Cinema e Envelhecimento (Cinema and Aging)

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CINEMA E ENVELHECIMENTO: MODISMO OU TRANSFORMAÇÃO?

Palestra realizada no Teatro Eva Hertz, em Salvador, em 13 de maio de 2015, na abertura da Mostra de Cinema 60+ Envelhecer é uma arte. Jorge Felix1 Num evento como este, sobre cinema, embora aborde o envelhecimento, minha linha de pesquisa, acredito que seja necessário um esclarecimento do porquê de eu estar aqui e ter aceito fazer essa palestra de abertura da “Mostra de Cinema 60+ Envelhecer é uma arte”. Por que um cientista social, apesar de jornalista de formação, mas hoje professor, vem falar sobre o cinema. Não seria mais lógico um cineasta, um ator, um roteirista? A explicação é que sempre acreditei na arte como uma fonte para a ciência. Durante muito tempo, muito tempo mesmo, estou falando do século XVIII, início da Era Moderna, a ascensão da ciência racional, a hegemonia da razão, excluiu a arte como uma fonte de conhecimento. Atualmente, uma linha de intelectuais, pesquisadores, sociólogos, vem tentando estabelecer um novo paradigma na ciência. Esse “paradigma emergente” leva em conta a racionalidade estético-expressiva para a produção de conhecimento. Ou seja, o ponto de vista da criatividade, da qualidade, da relevância do tema, todo um tipo de conhecimento, enfim, que a ciência no seu apogeu na virada dos séculos XVIII para XIX, desprezou. Um dos nomes que constroem esse novo paradigma na ciência é o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que muitos aqui devem conhecer. Segundo Boaventura, a racionalidade estético-expressiva promove o “conhecimento emancipatório”, sem a rigidez das regras impostas pela

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Doutorando em Sociologia (bolsista CAPES), mestre em Economia Política e professor da PUC-SP (Cogeae) e da Fundação Escola de Sociologia e Política - SP. [email protected]

ciência racional moderna. Isto é, prioriza a estética-expressiva, a sensibilidade, promove o prazer na busca do conhecimento. 2 Então eu precisa fazer esse pré-âmbulo para dizer que, sim, nós podemos estudar e compreender os temas da sociedade por meio das artes. Pelo cinema, no caso. O envelhecimento humano, a longevidade, e o envelhecimento populacional, o fato de termos mais idosos na população podem ser estudados usando como fonte o cinema. * O Mundo e o Brasil passam por este momento na sua transição demográfica. É um fato inédito na História da Humanidade. Uma vitória, sem dúvida, da ciência moderna, que nos proporcionou – com a aplicação da tecnologia à medicina e ao sistema de produção – viver mais e melhor. O trabalho exige menos força física. Mas, por outro lado, a ciência também cobra um preço por isso, dos indivíduos e da sociedade. Esse casamento de ciência e artes, eu tento fazer no meu livro. Começo quase todos os 12 capítulos com um filme, uma peça de teatro, um romance. Alguns dos filmes que eu cito, à primeira vista, não falam sobre o envelhecimento. Mas eu procuro mostrar que só à primeira vista. * O tema do envelhecimento definitivamente invadiu as artes. Aliás, como muitos temas das Ciências Sociais estão invadindo, por exemplo, as artes plásticas. O professor Miguel Chaia, curador da Bienal de São Paulo, nosso professor na PUC-SP, fez uma palestra e chamou a atenção para esta curiosidade, para esse fenômeno. O quanto de Ciência Social podia ser enxergado na bienal de SP. *

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SOUZA SANTOS, B. Da ciência moderna ao novo senso comum. In: A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez Editora, 2000 (p. 55 a 117)

Um dos filmes que parecem não falar de envelhecimento mas fala e eu cito no meu livro é “Onde os fracos não tem vez”, dos irmãos Coen. Nesse filme, o que marca é o personagem do Javier Bardem, psicótico assassino em série. Tanto pelo personagem como pela interpretação brilhante do Bardem, vencedor do Oscar de melhor ator. O olhar do Bardem é tão perturbador durante o filme que poucos espectadores se lembram que o roteiro aborda, de fato, as inúmeras capacidades humanas e começa com o tema do envelhecimento, da vida que passa e dos valores morais e comportamentais sempre em plena transformação ou deterioração. O filme mostra que assistir a essa passagem do tempo é que é o envelhecer, quando você sente num certo momento de sua vida que as coisas mudaram muito. E vem aí aquela frase que muitos nem gostam de falar “no meu tempo...”. Pouca gente, principalmente os jovens, que viram o filme, vão se lembrar que as primeiras palavras que ouviram foram do poema do William Butler Yeats, que dá nome ao filme. “No country for old man”. Traduzido para “Onde os fracos não têm vez”. Mas, literalmente, seria “Não há país para os velhos”. O filme para mim foi menos o Bardem e muito mais o personagem do Tommy Lee Jones, o xerife que termina o filme aposentado. Ele é o olhar da história. Então para mim, o filme é sobre o envelhecer. Eu explico melhor isso no meu livro. A minha mulher, depois que leu, me disse que nunca havia feito essa leitura do filme. Ela leu mais a questão da violência porque é uma escritora de romance policial. Mas eu mostro no meu livro quantas questões contemporâneas sobre o envelhecer o filme aborda. O personagem do Tommy Lee Jones é um ser envelhecendo na compressão do tempo-espaço da pós-modernidade, onde tudo passa muito rápido, os valores sociais, o passado, até o que você tinha de conhecimento, se esvai no vento. 3 O personagem vive essa passagem para a sociedade líquida, como denomina o sociólogo polonês Zygmund Bauman. *

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HARVEY, D. Condição pós-moderna, Edições Loyola, 24ª edição, São Paulo, 2013. (págs. 257-276)

O tema do envelhecimento, portanto, está cada vez mais presente no cinema, no teatro, como chamou a atenção o Miguel Chaia sobre as artes plásticas e as ciências sociais. Seja em uma mensagem subliminar, menos explicita em filmes como “Onde os fracos não têm vez”, seja em outros que explicitamente falam do tema e que eu cito também no livro, que vocês irão assistir nessa mostra, como “Chega de Saudade”, “O outro lado da rua” entre outros. * Embora existam muitos filmes hoje sobre envelhecimento, e nós já vamos falar de outros, isso não é tão novo quanto parece. O David Harvey, um autor que eu gosto muito, geógrafo, pensador, professor da Oxford University, traz para a gente uma análise sobre “Blade Runner” e sobre “Asas do Desejo”, filmes de 1982 e 1987, que refletem muito sobre o envelhecimento numa perspectiva da ficção científica. Era, naqueles anos 80 do século passado, uma preocupação dos países em processo de envelhecimento.4 “Blade Runner”, muitos podem nem fazer essa associação, mas está ali uma reflexão sobre o envelhecimento. O filme, para quem não viu é sobre um pequeno grupo de seres humanos geneticamente produzidos chamados de “replicantes”. Esses “replicantes” estariam entre nós para enfrentar seus criadores e cabe a um determinado doutor lá, um “especialista”, e isso é importante, reconhecer essas criaturas e eliminá-las. Por quê? Porque ameaçam a ordem social. Esses “replicantes” foram criados já dentro de um contexto de envelhecimento populacional. Por quê? Porque a função deles era preencher um mercado de emprego escasso em mão de obra. Ora todos sabemos que o envelhecimento populacional leva a escassez de mão de obra. É o que estamos já vivendo no Brasil. A Europa tenta resolver com imigrantes, etc. Esse é um contexto econômico que podemos discutir depois. Não sei se vocês estão lembrados mas tem um personagem em “Blade Runner” que aparece lá no meio do lixo, onde punks e mendigos brigam, roubam entre si e os outros etc. Esse personagem, chamado 4

Idem, págs. 277 a 289. Capítulo 18 - “O tempo e o espaço no cinema pós-moderno”

Sebastian, um dos geneticistas do filme, vive isolado, lá no lixão, porque sofre de uma doença naquela longínquo 2019 imaginado pelo diretor Ridley Scott. Que doença é essa? “Decrepitude acelarada”. O mais curioso não é apenas mostrar essa tendência que estava no pensamento subliminar de isolamento do idoso no futuro. Mas o que me chamou a atenção quando li o resumo do Harvey, no seu livro “Condição Pós-Moderna”, onde ele analisa “Blade Runner” com outro propósito, é que ele lembra que esse personagem vive lá no lixão cercado de bonecos mecânicos que conversam com ele, fazem companhia, interagem de várias formas com aquele “idoso”. Vejam vocês como em 1980 já estava na mente de um roteirista toda a chamada gerontechnology, gerontecnologia social, de hoje. O auxílio da tecnologia para cuidar de idosos. O grande núcleo da Economia da Longevidade (ou Silver Economy) já está em “Blade Runner”. Não à toa, atualmente, vemos a Microsoft, a Apple, a Toshiba, o Google, a Siemens como as empresas mais envolvidas no chamado “ecossistema da Economia da Longevidade” no mundo e também no Brasil. * É apenas um exemplo como ciência e a expressão estética-expressiva podem ser compatíveis. É como diz a professora Marisa Borin, socióloga da PUC-SP, é uma “ligação dos saberes”. O saber do cinema, da sensibilidade do roteirista, do diretor, e o da pesquisa do acadêmico, no caso, do cientista social ou do gerontólogo. Muitas vezes essa visão do cinema e de outras artes se antecipam ou nos ajudam a “complexificar nossa reflexão sobre os conceitos com os quais operamos de maneira a torná-los compreensíveis de um modo mais sensível”. 5 Um dos autores que eu mais cito, por exemplo, é o Philip Roth. Norte-americano, recentemente declarou-se aposentado da literatura. Um capítulo de livro que escrevi sobre previdência, depois de ler muita coisa, desde 1995, nada encontrei melhor para citar do que um trecho que reproduzi do livro dele “A marca humana”. É o diálogo de dois personagens, uma jornalista francesa e um economista liberal, sobre previdência. Ele conseguiu resumir de forma clara, simples e precisa um 5

Debert, G. G. “A vida adulta e a velhice no cinema”, Revista da USP, nº 42, 1999.

debate econômico global. Ele resumiu em uma fala da personagem a tese da assimetria de informação no mercado financeiro que deu o Prêmio Nobel de Economia para o Joseph Stiglitz, um famoso professor da Universidade de Columbia. O livro virou filme e se chama “Revelações”. Mas os livros do Roth para o cinema são muito mal adaptados. * No meu livro, eu falo sobre a questão também das mudanças de comportamento e o filme “Alguém tem que ceder” estava recém lançado e eu já havia entregue os originais para a editora. Ele não é citado. Mas é um filme que também antecipa discussões ainda pouco testadas pela academia ou pela ciência. O quanto o progresso técnico, no caso o Viagra, altera as relações pessoais na velhice? Para o bem e para o não tão bem. E eu soube ontem que Salvador vive uma epidemia de Aids entre os idosos, muito pelo uso do Viagra. * Na minha opinião, essa complexidade é mostrada de melhor forma no “Hotel Marigold”, que acaba de estrear o número 2. No número 1, gostei porque cada personagem abordava uma grande questão do processo do envelhecimento humano e do envelhecimento populacional; que são fenômenos distintos, como já disse. Está ali, inclusive, uma grande transformação que a Europa está vivendo que é a “exportação de idosos”. Embora o filme mostre tudo de uma forma bastante romântica. Ele tangencia esse problema de os idosos estarem deixando os seus países, na Europa Mediterrânea, em busca de uma vida mais barata na Ásia e no Leste Europeu. Poderíamos citar aqui muitos filmes, “Quarteto”, “Chega de Saudade”, todos que vocês vão assistir, nessa ótima curadoria, mas também alguns mais antigos, como “Chuvas de verão”, com a interpretação maravilhosa do Jofre Soares, na famosa cena do pijama. * Mas para concluir, possibilitando tempo para perguntas e debate, eu quero apenas refletir sobre a “onda” da velhice no cinema. O tema do envelhecimento, realmente, está muito em moda. Isso é bom, por um lado,

como eu disse de a manifestação estético-expressiva poder levar conhecimento sobre o tema para um público amplo. A professora Guita Debert, ao escrever sobre velhice e cinema, chama a atenção para o fato de o cinema quebrar o silêncio sobre o envelhecimento e eu diria ampliar a visibilidade do envelhecimento. Com todas as suas conquistas para aqueles que envelhecem bem e todos os desafios para os mais dependentes. Aí eu gostaria de provocar sobre um tema um pouco batido, gasto, mas que é inevitável: o poder transformador da arte. Por isso dei o título dessa fala de “Cinema e envelhecimento: modismo ou transformação?” Num país como o Brasil, com tamanha desigualdade social, um envelhecimento cada vez melhor, mas ainda cheio de riscos, sociais, econômicos, o que a arte pode nos ajudar a mudar essa realidade? O que as imagens, os diálogos que vocês virão e ouvirão nessa mostra podem tocálos para fazê-los agir, como cidadãos, em nome da velhice de vocês mesmos. De todos nós. Eu sempre fiz teatro, escrevo, e temos que sempre ter isso em vista. O cinema está, sem dúvida, cumprindo um grande papel ao abordar o envelhecimento. Nós precisamos é pensar, refletir, depois que saímos da sala escura, o que aquilo tudo nos quer dizer, o que aquilo tudo nos modifica na cobrança como cidadão, na atitude com filhos e netos, e para a nossa própria velhice. O quanto de tolerância, de resiliência, de mudança libertária, esses filme me transformou? É preciso fazer essa pergunta. A comparação dos filmes, da abordagem, das antigas produções e das novas, também nos ajudam a refletir sobre o novo envelhecimento e a nova forma que o mundo, principalmente nas produções estrangeiras, claro, está pensando os desafios de sua dinâmica demográfica. Eu posso dizer a vocês que a Europa e os Estados Unidos hoje pensam o envelhecimento populacional como uma grande oportunidade de desenvolvimento econômico, dentro do contexto da Economia da Longevidade. Nós no Brasil ainda estamos vendo apenas a tal “bomba relógio” da previdência, uma imagem carregada de ideologia. Quando um jovem indiano abre um hotel para receber idosos e, aos poucos há uma convivência intergeracional, ele quer mostrar as muitas

possibilidades do envelhecimento. Claro que o filme “Amor”, que eu não poderia deixar de citar por seu um ícone, mostra um outro lado. Não devemos ocultá-lo. Devemos olhar os dois lados. O bom e o inevitável. Sem transformar a velhice, ou seja, a vida humana em um filme de terror. Bons filmes e muito obrigado.

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