Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder

May 30, 2017 | Autor: Cassio Brancaleone | Categoria: Cinema, Teoria Crítica Social
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Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder

Cinema e Sociedade Resistências

e

jogos de poder

O rganizadores F ábio F eltrin de S ouza C ássio B rancaleone

Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco Morel Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2016 Fábio Feltrin de Souza; Cássio Brancaleone (Orgs.) Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

So895 Souza, Fábio Feltrin de; Brancaleone, Cássio Cinema e Sociedade: Resistência e jogos de poder/Fábio Feltrin de Souza; Cássio Brancaleone (Orgs.). Jundiaí, Paco Editorial: 2016. 236 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0143-3 1. Cinema 2. Industria cultural 3. Sociedade 4. Educação I. Souza, Fábio Feltrin de II. Brancaleone, Cássio. CDD: 384 Índices para catálogo sistemático: Filmes

384.8

Equipamentos e materiais visuais

371.335

Representações públicas

791 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal

Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected]

Sumário Introdução

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Capítulo 1.

Em caso de incêndio, deixe queimar

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Cassio Brancaleone Capítulo 2.

Cinema e História: Edukators, de Hans Weingartner

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Gerson Wasen Fraga Capítulo 3.

Vida selvagem: escritos sobre liberdade, aventuras amorosas e contracultura

53

Éverton de Moraes Kozenieski Capítulo 4.

A crise da Sociedade Individualista e seu duplo em o Clube da Luta

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Daniel de Bem Capítulo 5.

Entre dois mundos: uma análise do filme Histórias Cruzadas

93

Daniela Sbravati Capítulo 6.

Twelve Years a Slave: usos historiográficos e pedagógicos do filme Marcelo Téo

113

Capítulo 7.

Pensar historicamente a partir de Blow-Up: imagens, reminiscências e o olhar historiográfico

135

Rafael Hansen Quinsani Capítulo 8.

A amizade como A Grande Beleza: Foucault, Heidegger e Paolo Sorrentino

159

Atilio Butturi Junior Capítulo 9.

Potências da carne em XXY

183

Fábio Feltrin de Souza Capítulo 10.

Sobre larápios e espertezas em Nueve Reinas – reflexões sobre a Argentina da virada do século XXI

201

José Alves de Freitas Neto Referências

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Introdução Não são novas no campo das ciências humanas as reflexões que buscam encontrar intersecções entre cinema, educação e crítica social. Desde pelo menos os desdobramentos das leituras promovidas pelos mais proeminentes representantes da Escola de Frankfurt, o enquadramento do cinema como parte dos dispositivos criados pela, assim chamada, Indústria Cultural parece ter superado a antinomia entre reprodutivismo social alienante e ingênuo entretenimento individualizante. Embora ambos os aspectos certamente estejam presentes tanto na dimensão do consumo dos ditos artefatos culturais, quanto na própria participação de indivíduos e coletividades em processos que impliquem em uma práxis social autorreferenciada como “cultural”, a complexidade, a multidimensionalidade e a dinamismo daquilo que contemporaneamente entendemos por cultura nos impele a buscar correlações cada vez mais transversais entre ela e os diversos elementos que constituem a vida social. Se não é mais recomendável defender qualquer tipo de “unidade de análise transcendental” como ponto de apoio irrefutável de qualquer teoria, tampouco se pode aceitar o lugar fácil das generalizações que desaguam nas assertivas do tipo: “tudo é cultura” (Wagner, 2010). Em outras palavras, o exercício hermenêutico e mesmo epistemológico em questão reivindica a reflexividade e a recursividade das opções teóricas como parte de um repertório de estratégias heurísticas que desvelem conexões possíveis entre determinados fenômenos, visando alcançar a compreensão possível de determinados aspectos ou ângulos de uma realidade situada. Nesse sentido, o cinema é um recurso passível de oferecer fontes inesgotáveis para a reflexão social, histórica e filosófica sobre a cultura moderna. Seja como um dos produtos mais bem delimitados da mencionada indústria cultural, como expressão narrativa de valores dominantes ou dissidentes, como documen-

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to ou registro de época, como referência imagética de representações estéticas, entre outros aspectos. Ainda mais: se o diagnóstico de Guy Debord sobre a espetacularização da sociedade está correto, o cinema e toda a sua cadeia produtiva praticamente tomou o lugar ocupado outrora pela indústria moderna no campo da produção (de sentido) das mercadorias1. Do ponto de vista dos potenciais usos do cinema como ferramenta na educação, existe um conjunto razoável de recomendações, metodologias e experiências (Napolitano, 2005; Duarte, 2002; Azzi, 1996; Figueira, 1995; Franco, 1992; Ferro, 1976) que buscam superar o cômodo artifício do “filme-tela-de-fundo” ou “isso foi o que aconteceu durante tal ou qual episódio histórico”, para se debruçar sobre estudos interdisciplinares de determinados temas mobilizando reflexões a respeito do lugar das narrativas sobre os processos sociais, suas distintas formas de recepção, passando por indagações sobre gêneros de linguagens e genealogias imagéticas, sem com isso emular um debate hermético de especialistas e críticos de arte. Podemos dizer que estas questões em grande medida inspiraram um grupo de docentes dos cursos de ciências sociais e história da Universidade Federal da Fronteira Sul — campus Erechim, a elaborar no ano de 2011 o projeto de extensão “Cinema e Sociedade”. Para além do uso do cinema em sala de aula (instrumento muito explorado por alguns de nós), nos interessava promover um espaço de intercâmbio entre o público interno e externo da universidade. O projeto, realizado em ciclos temáticos anuais, teve sua terceira edição no ano de 2014, sob o título de Resistências e Jogos de Poder. E a partir dessa última experiência, mas sob a atmosfera das anteriores, decidimos realizar uma pequena 1. Assim avaliava o assunto o teórico situacionista: “O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por ‘coisas supra-sensíveis embora sensíveis’, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência” (Debord, 2002: p. 28).

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compilação com os materiais produzidos como referência textual dos filmes assistidos e debatidos, contando com a participação de autores convidados que comungam de preocupações afins. Em referência ao III ciclo de exibições e debates de nosso projeto, Resistências e Jogos de Poder se tornou também o nome desta obra que o leitor agora tem em mãos. O tema nos foi suscitado diante da necessidade e desejo de situar determinadas obras cinematográficas, apelando às mais diversas conexões de sentido, no âmbito de um debate mais vasto sobre relações de poder, figurações hierárquicas e processos de dominação no mundo sistema-mundo capitalista (Wallerstein, 2005). Ainda que, quando se trata de assuntos dessa natureza, numa era de “pensamento único”, a remissão direta seja às chamadas “metanarrativas”, nossa perspectiva problematiza o monopólio exercido pelas éticas (e óticas) de libertação exclusivamente classistas que tomaram conta do século XX, deslocando o problema da resistência tanto para níveis mais individualizados ou subjetivos, quanto para recortes étnicos, de gênero, de orientações sexuais, etc., mas sem, obviamente, desprezar o lugar do trabalho subalternizado nas sociedades capitalistas (o que inclui os “capitalismos de Estado” do entendido campo do “socialismo realmente existente”). A alusão aos processos de resistência pode insinuar a entoação de um velho mantra do que é periférico, pequeno, fragmentado, frágil, residual e mesmo disfuncional no mundo contemporâneo, especialmente ao se converter na gramática de uma esquerda mais ou menos radical sem pais ou faróis iluminando caminhos. De fato, para as perspectivas dominantes, e mais ainda, para as abordagens existentes nas ciências humanas colonizadas pelas perspectivas dominantes, tudo o que não está no coração do que há de mais dinâmico do mercado ou do Estado tal como o concebemos é marginal, inócuo, destituído de valor como força ou potencial político transformador. A questão, que talvez os artigos incluídos neste livro possam contribuir para pensar, é que já se encontra em curso leituras que, ao privilegiar outros lugares te-

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óricos (éticos e epistêmicos), podemos conferir inteligibilidade a estes traços e dimensões que chamamos por resistência, permitindo sua figuração não mais como fragmentos e “pontos sem nós”, mas constelações com corpos celestiais das mais distintas magnitudes, mas que nem por isso deixam de cumprir seus papéis na epopeia cósmica de construção de novas subjetividades, sociabilidades e modos de vida (Camara et al., 2015; Chaguaceda & Brancaleone, 2012; Hardt & Negri, 2005; Deleuze & Guatarri, 1995). Certo que de pouco vale “mapear” as resistências e ensaiar enxergá-las sob outro ângulo sem compreender melhor as estruturas e dinâmicas de dominação. Aliás, a própria ideia de “jogos de poder”, parte de nosso guarda-chuva temático, evidencia essa preocupação de fundo (em grande medida aprendida com Foucault) em entender as “estruturas de dominação” não apenas como circuitos fechados e unilaterais que funcionam apenas de cima para baixo, mas como parte de uma ampla teia de relações sociais que, se pode ser cristalizada ou sedimentada em determinadas instituições, não deixam de operar com força e efetividade nas mais diferentes regiões ou coordenadas da vida social, de modo dinâmico, processual e multirrelacional. Ao longo dos ciclos esperávamos provocar em nosso público uma atmosfera de inquietação, questionamento e reflexão que pudesse potencializar um exercício de apropriação e mesmo ressignificação de categorias teóricas, conceitos e ideias, passíveis de estabelecer pontes entre o conteúdo/forma dos filmes, aspectos do debate acadêmico e a vida cotidiana. O livro, pois, simboliza um pequeno aspecto desse esforço coletivo, ainda que resulte na contribuição autoral daqueles que assinam os artigos. Os dez artigos que compõem essa compilação são bastante heterogêneos e representam uma diversidade de leituras e reflexões que puderam ser realizadas a partir do tema em questão, evidenciando ainda a presença de distintas visões sobre a relação entre cinema, educação e crítica social. A temporalidade das obras

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cinematográficas comentadas compreende um período largo que vai de 1966 a 2013, abrangendo ainda produções de quatro países: Alemanha, Estados Unidos, Itália e Argentina. A maioria dos filmes aqui listados foram objeto de discussão nos espaços públicos do projeto, mas para fins dessa publicação, estendemos o convite a outros autores e incluímos filmes que não constavam no cronograma original, com o intuito de enriquecer e ampliar o material. No artigo “Em caso de incêndio, deixe queimar”, Cassio Brancaleone explora a inquietação política de fundo presente no filme O que fazer em caso de incêndio? (Was tun, wenns brennt?, Alemanha, 101min, 2001), tentando conjugar uma reflexão que dê conta dos dilemas éticos da violência política revolucionária e o problema da aquiescência e conformação social em sociedades profundamente hierarquizadas e desiguais. Em “Cinema e História: Edukators, de Hans Weingartner”, Gerson Fraga analisa o filme Edukators (Alemanha, 127min, 2004), lançando mão de uma perspectiva histórica que situa comparativamente Alemanha Ocidental de 1968 e a Alemanha pós-unificação neoliberal de 30 anos depois, situando nesses marcos, os (não) lugares da rebeldia e subversão intergeracional. A contracultura e liberdade sexual é o locus privilegiado por Éverton de Moraes Kozenieski em “Vida Selvagem: escritos sobre liberdade, aventuras amorosas e contracultura”, ao abordar o filme Das Wilde Leben (Alemanha, 114min, 2007), enquanto Daniel de Bem pondera as relações entre violência, anomia e civilização ao analisar Clube da Luta (Fight Club, EUA, 139min, 1999) em “A crise da Sociedade Individualista e seu Duplo em o Clube da Luta”. Daniela Sbravati se ampara nas pistas deixadas por Histórias Cruzadas (The Help, EUA, 146min, 2011) para problematizar questões raciais, de classe e gênero em “Entre dois mundos: uma análise do filme Histórias Cruzadas”. Embora a questão racial também seja central em 12 anos de Escravidão (12 Years a Slave, EUA, 134min, 2013), Marcelo Téo se propõe a analisar as impli-

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cações do debate sobre a escravidão através das diversas formas de diálogo entre a história e o cinema em “Twelve Years a Slave: usos historiográficos e pedagógicos do filme”. Exercício similar também é desenvolvido por Rafael Hansen Quinsani no artigo “Pensar historicamente a partir de Blow-Up: imagens, reminiscências e o olhar historiográfico”, tendo o filme Blow up (Itália, 111min, 1966) como foco do debate. Em “A Amizade como A Grande Beleza: Foucault, Heidegger e Paolo Sorrentino”, Atilio Butturi Junior se aventura no campo da estética da existência ao problematizar a amizade e as relações dos sujeitos com o mundo a partir da ética e da noção de preocupação/cuidado consigo, compreendidas no processo de autoconstituição e de produção de si, tendo a película A Grande Beleza (La grande bellezza, Itália, 141min, 2013) como cerne da reflexão. Por sua vez, questão vizinha à dimensão da estética da existência é abordada no artigo “Potências da Carne em XXY” de Fábio Feltrin de Souza, sobre o filme XXY (Argentina, 86min, 2007), no qual o autor buscar amparar uma linha de reflexão que articula os pontos de encontros e desencontros entre sexo, gênero e identidade, e seus desdobramentos em processos de subjetivação que podem ser conduzidos como modos de resistência e linhas de fuga aos dispositivos de domesticação e padronização de corpos. A publicação é encerrada com o artigo “Sobre larápios e espertezas em Nueve Reinas — reflexões sobre a Argentina da virada do século XXI”, referente ao longa-metragem Nueve Reinas (Argentina, 114min, 2000). Nele José Alves de Freitas Neto aborda o paradoxo de um cinema sem pretensão de expor os meandros do contexto social e oriundo de uma tradição publicitária que se torna uma referência indispensável sobre crise argentina de 2001 e as consequências do projeto neoliberal. Em suma, os filmes comentados nos respectivos artigos dão conta de um universo extenso, diverso e heterogêneo abarcando o macrotema Resistências e Jogos de Poder. Os leitores se verão

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confrontados com problematizações de várias ordens que tangenciam questões relativas à contracultura e ao engajamento geracional, às políticas de subversão, aos processos de subjetivação e configurações identitárias, à atualidade dos debates sobre classe, raça e gênero (especialmente quando entrecruzados), aos impactos do neoliberalismo e às relações entre cinema e história. Esperamos que a leitura do material seja encorajadora para multiplicar os debates e reflexões, imprescindíveis para o nosso novo tempo do mundo. Cassio Brancaleone Erexim, julho de 2015

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Capítulo 1. Em caso de incêndio, deixe queimar Cassio Brancaleone1

Introdução O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em seu livro Violência (2014, p. 24), relata uma anedota sobre um oficial alemão que durante a II Grande Guerra visitou Picasso em seu ateliê em Paris. Atormentado com o “caos” vanguardista presente no quadro Guernica, o militar teria se dirigido ao pintor: “Foi você que fez isso?”. Com calma, Picasso teria replicado: “Não, isso foi feito por vocês!”. No bojo da obra, a pequena história é utilizada ao modo zizekiano como analogia às críticas feitas pelos liberais ou demais intelectuais de extração ideológica, digamos, “moderada e eivada em responsável prudência”, em relação aos posicionamentos das frações radicais ou revolucionárias da esquerda por sua simpatia ou adesão direta a revoltas, rebeliões sociais ou demais processos de ruptura que implique no uso ou desencadeamento de violência, cujas consequências, muitas vezes, culminariam em repressão generalizada e/ou “desestabilização das instituições democráticas”. “É isso que vocês querem?”, indagam reiteradamente os primeiros. A resposta da esquerda radical, seguindo a réplica ao questionamento feito a Picasso, não deveria ser outra: “Ora, isso [as explosões de violência] é o resultado da sua política!”. Podemos dizer que o filme  O que fazer em caso de incêndio? (Was tun, wenns brennt?, Alemanha, 101min, 2001)2 é um 1. Professor de sociologia da Universidade Federal da Fronteira Sul e pesquisador do Grupo de Pesquisas Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes. 2. A ficha técnica do filme pode ser consultada em . Acesso em: 11 jun. 2015.

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