CIRCUITOS COMUNICATIVOS DA AFRODIÁSPORA: ENUNCIAÇÃO, POLIFONIA E AS SABEDORIAS DE FRESTA

May 28, 2017 | Autor: Mailsa Passos | Categoria: Cultural Studies, Education, Curriculum, Afrodiáspora
Share Embed


Descrição do Produto

CIRCUITOS COMUNICATIVOS DA AFRODIÁSPORA: ENUNCIAÇÃO, POLIFONIA E AS SABEDORIAS DE FRESTA José Carlos Teixeira Júnior – PROPED/UERJ1 Luiz Rufino Rodrigues Júnior – PROPED/UERJ2 Mailsa Carla Pinto Passos – PROPED/UERJ3

O presente texto consiste em uma reflexão sobre o conhecimento produzido em circuitos comunicativos afrodiaspóricos em diálogo com os estudos do cotidiano. Pressupomos que práticas e sujeitos circulam cotidianamente em diferentes ambientes educativos, e que mesmo tendo sido produzidos como ‘não-existência” pelo pensamento hegemônico (SANTOS, 2008, 2010), realizam deslocamentos culturais nestes cotidianos, transformando estes tempos-espaços, na medida em que se transformam neles, através da/pela linguagem. Neste texto pretendemos realizar uma discussão sobre as contribuições do pensamento de Mikhail Bakhtin para a compreensão destes praticantes e de suas práticas, em especial no que diz respeito aos conceitos de polifonia e dialogia. A proposta de discutir estes contextos enquanto “circuitos comunicativos”, em consonância com o que anuncia Gilroy (2001), justifica-se na medida de sua potência no estabelecimento de laços, alianças e performatividades culturais e identitárias. Nossa proposta articula-se em dois momentos. O primeiro propõe pensarmos a enunciação em uma prática cultural afrodiaspórica, o jongo, e as formas como os discursos circulam ali, polifonica e dialogicamente. No jongo, para que exista uma estrutura sonora propícia para o cantador lançar seus versos, é necessário o diálogo com                                                                                                                         1

Doutor em Educação, mestre em Musicologia/Etnografia das práticas musicais. Professor da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro.

2

Doutorando em Educação pelo Proped/UERJ, pedagogo e autor do livro, Histórias e Saberes de Jongueiros (Multifoco, 2014).

3

Doutora em Educação pela PUC do Rio de Janeiro, Professora Adjunto da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação da UERJ, Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Culturas e Identidades no 2 Cotidiano”. Doutorando em Educação pelo Proped/UERJ, pedagogo e autor do livro, Histórias e Saberes de 4 Jongueiros Invoco o (Multifoco, termo preto-velho 2014). como referência simbólica das presenças negras e ancestrais na afrodiáspora. 3 Doutora em Educação pela PUC do Rio de Janeiro, Professora Adjunto da Faculdade de Educação e do 5 Programa O JongodeéPós-Graduação uma prática cultural da UERJ,afro-brasileira Coordenadorainventada do Gruponos de Pesquisa fluxos da “Culturas diásporae Identidades africana pelas no Cotidiano”.

2

 

outras vozes, as tensões entre elas, interpretações que refletem e refratam o contexto em que circulam. O segundo momento traz uma reflexão sobre como essas práticas afrodiaspóricas provocam deslocamentos. Para cumprir a tarefa, apresentamos uma experiência de jovens na apropriação do funk carioca no cotidiano de uma escola municipal no Rio de Janeiro. A pergunta que nos fazemos na elaboração deste estudo seria, em linhas gerais, a seguinte: em que medida essas práticas narradas, com seu caráter polifônico e sua potência para o estabelecimento de laços culturais, tensionam uma determinada ordem colonial e enunciam outras maneiras de conhecer potencialmente emancipatórias?

Um dizer, múltiplos entenderes: sabedorias de fresta e a montagem de linguagens outras Papai velho é falador, Fala pra qualquer entender, É língua de Nêgo-véio do Congo, Fala pra eu e pra vós suncê!

As presenças negro-africanas nas Américas codificaram nas travessias do Atlântico um inacabado e múltiplo balaio de experiências e invenções. A trama dessa tessitura é firmada por muitos pontos e fios que se cruzam e se atam. Os seres amalgamados na condição de afro-latinos inscreveram suas presenças nas frestas das violências que lhe foram impostas. O colonialismo é um regime de dominação que edifica um mundo monológico em detrimento da diversidade. Esse modelo opera no ataque contra a vida de milhões de seres, incide do desmantelo cognitivo ao desarranjo das memórias, dos processos de desterritorialização aos traumas da pertença, o colonialismo produz naqueles que subordina uma dupla morte, física e simbólica. Porém, existem frestas. Os jongueiros, presenças resilientes encarnados por múltiplas sabedorias praticadas no trânsito, nos mostram que a vida é reinscrita, a partir da montagem de outras formas de enunciação. A palavra, o movimento, o discurso verbal ou não verbal, o enigma são inscrições das presenças daqueles que enunciam e praticam os jogos da comunicação de maneira plurilinguísta. Assim, dizer sem que seja percebido, comunicar no não dito, praticar infinitas possibilidades de diálogo por diferentes formas de textualidade é sapiência de fresta. Na diáspora a noção de

3

 

montagem emerge como a capacidade que sujeitos “submetidos” a regimes totalitários tiveram de burlar sistemas de poder monológicos reinscrevendo textualidades plurilinguístas e poliracionais, formas inventivas, a partir dos fragmentos desmantelados pela trágica experiência do desterro. Recriar, a partir dos fragmentos, operar nas frestas fazendo uso dos saberes amalgamados de forma cosmopolita é um ensinamento passado pelos mestres cumbas, senhores detentores dos segredos e saberes da comunicação cifrada e encantada. Assim, recodificar as formas de enunciação não é meramente uma ação de subversão, mas de transgressão, é a absorção do outro para a reinvenção do eu como um terceiro elemento não ajustável a ordem dicotômica proposta pelo colonialismo. O jogo performatizado nas frestas, invenção dos seres e suas formas de comunicação nas margens, reconfigura a dinâmica da relação colonial de forma dialógica, polifônica e ambivalente, ou seja, o conflito é o elemento que fia as potências inventivas no novo mundo. O ser negro na diáspora é marcado por aquilo que W.E.B. Du Bois (1999) chamou de dupla consciência. Em uma ordem de mundo binária, o ser se lança na fuga, no escape enquanto invenção angariando espaços de fresta, praticando os vazios deixados e a recodificação de si como um novo elemento sempre inacabado e não ajustável a ordem vigente.

Se o colonialismo se edifica, a partir da destituição

ontológica das populações negro-africanas, essas mesmas populações relegadas ao desvio existencial reinventam-se de forma resiliente nos muitos caminhos da linguagem. Como terreno radicalizado no conflito, a linguagem sempre deixa espaços e faz emergir as possibilidades de praticá-las. Assim, as sabedorias praticadas nas margens foram atando versos, falando para não dizer e não dizendo para inscrever outras possibilidades. A filosofia da linguagem dos pretos-velhos4 tem suas artimanhas. O jongo5, como sabedoria de fresta, radicalmente anti-racista e decolonial, encarna essa filosofia. Certa vez um jongueiro definiu para nós o discurso entoado em forma de veros cantado nas rodas de jongo. Ele nos disse naquela ocasião que estes são                                                                                                                         4

Invoco o termo preto-velho como referência simbólica das presenças negras e ancestrais na afrodiáspora.

5

O Jongo é uma prática cultural afro-brasileira inventada nos fluxos da diáspora africana pelas populações negro-africanas compreendidas no complexo Banto. É praticado na Região Sudeste do Brasil e tem o título de patrimônio imaterial brasileiro. A manifestação se caracteriza pela sua dança, música e a relação dos aspectos profanos com os sagrados. Sua música é marcada pela percussão de tambores e pelos cantos improvisados, impregnados de teor enigmático. Lopes (2005), ao comentar sobre as tradições Banto e negro-africanas em geral, destaca a importância do papel desempenhado pelas canções nesta prática, uma vez que o material sonoro com que elas operam influencia tanto no plano cósmico quanto nas práticas cotidianas.

4

 

um dizer com dois entender! Ao expressar essa ideia, o praticante chamou nossa atenção para elementos fundamentais que compõem essa forma de textualidade, presente na prática cultural do jongo: o uso de uma linguagem própria carregadas de múltiplos signos que se cruzam e imbricam-se na codificação de narrativas geradas no trânsito e paridas nas margens do novo mundo. O exercício de multiplicar as possibilidades de interpretação de um único dizer é reconhecido nas rodas de jongo e de outras práticas culturais afro-brasileiras, como uma habilidade valiosa de alguns praticantes, uma demonstração de experiência e sabedoria. Além disso, no jongo, o caráter polissêmico dos pontos pode ser analisado como a materialização de uma outra forma de ver o mundo, de narrá-lo e de narrar-se neste mundo, diferente daquela veiculada e valorizada pela modernidade, na qual uma racionalidade monovalente/monológica impõe-se, contrapondo-se a outras tantas que ela nega, silencia e rejeita. Bakhtin nos ensina que a palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra (BAKHTIN, 2010, p. 176).

Se assim entendemos a palavra, aquilo que comunica o jongueiro sobre o que é enunciado nos pontos6 (“um dizer com múltiplos entenderes”) nos dá pistas do movimento dialógico presente no que é enunciado nessas práticas através das músicas que circulam ali. Estão implicados nestas redes de significados o jongueiro que enuncia e seus interlocutores, em uma dinâmica de sentidos, que desconfiamos não estar presente somente na prática cultural em questão, mas em outras práticas e em outros universos culturais e sociais compartilhados por estes sujeitos. A palavra é sempre recebida da voz do outro, está repleta da voz do outro, está impregnada de interpretação e de alteridade. Seu significado é sempre incompletude, algo que se está ainda por ser decifrado, na dinâmica da relação com o outro. Se Bakhtin vê essas questões da circulação da palavra, sua necessária incompletude e o caráter dialógico da linguagem, como fundamentais para o estudo e análise do discurso artístico, para nós elas contribuem para se pensar a sociedade. Em                                                                                                                         6

Ponto é a expressão utilizada para chamar as cantigas entoadas nas rodas de jongo. Esse termo também é comum em outras manifestações culturais de matriz africana. No jongo, mais especificamente, a palavra ponto caracteriza a dinâmica de improvisação e interpretação das cantigas, considerando que os jongueiros dizem: lançar ou amarrar um ponto e desatar um ponto ou nó.

5

 

especial as práticas e os discursos que circulam naqueles ambientes aos quais chamamos de educativos, que são frequentados por sujeitos de universos sociais e culturais distintos e nos quais uma determinada lógica organiza os discursos e as práticas em uma determinada ordem (FOULCAUT, 2005) impondo muitas vezes uma forma monológica de compreensão e validação desses discursos. Mas o que teria afinal a cultura do jongo e as formas como a palavra circula ali para ensinar-nos sobre a sociedade e sobre as práticas educativas? A palavra reflete e refrata a realidade (BAKHTIN, 2010). Isto é uma dinâmica inexorável da circulação dos discursos, que deve ser levada em consideração se desejamos compreender os sujeitos e seus enunciados. Uma dinâmica que não é harmônica, mas antes carregada de complexidade, polifonia e conflituosa; na qual os planos da vida estabelecem uma relação dialógica, interpenetrando-se, sem necessariamente alcançar uma síntese, sempre refletindo as negociações presentes nas relações sociais. Entendemos

que

as

performances

afrodiaspóricas

são

tempos-espaços

potencialmente ricos para a reflexão de como o aspecto dialógico e polifônico da linguagem se estabelecessem na circulação dos discursos e práticas em ambientes educativos. Através de seu estudo, ou do estudo de seus usos sociais, é possível conhecer além da confluência/tensão/conflito, os interditos, as múltiplas histórias e vozes que foram/são silenciadas, mas que persistem na linguagem metafórica. No jongo, por exemplo, para que exista ambientações propícias para o cantador lançar seus versos é necessário o diálogo com outras vozes, as tensões entre elas, interpretações que refletem e refratam o contexto em que circulam. Esta dinâmica é estabelecida não só verbalmente, mas também por um tambor intitulado caxambu que quando “pronuncia” uma determinada frase, tem como interlocutor o candongueiro, que enuncia uma frase contrária a anterior. A seguir, outro tambor, o tambu, alinhava outra frase entre o diálogo estabelecido pelos dois primeiros. Somam-se a essa conversa as bases sonoras emitidas pelas palmas de mão e as vozes enunciadas pelos movimentos corpóreos dos praticantes. Dessa forma as linguagens do jongo são produzidas como discursos polifônicos, dialógicos e inacabados, já que as frases pronunciadas pelo tambu e pelos cantadores são livres para criação de improvisos provocando constantes alterações nas sonoridades produzidas. Como nos chama a atenção Gilroy, ao referir-se à afrodiáspora e as suas textualidades:

6

 

Além da música e dos próprios músicos devemos também levar em conta o trabalho daqueles que, no interior da cultura expressiva do Atlântico negro, tentaram utilizar sua música como um marco estético, político ou filosófico na produção do que se poderia livremente chamar de suas teorias sociais críticas. Aqui é necessário considerar o trabalho e uma multidão inteira de figuras exemplares. (GILROY, 2001, p. 169)

Mulheres e homens, sujeitos afrodiaspórico, têm historicamente lançado mão de uma infinidade de manifestações estéticas para expressar-se, socializar-se, transmitir saberes, estabelecer laços e alianças entres seus pares (GILROY, 2001). O desenho discursivo apresentado acima, na descrição do diálogo dos instrumentos no jongo, com o qual tentamos demonstrar parte das performances da manifestação, é um dentre muitos que se repetem em outras práticas culturais afrodiaspóricas. Compreendemos, influenciados por Gilroy (2001), que os discursos da afrodiáspora, assumem outras textualidades, no caso ressaltado pelo autor da música negra a todo o tempo escapa e contraria os estereótipos impostos, caracterizando-se como textualidade que desempenha um papel social, sempre provido de intenção através do corpo, do som e da palavra - e de conteúdo político. Escolhemos como prática para esta discussão que ora propomos o jongo, porém isto que poderíamos chamar de uma “dinâmica polifônica” está presente em outras manifestações afrodiaspóricas com o funk, o candomblé, o samba, a capoeira. Nosso estudo vai no sentido de tratar essas práticas, muitas vezes produzidas como inexistência pelo pensamento ocidental moderno, como tempo-espaço de circulação de saberes. Santos (2010) afirma que nas sociedades contemporâneas existe o que ele chama de “pensamento abissal”. Um modelo fundamentado em “distinções visíveis” e “distinções invisíveis”, sendo as primeiras garantidas e explicadas pelas últimas. As distinções invisíveis se estabelecem através de uma linha que divide a realidade social em dois universos: aquilo que existe e o que é produzido como não existência. O pensamento abissal se sustenta na impossibilidade da coopresença entre os dois lados da linha. A visibilidade dos sujeitos - seus conhecimentos e suas práticas - de um dos lados da linha assenta-se na negação daquilo que está do outro lado. Pensamos que os processos de socialização das populações afrodiaspóricas na sociedade constituem em um exemplo de como ocorre essa produção da não-existência a que se refere Santos (op. cit.). A discussão que pretendemos estabelecer tem o propósito de tratar as performances da afrodiáspora e seus praticantes como práticas e

7

 

sujeitos de saber, deslocando-os deste lugar da não-existência onde foram colocados. Nossa preocupação gira em torno especificamente de como essas performances se manifestam “como um marco estético, político ou filosófico” (GILROY, op. cit.) no cotidiano, reinventando-se, narrando as memórias de seus praticantes, incomodando e/ou desestabilizando-nos por seu caráter multifacetado, polifônico. Partimos de alguns pressupostos para pensarmos as problemáticas em torno das textualidades afrodiaspóricas. Entendemos que essas enunciações são formuladas a partir de outras racionalidades e que não se limitam à forma como pensamento moderno as compreende. Tanto a invisibilização dessas práticas como circuitos comunicativos, como tempos-espaços de saberes e memórias, quanto a produção de uma ideia de subalternização em relação a elas, são exemplos de manifestações racistas que se assentam em uma lógica colonial.

São fruto da incompreensão das dinâmicas

formadoras dessas performances e do incômodo que as mesmas produzem, quando seus praticantes reagem ao lugar de subalternalidade e de estereótipo que muitas vezes são confinados pelo discurso monológico.

A montagem do funk: performances afrodiaspóricas no cotidiano escolar É tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2...

A diáspora africana é um acontecimento inacabado que tem como marca constituinte a experiência dupla do desvio existencial e da invenção. São nas dobras e frestas desse movimento duplo que se inscrevem performances encarnadas pelas múltiplas sabedorias negro-africanas amalgamadas de forma cosmopolita pelo Atlântico. O que é praticado por aqui como de marca negro-africano expressa as inúmeras sabedorias ancestrais resultantes de uma dinâmica ambivalente entre desmantelo e montagem. Jongo, samba, umbanda e funk são exemplos de conhecimentos que foram despedaçados e remontados no fluxo. O duplo desvio existência/invenção codificou uma gramática própria do ser/saber negro-africano nas Américas. Uma gramática plural, inacabada e em constante codificação. Os caminhos apontados pela teoria da diáspora africana nos dão passagem para o enlace de diferentes questões vividas nos cotidianos de nossa aldeia. O diálogo com o aporte conceitual advindo das experiências em trânsito do ser negro e suas práticas

8

 

contribui para pensarmos o cotidiano escolar também em função de alguns deslocamentos realizados neste tempo-espaço. As performances afrodiaspóricas nos tomam, seja por aquilo que alcançamos delas ou não. O encantamento é resultante do aspecto polifônico dessas práticas - ao que já nos referimos anteriormente neste trabalho - em cuja dinâmica é possível notar a presença de múltiplas vozes em diálogo nem sempre harmônico, frequentemente carregado de complexidade e conflito – são narrativas das quais emergem vozes e contra-vozes. No diálogo com essas práticas e seus sujeitos é possível problematizarmos o sentido de legitimidade do conhecimento histórico e socialmente verdadeiro da ciência moderna que enxerga no cotidiano e em seus mais diversos sujeitos anônimos, ordinários (CERTEAU, 1994) um conhecimento fragmentado, efêmero. No caso dos discursos sobre a cultura negra, por exemplo, a perpetuação dos determinismos e convencionalismos tem transformado sua contemporaneidade em uma parte bastante reduzida de sua simultaneidade – reduzindo, muitas vezes, a questão racial a limites biológicos (ex.: fenótipo), geográficos (ex.: África, favela, etc.) ou mesmo culturais exclusivos (ex.: o Candomblé, a Capoeira, o Samba. O Funk, etc.) – e, com isso, construído ativamente a invisibilidade do que o próprio Gilroy descreve como “um circuito comunicativo que capacitou [e ainda capacita] as populações dispersas a conversar, interagir e mais recentemente até sincronizar significativos elementos de suas vidas culturais e sociais” (GILROY, 2001, p. 20-21). Não coincidentemente, é o próprio autor de O Atlântico negro que destaca as práticas musicais afrodiaspóricas nestes deslocamentos. Segundo ele, a música e seus rituais podem ser utilizados para criar um modelo pelo qual a identidade não pode ser entendida nem como uma essência fixa nem como uma construção vaga e extremamente contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e apreciadores de jogos de linguagem. A identidade negra não é meramente uma categoria social e política a ser utilizada ou abandonada de acordo com a medida na qual a retórica que a apóia e legitima é persuasiva ou institucionalmente poderosa. Seja o que for que os construcionistas radicais possam dizer, ela é vivida como um sentido experiencial coerente (embora nem sempre estável) do eu [self]. Embora muitas vezes sentida como natural e espontânea, ela permanece o resultado da atividade prática: linguagem, gestos, significações corporais, desejos (GILROY, 2001, p. 209).

Foi justamente mergulhando na música enquanto uma “atividade prática” – conforme destacado por Gilroy – ou, ainda mais especificamente, no movimento de criação e gestão compartilhada de uma rádio no cotidiano de uma escola municipal

9

 

carioca, a chamada Gonzagão Digital, que tornou possível a interação (BAKHTIN, 2004) com o funk carioca7. E é justamente deste lugar que tornou-se possível, também, o diálogo com a noção de montagem no funk carioca. Um diálogo que gostaríamos de discutir, aqui, a partir de alguns pontos específicos. Pontos, estes, que sugerimos que sejam entendidos como enigmas daquilo que nos tem ensinado alguns dos próprios estudantes-DJs8: pequenas estruturas sonoras, previamente gravadas, que possibilitam, num movimento de bricolagem, a composição dos mais diferentes tipos de funks carioca. Em outras palavras, os pontos apresentados no decorrer dos próximos parágrafos não devem ser entendidos, de forma alguma, como etapas de um determinado processo, mas sim como diferenças sonoras que coabitam uma mesma, porém ampla e complexa, narratividade da diáspora negra em plena “era da reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1983a). Como primeiro ponto, podemos destacar a montagem como uma categoria classificatória do funk carioca. Uma categoria ao lado de outras categorias como, por exemplo, os chamados “funk-proibidão”, o “funk-putaria” e o “funk-ostentação”. Apesar de todos esses tipos apresentarem-se como equivalentes sob um discurso racializado que tenta, insistentemente, regular a complexidade dessas enunciações fixando-as à apologia ao tráfico de drogas, à pornografia e ao consumo alienado, o funk                                                                                                                         7

Financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), mais especificamente através do edital Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro, a Gonzagão Digital surgiu como um projeto elaborado numa parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (EDU/UERJ), a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga e um grupo de jovens moradores da Cidade de Deus (formado por alunos e ex-alunos desta mesma escola), com o objetivo de conhecer o movimento de apropriação (produção e consumo) de arquivos digitais como uma performance em educação (PASSOS, 2013). O movimento de apropriação de arquivos digitais como uma performance educacional já se apresentava como uma prática cotidianamente realizada na referida escola municipal, mais especificamente pelo professor de música e estudantes do segundo segmento do Ensino Fundamental. Desde o ano de 2011, com um Virtual DJ Free instalado em um notebook conectado, por um lado, a uma caixa amplificada via cabo P2-RCA e, por outro lado, a um aparelho celular via cabo USB, estes estudantes tocavam seus repertórios semanalmente no pátio interno da escola durante seus vinte minutos de recreio. O caráter compartilhado desta performance musical e o uso constante da sala de aula como um importante tempo-espaço de “troca de experiências” (BENJAMIN, 1983b), possibilitava a emergência de importantes questões que tecem o currículo da educação escolar, sobretudo no que diz respeito às leis federais 10.639/2003 e 11.769/2008. Podemos destacar, por exemplo, questões como repertório, reprodutibilidade técnica, performance, violência, estereótipo, sexualidade, consumo, territorialidade e relações de pertencimento, dentre outras. Com a Gonzagão Digital foi possível não apenas fortalecer esta performance educacional já realizada cotidianamente, principalmente com a aquisição de equipamentos melhores, mais diversificados e potentes, como também ampliar esta mesma prática musical, tanto com a participação mais direta de outros professores da escola, como também de outros moradores das localidades atendidas pela mesma.

8

Por estudantes-DJs nos referimos, aqui, a um híbrido. Trata-se dos estudantes do segundo segmento do ensino fundamental da referida escola que participavam diretamente da apropriação de arquivos digitais através dos equipamentos descritos na nota anterior em performances típicas de um disc-jóquei (DJ).

10

 

montagem, contudo, traz uma significativa distinção. Enquanto os funks proibidão, putaria e ostentação são assim categorizados em virtude de seu conteúdo literário – os quais narram não uma simples apologia, mas sim algumas complexas e bastante tensas relações que tecem a questão social, como violência, sexualidade e consumo, por exemplo, sobretudo na vida prática da juventude negra e favelada da cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, funk-montagem é assim categorizado pela justaposição de sons que realiza. Isso não exclui, necessariamente, a dimensão poética de sua composição, mas sim desloca sua radicalidade para uma dimensão estética mais polifônica e dialógica (BAKHTIN, 2010) posicionando-a na figura do disc-jóquei. O funkmontagem pode apresentar-se de forma tanto instrumental – comumente chamado de funk-aquecimento9 – como, também, narrando um conteúdo literário específico, passando, inclusive, pelos interstícios de uma terceira via que, ao explorar os elementos acústicos de determinadas palavras (através de loops, scratches, samplers e sintetizadores, por exemplo), dilui, ainda que momentaneamente, seus sentidos literários em um conteúdo mais determinantemente sonoro10. Conforme o enunciado na epígrafe da presente seção, “É tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2...”11 Como segundo ponto, gostaríamos de destacar a montagem como uma categoria no compartilhamento do funk carioca pela internet. Um dos principais canais de compartilhamento de música utilizados pelos estudantes-DJs é o site do YouTube. Muitos funks encontram-se disponibilizados neste site para downloads gratuitos, os quais podem ser realizados através de vários softwares e aplicativos. Entretanto, como este site consiste em uma plataforma de compartilhamento de vídeos, os jovens quando                                                                                                                         9

O chamado funk-aquecimento consiste em um funk instrumental muitas vezes tocado no início dos bailes para “aquecer” seus frequentadores.

10

Ao abordar a cultura negra na era da simulação digital, Gilroy faz uma descrição muito semelhante ao funk-montagem: “instrumentos acústicos e elétricos são inorganicamente combinados com sintetizadores digitais, uma multiplicidade de sons encontrados; gritos típicos, fragmentos mordazes de discurso ou canto e amostra de gravações anteriores – tanto vocais como instrumentais – cuja textualidade aberta é atacada em afirmações brincalhonas do espírito insubordinado que amarra essa forma radical a uma importante definição de negritude” (GILROY, 2001, p. 212).

11

Apesar do conteúdo mais determinantemente sonoro por conta da sequência quase ininterrupta de repetições da expressão “é tudo 2”, não podemos deixar de destacar que ela também enuncia outras importantes questões que tecem o cotidiano destes jovens estudantes da escola municipal em questão. Podemos citar, por exemplo, o “tamu junto” ou “tudo na paz”, expressões bastante utilizadas pelos referidos estudantes para se referirem tanto a uma relação horizontalizada entre eles próprios e entre eles e alguns professores, como também às alianças internas do Comando Vermelho no processo de reestruturação geopolítica do mercado varejista de drogas da cidade do Rio de Janeiro na década de 2000.

11

 

disponibilizam seus funks acabam justapondo – ou melhor, montando – imagens a suas composições, tanto fotos como vídeos, fato que vem complexificar ainda mais a polifonia e dialogicidade desta mesma prática musical. São imagens, inclusive, que enunciam as mais diferentes questões que tecem o cotidiano destes mesmos jovens como violência, gênero, sexualidade, territórios, consumo, relações de pertencimento, dentre tantas outras. O terceiro ponto diz respeito à performance do DJ, ou seja, à montagem de uma sequência de músicas. Uma montagem que envolve não apenas um repertório mais amplo, que de forma alguma se encerra no funk carioca, mas também a forma que a própria sequência é montada. “Quais músicas compõem a sequência?”, “Quais trechos são utilizados?”, “Quais trechos são descartados?”, “Como estes trechos são misturados?”, “Que sonoridades atravessam esta mesma sequência?”. Eis algumas questões que tecem a produção de uma montagem. Uma produção que ao exigir um estreito diálogo com a manipulação dos equipamentos digitais – como aparelho celular, computador e Virtual DJ, por exemplo – torna estes mesmos equipamentos quase que uma extensão do próprio corpo. Um corpo híbrido, poderíamos assim dizer, capaz de tensionar qualquer tentativa de enquadrá-lo nos limites dicotômicos entre as chamadas novas e velhas tecnologias. Um corpo híbrido, inclusive, que reinventa os sentidos destes mesmos aparelhos eletrônicos, cujo uso nas salas de aula do município do Rio de Janeiro vem sendo reiteradamente proibido pela lei 4.734/2008 sob a justificativa de causar um “transtorno à ministração de aulas” e um “desrespeito à autoridade do professor e a paciência dos alunos que querem aprender”, pois, segundo este documento, “a utilização de tais equipamentos, causa a desconcentração e inibe a memorização dos demais alunos” (TEIXEIRA, 2007, p. 2). Sob esta perspectiva, enfim, a justaposição de palavras, sons, imagens e corpos que a montagem no funk carioca realiza no cotidiano de uma escola municipal carioca nos sugere, a partir destes pontos brevemente sampleados, um movimento de i(n)teração, ou seja, um movimento de repetição que, por sua composição eminentemente polifônica e dialógica, nunca é igual. Uma não-igualdade que, ao enunciar suas mais tensas desigualdades e diferenças, enuncia o conflito como elemento estruturante de suas relações intersubjetivas – e não como crise ou exceção de prédeterminado padrão de sociabilidade.

12

 

Um “ponto sampleado” para o rumar da prosa Quais fios alinhavam os pontos das inúmeras invenções na diáspora? Para os jongueiros o jogo da comunicação é perspectivado, a partir do prolongamento da prosa. Assim, o acabamento provisório para uma pergunta é o levantamento de uma nova questão. No jogo enigmático da comunicação dos jongueiros é um princípio avançar nas perguntas. Uma resposta que propõem esgotar as possibilidades de dobra de um determinado questionamento é contrária ao transe, trânsito, elemento que expressa a natureza radical das identidades em diáspora. Em outras performances fundamenta-se o mesmo princípio. Entre quebras e montagens, o que pode parecer repetitivo às escutas monológicas fixadas em determinadas mentalidades, essas outras enunciações contrariam a lógica emergindo como potência que reinstaura as dimensões do ser e de suas possibilidades de expansão e criação, a partir da vibração. Não coincidentemente, nos diria Fanon (2008), que o vibrar é o primeiro tom das presenças dos seres no mundo. As vibrações dos sons, das gestualidades, das palavras, das inscrições de inúmeras possibilidades de interação com o mundo deslocam o corpo negro de uma condição de desvio existencial para figurar como um suporte potente e complexo, que é ao mesmo tempo inventário e produtor de saberes múltiplos. É nas vibrações do corpo, nos saberes em performance, nas corporeidades que se configuram as inúmeras montagens das textualidades afrodiaspóricas. Um timbre, um verso, um movimento qualquer difere as formas de enunciação paridas no transito diaspórico, porém ficam as ressonâncias dessas montagens que nos permitem pensar o fenômeno do desmantelo e da invenção como uma experiência comum vivida pelos sujeitos que encarnam essas práticas. Seja no caxambu do jongo ou no tamborzão do funk, no verso atado do velho cumba ou no improviso sampleado do jovem DJ, a diáspora alinhava uma complexa trama polifônica e dialógica que se firma no campo das identidades, dos saberes e das suas formas de enunciação. O projeto colonial assume-se como um empreendimento monológico, contrário a diversidade do ser, do saber e do diálogo horizontal com outras formas de produção. A condição de subordinação imposta pelo colonialismo opera como uma espécie de catequese da língua que tem como primeiro ataque a contenção das potencialidades do corpo, o transe. É nesse sentido que racismo/colonialismo são faces da mesma moeda.

13

 

Não há subordinação, a partir da linguagem que não perpasse por uma destituição ontológica. É nesse sentido, que Fanon (2008) chama atenção para as problemáticas em torno da linguagem e das relações entre negros e brancos, colonizados e colonizadores. O que é apontado por nós ao longo dessas passagens são as potências e possibilidades de produção de conhecimentos através das performances no campo da linguagem.

As

performances

afrodiaspóricas,

produtoras

de

textualidades

frequentemente não alcançadas pela racionalidade dominante, têm na linguagem, fenômeno polifônico e dialógico, as possibilidades de operações nos vazios deixados, pois não há comunicação, mesmo que arbitrária e autoritária, sem que exista a presença do outro e a instauração de um jogo. É em meio ao jogo que operam as sabedorias de frestas, é nesse terreno permeado por uma confluência de tons que se pari formas de dizer não dizendo, dobra-se a linguagem, faz de um dizer vários entenderes. Papai velho é falador, fala em qualquer entender... para cada signo que nos foi “imposto” como truque para a simplificação de um mundo que é diverso, nós parimos nas margens, através dos nossos corpos suporte de sabedorias e potência múltiplas, outros entenderes para esses dizeres. Rasuramos as lógicas, ao contrário deles, nós subordinados pelo regime colonial, nos tornamos plurilinguístas, inventamos mundos possíveis, a partir de outros inventários, dobramos a linguagem operando sabedorias de fresta.

Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. __________. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. In: __________. Textos escolhidos. Coleção Os Pensadores. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, p. 3-28. __________. “O narrador”. In: __________. Textos escolhidos. Coleção Os Pensadores. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983b. p. 57-74. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

 

14

DU BOIS, W.E.B. As almas da Gente Negra; tradução, introdução e notas, Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda ED., 1999. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2005 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008 LOPES, Nei. Partido-alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. PASSOS, Mailsa. “Culturas, sonoridades e processos identitários da comunidade escolar Compositor Luiz Gonzaga”. Projeto apresentado ao edital 034/2013 da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (No do Processo: E26/111.909/2013). Rio de Janeiro: FAPERJ, 2013. RUFINO, Luiz. Histórias e Saberes de Jongueiros. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2014. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo- para uma cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. __________. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: MENESES, Maria Paula e SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010. TEIXEIRA, Vereadora Pastora Márcia. Projeto de Lei 1.107. Rio de Janeiro: Câmara dos Vereadores, 2007. TEIXEIRA JR., José Carlos. Na narrativa dos MJs da Compositor: música, tecnologias e enunciações no cotidiano escolar. 2015. 156 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.