CINEMA E EDUCAÇÃO Monografia Clarissa Nanchery

June 2, 2017 | Autor: P. Janiques | Categoria: Projeto De Pesquisa Estrutura Metodológica
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL ESTUDOS DE MÍDIA

CLARISSA O. NANCHERY

CINEMA E EDUCAÇÃO: UM CAMPO DE ATUAÇÃO IMPRESCINDÍVEL FACE À INFÂNCIA MIDIATIZADA

Niterói Julho /2010

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CLARISSA O. NANCHERY

CINEMA E EDUCAÇÃO: UM CAMPO DE ATUAÇÃO IMPRESCINDÍVEL FACE À INFÂNCIA MIDIATIZADA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do título de Bacharel do curso de Estudos de Mídia Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.

Orientador: Prof.ª Drª. MARIANA BALTAR FREIRE

Niterói Julho /2010

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e todo o esforço que fizeram para me oferecerem a melhor educação que podiam; Ao Fernando Severo, meu grande companheiro na vida e nos sonhos compartilhados de que educar é uma missão; À amiga Flávia Neves, sem dúvidas, quem mais contribui para este trabalho “acendendo a luz da Lanterna Mágica”; Aos amigos tão importantes na minha vida e que agora me incentivaram de maneira especial, Aline Carvalho, Gabriela Raposo e Joélio Batista; À minha orientadora Mariana Baltar, pela aposta, paciência e incentivo. Aos Professores examinadores desta monografia: Adriana Fresquet, pelo seu trabalho inspirador sobre cinema e educação e, em especial, Miguel Freire, quem primeiro despertou o gosto e a reflexão pelo fazer cinematográfico. Ao Curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense por ter agregado tantos questionamentos aos antigos valores.

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“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo." Paulo Freire

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RESUMO

Desde a primeira exibição pública do cinema foi possível perceber o quanto a realização de imagens em movimento era extasiante para o espectador. O êxtase foi-se naturalizando e, a partir do momento em que assumimos o cinema como um dado constitutivo da nossa sociedade, o universo audiovisual vem se incorporando como o elemento mais presente nosso cotidiano. Mais do que isso, vem se “informalizando” como um educador que se promove muito antes de nos darmos conta de que somos sujeitos sociais. Através de um diagnóstico crítico da educação formal e um diagnóstico crítico da mídia, compreendemos que é preciso problematizar o que temos hoje como cultura agendada pelos meios e propor novas e rendáveis atuações capazes de envolverem um cinema que resgate o encontro com o desconhecido, com as ideias mais fantasiosas, com a arte revolucionária, trazendo, assim, subsídios para ampliarmos nossa subjetividade. Tudo isso tem uma urgência, precisa estar na base, deve estar presente no momento mais esvaziado de preconceitos e propício para a imaginação sem limites: a infância.

Palavras-chave: Cinema, educação, infância e mídia.

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SUMÁRIO

Introdução Capítulo I. O Encantamento pela arte do real 1.1. Por que cinema? 1.2. Aspectos cognitivos 1.3. Ilusão, representação, realismo Capítulo II. Cinema e Educação: antigas articulações, novos entendimentos 2.1. Um campo teórico em aberto 2.2. Contribuições de mídia e educação 2.3. Propostas para pensarmos em cinema e educação na infância Capítulo III. Lanterna Mágica: uma experiência prática em construção 3.1. Acesso, mediações e circularidade 3.2. A favor de novas práticas diante de antigos diagnósticos: a cultura da mídia 3.3. Negociando a cultura Considerações finais Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO 6

Este trabalho visa perceber o universo cinematográfico enquanto elemento de força social e cognitiva, capaz de sugerir alterações na percepção do mundo, na aprendizagem e nas trocas simbólicas. Munidos desta certeza, objetivamos analisar e incrementar o campo teórico de cinema e educação em busca do desenvolvimento e aprimoramento de propostas que incentivem discussão e prática de atividades audiovisuais voltadas para a infância. Para isso, abordaremos o projeto “Lanterna Mágica” – uma iniciativa pessoal que desenvolve a linguagem cinematográfica para crianças de até seis anos de idade, no município de Niterói– como uma ação possível de reflexão. É preciso esclarecer que, mesmo abordando o cinema através de conceitos estéticos e, por vezes, cognitivos, nossa reflexão passa pela problematização da cultura da mídia, pois não podemos, de modo algum, subtrair sua interferência em nosso cotidiano e o fato da mídia pautar a vida social, conforme analisa Douglas Kellner (2001) 1. Considerando que estamos nos referindo a crianças, e levando em conta todo o arsenal midiático agenciando para o universo infantil – que inclui canais e programas específicos, por exemplo, esta correlação de problematizações fica ainda mais premente. Devemos deixar claro também que o trabalho que aqui se apresenta, embora empreenda um pensamento sistematizado sobre os campos, pretende apontar ideias perturbadoras mais do que delimitar conclusões. Existe grande interesse de dar continuidade ao tema, à pesquisa e à atuação no Lanterna Mágica, portanto, o que se reflete aqui tem como objetivo maior iniciar o mapeamento teórico-reflexivo de dois campos importantes (a saber, o cinema e a educação, em correlação com os atravessamentos midiáticos) e, nesse sentido, deve ser criticado e repensado com via de aprimoramento. Sabemos que a revolução tecnológica e seus efeitos sobre processos e instituições sociais (educação, trabalho, lazer, relações pessoais e familiares, cultura, imaginário, identidade etc.) são impactantes e definitivos. Estamos diante de um novo cenário social e, de fato, vivenciamos outra cultura, em que a midiatização exige-nos uma adaptação nos modos de ver, de ler, de pensar e de aprender. A transformação dos modos como circula o saber é a questão fundamental na atualidade, exigindo das gerações precedentes um esforço para incorporar novos hábitos de produção de conhecimento que escapam dos lugares sagrados – a família, o livro e a escola - que antes legitimavam o saber. Considerando estas questões, Martin Barbero (2000) sustenta que 1

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KELLNER, Douglas. Cultura da Mídia. Bauru, EDUSC, 2001.

Estamos diante de uma geração que mais que na escola, é na televisão, captada por antena parabólica, onde tem aprendido a falar inglês, que experimenta uma forte empatia com o idioma das novas tecnologias e que crescentemente gosta mais de escrever no computador do que no papel. Empatia que se apóia numa plasticidade neuronal que dota os adolescentes de uma enorme capacidade de absorção de informação, seja via televisão ou em videogames, e de uma quase natural facilidade de entrar e manipular a complexidade das redes informáticas. Frente à distância com que a maior parte dos adultos sente e resiste a essa nova cultura – que desvaloriza e torna obsoletos muitos de seus saberes e habilidades, jovens respondem com uma intimidade feita não só da facilidade para relacionar-se com as tecnologias audiovisuais e informáticas, mas da cumplicidade cognitiva e expressiva: é nos relatos e imagens, nas suas sonoridades, fragmentações e velocidades que encontram seu ritmo, seu idioma” (BARBERO, p.86) 2

Nesse universo em mutação, é notório que a sociedade em que vivemos - cheia de estímulos imagéticos nas ruas e onde as tecnologias e os meios de comunicação cada vez mais fazem uso das iconografias – apresenta demandas de reflexão e atuação voltadas ao despertar de um 'olhar ativo' e crítico. Se entendemos que este turbilhão imagético faz parte da experiência cognitiva coletiva desde os primeiros meses de vida de um indivíduo, torna-se fundamental refletirmos sobre a interferência midiática já na infância. Atentos à importância que o universo audiovisual representa para crianças - seja como 'hobby', atrativo imediato, companhia diária -, percebemos a necessidade de sustentarmos esse fato para além da sua habitual noção de evasão. Devemos entendê-lo como um objeto norteador de novas pesquisas relacionadas à relevância desses hábitos na formação do indivíduo. Mais do que constatarmos determinadas práticas já tão normalizadas na nossa realidade, interessa-nos propor novas atividades audiovisuais integradas ao cotidiano das crianças como um dispositivo educativo e incentivador para o potencial criativo que elas têm, considerando o interesse prévio que apresentam pelo mundo imagético. Acreditamos que desenvolver a sensibilidade das crianças acerca da imagem é chamar a atenção para a capacidade de ver um mundo novo, para além das formas que se estabelecem tão logo o universo audiovisual lhes é apresentado. Sabemos que esta proposta apresenta-se com um desafio à educação formal tradicional. A relação entre mídia e educação vem tecendo discussões cada vez mais aprofundadas sobre o assunto, justamente por refletir um imperativo na nossa sociedade. Mesmo assim, é possível afirmar que o discurso ainda não está suficientemente incorporado às práticas educativas, sendo motivo de estranhamento ou, quando há aproximação entre os meios de comunicação e a educação, esta se dá de maneira instrumental, como um recurso didático-escolar, o que configura 2

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MARTÍN-BARBERO, Jesús. (2000). Novos regimes de visualidade e descentramentos culturais. In: VALTER, F., (org.). Batuques, fragmentações e fluxos. Rio de Janeiro: DP&A.

uma subutilização do potencial desses aparatos. Em um panorama geral, muitos professores, ao primeiro contato com o assunto, alegam não existir tempo disponível para inclusão de outras atividades além das que já devem exercer, ou ainda que não há salário que motive um trabalho de maior dedicação ou mesmo que não há interesse. Ainda que esses “estranhamentos” revelem um problema social real, devemos estar atentos à dificuldade, também real, de mudança de paradigmas na educação. Entendemos este fator como uma das principais barreiras a serem superadas. Quando falamos de práticas de mídia e educação, a ousadia, a liberdade e os experimentalismos estarão permeando a discussão, não podemos nos ater completamente aos questionamentos pedagógicos tradicionais, do contrário, não é possível avançar. Levando em consideração as múltiplas linguagens do cinema (a imagem, a ação, a narrativa, o efeito não-linear, etc.), entendemos que o imaginário construído a partir dos recursos audiovisuais extrapola o universo comunicativo, estético e ético a ponto de envolver as estruturas cognitivas, desta forma a linguagem audiovisual tende a alterar sentidos e percepção de mundo. Sabemos que a formação midiática fílmica e televisiva incorpora-se ao cotidiano das crianças e ganha espaço pela noção de realidade que traz consigo. O lugar que tal linguagem ocupa já é legitimado, precisamos então nos aproveitar deste dado e elaborar novos paradigmas. A proposta de analisar as confluências entre cinema e educação desde a primeira infância, ou seja, de 0 a 6 anos, é justificada por levarmos em conta que nesta idade, além do alto potencial imaginativo, a criança encontra-se na fase em que as “janelas de oportunidades estão “abertas”, como defendem alguns neurologistas. Sabemos que nesta etapa algumas competências intelectuais e a capacidade de aprendizagem é mais evidente, pois estão na fase de aprender a aprender e o desenvolvimento espontâneo ou psicológico é mais influente. Ao estimular a criatividade infantil em um momento em que a produção de conhecimento pode ser tão rica, imaginamos poder descobrir elementos surpreendentes na relação das crianças com o processo audiovisual.

Metodologia Embora seja inegável a importância das reflexões pedagógicas quando falamos sobre educação infantil, este trabalho não pretende fixar-se aos conceitos imortalizados da ciência da educação, pois a discussão está mais voltada à observação de como o contexto cultural 9

midiatizado e regido pela imagem tende a reconfigurar os objetos de atenção e interesse das crianças, sendo, portanto, uma questão imponente para as práticas educativas. Por este interesse, buscamos dialogar com os autores que refletem desde a composição da imagem, o processo cinematográfico; passando por autores que percebem a força do cinema e que, por isso, busca articulá-lo com a educação inserindo-o na escola; até autores que discutem a mídia como indústria cultural, que produz com objetivo de acumulação capital e que, portanto, deve ser motivo de preocupação na sociedade contemporânea. Através de grandes pensadores do cinema, no primeiro capítulo procuraremos demonstrar algumas peculiaridades desta arte, em detrimento da cultura audiovisual midiática da TV, para buscar entender de que forma o espectador se correlaciona com o universo cinematográfico ao longo de sua história. Não pretendemos dissecar completamente as teorias desenvolvidas neste sentido, por isso utilizaremos algumas ideias-chave desenvolvidas, sobretudo, por Jacques Aumont, por vezes recorrendo também a Ismail Xavier. No segundo capítulo partimos do pressuposto de que é urgente utilizarmos estas peculiaridades do cinema em benefício da educação, cenário reconhecidamente problemático da nossa sociedade e que clama por mudanças paradigmáticas. Interessa-nos perceber que a relação entre cinema e educação sempre foi alvo de interesse e motivou a realização de diversas iniciativas práticas, no entanto não é um campo teórico que se desenvolveu muito até então. Por isso, as contribuições trazidas por Alain Bergala, Rosália Duarte, Marília Franco e Adriana Fresquet são extremamente importantes para a construção de um pensamento “cinemaeducador” No terceiro capítulo, finalmente, abordamos nossa experiência prática como atuantes em cinema e educação no Projeto Lanterna Mágica. Não se trata de um diário de bordo, mas de um objeto que nos permite compreender de que forma ações como essas estão inseridas numa arena de disputa, que precisam ter muita clareza de que sua atuação é também mediação, circularidade e negociação da cultura, principalmente com a cultura da mídia televisiva. Dialogaremos diretamente, portanto, com os conceitos de Jesús Martín-Barbero, Mikhail Bakhtin, Douglas Kelnner, dentre outros.

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Capítulo I “A fotografia é a verdade e o cinema é a verdade 24 quadros por segundo.” Jean-Luc Godard O encantamento pela arte do real Este capítulo apropria-se das palavras de Jean-Claude Bernardet não por acaso. Em seu livro O que é cinema, o autor refere-se a este meio como a arte do real logo nas primeiras páginas da obra, recuperando a impressão causada na primeira exibição pública do cinema, datada de 28 de dezembro de 1895, no Grand Café Paris. Como

relata

Berrnardet

(1985), o instrumento

da exibição

então chamado

“Cinematógrafo” muito interessou ao homem de teatro que trabalhava com mágicas, Georges Mélies, a quem Lumière, um dos inventores da novidade, desencorajou dizendo que, mesmo que o público tivesse se divertido com ele, o aparelho não tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas. Nesta primeira exibição de cinema, o curto filme que mais emocionou o público foi a vista de um trem chegando de longe na estação, enchendo a tela, como se fosse projetar-se sobre a platéia. A imagem era em preto-e-branco e não fazia ruídos, todos sabiam que não se tratava de um trem de verdade, mesmo assim o público assustou-se, de tão real que a locomotiva parecia. “Só podia ser uma ilusão.” É aí que residia a novidade: na ilusão. Ver o trem na tela como se fosse verdadeiro. Parece tão verdadeiro - embora a gente saiba que é de mentira - que dá para fazer de conta, enquanto dura o filme, que é de verdade. Um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabemos depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema. O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores verdadeiros.3 (BERNARDET, 1985, p.11)

Entendemos que a “arte do real” seja assim concebida porque a imagem cinematográfica confere realidade às fantasias criadas, como se estivéssemos livres para imaginar a partir dela – atualmente com direito a som, luzes, cores, efeitos especiais e toda a tecnologia à disposição além das simples imagens em movimento. Há um fascínio e não há como negar que o estímulo imagético que simula a realidade nos seduz. Nesse sentido, a indução mais imediata é a de que, se 3

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BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 11-13.

para os adultos essa sensação fascina, o que diríamos sobre a relação estabelecida com o universo infantil, que é alimentado por fantasias o tempo todo? E não é por acaso que a indústria cinematográfica investe cada vez mais em encantar seu espectador apresentando-lhe sensações audiovisuais para que ele confunda e se sinta pertencente à história exibida: a tecnologia 3D está aí para reafirmar esta hipótese. Além do fator comercial no cenário em que os filmes em 3D surgem como uma salvação para a indústria cinematográfica já que assistir a filmes ou mesmo ter um cinema em casa não é mais uma grande novidade e o acesso a produtos de entretenimento ficou mais fácil graças à internet e à pirataria-, é preciso salientar que nosso deslumbramento pelos dispositivos que simulam a realidade e estimulam nossa imaginação não passa despercebido, ao contrário, é observado e levado em conta a cada novidade tecnológica criada. É interessante observar que a noção de imaginário manifesta o domínio da imaginação, compreendida como faculdade criativa, produtora de imagens, fictícia. Evitando abordar o aspecto inconsciente da sua teoria, é pertinente notar que, para o psicanalista francês Jacques Lacan4, o eu é situado no registro do imaginário. Nesse sentido, tendemos a acreditar na importância e influência que este elemento exerce sobre o indivíduo, na sua formação intelectual e subjetiva. Detalhamos ainda que Lacan faz questão de evidenciar que a palavra “imaginário” deve ser tomada como estritamente ligada à palavra “imagem”, entendendo as formações imaginárias do sujeito como imagens por ele criadas através de identificações socialmente construídas. Dessa forma, percebemos que o universo imagético precisa ser fortemente explorado, tanto em sua estrutura mental quanto em suas formas materializáveis: o desenho, a pintura, a fotografia, o filme. A luz de deste raciocínio, buscamos então argumentar em favor do cinema como um elemento propulsor da imaginação e, em especial, uma alavanca para o desenvolvimento imaginário da criança, por isso, educativo, formador. Ainda que o cinema seja concebido de maneira muito naturalizada hoje em dia e que, em geral, “funcione” como distração e entretenimento, a sua impregnação no nosso olhar se deu pouco a pouco, a ponto de nos fazer pensar que fomos construindo um pensamento cinematográfico ao longo do tempo, para criarmos uma relação com as imagens em movimento. Ismail Xavier (1991) faz-nos perceber que as tentativas que procuram explicar como se estrutura a relação filme/espectador evidencia que sempre haverá um interesse ideológico, no sentido de 4

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LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1999. passim.

não só explicar essa relação, mas valorizar seu poder de mobilização. Para ele, há um critério básico: dar privilégio às tentativas de caracterizar, discutir, avaliar o tipo de experiência audiovisual que o cinema oferece - como suas imagens e sons se tornam atraentes e legíveis, de modo que conseguem a mobilização poderosos afetos e se firmam como instância de celebração de valores e reconhecimentos ideológicos, mais talvez do que manifestação de consciência crítica. (Xavier, 1991 p. 10) 5

Jacques Aumont (2006), um dos mais notáveis pensadores de cinema na atualidade, ressalta trabalhos de inspiração psicanalista sobre o cinema, sobretudo os de Christian Metz para quem o cinema é constituído de representantes, de significantes, imaginários, no duplo sentido – usual e técnico – da palavra: “O cinema faz com que a percepção surja maciçamente, mas para logo deixá-la cair em sua própria ausência, que é, entretanto, o único significante presente” (METZ, 1977 apud AUMONT, 20O6) 6. Seguindo a proposição de Lacan, para ele a imagem encontra o imaginário, provocando redes identificadoras e acionando a identificação do espectador consigo mesmo como espectador que olha. Nesse sentido, a imagem cinematográfica, por seu dinamismo, é sem dúvida o campo mais favorável à exploração do imaginário, e não se trata de apenas de um fenômeno imagético, mas de um inegável dispositivo para a produção simbólica. 1.1. Por que cinema? Para além das preferências estéticas e particulares, é válido nos questionar sobre o porquê de nos debruçarmos sobre a linguagem cinematográfica, tendo hoje tantos outros produtos da cultura audiovisual mais presentes em nosso cotidiano. É notório que os desenhos animados, as tele-novelas, os videoclipes ou mesmo os vídeos no youtube caracterizam e muito o cabedal cultural da nossa sociedade. E quando pensamos em universo audiovisual e infância no atual contexto brasileiro, é mais provável pensarmos em linguagem televisiva do que cinematográfica. Sabemos que a televisão está presente em mais de 95% dos lares brasileiros e que as crianças assistem em média 4 horas diárias de TV 7, enquanto o atual público de cinema no Brasil é composto por cerca de 15% da população8. É inegável que a televisão apresenta uma variável 5 6 7 8

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XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do cinema. 2º ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1991. METZ, 1977 apud AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, Papirus, 2006, p. 119. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2008 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Calcula-se que no primeiro trimestre de 2010 31.414.265 espectadores estiveram salas de cinema no Brasil. Dados Observatório brasileiro do cinema e do audiovisual. Disponível em:

importante no desenvolvimento simbólico-cultural e psicossocial da sociiedade. Inúmeros autores já discutiram sobre o papel social deste meio de comunicação de massa, mas não nos cabe retomá-los aqui, pois não é o foco deste trabalho. No entanto, vale citar as palavras de Maria Luiza Belloni, por sua discussão travada especificamente no campo de mídia e educação: A televisão tem um papel muito importante também na dimensão semântica do processo de socialização, na medida em que ela fornece as significações (mitos, símbolos, representações), preenchendo o universo simbólico das crianças com imagens irreais (representando significações inexistentes no mundo vivido). Além disso, ela transmite também o saber acumulado e informações sobre a atualidade, fornecendo aos jovens uma certa representação do mundo. Ela apresenta, ainda, as normas da integração social, o que é evidente nas telenovelas e desenhos animados infantis, por exemplo, onde a “moral da história” é muitas vexes explícita e recorrente. As significações transmitidas pela televisão são apropriadas e reelaboradas pelas crianças a partir de suas experiências e integram-se ao mundo vivido no decorrer de novas experiências. (Belloni 2001, p. 34) 9

A TV torna-se realmente uma grande referência para o seu público assíduo (e neste caso, obviamente, não só no caso das crianças). O vínculo com ela estabelecido dá-se pela ancoragem no imaginário, com a estratégia de ludicidade para atingir o objetivo de prender a atenção 10, capturar o telespectador, “realizar seus sonhos”. Mas existe também uma tentativa de aproximação por meio de personagens e cenários com os quais o telespectador identifica-se, que já conhece previamente. Por isso, podemos dizer que é um suporte onde não cabe muita ousadia, pois em geral a TV não arriscará seu ibope para apresentar uma proposta inovadora, o estranhamento torna-se perigoso demais. Apesar de percebermos com clareza que o maior elo entre a cultura audiovisual e a infância estabelece-se através da televisão - assunto indiscutivelmente relevante e que merece ser problematizado -, buscamos abordar neste capítulo a interferência e importância cultural da linguagem audiovisual em sua concepção mais generalizada. Convém ressaltar que a televisão é fruto do cinema e que a linguagem desses dois meios de comunicação diferencia-se a partir do momento em que a primeira aproxima-se mais de um propósito comercial e apelativo – o que influenciará diretamente nos outros elementos, como o roteiro, a fotografia - pelos reais motivos mercadológicos que a constituem. A TV, por exemplo, reitera uma forma de percepção fragmentada, os desenhos animados, as novelas, os tele-jornais são entremeados por comerciais publicitários o tempo inteiro, além de constituírem produtos seriados, que só fazem sentido a partir do momento em que se incorporam ao cotidiano do telespectador. Diferentemente, o 9 10

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Data de acesso: 03 de julho de 2010. BELLONI, Maria Luiza. O que é Mídia-Educação. Campinas: Autores Associados, 2001. COLVARA, Lauren Ferreira. “A criança em tempo de TV”. Artigo disponível em: Data de acesso 05 de junho de 2010.

cinema envolve-nos numa experiência única, como ressalta o crítico e teórico de cinema Ismail Xaxier, a experiência audiovisual do cinema é entendida como um momento único e plural, inserida historicamente, nascida dos próprios sujeitos, os espectadores.11 Ainda que hoje em dia possamos assistir aos filmes como nos convém, (sem o ritual da sala escura, mas em casa, uma parte num dia, outra no dia seguinte, teclando “pause” e “play” nos aparelhos de DVD) há sempre uma narrativa que se completa e, mesmo não sendo linear ou não apresentando um desfecho conclusivo, traz um propósito, um sentido em si. Vale dizer que a escolha em abordar a arte cinematográfica não se justifica por uma ingênua opinião de que a TV seja um produto comercial e alienante enquanto o cinema é puro e intelectualizado. Por isso faz-se necessário observar que o cinema também veicula produtos materiais e valores morais, assim como necessita de ricos patrocinadores e de um público alvo. Cinema ou TV podem ser “críticos” ou, em ambos, podemos encontrar elementos de doutrinação ou de manipulação.12 Diante desta perspectiva, cabe dizer que dois dos principais motivos que nos levam a escolher o cinema (em detrimento da TV) são, portanto, a certeza de que a linguagem cinematográfica é precursora de uma cultura audiovisual e o julgamento de que essa “totalidade” ou esse “sentido em si” são os verdadeiros responsáveis pela “estética do choque”, algo que Walter Benjamin (1989) admite na receptividade de um filme. Para ele, uma arte que tem por essência a sucessão brusca e rápida de imagens, fragmentos que se impõem ao espectador como uma seqüência de cargas elétricas, interrompendo-lhe a capacidade de associação de idéias é o instrumento que efetiva a estética do choque. Segundo o autor, o princípio formal que se impõe ao cinema é a percepção sob a forma de choque, o que equivale a dizer que “aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme (1989, p.125)” 13. Este choque percebido pelo filósofo alemão com uma espécie de ataque ao espectador pelo ritmo agressivo-cortante das imagens pode também ser entendido, de maneira metafórica, como um confronto com outras referências: situações, lugares, personagens ainda desconhecidos que “atacam” espectador desavisado. E então a recepção resulta num estranhamento chocante ao 11 12

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XAVIER, op.cit. p.10. XAVIER, André. Imagens em movimento: TV e cinema na sala de aula. Artigo disponível em: . Data de acesso: 14 de junho de 2010 BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras Escolhidas3).

primeiro momento, mas em seguida essas novas referências passam a compor seu imaginário e repertório cultural. Alain Bergala (2008) discorre exatamente sobre esta característica, a alteridade que o cinema nos permite encontrar: O medo da alteridade muitas vezes nos leva a anexar um território antigo à moda colonialista, não exagerando no novo senão aquilo que já se havia ver no antigo. Ora, o cinema tem exatamente a vocação contrária: a de nos fazer compartilhar experiências que, sem ele, nos permaneceriam estranhos, nos dando acesso à alteridade. (Bergala, 2008, p. 38.) 14

Quando nos damos conta da importância desta reflexão, começamos a compreender melhor a relação entre cinema e educação e passamos a nos envolver com a linguagem cinematográfica de forma menos glamourosa, como em geral é concebida, e mais pragmática, considerando a riqueza de elementos possíveis a serem explorados. O historiador, teórico, crítico de cinema e cineasta francês Jean Mitry (1966, p.48), partindo da concepção tradicional de cinema como forma de expressão, acrescenta que é um meio “capaz de organizar, de construir e de comunicar pensamentos, podendo desenvolver ideias que se modificam, formam e transformam”, tornando-se por isso uma linguagem15. Entendemos, então, que a linguagem cinematográfica configura-se como tal por suas possibilidades infindáveis. Segundo Marcel Martin (1963 apud XAVIER, 1977) 16, é importante apontar que, para o cinema estabelecer-se como linguagem e não apenas como um registro de imagens em movimento ou tentativa de reprodução do real, foi preciso contar histórias, veicular ideias, realizar os sonhos, determinando, assim, procedimentos que culminariam na linguagem cinematográfica. Já disse o cineasta Paolo Pasolini, que “o cinema tem uma qualidade onírica profunda”

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e só podemos entender esta frase se nos dermos conta de que todos os elementos presentes num filme ou mesmo num plano são significativos e revelam “sonhos”: expressos e desejados. É alucinante pensar que toda a composição cinematográfica – o campo, o quadro, o ângulo de visão, os movimentos de câmera, a sequência, a luz, o cenário, os figurinos, a trilha sonora, a dramaturgia, os personagens envolvidos, suas falas, jeitos, trejeitos e, obviamente a lista não

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BERGALA, Alain. A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink e CINEAD/UFRJ, 2008. MITRY, 1966 apud AUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 2007. MARTIN,1963 apud XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 16. GERHEIM, Fernando. Linguagens inventadas: palavras, imagens objetos: formas de contágio. RJ: Jorge Zahar 2008. P. 26.

cessa aqui – todos, indispensavelmente, revelam uma minucioso propósito, contém signos ao mesmo tempo em que constituem a linguagem cinematográfica. Além disso, não podemos deixar de notar o “espaço fora de tela”, o que, a propósito é sugerido pelo renomado e influente crítico e teórico do cinema André Bazin quando diz que os limites da tela cinematográfica não são, como o vocabulário técnico sugere, o quadro da imagem, mas um recorte que não pode senão mostrar uma parte da realidade. Ele compara o quadro de uma pintura a uma tela de cinema afirmando que a primeira polariza o espaço em direção ao seu interior; ao contrário, tudo aquilo o que a tela nos mostra pode se prolongar indefinidamente no universo. “O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga” 18. As possibilidades de interpretação desta frase são inúmeras. Ismail Xavier procura justificá-la dizendo que a imagem que é vista por um determinado intervalo de tempo e algo pode mover-se de dentro para fora do campo de visão e vice-versa. Esta é uma possibilidade específica da imagem cinematográfica, graças a sua duração. No entanto, considerando a polissemia que habita na linguagem cinematográfica, é possível abrir outra leitura para a frase de Bazin entendendo também que o que está “fora da tela” são todas as outras linguagens e recursos que ela vai buscar para se constituir. A “tela” não é centrada em si mesma, portanto, é centrífuga, porque recorre a elementos da pintura, da fotografia, da literatura, do teatro, da música, da história, da memória, etc. O cinema transcorre desde a representação do fantasioso à imitação do real, sendo ainda uma forma de expressão cultural significativa para a história da nossa sociedade por sua facilidade de “vagar” pelo presente, passado e futuro, um dispositivo para a representação fictícia ou realista da época em questão ou de qualquer outra. Por tudo isso é possível dizer que o cinema impele-se para “fora de tela”, como uma arte insaturável, que foge a gramaticalismos, sem que possamos determinar o que exatamente toda esta miscelânea pode significar para o espectador. Marcel Martin (1966) analisa a linguagem cinematográfica a partir de um arsenal gramatical e lingüístico com a pretensão de perceber o cinema enquanto procedimentos fílmicos. Mas aplicado ao cinema, o conceito de linguagem é muito ambíguo e não pode se limitar a um conjunto de receitas, de procedimentos, de truques utilizáveis a fim de garantir com automatismo, a clareza a eficácia da narrativa e sua existência artística. A este respeito, retomamos aos primórdios do cinema, citando as reflexões tecidas por Jacques Aumont (2006), em seu livro A Imagem, sobre as tentativas científicas do diretor e estudioso de cinema Serguei Eisenstein com relação o fazer cinematográfico na década de 1920. 18

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BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinema? – Vol II, p.128 apud XAVIER op.cit., p. 14.

Ao basear-se na reflexologia pavloviana 19, o cineasta supunha que cada estímulo acarretava uma resposta calculável. Dessa forma ele imaginava que seria possível prever e dominar a reação emocional e intelectual de um espectador a determinado filme. Mas ao tentar calcular meticulosamente a sequência final de A Greve20, Eisenstein logo percebeu que não era bem assim. A montagem paralela entre o massacre dos operários pela polícia czarista interposta a um abate de bois podia até ser eficaz ao alcançar alguns espectadores operários das cidades como imaginou o diretor, mas perdia totalmente seu efeito sobre os espectadores rurais porque estes não se chocavam com a degolação dos animais. A partir de então, Eisenstein abandonou a concepção mecânica da influência da imagem cinematográfica. 21 É importante notar que não temos o interesse de formular uma hipótese que responda o motivo pelo qual o ser humano deixa-se fascinar pelo universo imagético, mas buscamos, sim, avançar nas questões que discutam a relação do espectador com o cinema. No começo deste capítulo citamos uma formulação de Jean-Claude Bernardet sobre o deslumbramento dos primeiros espectadores de uma projeção cinematográfica diante da ilusão do real. Seguiremos por aí, direcionando-nos por Jacques Aumont.

1.2. Aspectos cognitivos Ao tentar buscar a relação do indivíduo com a imagem através de um aspecto cognitivo, invariavelmente precisaremos transcorrer as teorias psicocognitivas mais clássicas, mas vale dizer que não há o interesse de esgotar o tema.

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No final do século XIX e no início do século XX, um fisiologista russo chamado Ivan Pavlov (18491936), ao estudar a fisiologia do sistema gastrointestinal, fez uma das grandes descobertas científicas da atualidade: o reflexo condicionado. A experiência clássica de Pavlov é aquela do cão, a campainha e a salivação à vista de um pedaço de carne. Sempre que apresentamos ao cão um pedaço de carne, a visão da carne e sua olfação provocam salivação no animal. Mas após a repetição desta mecânica, ao simples toque da campainha, todo o organismo do animal reage como se a carne já estivesse presente, com salivação, secreção digestiva, motricidade digestiva etc. Um estímulo que nada tem a ver com a alimentação, meramente sonoro, passa a ser capaz de provocar modificações digestivas. Foi uma das primeiras abordagens realmente objetivas e científicas ao estudo da aprendizagem, principalmente porque forneceu um modelo que podia ser verificado e explorado de inúmeras maneiras, usando a metodologia da fisiologia. Pavlov inaugurava, assim, a psicologia científica, acoplando-a à neurofisiologia. Fonte: http://www.cerebromente.org.br O filme "A Greve" (1925) do diretor Serguei Eisenstein, apresenta como temática central (e personagem individualizado) a greve da classe trabalhadora de uma fábrica de Moscou, logo após a morte de um trabalhador, que morreu acusado injustamente de roubo. AUMONT, op. cit., 2006, p.92.

Rudolf Arnheim (1973), aproximando-se das teses gestaltistas 22 - e, portanto, preocupado em compreender os processos psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo físico é percebido pelo sujeito com uma forma diferente do que ele é na realidade - desenvolveu duas noções sobre a apreensão da forma fílmica: o pensamento visual e centramento subjetivo. Para ele é possível dizer que existe um pensamento visual e que este se organiza diretamente a partir dos perceptos dos nossos órgãos dos sentidos. A visão, sendo o mais privilegiado dentre eles, é o que mais se aproximaria do nosso pensamento, o que garante que as imagens sejam entendidas através de um dispositivo independente. Já o centramento subjetivo diz respeito à relação que o espectador estabelece com o espaço em que circunda, neste caso, o espaço representativo. Existiria um centramento especial para tanto, o que equivale dizer que há uma concepção indutiva da relação do espectador com a imagem e pelo o que ela representa.23 Segundo Aumont24 (2006), as contribuições trazidas por Eisenstein, depois de ter abandonado as concepções mecânicas sobre a influência da imagem, evocam a uma metáfora a que chama de organicidade. A obra de arte seria uma metáfora do corpo humano a partir do momento que parece um “organismo natural”. Sendo assim, a primeira consideração aproxima-se das teorias de Arnheim por entender que a imagem é estruturada como uma linguagem interior, ou seja, a linguagem cinematográfica é a manifestação de um tipo especial do pensamento humano. A segunda consideração é de que uma obra cinematográfica gera o êxtase, uma colocação “fora de si” (ek-statis), emocionalmente um estado alterado e intelectualmente propício para que receba a obra. Convém mencionar que estas considerações desenvolvidas por Eisenstein não têm base científicas, sendo compreendidas como teorias estéticas da relação do espectador com a obra de arte.

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A teoria da Gestalt, formulada por M. Wertheimer, W. Kolher e K. Kofka, baseia-se na noção de forma ou estrutura – gestalt -,compreendida como um todo significativo. O gestaltismo é uma corrente que defende que os fenômenos são percebidos na sua totalidade, ou seja, sem haver uma dissociação dos seus elementos contextuais. “O todo é diferente da soma das partes”, é a expressão que caracteriza esta teoria de origem alemã. Os psicólogos da Gestalt acreditavam no valor da consciência e defendiam que a percepção está para além dos elementos fornecidos pelos órgãos sensoriais. Foram várias as influências que contribuíram para o surgimento da Gestalt, como o trabalho do filósofo Kant que defendia que os elementos que percebidos são organizados de forma a fazerem sentido, e não através de processos de associação. Fonte: http://www.webartigos.com/articles/8655/1/Um-Estudo-Sobre-A-Teoria-Da-Gestalt/pagina1.html ARNHEIM, 1973 apud AUMONT, op.cit., passim. 24 id.

Já as teorias que se aproximam do Gerativismo, 25 ou seja, que partem do princípio de que o indivíduo possui dispositivos inatos que são desenvolvidos ao longo da vida, propõem uma homologia entre imagem e linguagem, sendo entendida em sua noção habitual, como acentua Michel Colin (1989 apud AUMONT, 2006, p.96) “O espectador, para compreender determinado número de configurações fílmicas, utiliza mecanismos que interiorizou a respeito da linguagem”, ou seja, a “competência fílmica” seria homóloga à “competência lingüística”. Nesse caso, a nossa compreensão audiovisual dependeria de nosso conhecimento lingüístico, mas como podemos concordar com esta hipótese sabendo que nos dias de hoje as imagens se impõem muito antes da linguagem verbal em nosso cotidiano? E o que dizer quando percebemos que uma criança de poucos meses está completamente absorta assistindo a uma programação de TV ou filme? Diríamos que não há uma justificativa para isso já que ela ainda não desempenhada a sua competência lingüística? Parece-nos que as respostas não seriam afirmativas. Sabemos que as gerações sucessoras são e serão cada vez mais cedo e mais integradas ao universo audiovisual, até porque os estímulos imagéticos são cada vez maiores com a utilização de cores, efeitos especiais, ritmos enérgicos das imagens. Não pretendemos fornecer pretensiosas respostas para este envolvimento, mas é válido notar que Freud sempre estabeleceu uma relação do sujeito com a imagem e Lacan, chegou mesmo a criar uma teoria a que chama “Fase do Espelho”. Para ele, nesse período que vai dos 6 aos 18 meses de idade, a criança descobre, pelo olhar no espelho sua própria imagem e a de seu semelhante, o que faz com que ela possa identificar-se como uma unidade semelhante a outra. O psicanalista francês atribui a essa identificação do sujeito a base na identificação com a imagem e, por conseguinte, com o imaginário que precede o acesso ao simbólico.26 A fase é, portanto, a matriz de todas as identificações posteriores. Tomando como base essa teoria, podemos refletir sobre a hipótese de que, ao assistir imagens, vídeos, efeitos especiais com possibilidade ilimitáveis, a matriz de identificação do sujeito é acionada e, se não há limites para tais veiculações, também não há limites para ele. Nesse sentido, dizemos que o universo audiovisual amplia as possibilidades subjetivas, mesmo sob a forma de ilusão. 25

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Em suma, o Gerativismo ou Lingüística Gerativa - corrente de estudos da ciência da linguagem que teve início nos Estados Unidos, no final da década de 50, a partir dos trabalhos do lingüista Noam Chomsky- desenvolve a teoria de que a atuação humana só será compreendida se levarmos em conta que princípio das capacidades primárias e sistemas de predisposições de comportamento implicam o uso de “estruturas cognitivas” pelas quais exprimimos sistemas de conhecimento (inconsciente), crença, esperança, avaliação, julgamento etc. MARINI, Marcele. Lacan a trajetória do seu ensino. Artes Médicas: Rio Grande do Sul,1991. passim

1.3. Ilusão, representação, realismo À medida que percorre a predisposição do indivíduo à imagem, Jacques Aumont analisa que há condições psicológicas e perceptivas que permitem a ilusão e que esta é mais “eficaz” de acordo com as condições culturais e sociais em que ocorre, ou seja, as imagens causam ilusão se forem socialmente admitidas. Segundo o autor, a imagem cinematográfica está mais próxima dessa admissão devido à ilusão do movimento aparente. No entanto pouco importa o objetivo exato da ilusão: “em muitos casos, trata-se de tornar a imagem mais crível como reflexo da realidade [...]; em outros casos, a ilusão será buscada para induzir um estado imaginário particular, para provocar mais admiração do que a crença etc. Em suma, o objetivo nem sempre é o mesmo, mas a ilusão é sempre mais forte quando sua intenção é endóxila. (2006, p.99)” Ainda que não seja indispensável, convém mencionar que há uma distinção entre a imagem ilusionista e simulacro. “O simulacro não provoca, em princípio, ilusão total, mas ilusão parcial, forte o suficiente para ser funcional; o simulacro é um objeto artificial que visa ser tomado por outro objeto para determinado uso – sem que, por isso, lhe seja semelhante.” Não podemos perder de vista que o simulacro traduz sempre uma noção grotesca e que sua inserção certamente tem um propósito estético. Para o psicólogo e historiador de arte Rudolf Arnheim, “a ilusão de realidade no cinema é bastante forte devido ao fato de dispor do tempo e de um equivalente de volume, a profundidade.” (ARNHEIM, 1973 apud AUMONT 2006, p. 102). Orientando-nos pelas considerações de Aumont e Arnheim, podemos dizer que qualquer que seja o vídeo - tanto um documentário quanto uma animação gráfica – pode alcançar a ilusão representativa, pois sempre estarão presentes os fatores movimento, tempo e profundidade. O tempo é uma dimensão especial para a construção da imagem cinematográfica e, por conseguinte, na relação com o espectador. O aspecto temporal ativa nossa ilusão à medida que faz da imagem um acontecimento no tempo, mesmo não havendo na tela uma correlação com a duração em que um dado evento aconteceria na vida real. A montagem seria, portanto, a dimensão que dá conta dessa brecha. Ao assistir a um filme nos entregamos à experiência temporal27 que ele nos oferece e, se não a compreendemos, dificilmente a narrativa fará sentido. Isso porque, inúmeras são as histórias em que o tempo aparece como um elemento significativo, como a inserção de flashbacks, como a montagem de sequências que precisam ser entendidas 27

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AUMONT, op. cit.,. p. 106.

como acontecimentos paralelos ou quando o enredo é apresentado de trás pra frente. Em filmes recentes como 21 gramas28 ou Irreversível29 percebemos o quanto a compreensão do tempo é fundamental para que se estabeleça uma relação do espectador com o filme. O tempo do cinema não é necessariamente cronológico, mas ainda assim esse fator não corresponde a um descrédito por parte do espectador porque sempre haverá referências à duração, ao presente, ao acontecimento e à sucessão dos fatos. A representação precisa dispor também de analogia, semelhança, realismo e denotação. Sobre a analogia, Aumont afirma que, por se ter um hábito bastante comum de se ver quase sempre imagens fortemente analógicas, se perpetua o costume de se apreciar mal este fenômeno da analogia, relacionando-o de modo irrefletido a um tipo de ideal que é a semelhança perfeita entre a imagem e seu modelo. Nesta perspectiva Gombrich (1974) defende que: [...] toda representação é convencional, mesmo a mais analógica (a fotografia, por exemplo, na qual se pode atuar mudando alguns parâmetros ópticos – objetivas, filtros – ou químicos – películas); 2. mas há convenções mais naturais do que outras as que agem sobre as propriedades do sistema visual (especialmente a perspectiva). (GOMBRICH 1974 apud AUMONT 2004, p.199)

Aumont ressalta que, mesmo que sejam conexas, não podemos confundir as noções de ilusão, de representação e de realismo. Para ele, a representação é o fenômeno mais geral, que permite o espectador ver uma realidade ausente pela forma de um substituto. A ilusão é um fenômeno perceptivo e psicológico, que às vezes é provocado pela representação. E finalmente o realismo, “é um conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que formula essas regras.” Evidentemente as experiências culturais vão participar da construção da ilusão, da representação e, obviamente, da noção de realismo. O espectador, por mais maduro que seja, dificilmente conseguirá identificar com qual dessas três “metodologias” está estabelecendo uma relação com a imagem, pois todas são resultado do mistifório de referências que vai reunindo ao longo dos anos. 28

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O filme 21 gramas (2003) tem direção de Alejandro González Iñárritu . A trama mescla três histórias diferentes: a de Paul Rivers, um professor universitário que sofre de uma doença terminal e acaba traindo a esposa. A de Cristina Pecks, uma mãe solteira e ex-viciada em drogas que perde toda a família. E um ex-presidiário que se torna religioso, mas continua sem sorte na vida. Os caminhos dos três se cruzam após um acidente de carro fatal e suas histórias são contadas paralelamente. Assim, o espectador não apenas salta de uma narrativa para outra, como também 'aterrissa' em momentos diferentes de cada trama: em certo instante, por exemplo, podemos acompanhar o que está acontecendo com Paul no presente e, na cena seguinte, o que ocorreu com Cristina meses atrás – chegando, finalmente, a uma cena que retrata o destino de Jack anos depois. A história do filme Irreversível (2002), com direção de Gaspar Noé, transcorre de trás para frente. A primeira seqüência mostra dois amigos desesperados, Marcus e Pierre, saindo pelo submundo de Paris à procura do homem que teria estuprado e espancado Alex, atual namorada de Marcus e ex-namorada de Pierre. Em seguida, a narrativa volta passo a passo no tempo para mostrar como os dois descobriram o nome do autor do crime, recuando até o próprio estupro e os eventos que o antecederam.

Existe ainda um componente interessante para pensarmos na relação espectador-imagem: a noção de afeto. Para Alain Dhote, o afeto é “o componente emocional de uma experiência, ligada ou não a uma representação. Suas relações podem ser múltiplas: amor, ódio, cólera, etc.” 30

. Neste ponto, nos aproximamos mais de um aspecto subjetivo, ou seja, percebemos o sujeito

espectador na sua dimensão subjetiva, pois obviamente não podemos negar suas emoções e preferências. Da mesma forma sabemos, como espectadores que também somos, que certos filmes permitem ou dominam nossas emoções de maneira mais forte. Sobre isso, Vanoyne, citado por Aumont, afirma que a produção da emoção no cinema está relacionada às estruturas narrativo-diegéticas, ou seja, estão no plano da história que é contada, portando apenas indiretamente ligada à imagem: “o que comove é a participação imaginária e momentânea em um mundo ficcional, a relação com os personagens, o confronto com situações.” 31. Acreditamos que a experiência cinematográfica constitui-se de maneira plural, não há como nem porque definir o nosso “ponto fraco” com relação ao cinema, a maneira como nos comove ou sensibiliza mais. Estamos interessados em perceber que no cinema sempre habita uma nova experiência a ser descoberta, que frequentemente poderemos nos deparar com criações ainda mais arrebatadoras de conceitos pré-concebidos. Nas palavras de Ismail Xavier: “A preocupação do cinema como dado novo de percepção, como técnica nova que, por isto mesmo, deve ser o lugar da construção de um novo olhar e de uma nova linguagem (...). É aí, na definição de programas dos poetas cineastas, que a concepção do cinema como experiência inaugural se radicaliza. O cinema feiticeiro, anticartesiano, de Epstein; o cine-olho, fábrica-de-fatos, de Vertov; o cinema intelectual, da montagem de atrações e do monólogo interior, de Eisenstein; o cinema visionário, da câmera como extensão do corpo e do olhar que supera os limites definidos pela cultura de Brakhage; o cinema como instrumento de poesia e do maravilhoso, dos surrealistas; estes são exemplos de um pensar e fazer cinema que reivindica o direito a experimentar negado pela indústria, que convoca a uma ampliação da aventura da nova percepção, sem as amarras do código vigente”. (2003, p. 12).

Certamente os elementos de aproximação do espectador com o cinema não se findam aqui. Quanto mais avançarmos na pesquisa, mais descobriremos que o encantamento pela arte do real não possui justificativas formatadas. Por ora, as pesquisas realizadas dão conta deste trabalho introdutório. Ainda que nos esforcemos muito para entender como se dá tal relação, devemos notar que o cinema, excetuando-se a maneira como foi concebido por Lumière em sua primeira exibição, não deve ser compreendido como um objeto científico a ser desvendado. Trata-se de um

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23

DHOTE, apud AUMONT op. cit, p. 120. id, 2006, p. 123.

fator sócio-cultural de nossa sociedade e que precisa ser desenvolvido como tal. É isso que pretendemos fazer ao abordar a importância do cinema para educação.

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Capítulo II "Sem linguagem nova não há realidade nova." Glauber Rocha Cinema e Educação: antigas articulações, novos entendimentos Na antologia O cinema e a Invenção da vida moderna, nos deparamos com textos que dialogam diretamente com pensadores como Walter Benjamin e Georg Simmel, que analisaram, vivenciaram e perceberam as mudanças na sensibilidade e na arte geradas pelas técnicas modernas. À medida que avançamos na leitura, percebemos que o cinema não foi simplesmente um meio surgido na modernidade, resultado do progresso da fotografia, mas revelou-se como seu produto e componente; reflexo e objeto a ser refletido. Dessa forma, é possível dizer que o surgimento do cinema refletiu anseios e ao mesmo tempo proporcionou: uma tecnologia mediada por estimulação visual e cognitiva; a reapresentação da realidade; a centralidade no corpo como objeto de observação, atenção e estimulação; o destaque para o cotidiano urbanizado das cidades; a expansão do consumo, etc. Nesse sentido, os organizadores da antologia, Leo Charney e Vanessa Schwatz, ressaltam que o cinema deve ser pensado como componente vital de uma cultura mais ampla da vida moderna que foi capaz de abranger, sendo também abrangido por transformações políticas, sociais, econômicas e culturais. Essa cultura não “criou” o cinema em um sentido simples, nem tampouco o cinema desenvolveu quaisquer formas, conceitos ou técnicas novas que já não estivessem disponíveis em outros caminhos. Ao fornecer um cadinho para elementos já evidentes em outros aspectos da cultura moderna, o cinema acabou por se adiantar a essas outras formas, e acabou sendo muito mais do que simplesmente uma nova invenção entre outras. 32 (CHERNEY, SCHWART, 2001, p.27)

Já em 1967, o filósofo Guy Debord em seu livro A Sociedade do Espetáculo, afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação” (DEBORD, 1967 apud BELLONI, 2005 p. 1). Mas esse espetáculo não seria “um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizadas por imagens”.

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CHERNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (org.) O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

A partir dessas reflexões, podemos entender o cinema como um fenômeno social que foi alavancado por aspirações de uma sociedade ao mesmo tempo em que fez com que elas tomassem proporções muito maiores. O interesse de ser representado, por exemplo, remonta às sociedades pré-históricas e vai ser evidenciado pela pintura e depois pela fotografia. À medida que evolui, o cinema alcança esse objetivo de forma muito mais próxima da realidade, o que definitivamente faz com que seja dada grande importância ao universo audiovisual do mesmo jeito em que passamos a exigir-lhe ainda mais. De fato poderíamos requisitar do cinema apenas um conjunto de imagens em movimento formando um grande espetáculo de representações, mas não paramos por aí. E o cinema também não. Quando falamos sobre cinema e educação, fica evidente que depositamos muitos créditos a essa forma de arte/expressão/comunicação a ponto de exigir dela um alcance maior, ou seja, a capacidade de atingir esse que, sem dúvida, é o maior problema de países como o Brasil: a educação. E, se acreditamos que o cinema equivaleu a um “cadinho para elementos já evidentes em outros aspectos da cultura moderna”, somos levados a pensar que esta nossa demanda também evidente pode ser recebida no mesmo cadinho. 2.1. Um campo teórico em aberto A pesquisa sobre cinema e educação nos permite dizer que o tema sempre permeou os espaços por onde o primeiro circulou. Não é preciso entender muito do assunto para citar, por exemplo, as práticas cineclubistas como iniciativas de formação intelectual, portanto educativas. No entanto convém notar que, embora o tema tenha sido sempre recorrente, é possível dizer que o campo teórico de cinema e educação ainda está em aberto. Há propostas teóricas recentes que serão exploradas aqui, além da discussão epistemológica travada sobre mídia e educação, a que também recorreremos (esta sim, um pouco mais consistente), mas não existe uma bibliografia fundamental ou caminho pré-estabelecido. Notamos que muito do que se falou em mais de cem anos da história do cinema são reflexões que o observam a partir de sua capacidade comunicativa ou emotiva, sensibilizando e aproximando-se do espectador. Em sua tese de doutorado Dos Naturais ao documentário: o cinema educativo e a educação do cinema, entre os anos de 1920 e 1930, a professora Rosana Elisa Catelli (2005) faz um apanhado histórico das iniciativas na nossa área de interesse. Segundo ela, no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, a relação entre cinema e educação deu origem a um intenso debate, em publicações da imprensa diária e em revistas especializadas de diversos setores 26

sociais. Isso se deu porque desde a década de 1910, os anarquistas desenvolveram uma intensa reflexão sobre os usos do cinema, como um instrumento a serviço da educação do homem do povo e da transformação social33, devendo ser entendido com a arte revolucionária. Em contrapartida, o pensamento católico também se dedicou à questão do cinema educativo. Preocupado com a questão moral dos filmes exibidos, a Igreja criou os Cineacs, salas de cinema nas paróquias e associações católicas, que tinham por objetivo apreciar os filmes segundo as normas traçadas pela Igreja34. Os educadores, por sua vez, combatiam o que eles chamavam de "cinema mercantil" e propunham a criação do cinema educativo que, segundo eles, poderia trazer benefícios pedagógicos aos alunos ao mostrar de forma mais real diversos aspectos da natureza e da geografia do Brasil. Para estes, o cinema educativo representava a luta contra o cinema "deseducador" e "portador de elementos nocivos e desagregadores da nacionalidade” 35. Todo este debate deu origem em 1936 ao Instituto Nacional de Cinema Educativo, dirigido por Roquette-Pinto e tendo o cineasta Humberto Mauro como técnico do Instituto. No INCE, entre 1936 e 1964, Mauro realizou 357 filmes pedagógicos e científicos. Nas décadas de 1930 e 1940, principalmente, os filmes produzidos correspondiam ao objetivo de reinventar o Brasil, mostrando a natureza exuberante e o homem primitivo como marcas de nossa nacionalidade. Como coloca Sheila Schvarzman (2003 p. 481), "até 1940, o que se desenha é a imagem de um país naturalmente harmônico e equilibrado no cosmos (...) a imagem de um país portentoso, dotado de uma natureza pródiga, uma ciência capaz de decifrá-la e grandes homens aptos a conduzir a nação ao grande destino inscrito nas promessas da natureza. Forjou-se na tela um país excepcional” 36. Analisando a trajetória da relação entre o cinema e a educação no INCE, Marília Franco (1988, p. 46) observa que o fato de o cinema educativo ter surgido a partir da visão oficial do Estado, comprometido portanto com uma visão arbitrária do mundo, teria sido decisivo para que diversas gerações de educadores deixassem de adotar o cinema como um recurso pedagógico. No seu entender, tal quadro de resistência vem se modificando gradualmente desde o início dos anos 33 34

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FIGUEIRA, Cristina Aparecida R. O cinema do povo: um projeto da educação anarquista, 1901 - 1921. São Paulo: PUC-SP Dissertação de Mestrado, 1995, passim. MORRONE, Maria Lúcia. Cinema e educação: a participação da "imagem em movimento" nas diretrizes da educação nacional e nas práticas pedagógicas escolares. São Paulo: FE/ USP, dissertação de mestrado, 1997, passim. TELES, Ângela Aparecida. Cinema contra cinema: o cinema educativo em São Paulo nas décadas de 1920/1930. São Paulo: PUC, Dissertação de Mestrado, 1995, passim. SCHVARZMAN, Sheila. O livro das letras luminosas, Humbeto Mauro e o Instituto Nacional de Cinema Educativo. In: FABRIS, Mariarosaria (org.) Estudos Socine de Cinema, Ano III 2001. Porto Alegre: Sulina, 2003.

80, quando é possível perceber uma tímida mudança entre os educadores afim de ultrapassarem “os preconceitos contra a linguagem audiovisual e promoverem a sua penetrabilidade no espírito das platéias” 37 A possibilidade de uso do cinema como instrumento pedagógico, doutrinário ou de propaganda era incipiente, no início do século XX, em vários países do mundo e independentemente da ideologia que professavam. Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, União Soviética, Canadá, estão entre os países que difundiram este uso para as imagens cinematográficas. Marc Ferro (1992, p.27) afirma, ao analisar a relação entre cinema e o poder soviético, que expressões como "apoderar-se do cinema", "controlá-lo", "dominá-lo" encontravase facilmente entre os altos escalões do governo soviético. Na URSS, "o cinema educativo, o cinema científico e de animação ocupam um lugar privilegiado no programa cultural (...) o documentário, o cinema 'para os camponeses', o documento-cinema são considerados igualmente como essenciais” 38. A Alemanha Nazista e a Itália Fascista também atribuíram um estatuto privilegiado ao cinema como educação das massas e propaganda ideológica, tendo sido criados departamentos cinematográficos vinculados diretamente ao Estado. Estes dois modelos de uso do cinema como instrumento político e pedagógico foram referência para a intervenção brasileira nesta área. As possíveis relações entre o comportamento humano em sociedade e as imagens cinematográficas foram tema de artigos em jornais e revistas especializadas das mais diferentes áreas: medicina, psicologia, educação, religião, direito, etc., ou seja, as idéias sobre o cinema educativo eram bastante expressivas no mundo inteiro. A partir desta breve retomada, podemos dizer que a observação sobre a importância sócioeducativa do cinema não é nenhuma novidade, mas notamos também que isso nunca se deu de forma sistematizada. Nas iniciativas anteriores mais relevantes, não houve o propósito de desenvolvimento de uma discussão epistemológica. Além disso, as intervenções baseiam-se no fato de que o cinema comunica-se com grandes públicos, o que direciona a atenção para o que se produz, com caráter pedagogizante, ou seja, criação de filmes educativos, que permitissem a exploração de um tema específico de interesse social ou local. Não falamos disso. Entendemos que tal procedimento limita a capacidade criativa tanto dos realizadores, quanto dos espectadores e, sem dúvidas, nosso interesse é ampliá-la. 37 38

28

FRANCO, Marília. “Cinema e Educação”. In Revista Imagem Tecnologia Educação. Rio de Janeiro, UFRJ, 1988, p. 46. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.27

Estamos empenhados em propor o cinema mantendo relações com a educação a partir dos filmes que já existem, a partir de sua linguagem, a partir de sua interferência artística e emancipadora, tendo certeza de que há um caminho imenso a ser explorado. Além disso, é fundamental entender que falar sobre cinema e educação hoje em dia, é pensar também em novas mídias, tecnologia e democratização. Chamamos a atenção para a possibilidade de assistir a obras a que não teríamos acesso, curta-metragens, filmes inusitados de países sem a tradição cinematográfica imaginada graças ao avanço da internet, do DVD (ainda mais comum do que seu sucessor, o blue ray), que investe cada vez mais na restauração de obras e na produção de making of’s como material extra que possibilita maior aproximação com o filme assistido. É também absolutamente necessário observarmos a importância do desenvolvimento de dispositivos tecnológicos que proporcionaram o envolvimento com o cinema a partir de suportes não profissionais, de baixo custo que, sem dúvida, começam a desmistificar o universo cinematográfico e o coloca a disposição da educação. 2.2. Contribuições de mídia e educação Embora alguns professores e autores assinalem a importância do campo teórico de Cinema e Educação e já existam relevantes reflexões, entendemos que este campo ainda está em aberto porque, de fato, há poucas propostas em que se discute o tema de forma pontual. No entanto, é importante notar que estamos nos arriscando numa área favorável. Certamente as discussões travadas no campo da mídia e educação ou educomunicação nos fornecem um cabedal interessante para que possamos avançar. As reflexões sobre o papel das mídias nas sociedades contemporâneas e sua relação com a educação de crianças não são recentes. Para o professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e também coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação da mesma ECA/USP, Ismar Gomes Soares, a tradição constitutiva do campo da educomunicação deve levar em conta, inicialmente, as contribuições de pensadores e educadores que há muito discutem sobre tal questão.

Sendo assim, devemos citar Burrhus Skinner (1904-1990),

responsável por certa visão mecanicista a partir da qual as tecnologias da informação foram, desde os anos 50 ou mesmo antes, concebidas e utilizadas no ensino; Célestin Freinet (18961966) e Paulo Freire (1825-1997), que são reconhecidos como fundadores de perspectivas criativas da inter-relação Comunicação /Educação. O primeiro, defendendo o uso da comunicação, especialmente do jornal, como forma de expressão de crianças e adolescentes e o 29

segundo, apontando para o caráter essencialmente dialógico dos processos comunicacionais. Trazendo contribuições mais recentes, devemos apontar para Jesús Martín Barbero, responsável por uma sólida reflexão sobre a relação Comunicação/Cultura e sobre as teorias das mediações e Mário Kaplún (1924-1998), pioneiro, na América Latina, no campo dos estudos que relacionam a comunicação com os processos educativos.39 De acordo com Maria Luiza Belloni (2001) as intervenções relevantes do campo de Mídia-Educação ou Educação para as Mídias desenvolvem-se com mais consistência a partir de 1970 no mundo inteiro. Segundo ela, as propostas dizem respeito à formação do usuário ativo, crítico e criativo de todas as tecnologias de informação e comunicação 40. A partir de então, passam a surgir questionamentos sobre como a instituição escolar vai responder a esse desafio, integrando as tecnologias de informação e comunicação ao seu cotidiano. Partindo de princípios definidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (9394/1996), o Ministério da Educação tenta construir um novo perfil para o currículo da educação básica nos Parâmetros Curriculares Nacionais, preconizando competências como capacidade de informação, comunicação, argumentação e de reflexão crítica sobre a realidade e articulação social. O documento incentiva o uso de novas tecnologias no processo ensinoaprendizagem, articulando-as com diferentes tipos e usos da linguagem. No entanto, educadores e gestores públicos reconhecem a carência de metodologias para formar professores na área de mídia-educação. Percebemos, portanto que há uma preocupação crescente com a imersão e atuação dos multimeios na educação. Mas, ainda que essas questões estejam sendo pensadas, a temática ainda não assumiu dentro das instituições escolares o seu urgente lugar de destaque. A defasagem da cultura escolar é gritante, tanto às questões éticas (conteúdos, mensagens) quanto estéticas (imagens, linguagens, modos de percepção, pensamento e expressão). Há muitos desafios colocados à educação escolar contemporânea. Morin (2000, p.13) acena para a necessidade de superar a “inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre saberes separados, fragmentados, compartimentados entre as disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.” 41 39

40

30

SOARES, Ismar Gomes de Oliveira. Comunicação e Educação – emergência de um novo campo e o perfil de seus profissionais. p. 2 Disponível em < http://www.usp.br/nce/wcp/arq/textos/140.pdf>. Data de acesso: 30 de junho de 2010. BELLONI, op.cit., passim.

2.3 Propostas para pensarmos em cinema e educação na infância Esta sucinta explanação sobre educomunicação permite-nos apontar com clareza a defasagem da educação diante das demandas surgidas numa sociedade onde os meios de comunicação exigem-nos adaptarmos a eles, pois é inegável que haja alterações na percepção do mundo e, por conseguinte, no processo ensino-aprendizagem. Seguiremos com as discussões sobre cinema e educação tentando apresentar propostas para estas demandas, mas analisando, sobretudo, que o caráter educativo e formador do cinema está nas suas infinitas possibilidades impelir a imaginação do indivíduo, e, em especial, alavancando o desenvolvimento imaginário da criança. Acreditamos que a “ilusão” fascinante de que falamos anteriormente não se desenvolve apenas no nível de como são recebidas imagens em movimento; esta ilusão é a capacidade de ver o fantasioso concretizando-se, concepção que está muito mais próxima do universo infantil já que as crianças deixam o imaginário atuar com muito mais liberdade e convicção. Segundo Gilka Girardello, a infância é a grande fonte da nossa vitalidade imaginária. É bem verdade que a imaginação é uma faculdade que se desenvolve ao longo de toda a nossa vida. Mas é também verdade, que a imaginação na infância tem uma sensibilidade especial porque “as crianças tendem a se entregar mais livremente à fantasia”

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. Esta tendência, de acordo com

Manuel Jacinto Sarmento, funciona como um investimento de ficção na realidade e subverte a ordem para restabelecer outra, para que elas possam compreender a partir de seus referencias.43 Sabemos que a imaginação é uma função vital do cérebro humano. Vygotsky afirma que a atividade criadora do indivíduo é propulsionada pela sua relação com a realidade, ou seja, que a imaginação se apóia na experiência: A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que a fantasia erige os seus edifícios. Quanto mais rica seja a experiência humana, tanto maior será o material de que dispõe essa imaginação. Por isso a imaginação da criança é mais pobre que a imaginação do adulto, por ser menor a sua experiência . (VYGOTSKY, 1982, p.128) 44

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MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 13. 42 GIRARDELLO, Gilka. A imaginação infantil e as histórias da TV. Disponível em: . Data de acesso: 14 de junho de 2010. 43 SARMENTO, Manuel Jacinto. “Imaginário e culturas da infância.” Disponível em . Data de acesso: 14 de junho de 2010. 44 VYGOTSKY, L. S. A imaginação e a arte na infância – ensaio psicológico. Madrid, Ed. Akal, 1982. 31

A princípio poderíamos considerar que as abordagens de Girardello e Vygotsky são conflitantes, no entanto é possível apreender o sentido completivo que há entre estas duas asserções se entendermos que é justamente pelo fato de as crianças estarem mais abertas a divagar nas suas fantasias que é importante ampliar suas experiências para que possam ter base para sua atividade criadora, fomentando e ampliando seu repertório imaginário. Sabemos que quando a criança chega ao espaço da educação formal, já traz na sua “bagagem cultural”, os indicativos de que a comunicação audiovisual faz parte de sua vida, por mais precária que seja sua situação financeira familiar. Dessa forma, ela incorpora características e até as falas de personagens dos desenhos animados, de tele-novelas e apresentadores de programas, envolvendo a sua realidade com um misto de referências que advêm, principalmente, da televisão e do seu espaço doméstico. Não pretendemos argumentar em favor da abolição desse comportamento, pois é obviamente impossível, mas importa-nos ampliar o repertório cultural que lhe é oferecido entendendo, como Marília Franco, que “no ambiente escolar o aluno pode receber um aperfeiçoamento de sua capacidade de leitura midiática, de modo a transformar essa sua cultura em instrumento de qualidade de vida e de cidadania” 45 Franco desenvolve sua pesquisa propondo de que forma podemos pensar na integração da linguagem audiovisual com os procedimentos pedagógicos. Ela analisa o assunto a partir do universo conceitual cognitivo da Teoria das Inteligências Múltiplas, cuja elaboração e descrição é realizada pelo pesquisador norteamericano Howard Gardner, no seu livro Estruturas da mente: A teoria das inteligências múltiplas. A primeira fundamentação do autor é de que a inteligência refere-se à competência, estendendo o termo para possibilidade, potencial. Para Gardner todos os seres humanos têm um potencial de competências que deve ser reconhecido e desenvolvido, em todas as oportunidades, instâncias e tempos da vida. Gardner considera como pré-requisitos de uma inteligência: uma competência intelectual humana deve apresentar um conjunto de habilidades de resolução de problemas – capacitando o indivíduo a resolver problemas ou dificuldades genuínos que ele encontre e, quando adequado, a criar um produto eficaz – e deve também apresentar o potencial para encontrar ou criar problemas – por meio disso propiciando o lastro para a aquisição de conhecimento (GARDNER, 1994 apud FRANCO)

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FRANCO, Marília. “O trabalho com a linguagem audiovisual na sala de aula”. Disponível em http://www.cesnors.ufsm.br/professores/carolcasali/projetos-em-educomunicacao/o%20trabalho%20com%20a %20linguagem%20audiovisual%20na%20sala%20de%20aula%20-%20marilia%20franco.pdf . Data de acesso: 18 de junho de 2010.

É importante ressaltar, num nível mais geral, que a escola deveria preocupar-se em reconhecer e desenvolver esse potencial, o que, sabemos, não acontece de forma elaborada ou não acontece de forma alguma. Não nos convém explicar o conjunto das sete competências elaboradas por Gardner a partir desta noção de inteligência, mas apenas para elencar, as inteligências estariam num nível racional, corporal e pessoal. No primeiro grupo, encontram-se as capacidades lingüísticas e lógico-matemáticas. No segundo, capacidades espaciais, corporal-cinestésica e musical ou sonora. E no terceiro, capacidades intrapessoal e interpessoal. De toda a formulação, interessa-nos perceber que a linguagem cinematográfica é capaz de envolver muitas dessas capacidades. Nesse sentido, Franco avalia que os elementos de um conteúdo audiovisual podem despertar ou funcionar como exercício, por exemplo, para a inteligência intrapessoal (o que eu consegui ver em determinado vídeo), expressão lingüística (como vou explicar isso aos outros), inteligência interpessoal (aprender a ouvir, compreender e respeitar a opinião do outro). E ainda, com o recurso de suas competências corporais-cinestésicas, “imitar” um dos personagens do vídeo, para explicar algum detalhe, comunicar-se, expressar-se. Além disso, é importante observar que, nesta formulação, o exercício da inteligência envolve aspectos de sensibilidade, cognição e memória. Dessa forma, reabrimos a discussão sobre a importância da imaginação para o desenvolvimento cognitivo e subjetivo do indivíduo, acreditando que o universo cinematográfico é um aliado indispensável nesta atribuição. Para Maríla Franco (op. cit.): Os produtos de comunicação audiovisual, por privilegiarem o contato estético com o receptor, tem um alto potencial de estimular todo esse conjunto de competências sensíveis e cognitivas. O espectador pode ficar numa espécie de transe sensóriocognitivo ao terminar de ver o mais simples vídeo. Esse estado pode representar a melhor plataforma de lançamento para a viagem do conhecimento, mas precisamos estar absolutamente conscientes de que os mapas que guiarão essa viagem são pessoais e intransferíveis, mas as rotas individuais cruzam-se e tangenciam-se umas com as outras. (p.7)

As reflexões tecidas por Marília Franco a partir da conceituação cognitiva, abre-nos espaço para inserir outro apontamento dentro desta área que, apesar de já ter se estabelecido como senso comum, ainda é muito controverso devido ao tom determinístico que pode causar. Por isso, antes mesmo de iniciarmos, é importante esclarecer que não tomamos essas teorias como verdades científicas absolutas ou mesmo como hipótese fundamental ao trabalho, mas é fato que elas motivam curiosidade. 33

Para além das contribuições sistematizadas pela Psicologia da Educação (com relação às teorias que revelam as fases do desenvolvimento cognitivo na infância, dentre outros, por Freud, Piaget e Vigotsky - este último de quem mais nos aproximamos pela teoria histórico-cultural, ou seja, a noção de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e condições de vida), chamam-nos a atenção as teorias neurocientíficas acerca desta temática. O princípio que rege tais formulações diz respeito ao fato de que as fibras nervosas capazes de ativar o cérebro têm de ser construídas, e o são pelas exigências, pelos desafios e estímulos a que uma criança é submetida, a maior parte entre o nascimento e os 4 anos de idade. Alguns neurobiologistas, como Gerald Edelman, do Instituto de Neurociência de La Jolla, na Califórna, começaram a estudar o que chamaram de “janelas da oportunidade”. Para eles, da mesma forma que o sentido da visão depende de conexões feitas até os 2 anos de idade e que os circuitos da linguagem se consolidam até os 10, eles consideraram que outros “dons” podiam ter também janelas de oportunidade que precisam ser exploradas logo na primeira infância.46 Seguindo os mesmos princípios neurocientíficos, Aloísio Araújo, professor e economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), durante sua intervenção no Seminário Internacional Meeting on Early Childhood Education, realizado pela Academia Brasileira de Ciências em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) concede uma entrevista ao Jornal O Globo. Nela, sustenta que os cérebros se formam muito cedo, e que, se a criança não recebe certos estímulos nessa fase em que se estabelecem certas conexões neuronais, ela dificilmente vai recuperar isso depois. “Através de medições e imagens mais modernas, fica claro que é difícil que essa criança atinja o mesmo nível de uma outra que foi submetida aos estímulos adequados.” 47 Mesmo que a teoria seja questionável em seu estéril radicalismo, não podemos deixar de notá-la pois sabemos que a educação infantil recebeu um grande reforço a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. A lei que definiu a educação infantil como primeira etapa da educação básica, tornando-a, portanto, parte integrante da educação necessária a toda pessoa muito provavelmente leva em consideração esta etapa constitutiva da criança. De maneira geral, afirma-se que mais da metade do potencial intelectual infantil já está estabelecido aos 4 anos de idade. Mas sabemos que as ponderações são feitas levando em consideração que as experiências de crescimento e desenvolvimento das crianças na primeira 46 47

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“Como funciona o cérebro das crianças - A construção do cérebro.” Matéria publicada na Revista Veja. Editora Abril . Rio de Janeiro. Edição 1436. P. 84-89, março, 1996. WEBER, Demétrio. ‘Depois de 4 anos, a escola não recupera mais’- entrevista com Aloísio Araújo. O Globo, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2009, p. 12.

infância variam de acordo com suas características individuais, gênero, condições de vida, organização familiar, cuidados proporcionados e sistemas educacionais (UNICEF, 2005). De qualquer forma, este dado motiva-nos a buscar a importância de trabalhar com cinema e educação logo nos primeiros anos de vida do indivíduo, considerando a idade pré-escolar (de 4 a 6 anos) como muito propícia para a iniciação de atividades cinematográficas pelo indício de que a partir de então é possível desenvolver maior interesse. Além disso, Alain Bergala afirma que há um momento decisivo no momento da infância em que cada um encontra filmes essenciais na constituição da sua relação com o cinema.48 É interessante observar que, no seu Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola, Bergala propõe um capítulo inteiro para discutir a importância do cinema na infância. Nele, observa o engajamento cinematográfico de nomes notáveis como Philippe Arnaud e Serge Daney, que se tornou um dos pensadores de cinema mais influentes da França, comparado a Georges Sadoul e a André Bazin. Seu contato com a arte se deu logo em seus primeiros anos como estudante, por meio das aulas de Henri Agel, respeitado crítico dos anos pós-guerra. Dessa forma o autor reflete sobre o fato de que nosso imaginário do cinema não se constitui de modo homogêneo e contínuo de nossa vida: Existe um ‘lote de partida’ que traçará o essencial do mapa de nossas zonas de atração e de desinteresse. Daney estende a hipótese até pensar que á filmes vistos ‘tarde demais’, perdidos relativamente ao impacto determinante que poderiam ter nos causado se os tivéssemos encontrado naqueles poucos anos de formação decisiva: ‘o que não foi visto ‘a tempo’ nunca mais o será. [...]. Dessa constatação deduz-se a importância primordial de se encontrar os bons filmes no bom momento, aqueles que deixarão marcas para a vida toda. 49

Pode haver um questionamento sobre a inviabilidade de se apresentar filmes com conteúdos nada infantis para crianças. É claro que não estamos falando em compreensão de uma obra de arte hermética cult, mas de apresentação de elementos cinematográficos diversificados, que de fato ampliem sua diversidade cultural. Entendemos que um filme em preto e branco, por exemplo, é em geral considerado “chato” porque há uma ditadura de cores cada vez maior no universo audiovisual, o que pode ser apreendido de outra maneira se apresentado em um outro momento e de outra forma. Mas citando o livro Cet enfant de cinéma, em que são recordadas impressões da infância de pessoas ligadas a cinema e mesmo de anônimos, Bergala constata que

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BERGALA, op. cit., p. 59. BERGALA, op. cit., p. 60 e 61.

os encontros importantes, no cinema, são quase sempre com filmes que estão à frente da consciência que temos de nós mesmos e de nossa relação com a vida. No momento do encontro, nos contentamos em recolher com espanto o enigma e reconhecer seu impacto, seu poder desestabilizador. O momento da elucidação virá mais tarde e poderá durar vinte, trinta anos, ou toda uma vida. O filme trabalha na surdina, sua onda de choque se propaga lentamente. (BERGALA. 2008, p. 61)

Esta discussão nos leva a pensar sobre o tipo de filme pedagogicamente “aceitável” nos ambientes propícios a essas atuações. Trabalhar com cinema dentro de uma sala de aula, principalmente se os alunos forem crianças muito novas parece uma tarefa inviável, apesar de não ser. E essa dificuldade pode ser imensamente maior se a escola não disponibiliza um filme de fácil assimilação. Mas o leitor já deve ter percebido que a instituição escolar foi pouco citada neste texto, e isso é proposital. Sabemos que tudo o que aqui foi escrito pode parecer muito utópico se considerarmos que a iniciativa de se trabalhar com cinema e educação nas escolas representa uma grave questão política, principalmente em se tratando de escolas públicas. Citando como exemplo uma iniciativa que se insere na área de Cinema e educação, o Governo do Estado do Rio de Janeiro propôs em 2009 e 2010 o “Cinema para Todos”

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,

programa de distribuição de ingressos de cinema em escolas a fim de que alunos e professores assistam gratuitamente a filmes nacionais em cartaz. Em entrevista ao Jornal Folha Dirigida acerca desta proposta, a resposta de professores ou de pessoas que lidam diariamente com a realidade de uma escola é bastante sintomática e muito mais pragmática. Terezinha Machado, presidente da União dos Professores Públicos no Estado do Rio de Janeiro (Uppes), alega que: O programa é legal, mas não deve ser encarado como prioridade. Antes de oferecer projetos como esse, que tem seu valor, pois todas as formas de arte e cultura também fazem parte da educação, o governo deveria concentrar seus esforços em melhorar o estado das escolas e oferecer aos professores e alunos as condições necessárias para um ensino de qualidade. 51

Além disso, é preciso observar que não é possível obrigar a professores se interessarem por cinema e fazerem dele um aparato educativo. As críticas e questionamentos são legítimos e inegáveis; as barreiras que se interpõem dificultando a relação do cinema com a educação são expressivas, mas não é possível esperar que tudo se estabeleça da maneira mais coerente possível para que este trabalho tenha início. Entendemos que para além dos problemas sociais reais, existe 50 51

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Programa promovido desde 2009 pelas Secretarias de Estado de Educação e de Cultura do Rio de Janeiro referente à distribuição de 800 mil ingressos aos alunos de 25 municípios do Estado. “Avanço cultural longe das necessidades básicas da escola”. Matéria publicada no Jornal Folha Dirigida, Caderno de Educação. Publicado em: 20 de abril de 2010.

uma dificuldade significativa dentro da educação formal tradicional para mudar paradigmas e, sem dúvida , são mudanças que precisam acontecer logo. Recordamos as discussões travadas no II Encontro Internacional de Cinema e Educação da UFRJ, realizado em 18 de dezembro de 2008, onde a professora Marília Franco aponta para o fato de que o cinema faz aflorar nas pessoas competências cognitivas que a educação formal e tradicional recalcam. Para ela, a escola ainda trabalha no paradigma do saber centralizado e formalizado, que se baseia no sentido da acumulação de conhecimentos advindos dos professores, quando, no mundo atual, esse conhecimento está cada vez mais “explodido e disperso”. Nesse sentido, a escola ainda está voltada para o conhecimento e não para o sujeito. De acordo com Franco, enquanto a instituição entender o ensino e o conhecimento sob a perspectiva da acumulação, o cinema, assim como qualquer outro produto audiovisual, não conseguirá ser bem trabalhado como prática pedagógica, como provocador de uma educação da sensibilidade e do estético em contraposição a uma educação baseada na racionalidade e na sistematização de dados. Depois desta reflexão, podemos retornar à discussão sobre o tipo de cinema a ser trabalhado como educação, tendo em mente a necessidade de mudar paradigmas. Sendo assim, nos apropriamos novamente da hipótese de Alain Bergala que, na verdade, também se apropriou de uma ideia anterior de outrem: o então Ministro da Educação Jack Lang. Em 2000 Bergala foi convidado por ele para compor um grupo de conselheiros cuja missão era desenvolver um projeto de educação artística de ação cultural na Educação Nacional da França. A teoria de Lang, enfim, era que essa ação era uma proposta de encontro com a alteridade. Dessa forma, Alain Bergala estabeleceu a entrada do cinema nas escolas como “um outro”, um estrangeiro pela sua natureza, permanecendo “à parte” a fim de explorar uma alteridade radical que deve ser experimentada, sendo, portanto um elemento revolucionário. Segundo ele, essa alteridade é possível graças ao envolvimento com o cinema enquanto arte. A arte, para permanecer arte, deve permanecer um fenômeno de anarquia, de escândalo, de desordem. A arte é, por definição um elemento perturbador dentro da instituição. Ela não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do “fazer” e sem contato com o artista, o profissional, entendido como corpo “estranho” à escola, como elemento felizmente perturbador de seu sistema de valores, de comportamentos e de duas normas relacionadas (BERGALA, 2008, p. 30)

Mas é preciso deixar claro que o que Bergala entende como arte no cinema não está atrelado a ornamentos, exageros, academicismo exibicionista ou intimidação cultural, mas sim a cada emoção e a cada pensamento que nascem de uma forma, de um ritmo que não poderia existir senão através do cinema. Sabemos que tal definição é bastante subjetiva. Mas é preciso 37

insistir no fato de que o trabalho com o cinema não possui uma objetividade cortante, ao contrário, há de se agregar as subjetividades. Dessa forma, as preferências afetivas, os gostos estéticos da figura intermediadora da relação cinema-educação sempre estarão evidentes, da mesma forma que um filme é realizado sem qualquer preocupação com a imparcialidade, como evidencia Rosália Duarte: Os cineastas costumam dizer que sem identificação não há filme, ou seja, nada daquilo funciona. Para que a história faça sentido e conquiste a atenção do espectador, até o final, é preciso que haja nela elementos nos quais o espectador possa reconhecer e/ou projetar seus sentimentos, medos, desejos, expectativas, valores e assim por diante. (DUARTE, 2002, p.71).52

É interessante observar que praticamente todos os atuais pensadores sobre cinema e educação assinalam a importância da manifestação artística deste meio audiovisual e convém ressaltar que não pensamos diferente. A carência cultural na nossa sociedade impulsiona-nos a acreditar que é preciso oferecer filmes como obra de arte e de cultura, por isso é um trabalho que exige a dedicação de escolher filmes que possibilitem diversidade, ideias inovadoras, sensibilizando a imaginação. Neste sentido, Inês Teixeira (2009), Doutora em Educação e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, deixa bem claro que os vínculos que observa e busca do cinema com a educação e a escola referem-se à sua manifestação como arte. “Não estamos nos referindo a qualquer filme ou ao cinema que se tornou somente indústria cultural, apropriado pelo mercado, como um bem de consumo mercantilizado”. Para ela o “bom” cinema permite experiências estéticas porque “fecunda e expressa dimensões da sensibilidade, das múltiplas linguagens e inventividades humanas”.53 Da mesma forma, Rosália Duarte (2009), uma das pioneiras dentro do campo teórico aqui discutido, Doutora em Educação e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro, ressalta que a principal tarefa a ser desempenhada pelos que pretendem articular cinema e educação é contribuir para a formação do gosto pelo cinema como uma forma de arte. “Diferentemente do que acontece com a linguagem escrita, a linguagem audiovisual não precisa ser ensinada: ela é, de certo modo, uma linguagem universal” 54, pois pessoas de origens, idades e formações diversas aprenderam desde muito cedo a conviver com certa naturalidade com os recursos de que o cinema se utiliza para contar suas histórias. 52 53

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DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 2002. p. 71. TEIXEIRA, Inês. “Projetos com Cinema e Educação”. In Revista O que se aprende com o cinema: saberes, fazeres na relação cinema-educação. Ano 2. Setembro a novembro de 2009. Vitória da Conquista – BA. p. 4 DUARTE, Rosália. “Cinema e Educação”. In Revista O que se aprende com o cinema: saberes, fazeres na relação cinema-educação. Ano 2. Setembro a novembro de 2009. Vitória da Conquista – BA. p. 2

Já Adriana Fresquet (2008), Doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e idealizadora do projeto CINEAD – Cinema para aprender e desaprender 55 , também enfatiza o cinema enquanto arte reconhecendo-a como tarefa essencialmente coletiva que afirma a importância do outro para a produção individual e para o desempenho alheio. Para ela, a escola deve salvaguardar o espaço e o tempo para o encontro do cinema, mesmo não sendo possível cobrar que ela garanta um encontro comovido, íntimo e pessoal com as artes. Fresquet (2008, p. 136) afirma ainda que “é necessário desfazer fronteiras nos campos do conhecimento humano, abrir o impasse entre artes e ciências” E de forma bastante pontuada com relação a nossa área de interesse, ela afirma que a “Educação Infantil parece um lugar e tempo ideal para esse encontro, para elaborar esforços concretos de diálogo e interação”.56 As reflexões acerca da importância do cinema ser entendido e trabalhado como arte na educação faz-nos refletir sobre os problemas do processo inverso, de mera instrumentalização do cinema. Sabemos que muitas escolas e professores tentam se aproximar do universo cinematográfico e isto, certamente, já é um grande passo. Mas sabemos também que existe a tendência que isso seja feita de forma instrumental, “didaticamente favorável”, a fim de extrair do filme uma ponte para um assunto previamente pensado e que será debatido instantaneamente. Bergala assinala que a escola favorece a entrada de filmes nos espaços educativos, contanto que tratem de certos temas de forma “bem-pensante”, ou seja, apresentando filmes “digeríveis e recicláveis em ideias simples e ideologicamente corretas”

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e, muitas vezes, acabam por reforçar

preconceitos. Contrariamente os filmes que ousam comunicar-se de forma diferente, alteram ordens, desestabilizam eixos e propõem, num primeiro momento, ideias indigeríveis, além de manifestarem arte, iniciam um processo a que Adriana Fresquet chama de cinema para 55

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O CINEAD – Cinema para aprender e desaprender é um projeto de pesquisa e extensão, do Laboratório do Imaginário Social e Educação (LISE) da Faculdade de Educação (FE) nasceu em novembro 2006. No seu início pesquisava apenas a partir da análise crítica de alguns filmes sobre infância e adolescência, textos pedagógicos e cinematográficos e ainda dissertações ou teses desenvolvidas sobre aqueles filmes. O crescimento do grupo, que se diversificou qualitativamente com professores e alunos de diferentes unidades, a incorporação de professores mestres e doutores do Colégio de Aplicação como parceiros de pesquisa e ainda da parceria da Cinemateca de Arte Moderna, cujo convênio com a Faculdade de Educação da UFRJ foi assinado em 28 de fevereiro de 2008 triplicaram a pesquisa em diferentes modalidades. O corte que articula estas diferentes modalidades e experiências é o foco sobre a infância e a adolescência, objeto pesquisado inclusive com crianças e adolescentes.. Coordenado pela professora Adriana Fresquet, o projeto possui uma equipe de mais de 30 professores e alunos de diversas unidades da UFRJ. A pesquisa envolve o acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM-Rio). O projeto criou uma Escola de Cinema para alunos de ensino fundamental e médio no Colégio de Aplicação CAP- UFRJ. FRESQUET, Adriana. Arte e Crianças: um encontro impostergável. In: VASCONCELOS, Tânia de. (org.) Reflexões sobre infância e cultura. Niterói: EdUFF, 2008. p. 136. BERGALA, p. 46.

desaprender. Segundo ela, a educação precisa ter a possibilidade de experiência que nos remeta a um aprender em três tempos: aprender, desaprender e reaprender. “A cada dia aprendemos coisas novas. Em geral, as aprendizagens variam em intensidade afetiva, importância, valorização social, transcendência. Porém, é necessário e não menos importante desaprender conceitos, significados, atitudes, valores historicamente apropriados, às vezes, nem totalmente conscientes, carregados como mochilas pessoais, familiares, culturais. Desaprender é necessário porque as aprendizagens mais significativas acontecem com freqüência em contextos favoráveis e carregados afeto e boas intenções. Nessas situações as defesas estão baixas ou nulas e dificilmente se percebem efeitos negativos ou se gera alguma forma de resistência ou questionamento do aprendido.” 58

Neste sentido, Fresquet desenvolve a hipótese de que o cinema ajuda-nos a desaprender uma vez que nos apresenta outras opções das quais nunca tivemos noção, notícia ou simples curiosidade de explorar. Para ela, o conceito de desaprender é polêmico e controvertido e poderia até indicar, erradamente, a idéia de esquecer o aprendido. Mas, a intenção é exatamente contrária. Desaprender é não outorgar mais o estatuto de verdade, de sentido ou de interesse a certos conhecimentos, mesmo sabendo que eles existem. Desaprender é animar-se a questionar verdades que conquistam o status de inquestionável e definitivo ao longo da história. Desaprender, também é também evocar o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada. Para ela, as artes, e em particular o cinema é central para esse esforço por espelhar diferentes dimensões, etapas da vida, aprendizagens diversas e nos lembrar emoções arcaicas conscientes e inconscientes, nos impulsionando a rever nossa própria vida. Fresquet

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observa ainda que o processo de aprender e desaprender supõe um terceiro

momento que é o tempo da re-aprendizagem. A reaprendizagem coloca em cena a processos coletivos de aprendizagem que se individualizam, sendo assim, re-aprender é algo mais que aprender. Esta é a fase em que entram em cena o uso da memória ou as estratégias utilizadas para rememorar conhecimentos, conseqüências sociais, assim como a disposição para estabelecer mudanças; aceitação das limitações; pulsão para a geração de novos desejos e conquistas. Nesse sentido, “re-aprender pode constituir uma outra forma de encontro com o cinema, dado que ele abre horizontes, nos mostra outras possibilidades de viver, de pensar e de ser.” Sem dúvidas, reconhecemos nessas teorias que se aproximam do cinema como dispositivo de alteridade, de arte e de “desaprendizagem” uma base consistente para motivar trabalhos que articulem cinema e educação. No entanto, sabemos que muito do que aqui se discute tem uma 58

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FRESQUET, Adriana. Cinema, infância e educação. Anped. GE: Educação e Arte /n.01. Artigo disponível em . Data de acesso: 30 de junho 2010. Esta é o princípio que rege o projeto CINEAD – Cinema para aprende e desaprender, desenvolvido e idealizado por Adriana Fresquet a partir de 2006.

aplicabilidade prática bastante limitada. Ao exigirmos que um professor perceba, se interesse e se integre a esta missão, é preciso que ele esteja preparado para tanto, e sabemos que isto não acontece de forma tão simples em nossa sociedade carente de políticas públicas de capacitação de educadores. Inês Teixeira (2009) assinala que “[...] para exercerem seu ofício, os educadores também devem ser educados, desenvolvendo capacidades cognoscentes, éticas e estéticas, lapidando sensibilidades humanas, para bem realizarem seu trabalho e responsabilidades face às novas gerações. E como assegurar-lhes a experiência estética e fina sensibilidade, para que as fecunde nas crianças e jovens, sem nos lembrarmos do cinema, quando este se apresenta como criação artística e fruição estética?” 60

Por este motivo, gostaríamos de acreditar que este texto pudesse ter mais validade para despertar o interesse ou talentos para “fazedores” de cinema e educação do que como uma sistematização acadêmica sobre o tema. Percebemos que o caminho a ser seguido é bastante tortuoso, por vezes tão difícil que desmotivador, mas não inacessível, é preciso desvendá-lo.

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TEIXEIRA, op. cit., p.4.

Capítulo III "... a criança é uma matéria-prima; é uma potência; múltiplas forças em movimento. O que com ela, a criança, temos de fazer - é entendê-la. Aprender com ela, a criança, que ensinar é fazer uma viagem" Cláudio Ulpian Lanterna Mágica: uma experiência prática em construção As ideias projetadas ao longo de todo o texto não são apenas fruto de pesquisa acadêmica. De certa forma, tudo o que foi dito até aqui faz parte de uma reflexão empírica. Por outro lado, todas os autores aqui discutidos, todas as reflexões e contribuições teóricas estão a serviço do desenvolvimento e aprimoramento deste projeto prático chamado Lanterna Mágica. Antes das devidas apresentações, convém lembrar que lanterna mágica diz respeito a um dos primeiros dispositivos técnicos que demonstram o interesse do homem pelo registro do movimento e, trazendo fundamentos da ciência óptica, torna possível a realidade cinematográfica. O princípio é inverso ao processo da câmera escura, é composto por uma caixa cilíndrica iluminada a vela, que projeta as imagens desenhadas em uma lâmina de vidro. Criada na metade do século XVII, recebeu uma definição bastante interessante: "Máquina que mostra, na escuridão, sobre uma parede branca, vários espectros e monstros horrorosos, de tal maneira que as pessoas que não lhe conheçam o segredo julgam que isto se faz por artes mágicas."

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Evidentemente nossa atual relação com as imagens em movimentos não as julgam mais como “espectros e monstros horrorosos”, mas ainda é possível dizer que a mágica continua. O aparato técnico chamado lanterna mágica tornou-se título da autobiografia do grande cineasta sueco Ingmar Bergman. Logo nas primeiras páginas, Bergman relata o episódio de sua infância em que trocou com o irmão a máquina de fazer imagens mágicas pelo preço de uns soldadinhos. Assim, em meio a detalhes de toda a sua vida, o título lanterna mágica assume a simbologia de uma vida dedicada às imagens, ganha, portanto, o tom poético-afetivo do qual nos aproximamos. O Projeto Lanterna Mágica surge em meio a afeições. Em Janeiro de 2007, durante o programa “Férias Nota 10”, foram realizadas na Unidade Municipal de Educação Infantil Prof. 61

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Fonte: http://www.ernestoleibovich.com.br/lanternamagica.htm Acesso: 22 de junho de 2010.

Írio Molinari, em Niterói-RJ, as primeiras atividades referentes ao projeto, não havia uma proposta definida, organização das ações, muito menos metodologia. Havia um envolvimento afetivo e uma vontade de levar para crianças com até 6 anos de idade, de um bairro carente de Niterói uma proposta mais interessante do que oficinas de corte e colagem e teatrinho, que não merecem ser desprezadas, mas têm urgência de atualizações. Mais próxima da realidade da escola por ser, então, funcionária administrativa da instituição, Flávia Neves, projeta a ideia e abre os caminhos para que, juntamente com outras alunas do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (e neste momento, o discurso impessoal da terceira pessoa não se aplica, já que é importante dizer que eu também estava à frente) pudessem se arriscar em realizar atividades audiovisuais para as crianças da escola e da comunidade. O fato de o projeto ser realizado em uma escola municipal não é uma escolha aleatória. O quadro que em que se situa a educação pública é bastante desfavorável, a falta de infra-estrutura, de acompanhamento pedagógico, o desgaste dos acordos políticos, das iniciativas governamentais que não têm continuidade não é novidade pra ninguém e clamam por mudança, reestruturação, vontade de fazer melhor. De maneira mais específica, a carência habitual em relação a iniciativas que insiram as novas mídias no processo educacional, principalmente nessas instituições tão desprestigiadas, motiva-nos a executar lá as oficinas de audiovisual, acreditando na importância de facilitar o encontro com o cinema de forma mais dedicada para crianças que, em geral, não teriam acesso a esse tipo de atividade dentro da sua realidade, além de estar colocando em prática a inclusão social tecnológica. A proposta inicial era facilitar e instruir a interação com a linguagem audiovisual de forma simples e criativa, através de atividades lúdicas e experimentais. A partir de então, tudo começou a ganhar proporções muito maiores e passamos a nos dar conta da importância do Lanterna Mágica. Ao longo de três anos de experimentações - que, na prática, concretizam-se com realização de oficinas para alunos de 4 a 6 anos, em encontros com cerca de 2 horas semanais e que envolvem todas as etapas de impulsão à criação cinematográfica, desde descobertas ópticas, exercícios do olhar, cineclube, produção, manuseio de equipamentos fotográficos, de gravação e edição de vídeo – fomos percebendo que há muito o que se pensar com relação a esta iniciativa. Por esta razão, não gostaríamos de elaborar neste último capítulo simplesmente um diário de bordo sobre uma experiência dentro da área de cinema e educação, pois acreditamos que desenvolver reflexões sobre esta ação pode ser muito mais enriquecedor para o próprio projeto. 43

Dessa forma, podemos dizer que os capítulos que antecederam a este estão “a serviço” da construção de conceitos para percebermos de que forma é possível abordar o cinema associado à educação. Com este último capítulo, estamos interessados em discutir, a partir de uma ação prática já existente, a importância e o impacto de iniciativas como essas na sociedade contemporânea. 3.1. Acesso, mediações e circularidade Como apontamos no segundo capítulo, entendemos que, ao falar sobre cinema e educação hoje em dia, devemos necessariamente pensar também em novas mídias, tecnologia e democratização. Devemos, sobretudo, dialogar com conceitos que refletem sobre as mediações destes dispositivos para termos a dimensão de que, ações como o Lanterna Mágica não se tratam de simples intervenções audiovisuais em escolas, mas de trabalhos que discutem questões culturais e políticas muito maiores. Jesús Martín-Barbero, em seu consagrado livro Dos meios às mediações (2003) e através da incorporação do conceito de hegemonia de Gramsci, propõe que a observação dos meios como aparatos técnicos estenda-se à sua implicação na experiência da vida cotidiana. Vale à pena dizer que, na concepção de Gramsci, a hegemonia se dá como um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem como os seus as classes subalternas. “E ‘na medida’ significa aqui que não há hegemonia, mais sim que ela se faz e desfaz, se refaz permanentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força mas também de sentimento, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade” 62. Pela compreensão de que a comunicação configura práticas sociais, o autor utiliza o conceito de mediação como a categoria que liga a comunicação à cultura. As mediações são os lugares que estão entre a produção e a recepção. Pensar a comunicação sob a perspectiva das mediações significa entender que entre a produção e a recepção há um espaço em que a cultura cotidiana se concretiza. Desta forma, Barbero busca reconhecer que os meios de comunicação constituem hoje espaços-chave de condensação e interseção de múltiplas redes de poder e de produção cultural. É importante ressaltar que, ao falarmos sobre espaços de formação assumindo o termo mediação, questionamos a ideia de que há mestres e aprendizes, que há um professor que domina conteúdos e alunos que vão intervir através deles. Somos todos sujeitos imersos em um contexto 62

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MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. P.117.

de globalização cultural, de multiculturalismo e de intertextualidade. Barbero acentua que os modos como circula o saber atualmente é uma das mais profundas transformações que uma sociedade pode sofrer, pois ele se dá de forma dispersa, fragmentada, fora dos espaços sagrados de educação. Sendo assim, entendemos que o processo educativo constitui-se como um espaço de conflitos, de crítica e de trocas e que é fruto de diversas ações simbólicas influenciadas, sobretudo, por conteúdos e tecnologias midiáticas, cada vez mais presentes no nosso cotidiano e acessíveis para indivíduos de todas as classes e idades. Em se tratando de cultura cinematográfica, precisamos estar atentos para o fato de que as facilitações aos meios abrem possibilidades de cidadãos comuns “munirem-se” de poder cultural, desmistificando este universo até então inóspito. Podemos elencar algumas das facilitações dos mecanismos de acesso e circulação no que diz respeito à produção de vídeos que, dentre outras reflexões, permitem-nos apontar a grande justificativa da ações do Lanterna Mágica. Alain Bergala (2008), apropriando-se da proposta literária de Vladimir Nabokov – grande escritor, analista da criação literária e professor – resume nossa hipótese de forma bem simplificada: o contato com o fazer cinematográfico faz a criança “tornar-se um espectador que vivencia as emoções da própria criação” (2008, p.35). Acreditamos que, ao aproximar-se dos dispositivos de criação, o indivíduo torna-se muito mais do que um espectador crítico, há um encorajamento para dissecar um universo de possibilidades infindáveis, este universo que pode lhe ser distante ou apresentado de forma superficial abre-se a descobertas mais aprofundadas. Observarmos a importância do desenvolvimento de dispositivos tecnológicos que proporcionaram o envolvimento com o cinema a partir de suportes não profissionais, de baixo custo. Alguns detalhes podem passar despercebidos pelo nosso cotidiano, mas têm expressivas implicações para uma formação cultural mais democrática. Dessa forma, podemos citar as câmeras digitais fotográficas e filmadoras handycam, que capturam em fitas mini-DV; ou modelos cada vez mais utilizados cuja gravação pode ser feita em cartões de memória potentes e barateados; ou ainda na mídia de DVD ou HDD (hard disk drive- que oferece memória suficiente na própria câmera). É claro que não podemos deixar de citar o celular, já que no Brasil a relação de portadores do aparelho é de cerca de 95 para cada 100 habitantes, atualmente são quase 184 milhões de acesso63. E mesmo sabendo que obviamente nem todos possuem câmeras integradas,

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Dados divulgados pela Anatel indicam que o Brasil terminou o mês de maio de 2010 com 183,7 milhões de celulares e uma densidade de 95,26 cel/100 habitantes. Fonte: http://www.teleco.com.br/ncel.asp. Data de acesso: de junho de 2010.

já é bastante expressivo imaginarmos essa possibilidade crescente nas mãos de usuários de todas as classes sociais. Como dispositivo de edição das imagens capturadas, podemos refletir sobre o uso do software livre64, por exemplo, que oferece programas de qualidade e que podem ser baixados pela internet. Além de existir essa liberdade, os usuários podem executar, copiar, distribuir, estudar, modificar e aperfeiçoar o software. É uma abertura dos meios operacionais que torna a cultura digital muito mais viável, e que nos leva a pensar em democratização. Embora os softwares privados ainda sejam dominantes, é de extrema importância perceber que existe um caminho alternativo a ser traçado, que independe dos altos custos por estabelecidos por grandes empresas. Além disso, devemos notar que a redes sociais tornam-se um meio cada vez mais importante para circulação dessa produção. Uma pesquisa global recente da Nielsen revela que o Brasil é o segundo país mais participativo e lidera o maior alcance em sites de relacionamento, cerca de 86% dos usuários de internet são ativos em redes sociais e blogs 65. Não falamos apenas em “distribuição alternativa” por meio de postagens de fotos e vídeos, falamos em trocas simbólicas, em circulação e circularidade da cultura. Neste ponto, torna-se fundamental dissecar um pouco mais o conceito de circularidade, proposto por Mikhail Bakhtin (1993) 66. Quando falamos em circulação, estamos nos referindo objetivamente ao sentido mais simples da palavra, a ideia de que a produção de cultura, em função dos meios e aparatos tecnológicos, transita com mais facilidade e independência. Mas ao falarmos sobre circularidade, que obviamente incluí a ideia de circulação, estamos nos apropriando do conceito formulado por Bakhtin, no livro em que discute sobre A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo o linguista e filósofo russo, a circularidade se dá como um movimento de infiltração dos produtos culturais entre os setores hierárquicos da sociedade, ou seja, pressupõe que, elementos da cultura popular interajam e passem a compor a cultura hegemônica, sendo que o mesmo acontece no em sentido inverso, portanto há troca contínua. Esse conceito permite problematizar a influência recíproca entre as manifestações populares e as hegemônicas, perceber a imprecisão de suas fronteiras, sugerindo, assim, um fluxo regular de permeabilidade entre elas. Permite abordar a cultura de 64 65

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Mais informações em http://www.fsfla.org/ - Fundação Software Livre da América Latina. Fonte http://readwriteweb.com.br, pesquisa publicada em 23 de junho de 2010, tendo como fonte a pesquisa ancorada no site da Nielsenem http://blog.nielsen.com/nielsenwire/global/social-media-accounts-for-22percent-of-time-online/. Data de acesso: 26 de junho de 2010. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo - Brasília: HUCITEC-EDUNB, 1993. passim

uma perspectiva social, privilegiando sua dimensão de complexidade e de diversidade de valores e sentidos. Partindo do princípio de circularidade, Bakhtin revelou a partilha de padrões e signos, a existência de uma intensa relação cultural de permuta contínua e permanente. A cultura transita em vários sentidos, estabelecendo incessantes interações. Desta forma, é fundamental estarmos atentos à dimensão que este conceito pode tomar em nossa cultura atual, fortemente desenvolvida e influenciada pelos meios tecnológicos que tornam mais viáveis as trocas simbólicas. Convém também notar que o fato de o Lanterna Mágica ser voltado para crianças com idade entre 4 e 6 anos revela que estamos considerando-as como produtoras de cultura, atores sociais, portanto, entendemos que elas fazem parte desta circularidade e que, estando mais próximas dos meios tecnológicos, podem expressar esta condição com muito mais propriedade. É importante levarmos em consideração que este reconhecimento não se dá de forma simples. Para chegarmos a esta conclusão muitas concepções anteriores delinearam-se em torno da figura infantil. Apesar das críticas com relação à visão histórica linear e por seus limites metodológicos, o historiador Philippe Ariès (1981) 67 ainda é referência incontestável. Através de seu consagrado livro História social da infância e da família, permite-nos entender que a nossa relação com a infância, assim como a família burguesa e a instituição escolar como a conhecemos hoje inaugurou-se na Modernidade.

Obviamente sempre houve crianças no mundo, mas a

infância não é uma categoria natural, trata-se essencialmente de uma construção sócio-históricocultural. Sabemos que na idade média não havia nenhum tipo de cuidado com a infância: “a criança tinha um papel social mínimo, sendo muitas vezes, consideradas no mesmo nível que os animais (sobretudo pela altíssima mortalidade infantil, que impedia um forte investimento afetivo desde o nascimento), mas não na sua especificidade psicológica e física, a tal ponto que eram geralmente representadas como pequenos homens, tanto na vestimenta, como na participação na vida social. Até os seus brinquedos são os mesmos dos adultos e só com a Época Moderna é que se irá delineando uma separação (CAMBI, 1999, p. 176) 68

Até o século XII não havia representações artísticas da infância, o que não deve ser simplesmente associado à falta de habilidade, incompetência ou desatenção. “É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (Áries, 1981, p. 17). O historiador revela que esta passagem da indiferença ou ignorância ou também a centralidade da infância se dá através de dois fatores: a escolarização das crianças e a criação da família conjugal burguesa como lugar de afeição. 67 68

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ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Traduzido por Dora Flaksman. Rio de Janeiro : Guanabara, 1981.passim. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP,1999. p. 176.

Em torno do século XVII inicia-se a discriminação entre o adulto e a criança, perdendo aos poucos a idéia de que são apenas seres humanos que ainda não cresceram. Neste período a Igreja e a percebem como um ser inocente, como puras criaturas de Deus, que precisam ter sua inocência preservada e precisam ser educadas, vigiadas e corrigidas. A partir do século XVIII, a infância vai ser objeto de políticas públicas que visavam preservá-la das e prepará-la para as atividades adultas. Sem dúvidas o capitalismo ergueu novas demandas e novas necessidades de produção econômica. Nesse contexto, a criança passa a ser percebida com centralidade e uma série de instituições passa a constituir o surgimento de uma nova categorial social, a saber, a família, a escola, os saberes científicos. Sabemos que atualmente são cada vez mais crescentes os trabalhos que abordam a infância pelas suas peculiaridades e, mais ainda, pelo reconhecimento enquanto participantes e produtoras de cultura. Alguns autores vão além e compreendem que a identidade da infância se manifestaria principalmente pela produção de cultura autônoma. Manuel Jacinto Sarmento (2004) estabelece quatro eixos que dimensionam a infância na sua autonomia cultural: “a interatividade (a aprendizagem entre crianças, que se produz criticamente em suas relações); ludicidade (a brincadeira e o brinquedo como fatores fundamentais da expressão e aprendizagem social); fantasia do real (investimento de ficção feito pelas crianças na realidade e que subverte a ordem para restabelecer outra, que elas possam compreender a partir de seus referencias); reiteração (supressão do tempo linear pela instauração de um outro no qual o recomeço sempre é: “era uma vez”, “de novo”).” 69

De acordo com Sarmento, são por meio desses eixos que as crianças interagem e aprendem, constituindo-se nessas relações como sujeitos sociais e não como indivíduos onde se deve inscrever sua identidade. Com relação ao Lanterna Mágica, vale dizer que estamos interessados em perceber este processo de construção por parte da infância, mas, por ora, a noção de que a infância é consagradamente mantenedora da cultura e de novos elementos simbólicos já é suficiente para darmos andamento ao trabalho. 3.2. A favor de novas práticas diante de antigos diagnósticos: a cultura da mídia É interessante observar que, excetuando Alain Bergala, todos os outros teóricos, professores e idealizadores de propostas que articulem cinema e educação discutidos ao longo de 69

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SARMENTO, 2004 apud CABRAL, FRITZEN, LEITE e GRASSIOTTO. Concepções de infância e imaginação: O menino maluquinho, o livro e o filme. Artigo Disponível em: . Data de acesso: 03 de julho de 2010.

todo este trabalho fazem parte da área de Educação, o que, sem dúvida, deve ser considerado como um importante gesto revolucionário. Entretanto este fato nos atenta para a despreocupação de pensadores de cinema que se ofereçam a este propósito. Obviamente sabemos que há muitos grupos e cineastas que se engajam neste movimento, na prática, mas em termos de contribuições teóricas deixam a desejar. Podemos apontar para a condição desprestigiada que a educação foi assumindo ao longo de sua história, o que faria com que pessoas ligadas a cinema não se interessassem em “perder seu glamour”. Mas é inegável que, se houvesse uma dedicação maior por parte dessas pessoas, teríamos um ganho expressivo neste campo de atuação, pois muitas vezes faltam a educadores conhecimentos técnicos, visões mais aprofundadas sobre determinadas especificidades cinematográficas e, principalmente, propostas que deixem muito claro as implicações dos meios de comunicação na nossa sociedade tendo a consciência crítica e íntima com relação aos meios. Seguindo na via inversa, ou seja, aumentando o time de comunicólogos ligados ao audiovisual e à arte cinematográfica indo ao encontro da educação, interessa-nos refletir sobre o trabalho realizado no Lanterna Mágica como um processo construção de novas práticas culturais diante do diagnóstico crítico que fazemos da mídia que estudamos. Douglas Kellner (2001), em seu livro A Cultura da mídia, esclarece objetivamente nossa principal hipótese: a de que atualmente é na mídia que encontramos a forma dominante de cultura e que isso precisa ser problematizado. Este pensador interroga a cultura contemporânea da mídia de modo crítico, realizando estudos de produtos que reproduzem os discursos sociais encravados no nosso cotidiano, principalmente no que diz respeito às produções norte-americanas que alcançam influências globais. O Lanterna Mágica está inserido num contexto periférico em que crianças de até 6 anos de idade, ou seja, na fase mais favorável para a criatividade, imaginação e construção da identidade intelectual, são limitadas pelo repertório dos pais e da escola de educação infantil pública e problemática, os quais dificilmente apresentarão elementos diferenciais capazes de modificar sua realidade e subjetividade. Família, professores, funcionários da escola e colegas de classe com a mesma situação são as principais referências desta criança, mas não é a maior. A mídia, sua grande companheira que, sem dúvida, recebe o maior tempo de sua dedicação diária, influencia todas as suas outras referências, estão todos sob a mesma “formação midiática”. É válido dizer que, neste processo de formação midiática, estamos considerando principalmente a mediação da TV. Nas investigações em relação à recepção televisiva infantil, 49

Guilhermo Orozco Gómez considera a interação da criança e a TV um processo complexo de aprendizagem informal que não ocorre somente pelo tempo que passam em frente da tela da televisão,. Para ele, “[...] a interação com a televisão não é um processo que se dá no vazio, no ar; é concreto. Manifesta-se, principalmente, através da família e, no caso das crianças, também na escola.” (GÓMEZ, 1998, p.78)

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. O vínculo com a TV é, portanto tecido e influenciado por

várias mediações: As mediações das crianças provêem de várias fontes: a mente, a TV mesma, tanto como meio técnico como uma instituição socializante, outras instituições socializantes, como a família e a escola, a cultura da qual são membros as crianças, o sexo, a etapa de desenvolvimento intelectual e afetivo, o lugar de origem e de residência e o estrato socioeconômico, etc. (OROZCO GOMEZ apud GOMES, 2000, p. 221).71

Não há como negar que a televisão infiltra-se na nossa realidade da maneira mais naturalizada possível, a TV está dentro de nossas casas fazendo parte do nosso cotidiano e de toda a rede social a que pertencemos. Num tom metafórico, ela é o cenário e, muitas vezes, é a grande protagonista, convergindo para si nossa atenção, nosso discurso, nosso lazer. Vivenciamos uma cultura dominada pela mídia, ela é de tal forma incorporada na nossa vida, que agenda nosso cotidiano e as relações sociais e, justamente por esta dimensão cada vez maior que vai conquistando que devemos estar atentos a sua atuação. Kellner procura evidenciar que há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a “urdir o tecido da vida cotidiana”, tramando seu tempo de lazer, modelando opiniões políticas e fornecendo o material com que “as pessoas forjam sua identidade.” (2001, p.9) 72 Preocupa-nos a possibilidade de entrarmos num campo maniqueísta, mas, se é preciso problematizar a atuação da cultura da mídia isso não deve ser feito com meandros. Dizer que a mídia forma e forja identidades pode parecer, por outro lado, que os espectadores desta mídia são apenas receptores que assimilam o que é veiculado, julgamento que evidentemente não fazemos, o receptor é sujeito ativo e quanto a isso não precisamos discutir. Mas é indispensável percebermos que a mídia é resultado de produções complexas, atentas aos elementos constitutivos da sociedade os quais serão utilizados por ela para estabelecer seu conteúdo com 70

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GÓMEZ, Guilherme Orozco. Uma pedagogia para os meios de comunicação: aprender a ensinar para transformar, eis as preocupações de Guilherme Orozco Gómez ao tratar do campo comunicação/educação. Entrevista de FÍGARO, Roseli Revista Comunicação & Educação, São Paulo, 12, 77 a 88, maio/ago, 1998. GOMES, Itania Maria Mota. Efeito e recepção: a interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre os medias. Salvador: Facom/UFBA, 2000, p. 221. KELLNER, Douglas. Cultura da Mídia. Bauru, EDUSC, 2001. p. 9

que se identifiquem a mesma sociedade, constituindo uma relação de fidelização. Isto é tecer meticulosamente estratégias de aproximação. Além disso, Kellner esclarece que a cultura da mídia é industrial; organiza-se com base no modelo de produção de massa e é produzida para a massa de acordo com tipos (gêneros), segundo fórmulas, códigos e normais convencionais. 73. Nesta lógica, é notório que, objetivando um alcance cada vez maior, existe por trás da grande mídia um pensamento comercial, em que os produtos criados estão interessados em atributos capitais. Por tudo isso, não podemos nos abster em dizer que há uma construção perversa sim. Kellner afirma que as narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos. Para este O filósofo norte-americano, há um processo da cultura da mídia chamada pedagogia cultural, na qual os meios “contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar - e o que não” (op. cit., p.10). Assim, induzem os indivíduos a identificarem-se com as ideologias, as posições e as representações sociais. Este quadro é percebido por muitos outros pensadores do campo crítico da comunicação. O próprio Orozco reflete sobre as práticas midiáticas, num nível mais geral, a partir da noção de “ritualidade”. Para ele, as práticas comunicativas geram hábitos e promovem regularidades que os atores sociais desenvolvem de maneira automatizada, na medida em que interiorizam comportamentos e modelos ou padrões das referências midiáticas. Neste quadro, “às vezes, o mais difícil de modificar são precisamente esses costumes coletivos e individuais frente às referencias informativas, [...] que sustentam o que aqui entendo como ritualidade comunicativa” 74

Este diagnóstico crítico da mídia, termo cunhado por Kellner, é essencial para entendermos a sociedade contemporânea e percebermos que a participação da mídia em nossa vida não se trata apenas de mais um dado constitutivo, ela é estrutural. Mas este diagnóstico funciona como um primeiro estágio. Estando criticamente conscientes das tessituras que envolvem a cultura da mídia, podemos avançar para o segundo estágio: a atuação que confronta, que pretende desenvolver outras formas de produção cultural. Nas palavras de Barbero (op. cit., p. 2), trata-se da “conversão da comunicação no mais eficaz motor de deslanche e inserção de culturas”. Esta passa a ser a justificativa ideológica que impulsiona o Lanterna Mágica. Doutora 73 74

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id, passim. GÓMEZ, Guilhermo Orozco. Comunicação Social e mudança tecnológica: um cenário de múltiplos desornamentos. p. 5

em Comunicação e Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Maria Aparecida Baccega afirma: Se queremos formar o cidadão crítico, temos que nos preocupar, portanto, com as relações que seremos capazes de estabelecer com os meios. Buscar compreender seus mecanismos possibilitará a cada um de nós, a nossos alunos, a todos os que educamos e somos permanentemente educados que consigamos, a partir do que nos chega editado, selecionar o mais adequado para a elaboração do novo, tanto no que se refere à atribuição de importância maior ou menor aos fatos que nos apresentam quanto à crítica do ponto de vista a partir do qual cada fato é apresentado. (1996, p.8) 75

Mais do que a noção de que é urgente transformar a educação, acreditamos também que seja preciso transformar a comunicação, na base, fornecendo elementos cognoscentes para indivíduos logo nos primeiros anos de vida a fim de que, além de adultos conscientes, aos poucos possam se transformar em articuladores, mediadores desta sociedade estruturada midiaticamente. Obviamente não acreditamos que, através das oficinas oferecidas, possamos fornecer capacidades técnicas para que crianças de até 6 anos tornem-se futuramente os grandes realizadores de cinema, não é este o objetivo. Estamos interessados em estabelecer - desde a primeira infância, por ser o momento mais propício para tanto, por mais que este trabalho inicial se dê de forma lúdica – as possibilidades de sujeitos comuns apropriarem-se criticamente das tecnologias da comunicação para subjetivar-se, aumentando sua visão de mundo. 3.3. Negociando a cultura É importante dizer que a metodologia do Lanterna Mágica está em constante formação e adaptação. Como se trata de uma proposta livre, sem obrigações curriculares, podemos dizer que atendemos a demandas. As atividades nunca acontecem exatamente como planejadas, passam pelo crivo de interesse das crianças e muitas vezes mudam completamente ao longo do percurso das duas horas do encontro. É justamente através dessas demandas que vamos construindo um plano de ação. Três momentos, entretanto, são fundamentais para o processo de envolvimento e andamento do trabalho, apesar de não serem executados de forma estanque. São eles: 1- Introdução às linguagens midiáticas. Além da incorporação de elementos do universo audiovisual ao espaço de educação formal, esta é a fase em que apresentamos às crianças que, durante aquelas duas horas conosco, haverá um trabalho onde assistiremos a filmes, 75

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BACCEGA , Maria Aparecida. Comunicação/Educação: Linguagem e História. São Paulo: Moderna/ USP, 1996. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1040-1.pdf

conversaremos sobre personagens, perceberemos seus jeitos, contaremos histórias, etc. Mesmo que isso se dê da maneira mais divertida possível, elas passam a entender que aquele encontro precisa de dedicação é, portanto, um trabalho. 2 – Construindo novos significantes. A criança sendo entendida como ator social, produtor de significados é também incentivada a produzir novos significantes. Nesta etapa, cada nova observação recebe atenção e importância. As crianças estão livres para imaginar, e a partir de então surgem interessantes personagens, conflitos, histórias, percepções. 3 - Produzindo e realizando. Nesta etapa os recursos técnicos dos equipamentos e seu funcionamento já são dominados pelas crianças. Ao longo dos encontros, eles passam a entender também o que é preciso para uma produção audiovisual, a noção de silêncio/ som, de distância, de enquadramento, de foco, de montagem das cenas, etc., portanto, já podem assumir funções e produzir peças. Devemos deixar claro que a atuação do Lanterna Mágica é recebida com muito entusiasmo pelas crianças. Em geral, as atividades são sempre executadas com motivação e interesse. Mas, sem dúvidas, o que mais as excita é o fato de ter nas mãos objetos dos quais elas são sempre proibidas de tocarem ou chegarem perto. Não podemos negar que, muitas vezes, é preocupante a excitação com que quinze crianças avançam em direção às câmeras fotográficas ou filmadoras, mas com o tempo aprendemos a lidar com isso e os ânimos também se acalmam. Vale dizer que este é nosso primeiro ponto de confrontação: acreditamos que permitir é criar. Guarnecer os pequeninos de recursos a tecnológicos para que possam se expressar e descobrir novos olhares já é o primeiro limite ultrapassado por eles. Além disso, o encantamento com as imagens que eles mesmos produzem é notório. Ao longo desses anos de experiência do Lanterna Mágica, percebemos que a relação com as crianças é completamente favorável, é como se estivéssemos realizando seus maiores desejos em que, ao seu entendimento, estudar significa ver filmes, descobrir as tecnologias é totalmente possível e ainda viabilizado. Assim há uma troca muito interessante e o trabalho é bastante produtivo. No entanto, nem tudo ocorre da maneira mais favorável, é preciso dizer que encontramos diversas barreiras pelo caminho e, neste sentido, somos levados a refletir e teorizar sobre o fato de estarmos negociando a cultura. O combustível que move o Lanterna Mágica é a certeza de que podemos apresentar novas matérias-primas para a constituição da identidade das crianças. Estes elementos dialogam com a cultura da mídia que eles já conhecem, através de produções televisivas, desenhos animados e até 53

tele-novelas, além dos filmes de grande circulação que passam a fazer parte do imaginário coletivo delas . Mas obviamente não paramos por aí. Procuramos diversificar o que oferece a “mídia doméstica”, através de filmes fora de circuito, curta-metragens nacionais e estrangeiros, produções de países que nem passam por suas cabeças existirem. Buscamos, preferencialmente, trabalhar com filmes que abordem a infância para criarmos identificação, entretanto somos surpreendidos com a recepção extremamente curiosa para com filmes de Charles Chaplin, por exemplo. Como já assinalamos, acreditamos na força do cinema e percebemos que, ao favorecer o “fazer cinematográfico” no cotidiano de crianças como um espaço de formação, estamos também apontando para uma percepção mais ampla desta força. Alain Bergala ressalta esta característica do cinema ao evidenciar a potência da experiência à qual nos convidam os melhores filmes, e argumenta citando Serge Daney, quando fala de filmes que “nos deu acesso a experiências diferentes das nossas, nos permitiu compartilhar, ainda que por apenas alguns segundos, algo de muito diferente”. (2008, p. 93) Mas esse encontro com o novo não se dá de forma simples. É preciso partir sempre do pressuposto que a cultura é um terreno de disputa e que a ampliar a diversidade cultural é entrar em confronto com um repertório já existente das crianças, da sua família, da instituição e dos próprios educadores, que muitas vezes são professores com formação pouco desejável, e principalmente, o repertório fornecido pela cultura midiática. O Lanterna Mágica nos permitiu observar que, se realmente acreditamos em ações como essas, é preciso capacitar e incentivar cada vez mais professores para tanto. Ou, de outra forma, é fundamental e urgente que os mesmos se abram ao novo, pois a relação estabelecida com eles é bastante problemática. De maneira geral, a equipe do Lanterna Mágica não é vista como pertencente à realidade da escola. O fato de não estarmos ali no dia-a-dia nos faz sentir como “forasteiros”, numa condição espaço-temporal limitada. Além disso, é nítido que há um desconforto diante da demonstração afetiva das crianças pelo projeto em detrimento às aulas tradicionais. Mas a grande questão esta na recusa de professores em se integrar à iniciativa: não há interesse ou, em outra hipótese, incomoda-os estar frente a frente a um universo que é desconhecido também por eles. Muitas vezes há questionamentos quanto à forma de atuação, à escolha dos filmes trabalhados no Lanterna Mágica, outras, há apenas indiferença. Da mesma forma, sabemos que há um confronto com a família das crianças que participam do projeto, existe grande preconceito com o novo e dificuldade de aceitação. 54

Não pretendemos elencar aqui todos os tipos de limitações que se interpõem ao projeto. Sabemos que eles vão sempre existir, mas preferimos contar como o fato de que a cultura é “um espaço estratégico na luta para ser espaço articulador de conflitos”, como ressalta Barbero (op. cit., p.117). Continuaremos com o propósito de que, abraçando a força e a alteridade fornecidas pelo cinema, podemos assimilá-lo com uma expressão artístico-cultural capaz de ampliar a subjetividade dos indivíduos e,com isso, as oportunidades de escolhas simbólicas sobre si, sobre o mundo que o cerca e sobre os sonhos que vão poder nutrir ao longo da vida, por isso sua ligação com a educação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Estamos certos de que o tema sobre cinema e educação não foi esgotado aqui. Fizemos uma primeira imersão nesta área de interesse a fim de buscar elementos para a composição de uma hipótese mais definida. Talvez, por isso, essas considerações finais funcionem mais como pauta para as próximas discussões. Nossa abordagem procurou compreender o cinema não apenas na sua dimensão instrumental para a educação, mas considerando-o como o próprio objeto da intervenção educativa. Acreditamos que as peculiaridades que o envolvem aquele cinema cujos fins não são meramente comerciais apontam para alteridade, para a desconstrução de códigos pré-concebidos, para a fruição, para ampliar o repertório cultural e para, finalmente, fomentar a capacidade inventiva das crianças. Procuramos evidenciar que a cultura audiovisual , sendo a mais próxima da maioria da população e das crianças, deve ser diversificada e é preciso nos aproveitar desta relação já estabelecida. Não existe um processo de formação necessário para ensinar as pessoas a assistirem filmes, programas de TV, é tão espontâneo na nossa realidade que nem nos damos conta. O contrário não acontece, por exemplo, com outras formas de expressão cultural como o teatro, a pintura. O universo audiovisual já está mais do que incorporado, então é preciso ampliar a diversidade e o entendimento que as pessoas têm sobre este meio para que possamos perceber o seu potencial educativo. Buscamos, com este trabalho, analisar e incrementar as propostas de incentivo a produção de atividades audiovisuais voltadas à educação infantil, pois entendemos que a produção implica a participação crítica e criadora de crianças. Sabemos também que os professores e as escolas necessitam de novos rumos, a educação formal cartesiana não suporta mais as demandas que surgem em meio às tecnologias, à cultura midiatizada, regida pelo espetáculo, é preciso, de fato, repensar de que forma a escola pode se apropriar destes novos saberes. A partir de um pensamento de Pierre Levy com relação à escola, podemos dizer, através de uma indução bastante óbvia, que, se atualmente as pessoas aprendem com suas atividades sociais, com a mediação da cultura midiática, e a escola perde progressivamente o monopólio da criação e transmissão de conhecimento, os sistemas públicos de educação podem ao menos tomar para si a nova missão de orientar os percursos individuais no saber.

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Identificamos criticamente que a cultura da mídia está preocupada em gerar pensamentos comportamentos e rituais agendados por ela para que as práticas vigentes sejam sempre estabelecidas, de alguma forma, por ela. Mas entendemos também que é possível resistir a significados dominantes criando sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se da cultura. Neste sentido, enquanto comunicólogos, conscientes das mediações, temos o dever de sistematizar ações capazes de orientar os indivíduos, o que pode ser muito mais produtivos se tomarmos como ponto de partida as fases iniciais de sua formação. A experiência na realização do Projeto Lanterna Mágica nos leva a perceber que é possível introduzir novos sentidos ao social e novos usos sociais dos meios. Mesmo com todas as limitações, já é notório que crianças muito pequenas fazem um novo recorte do mundo, estão mais atentas às possibilidades, aguçadas e interessadas na sua percepção. A inventividade ganha espaço nas produções que realizam através de vídeos e fotografias e a mágica do cinema ganha espaço na escola. As discussões aqui lançadas configuram a primeira parte deste trabalho, momento em que refletimos sobre a importância desta ação. Quando iniciarmos a fase seguinte, pretendemos refletir sobre o projeto enquanto proposta metodológica, desenvolvendo o que se chama de pesquisa-ação, criando nossas próprias hipóteses a partir do conhecimento prático. É importante dizer que as reflexões sistematizadas neste trabalho tendem a contribuir muito com a nossa atuação no Lanterna Mágica. Os questionamentos aqui apontados certamente vão se refletir nas propostas das oficinas, no dia-a-dia com os alunos e com a escola. Alguns preceitos também ficaram para trás, anteriormente tínhamos, por exemplo, a noção de que o propósito deste projeto era desenvolver uma “alfabetização audiovisual” e agora fica claro que isto era uma pretensão ingênua, uma vez que as novas gerações estão imersas no universo audiovisual desde que nasceram e não é preciso ensinar a ninguém a interar-se com ele. Além disso passamos a entender que as apropriações que cada indivíduo carrega consigo colocam em cheque o processo ensino-aprendizagem dominado pela figura do professor. Nas primeiras páginas deste texto, no prefácio, citamos Paulo Freire e a ele recorreremos para finalizá-lo: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo."

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