Cinema de terror e horror ao gênero: breves apontamentos e considerações

May 29, 2017 | Autor: Diego Paleologo | Categoria: Gender and Sexuality, Horror Film, Gothic Fiction and the horror film, Horror Cinema
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Cinema de terror e horror ao gênero: breves apontamentos e considerações Diego Paleólogo Assunção

Introdução No âmbito dos hiperbólicos delírios estéticos do cinema de terror as questões – ou os gritos, na adoção de uma terminologia mais adequada – de gênero e sexualidades emergem como que saídas do profundo poço da História. Heroínas, antiheróis e monstros das mais variadas estirpes ameaçam o tecido da normalidade: essa plácida superfície sobre a qual deslizamos, raramente dedicando um olhar às escuridões sedutoras que fervilham sob nossos pés. Terror e erotismo ocupam sensíveis campos semânticos cujas fronteiras, nem sempre nítidas, são flexíveis e cambiáveis. De Norman Bates à assombração/maldição sexualmente transmissível de ‘It Follows’; dos pássaros de Hitchcock aos monstros jurássicos de Spielberg, passando pelo desconcertante Alien de Ridley Scott, o cinema de terror flerta com um erotismo fatal e uma pornografia duvidosa1, e encharcam os espectadores em sangue (Carrie, de Brian De Palma e O Iluminado, de Stanley Kubrick, por exemplo, têm cenas nas quais o sangue em excesso funciona como um dispositivo para o horror). Para ingressarmos nesse universo precisamos de um criterioso passaporte: a certeza de que nossos mais íntimos pesadelos possam, eventualmente, se materializar...

O Iluminado, de Stanley Kubrick, 1979, aborda o tema de um pai perturbado que ameaça a integridade da própria família.

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Impossível não lembrarmos de David Cronenberg e seus trabalhos iniciais, como Shivers (Calafrios) e Rabid: enraivecida na fúria do sexo, os dois da década de 70.



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O cinema de terror, enquanto gênero, sempre foi relegado ao prefixo “sub”, tratado como produção inferior, forma na qual a amplitude da magia cinematográfica não aparece em toda a sua glória2. Em geral, os afetos que as narrativas de terror fazem surgir nos espectadores são negativos: medo, asco, angústia, ansiedade, uma terrível sensação de que algo está errado, muito errado... afetos que o século XX procurou erradicar da experiência sensível através de diversas formas de domesticação e controle dos corpos e desejos.3 O cinema de terror é, então, aquela narrativa marginal, excessiva, doentia e monstruosa que escapa às teias normativas da representação. Filmes que abordam as situações limítrofes do nosso cotidiano, os segredos trancafiados nos porões, os elementos sobrenaturais que pairam sobre e sob nosso imaginário: esqueletos, fantasmas, vampiros, bruxas, lobisomens, múmias, monstros informes, maldições, crianças, mulheres, enfim, tudo aquilo que não é absorvido pelo poder normalizador e que não pode ser alocado com precisão nas esferas da Vida e/ou da Morte; em resumo, a matéria-prima do terror é o que escapa, o que vaza, o excesso, o que não pode ser contido. O cinema de terror convoca todas essas personagens desviantes e produz uma espécie de vingança contra um certo classicismo estético hegemônico. As narrativas audiovisuais que deslizam para esse obscuro campo costuram, como fez um certo anatomista fictício do início do século XIX 4 , pedaços de diversos gêneros (melodrama, comédia, romance, documentário, pornografia...) e fabricam terríveis imagens que permanecem, durante décadas, gravadas em nossas mentes. Muitas vezes podemos observar as costuras aparentes, as cicatrizes mal curadas, o sangue falso e os truques; muitas outras vezes podemos adivinhar a sequência dos acontecimentos, descobrir quem é o assassino antes do fim da narrativa e, ainda assim, torcer pelo final previsível: desejamos a morte do monstro e a sobrevivência da garota. Nem sempre isso nos é dado. Uma famosa citação do escritor norte-americano Stephen King alude para esse jogo perverso das narrativas de terror: “monstros são reais, e fantasmas são reais também. Eles vivem dentro de nós e às vezes eles vencem.”

Citação de Stephen King.

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A comunhão entre cinema e terror data dos primórdios do cinema, ainda no final do século XIX, com o filme A Mansão do Diabo, de 1898, um dos primeiros filmes da História. É interessante atentarmos para esse dado histórico. O cinema opera uma ilusão óptica, uma fantasia; a possibilidade de produzir novas e outras visualidades; é na tela do cinema que o terror adquire uma corporeidade. 3 Controle farmacológico dos afetos e sensações ‘negativas’ através de drogas e comercialização de estilos de vida nos quais a felicidade, satisfação e conquistas são exaltadas como as possibilidades éticas e estéticas de uma vida plena. 4 Victor Frankenstein, criado por Mary Shelley em 1816, fabrica seu monstro costurando partes de cadáveres, como sabemos.



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Com diversos romances e contos adaptados para os meios audiovisuais, King refere-se aos monstros e fantasmas que habitam nossas mais íntimas experiências e fantasias – de acordo com o autor, esse é o verdadeiro terror – e nos situa na eternamente desequilibrada balança do Bem e do Mal: às vezes eles vencem, ou seja, às vezes o normal, o conhecido, o seguro, não consegue domesticar o monstro. Lugar de celebração para alguns e frustração para outros, essas torções configuram os pontos nevrálgicos das inúmeras renovações do gênero – mas de qual gênero estamos falando agora? O que não pode ser domesticado nem nunca será?

A Bruxa de Blair, 1999. O falso documentário narra a aventura de 3 estudantes de cinema que se perdem nas florestas de Maryland e são atormentados por forças sobrenaturais habitam a natureza não domesticada, selvagem, associadas a uma suposta bruxa. No final do material, entendemos que os estudantes não sobreviveram. A câmera amadora aproxima o espectador do corpo e das emoções dos atores.



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O cinema de terror deve, em um primeiro momento, perguntar: o que tememos? Essa pergunta pode ser respondida, resumidamente, a partir da seguinte lógica: as pessoas temem o que elas não compreendem e o que elas não conhecem. Essa estrutura de pensamento evoca Sigmund Freud e o primoroso ensaio “O Inquietante”5, no qual o psicanalista austríaco investiga as dimensões do medo e do inconsciente, alocando no trauma do passado o lugar do terror no presente, ou seja, um evento traumático e recalcado que retorna, de forma monstruosa, no presente. Não tenho a intenção de fazer sentar no divã o cinema de terror. Meu objetivo, nesse breve ensaio, é iluminar as relações entre o cinema de terror e sexualidades assombradas. De qual gênero estamos falando? Do terror, do feminino, das masculinidades desviantes, de tudo que ameaça e coloca em xeque a normatividade. Quem responde, não raramente, à pergunta ‘o que tememos?’ é o homem branco, cis6, heterossexual, classe média, urbano e eurocêntrico. O que ele teme? Resumidamente, tudo aquilo que escapa ao seu domínio: o que ele não conhece e o que ele não pode conquistar.

Bufallo Bill, o assassino de O Silêncio dos Inocentes, representado por Ted Levine. No filme, o assassino é um desajuste sexual que deseja fazer uma roupa a partir da pele de mulheres.

Na tentativa de mapear esses pontos nodais de sangue e sexo, elegi algumas narrativas audiovisuais que considero sintomáticas e que ocupam lugar de destaque no imaginário popular do cinema de terror; filmes fortemente amarrados no tecido cultural do cinema de terror, que de uma forma ou de outra inventaram ou reinventaram o gênero, discutindo e/ou apontando para as relações de poder em constante desequilíbrio entre o normal e o desviante.

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Ensaio publicado em 1919 sob o título original Das Unheimliche. “Cis” é abreviação do termo que designa o indivíduo/sujeito cisgênero, ou seja, indivíduo cuja identidade sexual corresponde ao corpo do nascimento. 6



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Parte I Assassinos em série: a mulher sobrevive Psicose (1960)

Norman Bates conversa com Marion Crane alguns minutos antes de assassina-la no chuveiro.

A década de sessenta, principalmente nos Estados Unidos, é o limiar histórico de uma mudança. Não se trata apenas do fervilhante caldo político de lutas, confrontos, quebra de paradigmas e emergência das lutas das minorias por visibilidade e representatividade; é o momento no qual o cinema de terror investiga novas fórmulas e mapeia, em tramas complexas, as tensões sociais de um determinado período. Observamos o início de um lento desmoronar das estruturas de gênero sobre as quais a sexualidade descansava. Masculino e feminino deixam de ser categorias fixas, esferas radicalmente separadas, e as misturas em desequilíbrio fornecem a matéria para o terror; os corpos nos quais as oposições são tencionadas são monstruosos, violentos e ameaçam a plácida superfície da existência; corpos e comportamentos que escapam às regras convocam a destruição, o caos, e perturbam a normatividade. Em Psicose, insuspeito sucesso de Alfred Hitchcock de 1960, somos apresentados a Norman Bates, o solitário dono de um hotel de beira de estrada. Com maneirismos estranhos, Norman passa ao espectador algo de inquietante. Sabemos, passados quase sessenta anos da estreia do filme, que Bates é o assassino – ou algo próximo disso. Lembramos da irmã de Marion Crane (Janet Leigh, assassinada na clássica e célebre cena do chuveiro), Lila Crane (Vera Miles), entrando na sinistra mansão, encontrando o colchão afundado na forma de um corpo e, em seguida, descendo ao porão e descobrindo Norma Bates, a mãe reclusa, sentada de costas para nós (nesse momento acompanhamos Vera Miles); ao encostar no ombro da velha senhora, a cadeira gira e Hitchcock revela ao público o duplo jogo perverso: a mãe está morta, um rosto embalsamado, sem olhos e com terríveis dentes expostos escarnece da plateia; Vera Miles grita, esbarra na lâmpada e entra Norman Bates, com um vestido e uma peruca, empunhando uma imensa faca, na intenção de matar a estarrecida Vera Miles. Enquanto espectadores, somos atingidos em dois lugares distintos: simultaneamente descobrimos a mãe morta e somos atacados por uma estranha



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persona cujo gênero, em um primeiro instante, não decodificamos. É no instante do choque e da confusão que percebemos tratar-se de Norman, o filho, travestido da própria mãe. Ainda de acordo com Linda Williams, nos filmes de terror os monstros e assassinos que as mulheres encontram são expressões hiperbólicas de características e traços psíquicos das personagens. Marion Crane é assassinada no chuveiro, nua, em uma das mais perturbadoras cenas do cinema norte-americano, convocando erotismo e morte para o mesmo campo. Marion Crane é punida em diversas instâncias: ela desafia a sociedade patriarcal, retroalimentada pelo capitalismo, ao roubar o dinheiro de um rico cliente, Mr. Cassidy, que flerta agressivamente com ela através de um discurso no qual sexo, capitalismo e relações de poder se desvelam em suas formas mais cruas; é punida, em última instância, por provocar desejos sexuais nos homens. Quem a mata é a ambígua persona de Anthony Perkins, que conjuga repressão, frustração, moralismo e, obviamente, psicose; um homem que não consegue se encaixar na dinâmica heteronormativa.

Anthony Perkins/Norman Bates travestido de Norma Bates, avança para cima de Vera Miles/Lila Crane.

De acordo com a explicação de um psicólogo, no final do filme, quem comete os crimes é a mãe – ou a parte da mente de Norman que representa a mãe e se impõe sobre o lado masculino. As camadas são complexas e intrincadas. A mulher, em Psicose, aparece em três vertentes de um mesmo lócus: mãe, amante, irmã7. Cada uma incorpora características comumente atribuídas aos estereótipos da mulher: a mãe controladora e repressora; a amante erotizada e capaz de ações que escapam ao domínio da normatividade (sexo, roubo, ativar o desejo nos homens, etc); a irmã sensível e racional, na qual as características da mãe e da amante encontram-se em equilíbrio; ela é quem sobrevive enquanto os excessos são exterminados e/ou contidos. No caso de Psicose, a torção da narrativa pode ser observada na mãe/mulher que toma o corpo do filho/homem; Norma Bates vence no final e se instala 7

“Irmã” no sentido também de colega, companheira,



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definitivamente no corpo do filho, provocando uma inquietante convergência entre masculino e feminino. Hitchcock alerta para o potencial transgressor do feminino. Psicose marca uma nova fórmula do terror, o thriller psicológico mediado pelo suspense; são narrativas que comportam intensa carga melodramática e borram as fronteiras das sexualidades normativas; o filme de Hitchcock introduz também o tema da família disfuncional – relações atravessadas por excessos patológicos explodem em violência física, assassinatos e cenas que borram as fronteiras entre terror e erotismo... Nesse sentido, Halloween, Sexta-feira 13 e Pânico são os filhos lógicos de Psicose.8 Sexta-feira 13 oferece uma inversão da narrativa de Psicose. Ao invés do filho, a assassina é a perturbada e vingativa mãe de Jason, Mrs. Voorhees, cujo projeto é exterminar os adolescentes que espelham aqueles que negligenciaram seu filho, permitindo que ele morresse afogado no acampamento Crystal Lake. Mrs. Voorhees persegue e mata de forma cruel um a um os adolescentes que vão a Crystal Lake para reabrir o acampamento. No final, resta apenas Alice, a final girl, que sobrevive e decepa Mrs. Voorhees.

Mrs. Voorhees e sua faca em Sexta-feira 13.

Sexta-feira 13 é um espelho invertido de Psicose. Enquanto Norman Bates é controlado pela mãe morta e simula sua voz, presença, diálogos, Mrs. Voorhees é movida pela presença do filho morto. Assim como em Psicose, a raiz do Mal em é da ordem sexual. Mrs. Voorhees explica que Jason morreu afogado porque os monitores do acampamento estavam “fazendo amor” ao invés de cuidar do seu filho. Em Psicose, a repressão sexual imposta pela mãe é tão intensa que Norman precisa aniquilar qualquer vestígio e/ou investimento erótico – e qualquer pessoa que ameace a simbiótica e imaginária realidade que Bates constrói para si. A família disfuncional, representada em Psicose pelo sistema filho-mãe se desdobra à medida que o cinema de terror se reinventa e produz torções sobre o 8

A terminologia para esse tipo de filme é ‘slasher movie’, nos quais as facadas são explícitas e o sangue abunda.



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mesmo tema. Em Halloween (1978), de John Carpenter, acompanhamos uma tensa e interminável perseguição entre irmãos separados; Michael Myers, aos sete anos, esfaqueia a irmã mais velha após um interlúdio sexual; o menino é internado e, após 15 anos, foge do manicômio para perseguir a irmã sobrevivente. A atividade sexual, esse gesto confiscado e esvaziado pela família9, parece ser o dispositivo que faz funcionar a maquinaria da violência persecutória. Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) é a final girl, que sobrevive fugindo, se escondendo, escapando de todas as formas da imensa faca de Meyers, o monstruoso irmão que incorpora de forma hiperbólica os abusos e perseguições de uma sociedade machista; Myers é o monstro esvaziado de humanidade, cujo único objetivo é perseguir e matar. A imensa faca, sempre em riste, é a onipresença do phallus.

Jamie Lee Curtis, a final girl em Halloween, utiliza uma enorme faca para se defender.

Pânico, de Wes Craven, 1996, é uma reinvenção do gênero. Situado em um comum colégio norte-americano, o filme carregado de metalinguagem disseca e desconstrói as fórmulas cristalizadas do cinema de terror. O obcecado Randy Meeks (Jamie Kennedy), que morre no segundo filme, chega a enumerar as regras para morrer: sexo e drogas, investigar um ruído do lado de fora e dizer “ I’ll be right back”. Wes Craven segue e burla as regras. A dupla de assassinos, apaixonados demais por cinema de terror, deseja reproduzir um filme de terror na realidade. Vestindo uma roupa presta e uma fantasmagórica máscara branca, Billy Loomis (Skeet Ulrich) e Stu Macher (Mathew Lillard) perseguem e matam seus amigos e namoradas. Sidney Prescott (Neve Campbell), a vítima final, sobrevive e, juntamente com a ambiciosa repórter local Gale Weathers, matam os dois homens em uma cena final repleta de sangue, feridas abertas e tensões. 9

Como aponta Michel Foucaul no primeiro volume da História da Sexualidade.



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Neve Campbell como Sidney Prescott, a final girl de Pânico; a mulher que tem que sobreviver de forma violenta em um ambiente hegemonicamente machista e perturbado.

No fundo de Pânico, a motivação dos assassinos passa pela destruição da família tradicional. Billy Loomis, o assassino principal e namorado de Sidney, deseja se vingar porque a mãe de Sidney tinha um caso com o pai de Loomis e isso destruiu sua família. No final, descobrimos que Billy é também o responsável pelo assassinato da mãe de Sidney. A destruição da família normativa não pode ser suportada pelo homem e ele rompe, tornando-se um mascarado assassino psicótico que persegue e culpa, em última instância, a mulher; o objetivo de Billy e Stu é uma vingança contra o gênero feminino.

Stu e Billy são os desajustados assassinos incapazes de administrar suas sexualidades e rupturas nos tecidos sociais da família tradicional.

Existe, também, uma silenciosa tensão homoerótica entre os dois assassinos. No final, para simular uma versão para a polícia, os dois se esfaqueiam na cozinha em uma cena que remete às violentas expressões de afetividade entre dois homens, reprimidas e negadas pela sociedade. A extrapolação dessa tensa relação entre sexo e violência, permissividade e repressão pode ser encontrada recente ‘It Follows’, de 2014, dirigido por David Robert Mitchell. Na narrativa, uma menina, após ter relações sexuais com um rapaz,



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encontra-se ‘contaminada’ por uma assombração visível apenas para ela; o fantasma sexualmente transmissível persegue sua vítima até exterminá-la através de uma morte excessivamente violenta. Sem nome, sem corpo e sem origem, o fantasma de ‘It Follows’ é produto de uma sociedade na qual o sexo é tratado de forma explícita e violenta, porém sem conteúdo; discursivamente reprimido, explode os corpos desejantes e, de diversas formas, volta-se contra esse mesmo corpo. ‘It Follows’ é um terrível conto moralista de precaução em uma sociedade que perde, sistematicamente, suas próprias narrativas e identidades. Em resumo, o diretor aponta que nossa definição ocidental é atravessada por violências explícitas e sexualidades veladas.

It Follows – a estudante precisa sobreviver ao fantasma sexualmente transmissível do século XXI.



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Parte II Monstros: excesso e ausência Os Pássaros (1963)10 Três anos depois de Psicose, Alfred Hitchcock leva aos cinemas a adaptação do conto ‘Os Pássaros’, da escritora britânica Daphne du Maurier. Sob alguns aspectos, Hitchcock recupera o estranho e inquietante subtexto de Psicose, um psicodrama sexual que alerta para as desequilibradas relações de poder entre homem e mulher.

Tippi Hedren convoca a violência apocalíptica dos pássaros ao recusar sua submissão e engendrar novos possíveis escapes para a mulher.

Em ‘Os Pássaros’ (1963), Melanie Daniels (‘Tippi’ Hedren) segue para a pequena Bodega Bay com a intenção de levar para Mitch Brenner (Rod Taylor) um par de ‘lovebirds11’, para concluir (ou dar continuidade) um jogo de flertes iniciado em uma loja de pássaros, em São Francisco, no qual os papéis sociais e identidades são divertidamente questionados. A chegada de Melanie Daniels em Bodega Bay coincide com uma série de bizarros ataques de pássaros contra os moradores da pequena cidade; no começo do filme Melanie é atacada por uma gaivota. Os pássaros atacam com violência, mirando 10

O Bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968) e O Exorcista (William Friedkin, 1973) poderiam ocupar esses lugares como filmes que abordam a gravidez monstruosa e o corpo da mulher como canal para o Mal, marcando o final da década de sessenta e início dos anos setenta. A escolha por Hitchcock é enfatizar as contribuições que o diretor forneceu para o cinema de terror e sublinhar esses filmes como narrativas que cambiaram o eixo do gênero. Tanto O Bebê de Rosemary quanto O Exorcista são posteriores a Psicose e Os Pássaros. O que pode ser apontado em relação a O Exorcista é a introdução de crianças possuídas por forças demoníacas, como em A Profecia (1976); essa temática é observada em Os Inocentes (1961) e em Village of the Damned (1960). A criança, assim como a mulher, são corpos vulneráveis e “sem controle”, sujeitos às forças do Mal. É necessário um sacrifício e/ou o extermínio para que tudo volte ao normal. 11 Pássaros do amor, semelhantes aos periquitos.



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o rosto e os olhos; ataques cujo objetivo são os órgãos que, de acordo com Freud, correspondem ao simbolismo do complexo de castração – essa relação é observada, principalmente, no ensaio ‘O Inquietante’. Em determinado momento do filme, no ataque mais violento, as personagens estão em um café e os pássaros atacam o centro da pequena cidade, provocando o caos; o posto de gasolina explode, as pessoas estão em pânico. Melanie Daniels voltase para o interior do café e todas as mulheres estão em um corredor, algumas de costas para Daniels enquanto as outras a olham com suspeita; uma se vira e acusa Melanie Daniels de ser a causa de tudo que está acontecendo e grita: - I think you’re the cause of all this! I think you’re evil. Evil! Essa acusação desloca, de certa maneira, o eixo do filme: é possível que essa aberração da natureza – os pássaros atacando– esteja acontecendo porque Melanie Daniels inverteu a ordem do milenar do jogo de sedução e ao invés de esperar que o homem fizesse algum movimento, ela mesma produz esse movimento e vai atrás de Mitch Brenner; ela é a mulher que não aceita as imposições cristalizados de um mundo machista. O romance entre os dois, se há algum, é diluído ou desconstruído e existe até a leitura de um romance reprimido entre Melanie e a professora Annie Hayworht. Como aponta Linda Williams no artigo ‘When the Woman Looks’, o olhar da mulher – a tomada de um posicionamento, empoderamento, se quisermos – é, em geral, recompensado com terror. Os pássaros atacam o rosto, bicando os olhos... O cinema de terror condena e recusa qualquer expressão de desejo expresso e inscrito no corpo da mulher. Toda vez que a mulher desafia e desarticula o lugar de submissão, o tecido social encontra-se terrivelmente ameaçado. Hitchcock questiona os papéis sociais, culturais econômicos, as divisões simbólicas entre homem e mulher, masculino e feminino. Essa dicotomia binária é evidente quando Cathy, filha de Mitch, pergunta para Melanie Daniels sobre os pássaros que a menina ganhou de aniversário: - Is there a man and a woman? I can’t tell which is which.



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Tippi Hedren após ser atacada diversas por pássaros; a força de uma masculinidade simbólica exige que ela deixe a pequena Bodega Bay.

Se em Os Pássaros observamos esse complexo jogo entre uma animalidade destruidora ativada por uma tensão sexual – o que está em jogo, no caso, é o moralismo, a manutenção das regras e condutas, do binarismo e das relações de poder entre homem e mulher, Alien, de Ridley Scott, de 1979, introduz um complexo monstro que desarticula as oposições homem/mulher, masculino/feminino. O animal ósseo que se acopla ao rosto de um dos tripulantes da nave Nostromo pode ser lido como um delírio estético do imaginário da vagina dentada. A criatura não apenas se acopla ao rosto de John Hurt, mas faz dele o útero para o monstruoso filho. A própria nave, como indica David J. Skall, é uterina. Em Alien, a casa assombrada flutua na terrível escuridão do espaço. As personagens acordam para ofuscantes luzes brancas. O núcleo familiar não existe mais – a nova família é composta por relações de afeto e trabalho, cancelando os laços sanguíneos. Os 7 tripulantes da nave Nostromo comem, bebem, fumam e conversam; a nave-casa aterrissa em um estranho planeta para investigar um pedido de socorro. Um dos tripulantes é atacado por uma óssea criatura aracnídea que se acopla ao seu rosto. Ao retornar para o seguro interior da nave-casa, o caos se espalha; estamos, mais uma vez, em uma casa assombrada por um monstro vampírico e parasitário... cabe à sobrevivente Ellen Ripley, interpretada por Sigourney Weaver, combater o monstro... Alien, de Ridley Scott, 1979, é uma delirante (e espacial) revisão das clássicas narrativas góticas do século XVIII e XIX. A casa assombrada, o monstro, a heroína, todas as estruturas ganham novas tintas – mais intensas e excessivas, uma nova cartografia do horror: nesse novo mapa, o abjeto e a destruição do corpo humano são a tônica da narrativa, assim como a corrupção e destruição da alma e da moral no século XIX formavam a base dos romances góticos; a mudança sintomática da experiência do corpo pode ser sentida em filmes do mesmo período, como Carrie,



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1976, Halloween, 1978, e A Hora do Pesadelo, 1984. De acordo com Judith Halberstam em Skin Shows, os monstros e suas monstruosidades metaforizam oposições tencionadas no e do corpo – masculino/feminino, aristocracia/proletariado etc.

Sigourney Weaver como Ellen Ripley: o corpo recusa o olhar masculino e as tecnologias masculinizantes.

Alien é uma criatura vampírica, parasitária; a narrativa possibilita diversas leituras e isso, sob muitos aspectos, a torna queer – essa resistência ao normativo, essa incapacidade de enquadramento específico. O monstro, então, engravida um homem; ou melhor, o monstro fecunda o corpo de um homem, de um dos tripulantes – John Hurt. Essa ideia é perturbadora: a gravidez monstruosa é domínio do feminino (O Bebê de Rosemary, por exemplo), do



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corpo fértil que pode gerar um monstro, uma ameaça; ao inverter essa lógica, Ridley Scott aponta, sutilmente, que seu pequeno monstro não distingue gênero e se acopla ao que estiver disponível – corpos falantes que se reconhecem como corpos falantes12.

John Hurt morre em um parto monstruoso para dar a luz a um monstro fálico em Alien, de Ridley Scott; esse monstro irá perseguir Sigourney Weaver por mais 3 filmes...

Não se trata apenas de uma luta de raça pela sobrevivência. A criatura pode, por um lado, ser uma fêmea e desterritorializar o corpo ao transformar qualquer corpo em um útero – mas essa lógica, me parece, ocupa um lugar masculinizante de reprodução. É nesse sentido que prefiro eleger Ripley como a sobrevivente de uma narrativa gótica-espacial (ficção científica) que escapa do destino de servir como reprodutora, tanto de um lado quanto de outro; se, nos jogos de reterritorializações dos corpos, o monstro alienígena transforma o corpo humano em um útero fertilizado e dar à luz significa a morte, Ripley recusa esse novo agenciamento. Sensível, talvez, às exigências da época, Ridley Scott faz uma jogada quase feminista. As heroínas de outros filmes da década de 70 – Carrie, Laurie Strode, Alice – são adolescentes que travam uma batalha em um universo hegemonicamente masculino e masculinizado. Para sobreviver, elas devem ser quase sobre humanas. A sobrevivência de Ripley, em Alien, transversa diversas questões. Obviamente, trata-se de uma mulher tentando sobreviver em um campo masculino, masculinizado e, acima de tudo, masculinizante. Mas algumas coisas devem ser levadas em consideração. O monstro, o terror, é a tecnologia masculinizante. Em Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993), observamos uma outra situação. Dinossauros fabricados em laboratórios (um delírio cientificista de fazer surgir no presente o passado), mantidos em uma ilha na Costa Rica, são exibidos como atrações de um parque de diversões no melhor estilo Disney. Para a primeira viagem, o excêntrico dono do parque, o milionário John Hammond, convida um seleto grupo: seus dois netos, três cientistas e um advogado. Obviamente, tudo escapa ao controle e os dinossauros passam a caçar os humanos. O que esta em jogo no filme de Spielberg é uma luta antiga, atualizada a partir das inovações tecnológicas e dos avanços da genética: humano (ou o que resta da 12

Ver Paul B. Preciado, O Manifesto Contrassexual.



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nossa tão celebrada humanidade) versus fabricações monstruosas. Assim como Mary Shelley faz seu malfadado Victor Frankenstein imaginar um homem mais potente, mais capaz – uma nova raça de demônios – Jurassic Park insere no imaginário dinossauros recriados pela ciência, uma costura genética entre o passado e o presente. Essa família monstruosa – velociraptors, tiranossauros – fabricada pela ciência ameaça a tessitura da família tradicional. Mesmo rompida, desunida e divorciada, a família tradicional deve se unir para combater (no caso do filme, apenas fugir) essa nova/outra família monstruosa. E a monstruosidade – uma certa beleza convulsiva, diriam os surrealistas – não se resume aos dinossauros. No decorrer do filme aprendemos que todos os dinossauros na ilha são fêmeas. Os cientistas os “fizeram” assim para controlar e impedir a reprodução. Em determinado momento, Allan Grant (Sam Neil) e as crianças (Joseph Mazello e Ariana Richards) se deparam com ovos chocados. Intrigado, o paleontólogo repete as palavras do matemático e teorista do caos, Ian Malcom (um soturno e sarcástico Jeff Goldblum): life finds a way. Somos contemplados com a teoria de que os cientistas usaram cadeias genéticas de rãs africanas que, em períodos de crise populacional (excesso de fêmeas, pouca reprodução), trocam de sexo para a manutenção da espécie. A ideia é que os dinossauros estão realizando o mesmo processo. Retornamos, então, ao medo fundamental sob as camadas de representação de Jurassic Park – que possui um subtexto feminista na figura da paleobotânica Ellie Sattler (Laura Dern). Trata-se do medo de novas configurações e arranjos de sexualidades; as novas famílias (monstruosas sob o olhar da normatividade) comportam novas e outras formas de gerar e produzir continuidades. No contexto do subtexto feminista de Jurassic Park há também a ansiedade em relação a uma comunidade majoritariamente composta por mulheres ser capaz de se autogerir sem a necessidade da presença do homem.13 Essa marcação ocorre em um breve diálogo dentro de um dos carros, entre Ellie Sattler (Laura Dern) e Ian Malcom (Jeff Goldblum): Ian Malcolm: God creates dinosaurs. God destroys dinosaurs. God creates man. Man destroys God. Man creates dinosaurs. Ellie Sattler: Dinosaurs eat man…woman inherits the earth.

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Se os dois primeiros filmes da franquia apresentavam fortes personagens femininos, observamos a decadência dessa presença no terceiro e quarto, que trazem, respectivamente, uma dona de casa em busca do filho e uma gananciosa empresária que permanece o tempo todo de salto.



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Carrie: apontamentos finais A sequência inicial Carrie, de Brian De Palma, de 1976, dá o tom da narrativa: a menstruação de Carrie White é o disparador que inicia o processo de destruição das estruturas simbólicas e seguras de um cotidiano aparentemente normal e plácido, no qual encontramos a escola, a casa (a família) e as paixões adolescentes. Baseado no primeiro romance de Stephen King, com o mesmo nome, o filme engendra questões que incomodam o imaginário ocidental. O objetivo desse trabalho é, a partir do campo semântico no qual Carrie se inscreve, pensar o potencial político e estético do filme e suas possíveis relações e tangências com a mitologia de Frankenstein, o romance gótico de Mary Shelley, publicado em 1816.

Sissy Spacek como Carrie White no filme de Brian De Palma; a adolescente é a última vítima de uma sociedade na qual o culto da beleza torna-se uma lógica de inclusão e exclusão; todas as estruturas de poder oprimem e produzem corpos desviantes que exigem formas de escape.

Slavoj Zizek escreve, no prefácio do livro The Plague of Fantasies, que uma atitude inesperada de alguém que conhecemos transforma o familiar em desconhecido, coloca em risco nossa percepção e desorganiza nosso mapa cognitivo. O horror pode se dar através de um estranhamento, de uma sensação de que “algo esta errado”, seja através de corpos repulsivos, práticas desviantes, perversidades psicológicas, o horror implica um deslocamento radical. Em Carrie as monstruosidades encontram-se dissolvidas e disseminadas em todos os campos. Carrie é um “acidente que ainda não aconteceu”. Não raramente, o cinema de horror opera no registro da subversão e toma o familiar, o conhecido, um brinquedo, uma criança, uma casa... alguma coisa que, atrasvés de um gesto, de uma torção, torna-se monstruoso. Zizek evoca a figura do médico austríaco Josef Fritzl14 que (...) de um bondoso e educado colega, de repente transformou-se em um Vizinho monstruoso – para grande surpresa das pessoas que o encontravam cotidianamente e simplesmente não puderam acreditar que ele [Josef] era a mesma pessoa (ZIZEK, 2008, pág. VII).

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Fritzl é o médico austríaco que, em 2008, chocou o mundo quando descobriram que ele manteve a própria filha presa em um porão durante 24 anos e teve, com ela, 7 filhos.



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Em Carrie, a eterna vítima (a pobre garota desajeitada, feia, filha de uma mulher fanática...) torna-se monstro através de microfissuras e micro-gestos que abalam a familiaridade do nosso mapa: a menstruação, o ‘errar o nome’, o confronto com a mãe para ir ao baile... essas pequenas e cotidianas atitudes, intensas em seus micro-gestos, desestabilizam, pouco a pouco, a organização do nosso mapa de sensibilidades e, preenchendo até as fronteiras nossa capacidade de contenção, testam nossa capacidade de permanecermos não monstros. Por outro lado, o capitalismo enquanto sistema opera, em nossos corpos, restrições, opressões, exclusões, sufocamentos, e raramente oferece uma saída para o excesso. Obviamente, Carrie White não é como o médico austríaco que, por sua vez, não é como Victor Frankenstein e sua produção monstruosa, mas essas três personagens (pedimos licença para enquadrar Fritzl na categoria de personagem) dialogam através de um terrível discurso: tudo o que fabricamos em nossas “imundas oficinas de criação”, quando emerge, choca, desestabiliza, destrói e, possivelmente, mata. O que descansa no fundo do poço ou debaixo da cama são as perturbações simbólicas da sociedade ocidental – as doenças não proclamadas, os segredos não revelados. A partir da década de 60, quando as rachaduras tornam-se visíveis, a família torna-se não apenas a guardiã de segredos terríveis como também a máquina que os produz. As falhas, as quebras, os sonhos não realizados, os fetiches, as traições... retornam em fantasias exageradas e destroem, em um processo de autodestruição, as estruturas que as fabricaram. Se observarmos, breve e superficialmente, alguns mitos fundadores da nossa experiência, torna-se evidente que a mulher não apenas ameaça a estrutura social como é responsável por sua queda. A normatividade é uma máquina incansável que não cessa de capturar corpos, imagens, sentidos, narrativas, discursos, práticas e lutas e domesticá-las. Estamos expostos à essa máquina, que age de forma insidiosa - por vezes evidente e estrondosa, por vezes silenciosa e escondida. É urgente escapar, produzir linhas de fuga, desfazer o corpo, confundir, arruinar, falhar; Carrie é um alerta para esse regime: aqueles que são tratados como monstros suportam até um limite. Quando todas as linhas são cruzadas, a resposta costuma ser apocalíptica e extremamente violenta. Há algumas linhas invisíveis, uma espécie de correspondência não escrita, que une, liga, conecta as diversas formas do Mal no cinema de terror. Seja um monstro costurado a partir de pedaços de cadáveres, um vampiro saído das profundezas da Transilvânia, uma criatura espacial, o dono de um hotel de beira de estrada ou uma adolescente estranha com poderes telecinéticos, o cinema de terror faz desfilar uma incansável parada de personagens problemáticos, limítrofes, monstruosos, animalescos, bestiais; personagens que provocam asco, raiva, medo e, não raramente, o desejo de que a ameaça seja exterminada. O que o terror ameaça – seja em sua forma ficcional ou em sua cruel forma real – é a fixidez do normal, da normalidade; mas não apenas ameaça: o terror revela as profundidades por debaixo das superfícies. E faz soar um alerta: as tecnologias do normal produzem monstros, nossos monstros, que emergem de suas terríveis escuridões para nos condenar, arruinando uma suposta paz produzida a partir de terrores inomináveis...

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