Cinema em Pernambuco dos primeiros tempos aos anos 1970 – Um percurso

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Cinema em Pernambuco dos primeiros tempos aos anos 1970 – Um percurso Luciana Corrêa de Araújo In: José de Aguiar; Julio Bezerra; Marina Pessanha. (Org.). O novo cinema pernambucano. 1ed.Rio de Janeiro: Conde de Irajá Produções, 2014, v. 1, p. 12-17.

No Recife, o século do cinema começou com as projeções do Cinematógrafo Lumière, em janeiro de 1900, exibindo diversas vistas animadas. A primeira sala fixa talvez tenha sido o Cinema Pathé, inaugurado em 1909. Alguns anos depois, o mesmo cinema estaria exibindo filmes com assuntos locais, como Procissão dos Passos em Recife (1915), da empresa pernambucana Martins & C. Nos anos seguintes, a produção de filmes naturais (de não ficção) fica por conta de firmas locais e de cinegrafistas itinerantes. Percebe-se que gradualmente vai se intensificando a atividade e a circulação de cinegrafistas pela cidade, o que faz circular também equipamentos, informações, experiências. E os espectadores recifenses passam a ter cada vez mais oportunidades de ver sua cidade e também eles mesmos nas telas. Já em 1917, uma nota do jornal A Província explicava que a extraordinária assistência reunida para uma partida de futebol não tinha como principal interesse acompanhar a disputa, pois se tinha como certa a vitória do América sobre o Torre. O público fora ao campo “muito mais para se ver nos filmes do sr. Leopoldis do que para apreciar a partida”, garantia o jornal (16 maio 1917, p.2). Poucos dias antes, Leopoldis havia exibido seu PernambucoJornal, no cinema Moderno, um cinejornal com imagens de parada militar, meeting, missa, sessão de domingo no Moderno, entre outros aspectos. Os cálculos publicitários anunciavam: “15.000 mil pessoas cinematografadas em Pernambuco passarão na tela do Moderno” (A Província, 10 maio 1917, p.8). Ao que parece, outras tantas esperavam se ver no Pernambuco-Jornal n.2 (1917), que ira trazer imagens do jogo de futebol e também do cangaceiro Antônio Silvino. O artista e produtor italiano Leopoldis, por sua vez, teria uma longeva carreira em Porto Alegre, a partir dos anos 1930. A partir de 1920, há registro de naturais realizados pelo cinegrafista pernambucano A. Grossi, pela produtora Comelli & Ciacchi Films (provavelmente dos sócios Carlos Comelli, italiano que se fixou em Porto Alegre, e Victor Ciacchi, cinegrafista com maior

2 atuação no Rio de Janeiro) e pelo mineiro Aristides Junqueira. É durante a gestão do governador Sérgio Loreto (1922-1926) que a produção de filmes naturais recebe maior estímulo, se beneficiando de uma estratégia política de modernização conservadora com forte investimento na propaganda. Destaca-se neste momento o trabalho da PernambucoFilm, dos sócios Ugo Falangola e J. Cambieri, que realiza dois longas-metragens para divulgar as principais obras do governo Loreto: Recife no Centenário da Confederação do Equador (1924) e Pernambuco e sua Exposição de 1924 (1925). Uma seleção de cenas dos dois filmes resulta em Veneza americana (1925), cujo cuidadoso trabalho com enquadramentos, movimentação de câmera e uso da cor fica evidente na cópia restaurada em 2007 pela Cinemateca Brasileira. Em meio à produção de naturais, os jovens Gentil Roiz e Edison Chagas, este com alguma experiência no laboratório de João Stamato, no Rio de Janeiro, se juntam para realizar um filme de enredo, Retribuição, feito em condições amadoras. Ao estrear em março de 1925, Retribuição é acolhido com palavras de estímulo na imprensa e atrai grande número de espectadores, curiosos para assistir a uma produção local de enredo. O filme permanece doze dias em cartaz, percorrendo um circuito que tem início no Cinema Royal e segue por mais outras cinco salas. A repercussão inesperada e tão positiva impulsiona a produção de mais filmes e o surgimento de outras produtoras. Até 1930, haverá uma significativa produção de filmes em Pernambuco. Não só se produz como também se consegue exibir mais de quarenta títulos, entre longas e curtas, filmes naturais e de enredo. Das tantas produtoras que anunciam sua criação nos jornais, pelo menos doze chegam a lançar algum filme. Recife torna-se um dos principais focos de produção no país, especialmente nos anos de 1925 e 1926. Há um gradual movimento de profissionalização, sobretudo na Aurora-Film, de Roiz e Chagas, que passa de um empreendimento em bases amadoras, bancado por dois jovens sem recursos, a uma empresa que tem como sócio principal o comerciante João Pedrosa da Fonseca, responsável por injetar capital no negócio, conferindo lastro econômico e prestígio social à produtora. A partir de 1927, porém, volta-se a esquemas mais amadores, com os próprios realizadores bancando as produtoras e com menos lançamentos de filmes de enredo. Em 1930, entram em cartaz os dois últimos longas de enredo pernambucanos do período silencioso, No cenário da vida (Luis Maranhão, 1930) e Destino das rosas (Ary Severo, 1930), lançados

3 no mesmo ano em que o grupo Severiano Ribeiro trazia o cinema sonoro ao Recife. A nova e dispendiosa tecnologia do cinema sonoro vem se juntar a um panorama de produção já enfraquecido pelos esquemas amadores e a dificuldade em exibir os filmes em circuito consistente, de maneira a garantir o retorno dos custos e o sustento dos profissionais. Mesmo levando em conta as irregularidades e entraves enfrentados pela produção, o período entre 1924 e 1930 aponta uma atividade cinematográfica rica e diversa. Os catorze filmes de enredo (incluindo as duas versões de Aitaré da Praia, de 1925 e 1929) percorrem gêneros diversos, desde filmes de aventuras como Retribuição, Jurando vingar (Ary Severo, 1925) e Sangue de irmão (Jota Soares, 1927), realizado na cidade de Goiana, a melodramas urbanos (A filha do advogado, Jota Soares, 1926; No cenário da vida) e de caráter regional (Aitaré da Praia; Revezes..., Chagas Ribeiro, 1927; Destino das rosas), passando pelo drama religioso de reconstituição histórica em História de uma alma (Eustórgio Wanderley, 1926), a comédia em Herói do século XX (Ary Severo, 1926) e até mesmo um curta-metragem de propaganda, Um ato de humanidade (Gentil Roiz, 1925), com enredo que ilustrava os benefícios da Garrafada do Sertão. Entre os filmes naturais, há fitas de propaganda financiadas direta ou indiretamente pelo governo Loreto, mas também uma série de títulos que registram acontecimentos e instituições da vida no Recife e em cidades do interior, como carnaval, concurso de miss, saída dos frequentadores de um cinema. Sobre a passagem do hidroavião Jahú pelo Recife, que mobilizou a cidade durante vinte dias, foram realizados dois filmes, As asas gloriosas do Brasil (Vera Cruz-Film, 1927) e O filme do Jahú (1927), produção da Norte-Film, com Edison Chagas como cinegrafista. Existe também uma filmagem amadora, sem identificação

de

autor,

que

se

encontra

disponível

no

YouTube

(http://www.youtube.com/watch?v=gxvK2-hB0AQ). Posteriormente, esse período de acentuada produção viria a ser denominado “Ciclo do Recife” e incluído entre os “ciclos regionais” do cinema silencioso brasileiro. Esses foram termos consolidados pela historiografia clássica, que privilegiava sobretudo as produções de enredo. No entanto, existe uma produção de filmes de não ficção que se mantém no Recife, tanto antes quanto depois do “ciclo”. Embora existente, pouco se conhece dessa produção, sobre a qual ainda faltam pesquisas mais sistematizadas.

4 Uma consulta à Filmografia Brasileira, banco de dados disponível no site da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br), aponta a Meridional Filmes, de Newton Paiva, como uma produtora bastante ativa no Recife entre as décadas de 1930 e 1940. Entre 1939 e 1940, por exemplo, há registro de 21 edições do cinejornal Folha da Manhã, além de outros títulos como Quarenta horas de vibração cívica (circa 1940), que cobre a visita de Getúlio Vargas a Pernambuco. A experiência com os cinejornais, para os quais foi adquirido equipamento de som, estimulou a produtora a realizar o primeiro longa-metragem pernambucano sonoro de ficção. Depois de nove meses de trabalho, Coelho sai é lançado em novembro de 1942 no Art Palácio, o melhor cinema da cidade na época. Adotando o gênero “revista”, o filme apresenta um enredo tênue, que serve de pretexto para uma sucessão de números musicais. Figura fundamental na produtora, Firmo Neto é quem viabiliza tecnicamente a realização de Coelho sai, sendo responsável pela filmagem, revelação, montagem, gravação, copiagem e sincronização do filme. Seu trabalho em documentários e cinejornais se estende para além da Meridional. Dirige curtas como Esquistossomose de Manson (1950) e nos anos 1950, à frente da Empresa Tropical Cinematográfica (ETC), lança várias edições do cinejornal Folha da Manhã na Tela. Firmo iria trabalhar até pouco antes de sua morte, em 1998, seja como cinegrafista e em diversas outras funções técnicas, seja como professor de cinema e fotografia. A década de 1950 é também o momento em que se organizam os cinegrafistas amadores da cidade, em torno do Foto Cine Clube do Recife, fundado em 1949, e da Associação dos Cinegrafistas Amadores (ACA), presidida por Armando Laroche, diretor de vários e premiados filmes amadores. A atividade cinematográfica no Recife se faz presente também em termos de crítica e cineclubismo. Já no final dos anos 1920 surge uma primeira geração de críticos de cinema, que inclui Nehemias Gueiros e Evaldo Coutinho, jovens bem informados cujo fascínio pelo cinema os leva a escrever resenhas e colunas no Jornal do Commercio ainda quando estudantes na Faculdade de Direito. Coutinho iria aprofundar seus estudos cinematográficos, entrelaçando cinema e filosofia no livro A imagem autônoma, lançado em 1972, no qual discorre, com erudição e convicção, sobre a imagem silenciosa e em preto e branco, que é para ele o específico fílmico.

5 Nos anos 1940, críticos de cinema e intelectuais recifenses serão mobilizados para dar sua contribuição ao debate que contrapunha o cinema silencioso ao cinema sonoro, desencadeado pelo então crítico de cinema Vinicius de Moraes na imprensa carioca, por ocasião de uma palestra de Orson Welles, no Rio de Janeiro. Assim como o diretor americano, que pouco depois visitaria o Recife, também a polêmica promovida por Vinicius chega até a cidade. Otávio de Freitas Júnior dá início à enquete no Jornal do Commercio e, entre junho e agosto de 1942, tomam partido pelo cinema silencioso ou sonoro alguns nomes ilustres do meio cultural recifense, como Aderbal Jurema, Paulo do Couto Malta, Vicente do Rego Monteiro e Antônio Maria. Outro cineasta, desta vez o brasileiro Alberto Cavalcanti, iria permanecer mais longamente no Recife, filmando o longa-metragem O canto do mar, entre 1952 e 1953. O filme estreia em outubro de 1953, no luxuoso cinema São Luiz, inaugurado no ano anterior e até hoje em atividade. Para seu grande espanto, Cavalcanti encontra no Recife uma crônica cinematográfica ativa e numerosa (não sem sarcasmo, ele teria declarado que em parte alguma do mundo havia visto uma terra tão profícua em entendidos do cinema como o Recife). Por essa época, jovens críticos, jornalistas veteranos e eventuais colaboradores escrevem nas colunas de cinema dos cinco jornais diários. A cultura cinematográfica, que se fortalece em tantas cidades após a Segunda Guerra Mundial, também é exercida com particular vigor no Recife do início dos anos 1950, abrangendo a crítica especializada e a atividade cineclubista, estendendo-se também a programas de rádio como “Epopeia do cinema” e “Cinelândia”. Em 1950, é criado o Cine Clube do Recife. No ano seguinte, surge o Vigilanti Cura que, apoiado na sólida estrutura do Serviço de Cinema da Liga Operária Católica (LOC), promove exibições, debates, cursos e palestras. Na virada da década, surge o Centro de Estudos Cinematográficos da Faculdade de Arquitetura, incentivado pelo professor Evaldo Coutinho. E nos anos 1960 entra em atividade o cineclube Projeção 16, capitaneado por Francisco Bandeira de Mello, Cristina Tavares e Carlos Garcia, que além de promover exibições também chegou a realizar filmes institucionais. A produção cinematográfica, no entanto, só ganha impulso nos anos 1970, graças à praticidade e o baixo custo proporcionados pelo Super 8. Em 1973, nada menos do que onze filmes pernambucanos nesta bitola amadora se inscreveram na II Jornada Nordestina de Curta-metragem, em Salvador. A partir daí, e até o início da década seguinte, são

6 realizados mais de duzentos curtas-metragens. Constituiu-se uma movimentada cena cinematográfica que viu surgir também o Grupo de Cinema Super-8 de Pernambuco e as três edições do Festival de Cinema Super-8 do Recife (1977, 1978 e 1979). Na produção, engajam-se tanto críticos e cineclubistas das décadas anteriores (Jomard Muniz de Britto, Fernando Spencer, Celso Marconi) quanto jovens realizadores como Kátia Mesel, Geneton Moraes Neto, Amin Stepple, entre tantos outros. A produção de cinema Super 8 em Pernambuco é numerosa e heterogênea, incluindo ficção, documentário, filme experimental, impressões de viagem – com espaço também para as experimentações do artista plástico Paulo Bruscky. No início da década de 1980, o Super 8 vai perdendo espaço nos festivais e a praticidade enquanto bitola amadora começa a ser comprometida e a se tornar obsoleta com a chegada do vídeo. O que se costuma tomar como ponto final desse momento vigoroso do Super 8 em Pernambuco marca também o início de uma nova geração, que iria se firmar e se desenvolver nas décadas seguintes. Considerado o último filme em Super 8 do período, Morte no Capibaribe (1983) tem direção de Paulo Caldas e equipe formada por seus colegas no curso de Comunicação Social, entre eles futuros realizadores como Lírio Ferreira e Adelina Pontual. Começa a se articular uma geração que iria renovar o cinema pernambucano, inicialmente com a produção de curtas-metragens e, nos anos 1990, com a realização do longa-metragem Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996).

Obras consultadas ARAÚJO, Luciana Corrêa de. “O cinema em Pernambuco nos anos 1920”. In: I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2007. ----- . A crônica de cinema no Recife dos anos 50. Recife: Fundarpe, 1997. CUNHA FILHO, Paulo Carneiro da. A imagem e seus labirintos. Recife: Nektar, 2014. FIGUEIRÔA, Alexandre. O cinema super 8 em Pernambuco. Recife: Fundarpe, 1994. RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do cinema brasileiro. 3ªed. Ampliada e atualizada. São Paulo: Senac, 2012. Sites consultados FILMOGRAFIA BRASILEIRA. Cinemateca Brasileira. Disponível em: www.cinemateca.gov.br A PROVÍNCIA. Biblioteca Nacional Digital. Disponível em: http://bndigital.bn.br/ A SCENA MUDA. Biblioteca Digital das Artes do Espetáculo. Disponível em http://www.bjksdigital.museusegall.org.br/ YOU TUBE. Disponível em: www.youtube.com

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Luciana Corrêa de Araújo é pesquisadora e professora do Departamento de Artes e Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, da Universidade Federal de São Carlos. No Pós-Doutorado (Unicamp), pesquisou as atividades cinematográficas em Pernambuco nos anos 1920. Publicou, entre outros trabalhos, os livros “Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos” (2014) e "A crônica de cinema no Recife dos anos 50" (1997).

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