Cinema é cachoeira, stream e torrent

June 19, 2017 | Autor: P. Leblanc | Categoria: Cinema Studies, Media Archeology
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Cinema é cachoeira, stream e torrent. Quando Humberto Mauro em 1973 definiu: “cinema é cachoeira”, a noção de cinema em rede ainda não havia despontado no horizonte da realização de filmes. Se o sentido heraclítico da assertiva permanece (pois nunca assistimos ao mesmo filme, com o tempo muda o filme e mudamos nós, de forma análoga a uma torrente ou curso d'água), hoje o “dinamismo, a beleza e a continuidade eterna” não podem mais ser entendidos apenas como alegoria ou metáfora de uma potência da natureza. Passado meio século, a declaração do realizador brasileiro adquire nova dimensão, na medida em que o curso d'água, stream, na tradução para o inglês, e a torrente, ou torrent, não são simplesmente figuras de linguagem, mas nomes que utilizamos para nos referirmos a modos de compartilhamento de imagens em rede, em práticas consideradas em muitos casos ilegais, na medida em que desafiam estruturas seculares de distribuição e exibição de filmes. Assim como a água, confirmando os piores pesadelos da ficção científica, torna-se um bem escasso em certas metrópoles, as “torneiras” dos torrents e streamings são reguladas. O streaming, ou transmissão de mídias pela internet, em tempo real, define um processo através do qual mídias são reproduzidas à medida em que são transmitidas on-line. De forma distinta, os arquivos de torrent definem um tipo de compartilhamento de mídias no qual o usuário-espectador-interator descarrega dados remotos em seu terminal, podendo acessá-los, inclusive off-line, somente após o término do processo. Ambos têm em comum o fato de dependerem da largura da banda, da velocidade de conexão e da quantidade de usuários conectados às plataformas de distribuição de dados, constituindo-se como casos do que poderíamos definir como cinemas em rede, onde, em teoria, qualquer um com acesso a uma conexão pode se tornar um ponto de difusão e recepção, proporcionando fluxos de filmes multitudinários. Em teoria, pois, como sabemos, a regulação sobre o compartilhamento de imagens é um campo em disputa não somente técnica ou estética, mas judicial e criminal. Na torrente de imagens que inunda continuamente a internet e no crescente fluxo de dados que se avolumam nos servidores da rede mundial de computadores, operações de montagem e justaposição ocorrem de formas automatizadas, mas não neutras. No modo como operam os mecanismos de busca e apreensão de imagens, a noção de filme assim como a de autoria passam por transformações profundas. Propomos aqui uma investigação acerca do cinema de rede que aponta para os fluxos, buscando de que formas podem ser significativos, e como as imagens que daí emergem orientam leituras. São imagens para serem lidas, mais do que vistas, e neste cenário a autoria passa a ser compreendida como uma curadoria que coleta, armazena e processa dados, segundo um modelo cibernético onde prevalece menos a noção de uma filme realizado por um gênio criador e mais a ideia de uma máquina moderadora da atividade de compartilhamento produzido

coletivamente. Os paradigmas da identificação, do ilusionismo e da mimese não se aplicam neste novo regime. Trata-se de um modo de leitura das imagens por outras vias, onde nos auxiliam a arqueologia da mídia e a análise do discurso. De maneira hegemônica o cinema deixou-se dominar pelo paradigma da verossimilhança, onde a característica fenomenológica da câmera plasmar o real colocaram-no como tributário da perspectiva renascentista. Neste modelo a sensibilidade do filme é medida em grãos de prata ou, mais recentemente, na quantidade de pixels do material sensível: 2K, 4K, 10K são as promessas do futuro do cinema. Mas porque o futuro do cinema deveria ser medido em termos de resolução? A quem, além da indústria que se alimenta da obsolescência programada da tecnologia, interessa este modelo? Neste artigo analisaremos algumas experiências de criação audiovisual que utilizam o streaming e o torrent para pensar outros modelos de cinema, um meio que, como afirmou categoricamente Andre Bazin, ainda não foi inventado. Bibliografia FLUSSER, Vilém. Até a terceira e quarta geração. Vilém Flusser Archiv, Berlin – no. de referência 1 – GER – 04 1359. _______________.Da cinelândia (= Cinemas) Vilém Flusser Archiv, Berlin - no. de referência– 2340 - Essay – Coisas – 07 - M3-42 112 ______________ .Television Image and Political Space in the Light of the Romanian Revolution. Lecture Budapest: Kunsthalle Budapest 07/04/1990 http://youtu.be/QFTaY2u4NvI acessado em 02/08/2014 MANOVICH, Lev Database as a symbolic form (Cambridge. MIT Press, 1998) PARIKKA Jussi. What is media archaeology? Cambridge: Polity Press. 2012. _____________. Zombie Media: Circuit Bending Media Archaeology into an Art Method. On-line: https://www.academia.edu/1182981/Zombie_Media_Circuit_Bending_Media_Archa eology_into_an_Art_Method. Acesso em 15/02/15 CUBBIT, Sean. Ecologies of Fabrication, in Sustainable Media. Ed. Nicole Starosielski e Janet Walker. New York: Routledge, 2015. STEYERL, Hito. In defense of the poor image. On-line http://www.eflux.com/journal/in-defense-of-the-poor-image/ Acesso em 15/02/15 Paola Barreto Leblanc é artista audiovisual, pesquisadora e professora, formada em Cinema pela UFF e Mestre em Tecnologia e Estéticas pelo PPGCOM da Escola de Comunicação da UFRJ. Atualmente é bolsista da Capes através do Programa Doutorado Sanduíche no Exterior e desenvolve, na Universidade de Arte de Berlin, a pesquisa “Do Cine Fantasma ao Live Cinema: Cinema do Além”, parte de sua Tese de Doutoramento a ser defendida no PPGAV da Escola de Belas Artes da UFRJ em 2016.

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