CIRCUITO FLORESTA, CARIMBÓ E TECNOLOGIA: EXPERIÊNCIAS CULTURAIS À FAVOR DA AFIRMAÇÃO ÉTNICA

July 22, 2017 | Autor: Breilla Zanon | Categoria: Amazônia, Carimbó, Música Independente
Share Embed


Descrição do Produto

CIRCUITO FLORESTA, CARIMBÓ E TECNOLOGIA: EXPERIÊNCIAS CULTURAIS À FAVOR DA AFIRMAÇÃO ÉTNICA Breilla Zanon Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS/INCIS/UFU) [email protected] Dra. Claudelir Corrêa Clemente Professora Antropóloga do PPGCS/INCIS/UFU [email protected]

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar as conexões culturais entre o Carimbó paraense, expressão cultural constituída por três povos – indígenas, africanos e portugueses – a nova produção musical independente com suas tecnologias de produção e distribuição sonora e a educação popular. Nosso ponto de partida é o Casarão Cultural, situado na cidade de Belém, local que agrega em suas ações duas gerações de músicos, unidos em prol da divulgação do carimbó e demais estilos tradicionais do Pará, e que, através do projeto Circuito Floresta, promove a afirmação de saberes e práticas relacionados a expressão tradicional do Carimbó, estimulando por meio de formas de educação popular o reconhecimento das culturas negras e indígenas da região e viabilizando o conhecimento das leis 10639/03 e 11645/08. As realizações do grupo construídas com originalidade e diálogo entre artistas estabelecem no centro de Belém um território reconhecidamente fértil, que perpassa todo um ambiente onde as interpretações socioculturais se fazem mediante as relações que se estabelecem entre o contexto urbano e o da floresta amazônica. Palavras-chave: Carimbó, música independente, amazônia.

INTRODUÇÃO Poucos são os artigos e trabalhos acadêmicos que expõem a relevância do Carimbó como manifestação cultural em nosso país. Suas inúmeras expressões e tradicionalismos ao longo do tempo, ainda são um terreno fértil e inexplorado para análises a respeito de diversidades étnicas e miscigenações, bem como para o entendimento em relação às ramificações e influências que seu estilo musical trouxe não somente para o norte brasileiro onde se originou, mas para as manifestações e produções culturais de todo o país. Não teremos a intenção de tecer detalhes a respeito da história do Carimbó, mas sim mostrar em que medida essa tradição musical se faz presente nas produções culturais de nossos dias, trazendo para o contexto atual uma expressão cultural tradicionalmente construída a partir das representações de três povos, mas que com o

tempo e agora, em um contexto urbano, se reconfigura, influenciando em grande medida novas produções, sociabilidades e práticas de grupos ligados a cultura, principalmente, à música. Paralelo a isso, entende-se que a Lei nº 10.639/03 e 11.645/2008 dispõem, respectivamente, sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na Educação Básica. No entanto, seu processo de implementação no país tem sido permeado por inúmeras dificuldades a despeito da existência de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais que garante orientações de qualidade para efetivação desse ensino. O cenário educacional envolvendo a temática é deficitário, isto é, de pouco incentivo à formação docente na área e à produção e distribuição de material didático adequado. Em face disso, observase ainda a permanência de uma abordagem demasiadamente abrangente, fluida, despolitizada e a-histórica em relação à contribuição dessas culturas para a formação do Brasil. É nesse sentido, que buscaremos evidenciar o quanto novas conexões, realizadas entre músicos tradicionais e atuais de Belém podem revelar-se como forma de ação afirmativa, capaz de fortalecer o reconhecimento a respeito dos saberes e práticas da cultura negra e indígena, não só no Norte brasileiro, mas em todo país, fazendo uso dos novos meios de produção e distribuição trabalhados pela nova cena da música independente no Brasil. Apresentemos essas práticas culturais como a ilustração de um exemplo que é capaz de transpor o caráter educativo como simples demanda do ambiente escolar institucional básico, e popularizar, no âmbito da sociedade brasileira de maneira geral, pelos artifícios de comunicação e tecnologia que se fazem presentes nessa nova fase musical no país, valores e saberes tradicionalmente ligados aos povos africanos e indígenas. Para garantirmos tal explanação, temos como objeto de estudo um grupo cultural, formado por músicos de Belém, representantes de gerações diferentes, e que formam o Circuito Floresta Sonora. O Circuito Floresta Sonora nasce no centro de Belém, mais especificamente no Casarão Cultural Floresta Sonora, um ponto cultural não institucionalizado, mas que aglutina em si uma diversidade de artistas, produtores musicais e visuais e passou a ser um território cultural reconhecido pela parcela de artistas que lá frequentam e também pelos turistas e demais transeuntes que convivem no cotidiano do centro antigo da capital. O projeto Circuito Floresta, encaminhado pelos

músicos que dirigem e frequentam o local, junta em um só momento, as apresentações desses diferentes músicos, que em conjunto criam novas músicas que conectam o tradicional Carimbó acompanhado da guitarrada, ao rock n´ roll e o jazz presentes nas novas produções eletrônicas de grupos do cenário musical independente de Belém, no Pará. Em uma mesma apresentação, o objetivo do Circuito é levar as variadas manifestações musicais produzidas em Belém, colocando em evidência o Carimbó, e consequentemente, toda uma cultura influenciada principalmente pelas manifestações africanas e indígenas e que tem como influência o urbano e a floresta em sua construção. Essa conexão de gerações que trazem a essência de um mesmo gênero musical miscigenado, bem como a maneira como constroem e distribuem suas produções mediante as influências que sofrem a partir do contexto urbano da capital que se encontra em meio a floresta, é o que se constitui como o verdadeiro foco de análise do presente artigo. Levamos em conta que o Casarão Floresta como ponto de encontro de diversidades culturais e de geração, bem como suas ações, como a do Circuito Floresta – sendo encaminhadas por grupos que buscam envolver em seus projetos tradicionalismos aliados à novas tecnologias de informação, são capazes de criar um quadro bastante fértil e relevante a ser explorado pela dimensão educativa popular, uma vez que se trata de um espaço e de uma prática capaz abranger e fortalecer o reconhecimento a respeito da importância de manifestações como o Carimbó para a afirmação de identidades que até então se encontravam negligenciadas nesse âmbito em relação aos ideais europeus e etnocêntricos de cultura e educação. Como base, usarei as anotações de campo, extraídas de uma visita realizada em 2010 ao Casarão Cultural. Juntamente às anotações de campo, complementada por entrevistas que foram feitas aos membros do Circuito, trago artigos de jornais locais e um documentário, realizado na mesma época, aonde faço a direção de imagens, e que tem como objetivo divulgar a diversidade musical de gêneros e gerações. Dessa maneira, ficará fácil para nós, deixarmos evidentes as influências trazidas por essa matriz musical indígena e africana que é o Carimbó, bem como os diálogos entre os contextos urbano e da floresta, não somente nas variadas produções de Belém, mas principalmente nas novas formas de pensar e produzir música e consequentemente enaltecer seus valores, saberes e práticas entre os mais variados públicos.

O CARIMBÓ, A FLORESTA E A CIDADE

Qualquer análise que levante as características de uma manifestação cultural como o Carimbó deve primordialmente levar em conta que este não se revela apenas no estilo musical que constitui e que talvez foi a expressão que mais o popularizou durante os tempos. O carimbó deve ser principalmente entendido como uma expressão cultural da Amazônia, e assim sendo, além da música, reuni em torno de si valores, símbolos, práticas, saberes e demais elementos culturais que se fazem presente na história do nosso país e de seus povos. Esta manifestação cultural conhecida como Carimbó, é bem mais que isso, envolve pessoas, seus saberes e fazeres, o domínio da técnica (arte) da fabricação de instrumentos rústicos (curimbós, flautas de madeiras, banjos, reco reco dentre outros), o cotidiano, o seu modo de vestir, de cantar, de falar, o relacionamento social, econômico e político. Enfim, uma infinidade de possibilidades que seria impossível criar um conceito singular para esta prática cultural e, ainda afirmar que é somente uma particularidade regional, sem importância para a história da sociedade brasileira. (CARVALHO, 2011, p. 06)

Ainda, como afirma Blanco (2010) o Carimbó “trata-se de grupo formado por homens e mulheres que dançam, cantam, tocam o carimbó”. Mais que uma manifestação cultural paraense, o Carimbó, é uma expressão cultural representativa da Amazônia brasileira, e na sua essência formada por três povos, o Africano, o Português e o Silvícola, que demonstra riqueza e diversidade inerente a esta cultura. Sua representação social deve-se principalmente ao modo de transmissão oral e a modo de vida tradicional preservado pelas comunidades, e ainda ao processo cultural globalizado, dentro de seu contexto social, cultural e ambiental. Hoje, os grupos ligados ao Carimbó buscam se articular de forma mais harmoniosa, compartilhando compromissos e idéias, aprendendo a trabalhar juntos respeitando a diversidade que existe dentro da roda do Carimbó. (CARVALHO, 2011, p. 04)

Dessa forma, trazendo em sua própria formatação a conexão de diferentes grupos étnicos, podemos considerar que o Carimbó é por si só uma manifestação cultural que agrega elementos diversos e que garante sua tradicionalidade através das reconfigurações socioculturais que permite desenvolver em torno de si. Talvez essa seja uma das principais características que nos permite entender a intensa conectividade que este estabelece entre diferentes expressões sociais, étnicas e contextuais durante os tempos e que se reflete até hoje, como podemos ver no exemplo do Circuito Floresta. Por ser uma manifestação que se reverbera e distribui valores principalmente por via da oralidade dos grupos que o mantém, o Carimbó pode ser entendido atualmente como uma expressão cultural capaz de desenvolver práticas afirmativas tanto em relação à construção cultural indígena quanto africana, de maneira que permite comunicar através de sua música e significados, sobre a importância dos saberes

envolvidos em sua expressão. No entanto, devemos também levar em conta que o Carimbó, quanto expressão artística tradicional, de certa forma, encontrou prejudicado mediante os novos atributos trazidos pela globalização. Neste caso, sendo ele um componente tradicional de nossa cultura, sofre com as extensas transformações sociais engendradas em um contexto globalizado e permeado por diversos valores e tecnologias que não mais consideram em pauta o tradicionalismo de culturas, saberes e expressões como os elencados a partir do Carimbó. Por isso, ao falarmos sobre as consequências globalizantes, torna-se importante salientarmos algumas características das estruturações sociais, econômicas e culturais que se desenvolveram em Belém do Pará. Essa cidade, situada no Norte brasileiro, é o local onde o Carimbó constituiu-se com uma maior notoriedade. Uma capital brasileira, que se fez em meio a Floresta Amazônica e aglutinou em si sociabilidades advindas de locais diversos de nosso país e do mundo. Esse panorama se dá por ela ter sido um dos principais polos do ciclo da borracha, o qual desenhou os rumos econômicos do país do final do século XIX ao início do século XX. Belém se configurou como uma das cidades mais economicamente prósperas dessa época, propiciando em consequência dessa conjuntura econômica e mercadológica, a entrada de diversos migrantes e imigrantes em seu território, contribuindo assim para a diversidade não só social, mas também de manifestações ligadas à cultura. Essa aglutinação de povos diversos contribuiu extensamente para a construção do Carimbó como expressão da cultura amazônica e não é portando, nesse sentido que a globalização possa ter sido vista como um obstáculo a reprodução de seus valores, símbolos e práticas. No entanto, como não caberia aqui a relação de observações referentes a todos os caminhos pelos quais percorreu o pensamento e a atividade cultural, basta a nós termos em mente o fato de que a cultura no Brasil como um todo, também desempenhou papéis que se estenderam à função de civilizar, elitizar e solidificar uma identidade nacional1. Não se perde de vista, por conseguinte, que em nenhum desses dois projetos é descartada a característica homogeneizante2. Consecutivamente, o que podemos evidenciar nesse ponto é a globalização recente, que agregou às sociedades contemporâneas novos modos de produção e sociabilidade mediante aos novos atributos tecnológicos que compôs. Dessa forma, ao 1 BARBALHO, A. Políticas Culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf. Acesso em 26 ago. 2011. 2 MARCUSE, H. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Vol 1, p. 95-97

fazer um estudo a respeito de assuntos que envolvem a dimensão cultural, deve-se ter consciência de que esta esfera, compartilhada entre membros de uma sociedade e significadora da identidade dos mesmos, passa por uma série de transformações em decorrência do próprio desenvolvimento que engendrou as mudanças trazidas pela vida moderna3. Como consequência dessas transformações, e visando reproduzir seus ensejos, a distribuição das expressões culturais passam a ser encaminhadas de outra forma que não aquela pautada em tradicionalismos, mas sim em artifícios capazes de produzi-las, reproduzi-las e reverberá-las de maneira extensa e de certa forma, descontextualizada das situações socioculturais que as engendraram, atendendo assim um ideal de flexibilidade da sociedade moderna (HARVEY, 2009). A análise que visamos empreender data de uma época atual, a qual podemos visualizar de maneira menos turva essas vantagens e desvantagens – principalmente dos instrumentos de comunicação desenvolvidos dentro do ambiente global – bem como os arranjos proporcionados pelas novas conexões entre as culturas tradicionais e as expressões mais modernas. As vantagens dessas conexões podem ser claramente compreendidas, quando queremos lidar com questões que elevam a importância afirmativa dessas expressões. Belém, apesar do distanciamento geográfico e das consequências trazidas por toda devastação social, econômica e ambiental que se encaminhou em tempos remotos ainda sim se conserva como território aberto a novos desenhos de sociabilidade, os quais não somente implementam componentes novos a sua cultura, mas contribuem para com sua articulação em meio a novos cenários da produção musical contemporânea. Consideramos essa abertura de espaço, bem como sua propensão para efusão de novas sociabilidades, como um terreno fértil para conexões não só locais, mas em uma dimensão para muito além das fronteiras do estado, ou da Amazônia. Essas conexões e seus canais comunicativos permitem que conhecimentos, valores, símbolos e práticas tradicionalmente formuladas a partir de dimensões étnico-culturais alcancem reconhecimento e afirmem-se para além das fronteiras de seus territórios, tendo sua importância exaltada devidamente como um elemento fundamental da história cultural não só de etnias, mas de um país como um todo. As criações culturais que apresentaremos no próximo capítulo reinterpretam as influências da globalização, resgatando o tradicionalismo presente na expressão dos 3 SCHIMIDT, V. H. Múltiplas modernidades ou variedade de modernidades? Revista de Sociologia Política, Curitiba, 28, p. 147-169, jun. 2007.

povos que construíram a Amazônia afim de mostrar, de maneira extensa pelos artifícios que agora lhes são possíveis, a importância do Carimbó não só como gênero musical que afirma a identidade paraense; e trazer a pauta avaliações pertinentes a respeito da diversidade e confluência étnica, social e ambiental na criação musical e de ações afirmativas em nosso país. Nesse ponto, nota-se que não só o contexto urbano que caracteriza a modernidade de nossa sociedade se faz componente fundamental nessa releitura do tradicionalismo, mas a floresta e todos os valores imbuídos em uma concepção socioambiental se fazem presente na construção das relações e reconhecimentos entre o meio e os indivíduos.

CIRCUITO FLORESTA SONORA: TRADIÇÕES, CONEXÕES, E REVERB

Como já foi percebido, em linhas gerais nossa análise busca refletir sobre a afirmações políticas, mais especificamente de dois grupos étnicos que podem ser engendradas a partir de afirmações culturais, em nosso caso, através da música4. Seguindo por esse caminho, é necessário retomarmos sobre a formatação e contextualização do Casarão Cultural Floresta e do Circuito Floresta Sonora. O Circuito Floresta Sonora foi inicialmente organizado por um grupo de músicos de Belém, que já realizavam produções e criações em projetos musicais diferentes, e que tinham como ponto de encontro em comum o Casarão Floresta Sonora. Situado no centro da cidade, à poucas quadras do tradicional mercado Ver-oPeso5 e poucos minutos da Estação das Docas, o Casarão Floresta incorporou-se a cidade não só como um ponto cultural tido como referência para produtores e músicos locais, mas também para turistas, em grande parte estrangeiros, que chegam a cidade atraídos pelas diversidades do ambiente amazônico. O local passou a agregar nos trabalhos e gravações que encaminhava não só produções de artistas atuais. Logo, o

4 Como já havia salientado Adorno em algumas de suas notas: “Desde a metade do século XIX a música de um país tero se tornado urna ideologia política por enfatizar características nacionais, manifestando-se como representante da nacáo e por toda parte confirmando o princípio nacional... No entente, a música, mais do que qualquer outro meio artístico, expressa também as antinomias do princípio nacional.” (ADORNO, 1992) 5 O Ver-o-Peso é um mercado situado na cidade brasileira de Belém, no estado do Pará, estando localizada na travessa Boulevard Castilho Franca, Cidade Velha, às margens da baía do Guajará. Ponto turístico e cultural da cidade, é considerada a maior feira ao ar livre da América Latina. O mercado do ver-o-peso abastece a cidade com variados tipos de gêneros alimentícios e ervas medicinais do interior paraense, fornecidos principalmente por via fluvial. Foi candidato a uma das 7 Maravilhas do Brasil. Inaugurado em 1901, é um dos mercados públicos mais antigos do Brasil. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ver-o-Peso . Consulta em: 28/06/2013.

Casarão se tornou ponto de referência para músicos já tradicionais na cidade como Mestre Laurentino, Mestre Manézinho, Mestre Pantoja, e outros, representantes de releituras do Carimbó6, considerados tesouros vivos7 da cultura popular local. A consonância entre as essências musicais dessas gerações levaram a criação de um combo musical, ou seja, uma apresentação de um show musical onde se apresentariam tanto os músicos tradicionais quanto os mais novos, tocando músicas de cada projeto respectivamente individual como também construindo músicas em conjunto. A ideia dessa apresentação em conjunto acontece com o intuito de trazer para o cenário atual da música independente, composições tradicionais de músicos referenciados por suas criações. Além disso, a conexão e integração entre esses músicos e a nova geração, propiciam a distribuição de criações originais que divulgam sonoridades tradicionais de uma região pouco conhecida musicalmente. Nesse ponto, torna-se importante elencarmos os fatores que passam a desencadear, principalmente a partir da década de noventa – mas que no entanto tiveram como marco inicial o final dos anos oitenta –, maiores possibilidade de acesso a produção e distribuição de conteúdos musicais no país. Esses fatores, consequentes a conjunturas econômicas de um contexto globalizado, não só estabeleceram patamares homogeneizantes, mas favoreceram acessibilidades nunca antes usufruídas no que diz respeito às criações musicais, devido ao barateamento dos instrumentos relacionados à gravação e reprodução musical. Nesse caso, a rapidez pela qual se deram as produções industriais e os avanços tecnológicos foram fatores contribuintes que proporcionaram importantes progressos dentro do desenvolvimento do mercado cultural em si. O barateamento das tecnologias, resultado de uma dinâmica de produção e consumo acelerado e sentida largamente na época, desencadeou a estruturação dos meios materiais necessários para o desenvolvimento de produções autônomas e esteticamente diversificadas dentro do mercado musical. 6 É importante ressaltar dois pontos aqui. A nomeação de Mestre é tradicionalmente dada àqueles que representam relevância na construção musical paraense e que levam os ritmos locais em suas criações. No entanto, é importante salientar que as produções desses músicos tidos como referência já são uma reconfiguração ou releitura do próprio carimbó. Em seus projetos estão condensados não só o carimbó, mas a guitarrada, o merengue, a salsa e demais ritmos genuinamente latinos. No entanto, tanto o carimbó quanto a guitarrada, que surge a partir desse primeiro, encontram-se fundamental e essencialmente nas construções sonoras. 7 “Conceituados em editais de fomento como Tesouro Vivos da Cultura, pela UNESCO como Tesouros Humanos declarando os como indivíduos que possuem habilidades e técnicas necessárias pra criar e produzir determinados elementos do patrimônio cultural imaterial e que tenham sido selecionados pelo Estado como testemunho de suas tradições culturais e do talento criativo do grupo, comunidades ou indivíduos presente em eu território, e pela sociedade, como Mestres e Representantes 'maior da cultura'.” (CARVALHO, 2011)

Marginalizados [pelo] panorama fortemente cristalizado e rendoso para os grupos financeiros e, ao mesmo tempo, cômodo e farto para os artistas já eleitos, alguns novos compositores e músicos, depois de muito tempo de trabalho (alguns com mais de 10 anos) sem a possibilidade de registro e divulgação, iniciaram um processo de contra-ataque à ação das gravadoras (...). Ao invés de permanecer na espreita de oportunidades ou submeter-se a julgamentos, quase sempre humilhantes por parte dos empresários produtores (DIAS, 2000, p. 33)

O acelerado desenvolvimento tecnológico propiciou o aumento do desempenho dos meios de comunicação ao passo que as formas de produção se tornavam mais flexíveis (HARVEY, 1999). Dessa maneira, os atributos inerentes às novas formas de produção e distribuição da música atualmente, possibilitaram que seus produtores pudessem criar e divulgar seus projetos de maneira independente ao mercado fonográfico que impunha fórmulas e tecnologias pouco acessíveis. Esse contexto e os atributos de acessibilidade passam a ser mais fortemente sentidos a partir dos primeiros anos do século XXI, momento em que acontece uma grande difusão da rede mundial de computadores. (...) se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época, a Internet poderia ser equipada tanto a uma rede elétrica quanto a um motor elétrico, em razão da sua capacidade de distribuir a força da informação por todo domínio da atividade humana. (CASTELLS, 2003, p. 07)

Após essa breve contextualização sobre o cenário em que surge os novos grupos que se pautam nas dinâmicas da produção cultural independente, podemos visualizar e compreender o quanto a perspectiva da autonomia consequente desses novos atributos tecnológicos e de comunicação, bem como a nova configuração do mercado fonográfico, permite o fortalecimento de novas conexões musicais com uma liberdade capaz de emancipar dos padrões e conceituações estéticas da antiga indústria cultural. Neste contexto, tem a manifestação cultural do Carimbó, compartilhado por aqueles, tanto da linha tradicional quanto modernista, que idealizam a vontade de conduzir esta prática cultural as diferentes classes sociais e instituições governamentais, para o reconhecimento e conseqüentemente a valorização pela sociedade como manifestação cultural significativa na formação histórico-social no Brasil. (CARVALHO, 2011, p. 07)

Essa autonomia permite igualmente aos grupos culturais que se desenvolvem a partir de então uma maior participação política e afirmativa no ambiente em que se encontram. E por ser uma expressão cultural e cultura não é imutável, permanente, estagnada ou um espetáculo encenado para uma platéia, não teria, portanto a possibilidade de afirmar que esta manifestação seja somente uma dança, música ou mesmo um instrumento de madeira. Além do mais, sempre surgirá novos elementos, para definir a expressão cultural

inerentes ao Carimbó. (CARVALHO, 2011, p. 06)

Dessa forma, mais que um simples estúdio musical, o Casarão Floresta constituiu-se por entre esse período como um território reconhecido pelos artistas, músicos locais e de demais localidades como um local criativo e fomentador dos novos preceitos da cena independente. Esse reconhecimento se dá também a partir dos comerciantes e transeuntes locais. Todos esses indivíduos passam a visualizar o Casarão Floresta como um território aglutinador de sociabilidades por meio das criações culturais que lá eram desenvolvi dadas. O contato com o comércio local, o Ver-o-Peso, a Estação das Docas, por si só inserem características originais e específicas na sua localização, as quais passam a gerar uma identidade a qual é traduzida de maneira sonora e através das cores de sua fachada, dos grafites vibrantes e das inúmeras fotos de artistas e personalidades locais expostos em suas paredes. O Casarão Cultural, pelas criações que desenvolveu e pela diversidade de vivência que proporcionou por através do ambiente que lhe é propício, passou a ser considerado um ponto de encontro e de produção de artistas e músicos locais que tinham em comum a capacidade de reter e renovar expressões culturais tradicionais, colocando-as em contato e movimento com as novas atividades da cena independente, com o intuito não institucionalizado, mas essencial, de reafirmar os valores do Carimbó quanto identidade prima da cultura Amazônica. É importante reforçar aqui que o Casarão Cultural, passa a ser referenciado não só pela parcela artística, mas ganha igual notoriedade entre a comunidade atuante no centro antigo de Belém e de todos os turistas que ali buscam conhecer um pouco sobre as novas produções musicais amazônicas e que acabam reconhecendo ou encontrando, muitos pela primeira vez, um local por onde permeia uma das principais manifestações étnico-culturais de nosso país. Torna-se

claro

aqui,

portanto,

que

mesmo

sem

ter

uma

intenção

institucionalizada, o Casarão Cultural, através do projeto como o Circuito Floresta, favorece o reconhecimento e a afirmação de culturas populares tradicionalmente de matriz africana e indígena8, popularizando e educando de maneira informal sobre sua essência, valores e práticas, através da música e de apresentações artísticas, àqueles que 8 Nota: Não podemos deixar de considerar a participação portuguesa na construção das significações culturais do Carimbó, no entanto, essa se deu de maneira miscigenada. Levamos em conta que o próprio contexto em que se desenvolveu o Carimbó, que é a cidade de Belém, é formado por inúmeras etnias e nacionalidades, diversidade proveniente de sua trajetória histórica. No entanto, as características e valores abordados aqui visam focar principalmente os valores e práticas que se desenvolveram a partir das influências da cultura indígena e africana.

ali buscam conhecer as novas conexões e diversidades musicais realizadas naquele território. É relevante aqui, citar Paulo Gilroy, em sua obra Atlântico Negro, sobre o que tange as manifestações musicais negras: Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental. (GILROY, 2001, p. 161)

Através de projetos como o do Circuito Floresta, esses grupos tornam concreta e direta a oportunidade de promoverem seu reconhecimento político enquanto cidadãos participantes da formação de um país, e de divulgação e reverberação dos saberes e fazeres inerentes à manifestações como o Carimbó, para além de uma forma institucionalizada. Não se trata de perder raízes e valores enquanto movimento étnicoregional, mas acima de tudo, posicionar-se quanto cultura viva, capaz de articular-se com as novas criações e consequentemente fazer chegar sua essência a uma maior parcela da população, vencendo obstáculos provenientes do negligenciamento de políticas públicas que teria como este seu objetivo. Como já nos atentou Giddens: Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contém e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserido qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. (GIDDENS, 1990, p. 57)

CONCLUSÃO: O CIRCUITO FLORESTA E A EDUCAÇÃO POPULAR

Evidenciamos durante essa apresentação que o contato com músicos detentores da tradição do Carimbó por parte de uma nova geração de artistas e músicos da cena atual independente é capaz de reafirmar saberes e fazeres presentes nas culturas indígenas e afro-brasileiras através da música e de territórios onde podem ser construídos diálogos que afirmem essas expressões. Significativo é que, para mobilizar suas comunidades em torno da valorização étnica, esses músicos fazem uso de relações sociais desenvolvidas no cultivo de suas culturas, via uma diversidade de manifestações presentes na cena musical atual e a elas somam às relações de convivência social – vizinhança, parentesco, compadrio, amizades. Enfim práticas sociais que não são convencionalmente tidas como da educação formal, mas vêm demonstrando o potencial para arregimentar pessoas, reuni-

las, organizá-las e transformá-las em agentes em prol da disseminação de leis como a 10639/03 e a 11.645/08. Essa dinâmica promove saberes, fazeres, valores e símbolos que se encontraram por um longo tempo (e ainda sofrem desse efeito) negligenciados em relação ao conceito etnocêntrico que desde os primórdios da construção da identidade cultural brasileira objetivou promover a cultura européia em detrimento às manifestações genuinamente criadas pelos povos presentes no Brasil. De maneira muito clara, podemos ver que práticas como as desenvolvidas pelo Casarão Cultural, como é o caso do projeto Circuito Floresta, são capazes de promover uma educação popular, por meio da música atual em conexão com o tradicional Carimbó, no que diz respeito à valores e identidades étnicas, nesse caso, a indígena e a africana. Por ser um grupo que se institui dentro de um momento diferenciado da música brasileira, onde as produções e distribuições não encontram mais limitações formuladas por barreiras mercadológicas, tecnológicas ou estéticas, o alcance e a divulgação dessas tradições em consequência da conexão entre essas duas gerações é infinitamente maior, uma vez que agora usufruem de atributos tecnológicos e comunicativos capaz de reverberar suas identidades e territórios como elementos participativos da construção sociocultural brasileira. Esse alcance, portanto, ultrapassa os limites locais da tradição e passa a atingir o Brasil e o mundo através de mecanismos que fazem parte das estratégias de produção e distribuição da nova cena da música independente na atualidade. Podemos ver tanto um potencial afirmativo e educativo no que concerne a representação dessas duas identidades relacionadas a partir de estratégias como a do Circuito Floresta, pois o projeto conseguiu garantir e afirmar as dimensões essenciais de uma manifestação tradicional, ao mesmo tempo que promoveu uma releitura dinâmica a partir de criações coletivizadas entre duas gerações de músicos e a divulgou de maneira ampla a um novo público que poucas vezes teria contato com essas expressões devido às insuficiências dos projetos políticos inclusivos de nosso país. Ao mesmo tempo em que constrói um projeto capaz de divulgar amplamente culturas tradicionais como a indígena e a africana através do Carimbó, essa experiência constrói também um território identitário, que mais do que revelar conceitos elementares dessas culturas, enaltece a importância dos mesmos através das conexões que se realizam entre a música tradicional e as novas criações do cenário independente. Dessa forma, a tradição do Carimbó pode se potencializar, pois nega o

engessamento de suas articulações e se afirma cada vez mais como uma expressão cultural capaz de dialogar com novas tendências e criações e assim distribuir e reverberar suas características e valores para um público que até então o tinha como desconhecido. O que quisemos revelar neste trabalho, portanto, foi o fato de que tanto o Casarão Cultural, quanto o Circuito Floresta como seu projeto articulado, pode ser encarado como um exemplo de sucesso a ser considerado quando se tem a intenção de implementar práticas que tenham como intuito retirar do estado de negligência os saberes, valores e fazeres de povos que contribuíram diretamente com a construção social, cultural e econômica de nosso país, afirmando-os mais intensamente como agentes políticos no ambiente em que vivem. Conclui-se então que esse tipo de experiência desenvolvida no Pará pode servir de exemplo para viabilização de práticas educativas e demais políticas públicas, que vão além do ambiente institucionalizado da escola, e assim podem contribuir diretamente com a afirmação e ampliação dos conhecimentos acerca das riquezas étnicas em nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARBALHO, A. Políticas Culturais no Brasil: Identidade e diversidade sem diferença. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2007/AlexandreBarbalho.pdf. Acesso em 26 ago. 2011. BLANCO, S. M. R. O carimbó em algodoal e seus aspectos sócio-gráficos. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. Universidade do Estado do Pará – 2010. in http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html

CARVALHO, J. P. Carimbó: patrimônio de um povo. 2011. 24 f. Trabalho de conclusão de curso de especialização. (Curso de Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial) – Faculdade Integrada Brasil Amazônia, Belém, 2011. CASTELLS, M. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. CLEMENTE, C.C, PIRES. S. Cultura Politica e mulheres de comunidades populares ação feminina na Congada de Uberlândia. In Diálogos, comunidade, cidadania: o programa Conexões Saberes na UFU. Uberlândia: PROEX/UFU, 2011 DIAS, M. O espaço da produção independente. In: Os donos da voz. 1ª Edição: Junho, 2000.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp. 1991 GILROY, P. Jóias trazidas da servidão: música negra e a política da autenticidade. In: Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. HARVEY, D. Condição pós-moderna. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Estela Gonçalves, São Paulo: Edições Loyola, 2009. MARCUSE, H. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Vol 1, p. 95-97 NUNES, R. O Casarão Cultural Floresta Sonora. Diário do Pará. Belém, PA [Online]. Setembro, 2009. SCHIMIDT, V. H. Múltiplas modernidades ou variedade de modernidades? Revista de Sociologia Política, Curitiba, 28, p. 147-169, jun. 2007. ZANON, B. Tamboril Apresenta Circuito Floresta Sonora - Parte 1. 2010 [Online][Visto em 28/06/2013] proveniente na World Wide Web: http://www.youtube.com/watch?v=iLR-O_Xgdbk

ZANON, B. Tamboril Apresenta Circuito Floresta Sonora - Parte 2. 2010 [Online][Visto em 28/06/2013] proveniente na World Wide Web: HYPERLINK

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.