Cinemas, educações e golpes

May 27, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: Teoria da Arte, Autonomismo, Teorias Da Imagem, Estudos De Cinema
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Cinemas, educações e golpes
Luiz Felipe Soares
"Tu precisas aprender a ler esse filósofo, ele não tem nada a haver com o cinema."
"Misturar cinema e filosofia não dá, não combina."
"Não dá pra querer que o cinema tenha o mesmo aporte teórico da literatura."
"Você precisa ter formação na área para usar os autores."
"Por que você lê Deleuze? É muito difícil!"
"Derrida pra quê? Eu só quero desconstruir o filme..."
"O cinema representa a realidade e pronto, não enche o saco."
"Eu sou pragmático!"
"Mas isso não está no filme!"
"Sujeito é isso mesmo, um personagem, uma pessoa, um indivíduo, entende?"
"Entre um autor hermético e sofisticado, e o outro superficial e claro, eu prefiro sempre o superficial e claro."
"Comum é comum mesmo, tem nada a ver com Agamben, ou Nancy, ou essas coisas."
"Tu tens que saber o que o autor quis dizer, sim!"
"Vocês conseguiram ler essa coisa da Gayatri Spivak? É ilegível!"
"Esse negócio de real, eu já trabalhei na minha tese, agora eu não preciso mais responder nada sobre isso."
"Você não pode deixar de ler um símbolo tão importante."
"Você não pode falar só de um detalhe, tem que falar do filme todo."
"Eu cheguei onde cheguei sem nunca precisar ler isso."
(...)

Esses enunciados, e tantos outros do mesmo nível, nada teriam de espantosos se não viessem de autoridades acadêmicas. Vieram. E continuam vindo. Prefiro não documentá-los (o que me exigiria um gravador e muita deselegância), mas eles estão por aí, trazidos por alunos ou colegas. Eles gostam de me assombrar, de um modo ou de outro. E são mesmo de autoridades, algumas até cheias de condecorações e empáfia, que circulam em altas rodas acadêmicas, nos endereços mais quentes das Américas ou da Europa. Essas falas são frequentes em aulas de graduação ou de pós, em congressos de estudos de cinema, em debates variados, em orientações, em bancas de mestrado ou doutorado e até em horripilantes bancas de concurso para seleção de professores efetivos em universidades federais.
Trata-se de uma rejeição sistemática ao aprofundamento, uma escolha – fraca, talvez, porém irrevogável – pela superficialidade. Algumas dessas autoridades sabem – ou desconfiam, sentem, intuem – que a imagem vai além da representação, ou mesmo que guarda complexidades em algum lugar aquém da representação. Mesmo assim, preferem a superficialidade. Repito que a escolha é fraca, entendendo por isso aquele tipo de escolha que, ao comentar Dreyer em seu curso de Cinema, Deleuze caracteriza como aquela que se tem quando não se sabe que há escolha: uma opção falsa, algo escolhido previamente.
De Pascal a Kierkegaard desenvolvia-se uma idéia muito interessante: a alternativa não se apóia nos termos da escolha e sim nos modos de existência daquele que escolhe. É que há escolhas que só podem ser feitas se estivermos convencidos de que não há escolha, seja em virtude de uma necessidade moral (o bem, o dever), seja em virtude de uma necessidade física (o estado de coisas, a situação), ou em virtude de uma necessidade psicológica (o desejo que se tem de alguma coisa). A escolha espiritual se faz entre o modo de existência daquele que escolhe desde que não saiba, e o modo de existência daquele que sabe que se trata de escolher. É como se houvesse uma escolha da escolha ou da não-escolha. Se tomo consciência da escolha, já há, portanto, escolhas que não posso mais fazer, e modos de existência que não posso mais levar, todos aqueles que levava caso me persuadisse de que "não havia escolha".
A insistência daqueles enunciados lamentáveis parece apontar para um modo de existência – o de um pragmatismo perverso, cruel e ingênuo ao mesmo tempo – que se deixa moldar pela força de uma tradição moral capaz, precisamente, de moldar e definir para sempre, assando-a em forno quente, a existência moldada. Refiro-me, é claro, à tradição dissecada por Nietzsche na Genealogia da moral, tradição filha de castigos e genocídios, reforçada pela combinação atroz que agora se nos explicita entre objetividade extrema, poderio capitalista e ódio conservador. A escolha prévia (sem saber, sem escolha) pela superficialidade corresponde ao caminho mais curto para a manutenção da própria existência, da própria autoridade: pra que se esfolar estudando, se a posição que interessa já está garantida, e se reforça justamente pela capacidade de dar respostas simples e rápidas, explicações fantásticas, breves e convincentes? Filosofar pra quê? (O mais curioso é que isso aparece até em autores que se intitulam filósofos. Um bom exemplo vem de Noël Carroll, com sua Filosofia do horror, à qual falta, precisamente... a filosofia.)
Escolher (sem escolher) não problematizar a imagem, não esvaziá-la, preferir sempre ver nela a mera representação, ignorar o fantasma em função do ícone, ou seja, esquecer toda a história triste e violenta da desvalorização da imagem – apontada, por exemplo, por Jean-Pierre Vernant – isso tem, está tendo, um preço muito alto (em vidas). Escolher (como se não houvesse escolha) pseudo-teorias da imagem vindas da mesma tradição a que me referi acima, moldadas pelo aparato da fenomenologia husserliana e sua busca por essências a partir da intencionalidade; escolher, do mesmo modo, pseudo-teorias do cinema de base arnheimiana, identificadas com o manual necessário à produção (teoria como saber-fazer), essa escolha equivale à opção já feita (aceita passivamente) pela mesma tradição. Escolher, enfim, o ícone como modo prevalente de leitura da imagem corresponde a obedecer ao preceito fascista da univocidade: corresponde a não se espantar com o fato de milhões de pessoas tão diferentes poderem enxergar a mesma coisa, o mesmo sentido, numa imagem – daí a não se espantarem, e até multiplicarem, os enunciados acima basta um pequeno passo.
O desastre está feito: basta ver que tudo isso acontece no âmbito da educação. Em grande parte, os cursos de cinema (inclusive este ao qual pertence a Punctum), e outros relacionados diretamente à imagem, se colocam (como se não tivessem tido escolha) em favor dessa mesma tradição da prevalência do sentido. Educam, em grande parte, para a monarquia da representação, ensinando jovens a escolherem (sem escolha) caminhos curtos para explicações satisfatórias, leituras autoritárias, curtas e anódinas. Reforçam o preenchimento conteudístico, icônico, da imagem, quase nunca investem em seu esvaziamento; contentam-se com o ato, muito mais compensador (para a construção da autoridade universitária) do que a busca ingrata de uma educação para a potência, para o vazio, para todo o resto...
Então chega a encruzilhada: a discussão sobre o que fazer, enquanto educadores e educandos, diante do golpe. E agora?
Acostumados à tradição, sim, mas principalmente à escolha sem escolha, muitos se arvoram aos métodos mais comuns de resistência – eficazes ou não. Movidos, muitos, por sentimentos sinceros de revolta diante do abuso, da usurpação, tomam a mesma atitude tradicional, sem antes parar pra pensar. O problema adicional agora é que a geração mais nova, cheia de disposição, nunca viveu essa situação de ter que se opor de fato à direita truculenta; e as outras gerações, parece que se desacostumaram a isso. O caminho mais curto para a construção da resistência parece ser uma visita rápida ao repertório de gestos do século 20. Mas com a tendência irresistível à objetividade, à rapidez, ao atropelamento do pensamento, e com o apego irresistível à tradição icônica, as opções (criativas) de resistência praticamente somem – mesmo para aqueles que fabricam imagens!
O golpe, ao contrário, já vem sendo fabricado, não há meses, mas há séculos, pela mesma tradição – ou pelo menos o que se fabricou há meses se insere na mesma tradição de séculos, nutre-se dela. De fato, o enunciado que emblematizou o golpe se insere confortavelmente entre àqueles listados acima: "não pense em crise, trabalhe".
Se uma frente de resistência se alimenta da mesma tradição do golpe a que tenta resistir, o que esperar dela? Como construí-la? Essa pergunta pode ser reformulada de modo a apontar um problema realmente difícil, crítico, que demanda um intenso e urgente esforço de pensamento: se queremos salvar a educação do golpe, qual é, exatamente, a educação que está sendo golpeada? A pergunta incomoda porque boa parte dessa educação – e isso se explicita agora – serve-se de preceitos comuns ao golpe. Como se opor, por exemplo, às leis da mordaça, à interdição da filosofia nas escolas, se as próprias autoridades em educação para a imagem defendem exatamente a mesma coisa? Se esses projetos de lei estúpidos advogam o fim da partidarização (da escolha!) no discurso dos professores (que passariam a ser vigiados quanto a isso), o que dizer dos atuais professores de cinema que já participam da separação (igualmente estúpida) entre técnica e política, entre tecnologia e pensamento, entre cinema e filosofia, entre cinema e literatura? Se a MP 746 tira a arte do conjunto de disciplinas obrigatórias do ensino médio, o que dizer de boa parte dos próprios cursos de arte (como este de Cinema da Ufsc), autonomistas, que absolutamente ignoram a patência do mundo na arte, nas artes, e insistem em identificar modos de "produção de sentido"?
Façamos então uma separação interna, provisória é claro, no campo semântico da educação aqui. Digamos que uma parte reforça a tradição perversa da não-escolha, da objetividade, que acaba sendo a mesma das catástrofes. E que uma outra parte (certamente menor ou menos visível) resiste, já, há tempos, à mediocrização e à superficialidade, optando pela filosofia, pela filologia, pelo aprofundamento, pela busca de fundamentos, mesmo sabendo (e justamente por sabê-lo) que não há um fundamento final – a parte, como me disse uma vez um grande mestre, que opta por semear no mar.
Feita a divisão, pensemos então naquilo que parece ser o mais estranho e assustador nessa encruzilhada, ou seja o sentido da resistência. Pensemos nas possibilidades de paralisação ou de greve. Sob o ponto de vista sindical, obviamente, há poucas saídas, a greve continua sendo um instrumento poderoso, percebido como ameaça pelo próprio STF, que já sinalizou nesse sentido, em apoio ao golpe, ao restringir nosso direito a ela. Não tenho, de resto, conhecimento suficiente das especificidades do contexto e da categoria para avaliar, aqui sozinho, essa possibilidade, sob esse ponto de vista. Mas de qualquer modo, feita a divisão, o que significaria cruzar os braços? Para os que participam da tradição catastrófica do não-pensar (comum ao golpe), a interrupção dos trabalhos faria pouca diferença: só o pensamento interromperia o não-pensar; parar de não-pensar para continuar não-pensando seria uma falsa interrupção, algo no mínimo anódino. E para a outra parte, aquela que busca semear no mar: parar de semear agora, justo agora, parece ser ainda mais desastroso.
Para essa outra parte, ainda, a que semeia no mar, dar aula é resistir. Ali, na sala de aula, pode-se pressionar a intensidade e a radicalidade do pensamento (para desgosto de alguns alunos impacientes). Resistir torna-se, precisamente, dar aula, combater a mediocrização, estimular a emancipação de inteligências, pra falar como o Mestre ignorante de Rancière. Agora, quando as manifestações costumeiras de resistência daquele repertório comum do século 20 começam a aparecer, frente ao golpe, eu me sinto confuso: é preciso, radicalmente, pensar... Meu trabalho é pensar, é não opor trabalho e pensamento, prática e teoria. Mas, ainda que, dadas as complexidades, seja necessário pararmos de trabalhar, não seria necessário continuarmos pensando? Parar de trabalhar e continuar trabalhando?
No caso de uma greve, isso corresponderia a atividades de greve muito diferentes das comuns, muito criativas, muito arejadas, em função do trabalho do pensamento – principalmente em cursos de artes. Ontem mesmo perguntei a um aluno a diferença entre aula e aulão, ele não soube identificá-la para além, vagamente, da quantidade de gente. Mas de modo geral, quando se convoca aulões, os assuntos são – iconicamente – aqueles ligados diretamente ao conteúdo costumeiro de disciplinas da área "social", como história ou ciências políticas. Por que não literatura? Por que não filologia? Debruçarmo-nos, como indica Mary Lafer, sobre a briga reciprocamente ardilosa de poder entre Prometeu (pró-métis) e Zeus (que engoliu Métis, tendo-a em si), e a consequente modelação em barro de Pandora, por ordem de Zeus, como o belo-mal, composto de doações de várias divindades (Pan-dora), para o desespero de toda a humanidade: esse estudo não corresponderia à construção de um pouco de resistência de fato?
A partir daí, por que seria mais adequado ver Leon Hirszman, por exemplo, do que ver Paradjanov ou Bill Viola como atividade de greve? Claro, a resposta é direta: Leon Hirszman faz sentido imediatamente, mimeticamente, por meio da mesma tradição a que supostamente deveríamos resistir. Pelo mesmo motivo (que inclui a ingenuidade de quem propõe os debates), vejo no campus cartazes chamando para um "debate" anti-racista em torno de Django, de Tarantino, apresentando o filme (ou o personagem) como "resistência e vitória do oprimido". Ou seja, os gestos de resistência se apoiam no mesmo fundamento (icônico, representacional, mimético, intencional) daquilo a que deveriam opor resistência.
Do mesmo modo, ainda, dentro do autonomismo intenso que ajuda a compor a mesma tradição, os alunos de cinema, em assembleia, decidem conversar sobre a influência da Pec 55 (e do golpe como um todo) sobre a futura produção audiovisual do país – ou seja, sobre as futuras possibilidades de emprego para eles. Há aí, inclusive, o velho corporativismo, igualmente apoiado por autoridades da tradição, de ambos os lados do golpe. Em meio ao apocalipse, em meio à destruição total de qualquer esperança de que, simplesmente, muita gente não morra de fome, continua parecendo plausível a discussão sobre o emprego na indústria do audiovisual.
Seria mais produtivo, por exemplo, relermos juntos, conversando, o velho Esaú e Jacó. Em meio à transformação do mundo entre monarquia e república, em que se mantém (há milênios) diferenças e afinidades míticas entre opostos, faz toda diferença olharmos para o mundo de D. Cláudia, ali construído. Depois que o marido Batista perde a presidência da província, prejudicado pela imprensa de oposição, ela tem saudades das acusações (tradicionais, heroicizantes, superficiais) vindas dessa mesma imprensa:
As mesmas descomposturas da oposição eram agradáveis. Ouvir chamar tirano ao marido, que ela sabia ter um coração de pomba, ia bem à alma dela. A sede de sangue que se lhe atribuía, ele que nem bebia vinho, o guante de ferro de um homem que era uma luva de pelica, a imoralidade, a desfaçatez, a falta de brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ela gostava de ler, como verdades eternas, onde iam eles agora? A folha da oposição era a primeira que D. Cláudia lia em palácio. Sentia-se vergastada também e tinha nisso uma grande volúpia, como se fosse na própria pele; almoçava melhor.
D. Cláudia parece ter reconhecido, à mesa, que a imprensa de oposição já havia, também, escolhido sem saber.
Por fim, é preciso sempre lembrar da proposta de Adorno, de adotarmos como exigência primeira de toda educação fazer com que Auschiwtz não se repita, além do alerta do sobrevivente de Auschwitz que disse ter desenvolvido "suspeitas sobre a educação" depois de ter visto "câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras capacitadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de faculdades e universidades".
Enfim, como construir, de fato, sabendo fazer escolhas, uma resistência ao golpe, dentro do contexto da educação em cinema? Não deveria ser esse o tema dos debates, a serem desenvolvidos, com lentidão e urgência?


A imagem exibida nesta página da Punctum é reprodução da tela Shade and darkness: the evening of the deluge (787x781mm), de Turner, apresentada em 1843, do acervo da Tate Britain. Cf. http://www.tate.org.uk/art/artworks/turner-shade-and-darkness-the-evening-of-the-deluge-n00531
Deleuze, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 146.
Nietzsche, Friedrich. A genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Cf. Carroll, Noël. Filosofía del terror o paradojas del corazón. Traducción de Gerard Vilar. Madrid: Machado Libros, 2005. (Em lectulandia.com, file:///D:/Downloads/Filosofia%20del%20terror%20o%20paradojas%20del%20cor%20-%20Noel%20Carroll.pdf)
Vernant, Jean-Pierre. "Nascimento de imagens". Tradução de José Otávio Nogueira Guimarães. In: Lima, Luiz Costa (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: Uerj, 2010, p. 51-86.
Nancy, Jean-Luc. ¿Por qué hay varias artes y no una sola? (Conversación sobre la pluralidad de los mundos). In: ____. Las musas. Traducción de Horacio Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2008, p. 9-58.
Rancière, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 12.
Cf. Lafer, Mary de Camargo Neves. Os mitos: comentários. In: Hesíodo. Os trabalhos e os dias. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 59-76.
Cf. http://www.borasair.com.br/florian%C3%B3polis/cine-debate-liberdade-e-luta-django-livre/
Machado de Assis. Esaú e Jacó (livro eletrônico). Departamento Nacional do Livro, Biblioteca Nacional. Em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000030.pdf, p. 32.
Adorno, Theodor W.. Educação após Auschwitz. In: ____. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003 (p. 119-148), p. 119.
Ginott, Haim. Teacher and Child: a book for parents and teachers. New York: Macmillan, 1972, p. 317 (tradução minha).



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