregrino” (o humano, buscador de sentido), e o da “Origem, [o divino,] do princípio, do pressuposto sem o qual o outro não existiria”6. Na linguagem, o pensamento que procura aproximar os dois pontos, eternamente distantes, é o pensamento da analogia, que se utiliza da linguagem da fé. Forte assegura novamente que essa linguagem procura se estabelecer

3

Idem. FORTE, 2006, p. 135. 5 Id. Ibidem, p. 136. – “O verdadeiro conhecimento de Deus nasce da obediência”, tradução livre. 6 FORTE, 2006, p. 137. 4

no campo da fé, e mesmo que se reconheça limitada, e por vezes se mantenha silenciosa, não admite o agnosticismo7, como se segue: Ora, a analogia une os diferentes, conservando-os em sua diversidade e mostrando a proximidade das distâncias. O que significa que, no falar analógico de Deus, permanece firme o primado do indizível. No entanto, a via negativa tem um valor dialético e não se resolve num princípio agnóstico. Nem é possível negar que se possa dizer afirmativamente alguma coisa de Deus.8

O escritor aponta que é justamente a tensão dialética da analogia que permite falar do Absoluto, mesmo diante das dificuldades advindas da “penúria do espaço e do tempo”9, conforme discorreremos daqui por diante.

Cinema: onde o ícone encontra a narrativa Dentre as várias formas de aplicação da analogia à linguagem teológica, Forte destaca duas delas que estão presentes no cinema: ícone e narrativa. O primeiro é definido como símbolo, no sentido de “manter juntas” as partes distintas, e assim, ser abertura para o Transcendente. José Severino Croatto, em sua obra As linguagens da experiência religiosa, descreve o símbolo como elemento analógico, e ressalta sobretudo, a necessidade de que o indivíduo tenha tido alguma experiência emocional com o objeto, por exemplo, uma pedra, para que então possa atribuir-lhe significado especial, para além do primeiro. Uma das funções do símbolo é comunicar aspectos percebidos pelo “homo religiosous” no transcendente, porque a experiência do mistério é essencialmente afetiva, e por isso precisa ser comunicada, sob pena de se tornar impossível de suportar.10 A etimologia da palavra símbolo aponta para a união de duas coisas, do grego "symbalo",11 a exemplo do que era comum na cultura grega, quando se fazia um contrato: quebrava-se um objeto de cerâmica em duas partes, para depois de um tempo unirem-nas de novo, indicando que a amizade ou parceria permanecia intacta. O sentido etimológico aqui adotado para o símbolo, portanto, é o de que estão presentes duas partes que se relacionam. Entendido aqui conforme a definição do dicionário Priberam: “Doutrina que declara o absoluto ou as questões metafísicas inacessíveis ao espírito humano, por não serem passíveis de análise pela razão.” Disponível em < http://www.priberam.pt/dlpo/> Acesso 28 ago 2013. 8 Id. Ibidem, p. 137-8 9 Id. Ibidem, p. 138 10 CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1994. p. 82. 11 Id. Ibidem, p. 85. 7

Bruno Forte diz que “no símbolo experimenta-se mais significado de quanto se possa ser articulado e compreendido, suscitam-se novos impulsos de pensamento e de vida, sentem-se atingidos por uma alteridade que provoca, nutre e abre horizontes imprevistos, se nos abre a uma síntese que a análise não esgota.”12 Croatto completa a noção de limitação da linguagem, e a necessidade do símbolo para expressar o transcendente, mostrando que “não é difícil perceber que as variações infinitas da expressão simbólica são uma evidência do inesgotável, que é a experiência do sagrado. Isso clama por uma mediação.”13 Para ele, é a capacidade de simbolizar que diferencia o ser humano dos animais. Tudo o que o ser humano produz é de alguma forma, simbólico, por exemplo, a linguagem, a experiência do amor, a arte, etc. Adam menciona brevemente o aspecto simbólico e religioso: “Ir ao cinema tem algo de ritual – a pipoca, as luzes que se apagam, o silêncio –; algo de simbólico – luz e movimento que nos conectam a histórias, mitos do lado de cá e de lá da tela –; algo de transcendente – vamos além de nós mesmos.”14 Entendemos até aqui que o símbolo (ícone) é mediação do transcendente e que ele pode até ser encontrado no cinema, mas ainda resta a pergunta: como a relação icônica que o ser humano tem com a religião aparece no cinema? Forte responde a esta questão aplicando o próprio conceito de ícone (enquanto instrumento da linguagem que faz ultrapassar os “umbrais do Mistério”) e associando o mesmo ao movimento de imagens, efeitos e luzes do cinema, fazendo assim uso da sucessão de ícones. Mas, uma vez que no cinema ele está em movimento, contrariando sua natureza imóvel, combina-se com a narrativa, que “é, precisamente, a outra forma em que a expressão analógica vem se manifestar na linguagem do cinema.”15 Bruno Forte e Croatto concordam que o símbolo é a chave da linguagem da experiência religiosa. Já a narrativa, diferentemente do ícone, não tem o poder de desvendar nada pelo qual não tenha passado anteriormente, porém, “parece garantir à razão crítica a capacidade de levar a sério a história humana; e é a narrativa que permite ao pensamento mediar sensatamente os conteúdos da história salvífica na história presente.”16

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FORTE, 2006, p. 139. CROATTO, 1994, p.83. 14 ADAM, 2010, p. 103. 15 FORTE, 2006, p. 140. 16 Id. Idibem, p. 143. 13

Os dois elementos, ícone e narrativa, portanto, complementam-se um ao outro, e aparecem no cinema, trabalhando em conjunto, quando o enxergamos sob a ótica da linguagem mediadora de transcendência.

Cinema e mediação de transcendência Para que o cinema seja mediação e abertura para o Mistério, no entanto, é preciso considerar as condições da analogia, que vive um decisivo “não” e “sim”, e que segundo Tomás de Aquino, nas palavras de Bruno Forte, nasce do movimento de dois extremos possíveis: “a univocidade indiscreta e que faz do divino um simples momento da identidade já conhecida e disponível” e a “equivocidade radical que escava o abismo que não se pode preencher, da incomunicabilidade entre o mundo de Deus e o mundo dos homens.”17 É entre essas duas margens que o pensamento sobre a analogia se constrói, pois ela “une os diferentes, conservando-os em sua diversidade e mostrando a proximidade das distâncias”.18 O autor, com base no pressuposto de Aquino, explica que o primeiro “não” a ser dito antes de considerar o cinema como mediação de transcendência é o não à equivocidade radical, que considera irrelevante ou inexistente uma relação do Mistério divino, e cuja fotografia se torna fechada em si mesma, indicando a inexistência do transcendente ou ignorando-a. Tais produções, apesar de serem cinematográficas, além de não serem mediadoras de transcendência, podem debilitar profundamente a dignidade da pessoa humana, reduzindo-a à esfera de suas necessidade e de seus apetites, mesmo os mais violentos e egoístas. É o caso da superabundante pornografia cinematográfica, como também do gênero de cinema que – em nome do divertissement – conduz ao entorpecimento das consciências e à extinção das verdadeiras questões conexas à consciência da própria dor e da dor alheia.19

Apesar

da

frequente

rentabilidade

financeira

que

esses

gêneros

“desumanizadores” trazem, eles, obviamente, não rendem em termos de qualidade de vida, pelo contrário, contribuem para a “barbarização” das relações humanas e para a alienação, que produz falsos modelos e suscita falsas necessidades, incentivando a satisfação delas por meios egoístas e violentos.

17

FORTE, 2006, p. 144. Idem. 19 Id. Ibidem, p. 145. 18

O segundo “não” proposto por Bruno Forte é o que trata da univocidade de sentido, pois parte do pressuposto de que “por mais que se esforce para veicular a Transcendência, nenhuma linguagem humana estará em grau de fazê-lo de forma apropriada, nem mesmo a cinematográfica”.20 Por isso, aponta ele, o gênero denominado “edificante”, demasiadamente voltado a expressar a linguagem teológica, torna-se enfadonho e “moralizante”, e age da mesma forma o gênero que se propõe ideológico, que “absorve o divino e o absoluto nos horizontes demasiadamente humanos e relativos”21, ainda que se proponha espiritualista, mas fica voltado apenas para uma visão ideológica do ser humano e da história. Esse tipo de cinematografia deixa de se elevar esteticamente e se torna, com frequência, banal e vulgar. Como diria Tomás de Aquino, “Tudo que nossa inteligência concebe de Deus não consegue representá-lo. Assim, o que é próprio de Deus resta-nos sempre oculto e a caminho está de reconhecer que Deus está acima de tudo que pensamos”.22 Forte utiliza esta frase para reafirmar sua tese de que a linguagem é limitada na expressão do Mistério, mesmo aquela que combina ícone e narrativa como o cinema. Por isso, a pretensão de univocidade seria inviável. Por outro lado, o autor propõe ainda um “sim” a ser dito quanto à classificação do cinema enquanto mediação do divino, e este sim diz respeito precisamente “à via média que propriamente a analógica, onde a proximidade e a distância não se anulam reciprocamente, mas se mantêm juntas mesmo na assimetria da relação.”23 A consciência desta dimensão do cinema poderia contribuir para que de fato ele o seja, aproximando entre os diferentes, aquilo que lhes é comum. Aplicando essa regra à linguagem cinematográfica, poder-se-ia dizer que ela deve ao mesmo tempo evitar dizer muito e dizer muito pouco. [...] A linguagem cinematográfica, enfim, como toda linguagem humana, pode ser veículo de transcendência sob a condição de manter a tensão própria da analogia. O cinema, mais que outras linguagens, está predisposto a isto pela possibilidade que lhe é própria e peculiar de combinar o símbolo e a narração, o ícone com sua força evocativa e a narrativa com suas potencialidades de história aberta e contagiante.

Forte sintetiza a conceituação de cinema como mediação de transcendência e afirma que ela será de aparente ausência de profissões de fé tematizadas, e por outro lado, enquanto expressão simbólica e narrativa será abertura para o Mistério e ao 20

Idem. FORTE, 2006, p.145. 22 Id. Ibidem, p. 146. 23 Idem. 21

mesmo tempo inserção na dinâmica histórica, através, inclusive de uma memória crítica. Sendo assim, a linguagem do cinema será mediação entre humano e divino desde que se mantenha a tensão própria da analogia. Adam, em sua análise de um filme específico, propõe uma visão geral sobre o aspecto religioso do cinema, diz que “Não resta dúvida de que o cinema, através de filmes como Avatar, à medida que proporciona, além do entretenimento, orientação, expressão, afirmação, vínculo, auxilia na construção do sentido da vida, queiramos ou não, e supre, sim, a sede religiosa do ser humano.”24 Resta-nos, portanto, propor uma, entre outras sínteses possíveis, de que o cinema, ao mesmo tempo em que é por si só, uma linguagem que evoca sentidos religiosos, e até mesmo o substitui assumindo o lugar de religião, mas para que ele de fato seja positivo nessa dinâmica de prover sentido, deve prezar por assumir um compromisso, dentro das limitações analógicas, de ser uma mediação do sagrado de maneira efetiva, reflexiva e que atente para a qualidade da produção em busca de atingir a valorização da vida e a humanização, mais do que o afã de arrecadar dinheiro ou divulgar determinada espiritualidade. Mas, sabemos que isto é utopia, talvez no sentido restritivo da palavra, mas nem por isso, deixa de ser paradigma e horizonte para nossa prática e reflexão teológica.

Considerações finais As ciências da religião, através da área de análise das linguagens da religião vêm empregando esforços no sentido de compreender as manifestações de linguagens em contextos religiosos ou que mesmo pretensamente antirreligiosos, acabam por ser produtoras de sentido e discursos de importância religiosa ou equivalência. O cinema é certamente um ambiente rico de linguagens com essas características, como este trabalho procurou mostrar. De fato, maior ainda é o desafio que fica às agências e indivíduos de atuação teológico-pastorais de perceberem mais este novo elemento de percepção do divino: o cinema. Assim como quase tudo, ele é aplicável a mais de um objetivo, e pode variar do construtivo ao destrutivo, dependendo, principalmente de seus objetivos e conteúdos. Cabe à reflexão teológica entender que, através da analogia, o cinema de fato se faz mediação de Transcendente, mas a desvirtuação do sagrado que pode pender para a

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ADAM, 2010, p. 112.

racionalização ou para o moralismo excessivos, e o abuso de recursos que viabilizem a comercialização frequentemente fazem parte dos objetivos dos produtores. É justamente aí que mora o perigo: enquanto mediador ou até mesmo substituto das relações do ser humano com o divino, o cinema tem sido gerador de sentido e em grande parte de sua produção, tem gerado relações doentias que afetam todas as dimensões da vida humana. Para que o cinema seja de fato uma contribuição qualitativa, uma vez que se coloca na condição de porta e condutor dos humanos ao sagrado, precisamos incentivar a reflexão crítica das pessoas que os assistem, e na medida do possível, aos produtores dos mesmos.

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