Circulação e corte na ilha de Hispaniola

June 13, 2017 | Autor: Felipe Evangelista | Categoria: Haiti, Borders and Frontiers, Republica Dominicana
Share Embed


Descrição do Produto

CIRCULAÇÃO E CORTE NA ILHA DE HISPANIOLA Felipe Evangelista.1 Resumo. O artigo segue algumas transformações pelas quais passaram os territórios de fronteira entre a República Dominicana e o Haiti, usando estudos históricos e dados etnográficos de pesquisa em andamento, para colocar questões sobre como, por um lado, foi – e continua sendo – criada essa fronteira, e por outro, o que essa fronteira cria, quais movimentos ela convida e quais repele. O processo costuma ser descrito como a passagem duma demarcação mais frouxa, como uma mancha sem contornos precisos, onde a filiação da população a um ou outro lado era por vezes ambígua, para uma linha com limites espaciais claros e bem definidos, movimento análogo ao que ocorreu com as definições de cidadania e pertencimento para as populações fronteiriças. Mais que descrever de forma teleológica uma mudança, onde a fronteira que não existia passou a existir e ganhou consistência, me interessa evidenciar o esforço continuado para que ela continue existindo, ou seja, como sua eficácia prática é performada. Nesse intuito, descrevo os postos fronteiriços de Malpas, Carrizal e Anse-a-Pit, buscando elementos para compreender como se negocia a travessia de pessoas e objetos nesses sítios.

Palavras-chave: fronteira, Haiti, República Dominicana. Essa comunicação visa discutir os primeiros dados de uma pesquisa de campo recém-começada sobre a fronteira haitiano-dominicana. Entre março e julho de 2015, fiquei um total de quatro meses na ilha, durante os quais me movimentei bastante, com o objetivo de conhecer o terreno. A casa onde aluguei um quarto ficava na seção comunal de Fonds-Parisien, lugar que adotei como minha base. A rota nacional 8 é a principal estrada que conecta a República Dominicana ao Haiti, ela vai de uma capital à outra, de Santo Domingo a Porto Príncipe, passando por FondsParisien, que é a primeira cidade haitiana (ou a última, dependendo do sentido em que se viaje) após o posto fronteiriço chamado de Malpas, ou Malpasso, em castelhano. O grosso do comércio entre os dois países passa pela estrada onde está Fonds-Parisien, há um fluxo considerável de caminhões diariamente, porém eles estão ali de passagem. Da imensa quantidade de mercadorias que atravessa o posto de Malpas, uma parte ínfima fica lá. A proximidade com a capital Porto Príncipe, que fica a apenas uma hora ou hora e meia de distância, torna Fonds-Parisien parte de sua órbita. Há, por exemplo, muita gente que trabalha em Porto Príncipe, e vai e volta todos os dias. A importância da capital de alguma forma faz um contrapeso, fornecendo à vida local uma série de pautas não relacionadas com a fronteira ou com a República Dominicana. Enquanto meu lugar de referência foi Fonds-Parisien, passei aproximadamente metade desses quatro meses viajando para conhecer diferentes partes da fronteira. Do lado dominicano, passei diversos períodos curtos (de três a onze dias) nas cidades de Las Matas de Farfán, San Juan de la Maguana, Barahona e Hondo Valle, além de passagens por Elias Piña e seu mercado. Do lado haitiano, passei cerca de duas semanas em Belladere, muito próxima a Elias Piña, e fiz uma viagem mais curta para uma seção comunal chamada Thiotte, nas montanhas, e para a fronteira no litoral sul, entre Anse-a-Pit (Haiti) e Pedernales (República Dominicana). A seguir, entraremos numa breve descrição de uma história densa; a constituição de uma 1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal Do Rio de Janeiro, Museu Nacional.

fronteira, uma divisão cujo aprofundamento foi política de estado explícita, marcada por migrações forçadas, principalmente de gente do Haiti para fora da República Dominicana. 2 Tais acontecimentos da primeira metade do século XX, época da chamada dominicanização da fronteira, se conectam a conflitos contemporâneos; em 2013, a suprema corte dominicana ratificou uma sentença que declarou todas as “pessoas em trânsito” (categoria que inclui e em sua grande maioria é composta por “migrantes não-documentados”, e dentre estes, a esmagadora maioria possui como local de procedência o Haiti) e seus descendentes como inaptos à cidadania dominicana, decisão retroativa até 1929. Essa decisão gerou polêmica na mídia e entre a “comunidade internacional”, com temor de que fosse criada uma massa de centenas de milhares de apátridas. A ameaça de deportações em massa, parcialmente já cumprida, continua no ar. O contexto político pesado coloca dificuldades adicionais para a pesquisa, como a extrema desconfiança de pessoas haitianas em terras dominicanas, e a avaliação de riscos à minha segurança, que estava ali sozinho. Mais de uma vez deixei de ir a lugares que pareciam importantes pelo medo de que algo mal pudesse me acontecer. Quatro meses é pouco tempo, e menos ainda se se levar em conta que o número de viagens realizadas – o local onde passei mais tempo mal chega a somar um total de dois meses. No estágio atual da pesquisa, os dados de campo ainda tem algo de impressões de viajante em processo de reconhecimento de terreno. Com essas limitações, descrevei três postos fronteiriços e seus fluxos mais evidentes, bem como as agências oficiais e extra-oficiais presentes ali com a proposta de facilitar, impedir ou regular alguns desses fluxos. Breve história da fronteira dominico-haitiana. O primeiro lugar que a expedição de Cristóvão Colombo encontrou no Novo Mundo foi batizado como Hispaniola, nome ainda usado para a ilha como um todo. Durante os dois primeiros séculos da conquista, a ilha inteira era possessão espanhola, mas desde meados do século XVII, comunidades de bucaneiros e piratas de origem francesa se estabeleceram do lado oeste da ilha. Esse domínio de fato foi oficializado no Tratado de Riswick, em 1697, que reconhece a parte oeste da ilha como colônia francesa de Saint-Domingue, que a partir de então conheceu um boom econômico vertiginoso, assentado principalmente nas culturas da cana e do café, tornando-se conhecida como “a colônia mais rica do mundo”, e importando centenas de milhares de escravos. A fronteira entre as colônias possuía limites imprecisos. Em 1777, quase às vésperas da revolução haitiana, o Tratado de Aranjuez ofereceu o primeiro esboço de linha divisória, segundo a qual a colônia francesa era bem menor que o Haiti contemporâneo. A antiga fronteira não tinha eficácia prática, dado que legislava sobre terras que os poderes coloniais em disputa mal alcançavam, principalmente do lado espanhol, que em fins do século XVIII era uma colônia muito 2 E também por migrações incentivadas e/ou financiadas pelo estado dominicano, como de republicanos refugiados da guerra civil espanhola, de judeus europeus refugiados pela ascensão nazista, de agricultores japoneses e da população carcerária dominicana que teve suas condenações anuladas sob a condição de que fossem residir na fronteira. Sobre esses movimentos, ver DILLA & CARMONA, 2010.

mais pobre e despovoada que sua contraparte francesa. Enquanto as cidades importantes estavam no litoral e próximas a portos, a maior parte dessa região fronteiriça estava isolada por cadeias montanhosas, sem que houvesse estradas. Segundo Dilla & Carmona (2010), no início do século XIX, o miolo da fronteira terrestre ficava a dois de viagem de Port-au-Prince, e a dez de viagem de Santo Domingo. Desde antes da revolução haitiana, colonos franceses já haviam começado a ocupar terras que teoricamente pertenceriam ao lado espanhol, e há registros tão antigos quanto 1770 de comunidades de bandos de fugitivos das plantations estabelecidas na região (Derby, 1994:497). Os circuitos comerciais que envolviam a economia dessa região central da fronteira, de base pecuária, estavam muito mais orientados para Port-au-Prince do que para Santo Domingo. 3 Após a revolução, a pressão pela terra levou muitas famílias camponesas haitianas até bem dentro do território da República Dominicana, onde a densidade populacional era muito menor e havia abundância de terras públicas (Turits 2002:594). Como resultado desse processo, há um pedaço do Haiti contemporâneo, principalmente no Departamento do Centro, que nunca foi parte do território reconhecido à colônia francesa, mas como partes da ex-colônia espanhola que se anexaram ao Haiti já como estado independente.4 Até os anos 1920s, quando estradas foram construídas na região, esse era um lugar remoto e de difícil acesso. Richard Turits & Lauren Derby (2002) descrevem esse mundo fronteiriço do século XIX como uma sociedade integrada e híbrida, onde a convivência entre pessoas de origem haitiana e dominicana era pacífica. Até as primeiras décadas do século XX, essa região, marginal para ambos os estados nacionais, gozou de grande autonomia. Tanto o kreyol quanto o espanhol eram amplamente falados, o gourde e o peso dominicano circulavam juntos, as práticas religiosas populares acomodavam elementos de ambas as origens (Derby 1994). Um momento importante na história da região foi a chegada do exército norte-americano, que ocupou o Haiti em 1915, e a República Dominicana em 1916. Um dos papéis dessa ocupação teria sido garantir o retorno de empréstimos de origem estadunidense, o que levou ao fortalecimento do controle fiscal sobre o comércio transfronteiriço (Baud, 2000). Os primeiros postos foram instalados na fronteira, e a intensificação da vigilância na região passou a enquadrar e punir como contrabando atividades comerciais que até então eram banais e cotidianas. Tal tentativa de fiscalização encontrou resistência da população camponesa, em ambos os lados, que burlou e boicotou o novo sistema como pode. Nos primeiros dois anos da implementação do controle fiscal, dezoito oficiais norteamericanos que trabalhavam nos postos de fronteira foram assassinados (Baud 2000:60-61). O grau 3 A economia pecuária da região trazia complicações adicionais para a consolidação de uma fronteira. Um contraste entre áreas de criação de gado e de produção agrícola organizava o pensamento espacial da época (Baud 2000:50) – enquanto o gado pasta solto, alheio a convenções humanas, as plantações cercadas possuíam limites muito mais facilmente discerníveis. Essa ideia estaria na origem dos projetos de colonização agrícola, principalmente com a implementação de grande propriedades, sob controle estatal, dedicadas à produção de cana-de-açúcar (Derby 1994:497). Os terrenos comuneros, onde os animais eram criados, foram caracterizados como berço de vagabundos preguiçosos, e instrumentos legais foram criados para privatizá-los sob o argumento de que isso aumentaria a produtividade (idem:499). A reformulação do espaço se articulou com medidas sanitárias, de limpeza pública, misturando noções de “sujeira” e “poluição” com referências morais e raciais. No discurso sanitário dominicano oficial, homologias explícitas foram traçadas entre a circulação de animais e a circulação de haitianos (idem:506). Significativamente, as feiras e mercados públicos foram alvos preferenciais das reformas modernistas (idem:508). 4 Sobre esse processo, cf. o texto de Amin Arias, disponível em http://aminarias.blogspot.com.br/2012/07/algo-mas-sobre-lainvasion-haitiana-de.html

parcial de sucesso eventualmente conquistado foi paralelo ao florescimento de novas atividades.5 Num acordo firmado em 1929, os presidentes Horacio Vasquez e Louis Borno fixaram os limites da linha divisória entre os dois países que vigora até hoje, que corta a ilha no sentido nortesul com uma extensão total de 360 km. A consolidação da fronteira ganhou ímpeto com a chamada modernização ou dominicanização da fronteira (termos usados de forma intercambiável), comandado por Rafael Leonidas Trujillo. Esse processo culminou em genocídio. Calcula-se que de 2 e 8 de outubro de 1937 foram assassinados entre quinze e vinte mil “haitianos”. 6 O massacre, conhecido do lado dominicano como El Corte, dotou a fronteira entre os dois países de uma consistência inimaginável até então. Em seguida foram estabelecidas colônias “autenticamente” dominicanas de um lado, e colônias de sobreviventes refugiados do outro (Turits 2002: 590, 601). A dominicanização foi consolidada através da troca para nomes hispânicos de lugares e vilas cujos nomes soavam haitianos, expansão significativa do sistema de ensino público com ênfase na língua e na cultura hispânica, e na criminalização do vodu, cuja pena de dois anos de prisão podia ser troca pela “pena alternativa” da deportação ao Haiti (Derby 1994:512, Turits 2002:608-9, Wooding & Moseley-Williams 2004:21), além da importação de colonos não-negros (das Ilhas Canárias e da Espanha continental, judeus e outros refugiados europeus na Segunda Guerra Mundial, e japoneses) e de incentivos ao deslocamento de dominicanos de outras partes do país para ocupar a franja fronteiriça (Dilla 2010).7 Como episódio mais recente nos esforços do estado dominicano de separar-se do estado vizinho, passamos a uma recente decisão judicial que versa sobre os direitos e deveres de documentação na República Dominicana hoje. A Sentença 168. Juliana Dequis Pierre, nascida em 1984 em Yamasá, Monte Plata, foi declarada por seus pais (haitianos, contratados para a colheita de cana), tendo, portanto, registro civil dominicano. Num episódio aparentemente banal, a segunda via de sua carteira de identidade lhe foi negada pelo escritório local sob argumento de que seus pais nunca tiveram permissão para se fixar na República Dominicana. O processo correu na justiça até chegar à Junta Central Eleitoral (JCE), maior autoridade jurídica no país. Em 23 de setembro de 2013, a JCE emitiu a Sentença 168, decidindo que, sendo a Sra. Juliana D. Pierre filha de imigrantes “em trânsito” sem direito de fixar residência, 5 Baud (idem:59) sugere que a vizinhança entre diferentes sistemas de taxação e os obstáculos impostos à circulação de mercadorias, longe de paralisarem a economia transfronteiriça, tornaram esse comércio mais lucrativo e atraíram uma atividade frenética, embora, com a militarização da fronteira, o contrabando tenha se tornado perigoso para pessoas comuns, passando a se organizar em grande escala, com uma estrutura logística dotada de bandos armados e conexões com pessoas poderosas. Nesse processo, surgiram grupos bi-nacionais que eram um misto de crime organizado e resistência política contra a ocupação (idem:65-66. Cf. Derby 1994:500). 6 As aspas, usadas por variados autores, pretendem indicar que o critério do lugar de nascimento importou pouco nesse contexto, e que famílias que residiam ali há várias gerações e que se consideravam “nativas” da região foram, praticamente de uma hora para outra, tornadas estrangeiras com base numa atribuição de origem, determinada de formas arbitrárias, entre as quais a mais lembrada é o uso da pronúncia. Os soldados dominicanos mandavam que as pessoas capturadas dissessem palavras como perejil (salsinha) e tijera (tesoura), supondo que a incapacidade de pronunciar o som da letra R indicava a identidade haitiana (ver Turits 2002:617-8). 7 Essas ações eram justificadas como um esforço para conter a “invasão silenciosa” que a população haitiana estaria, subrepticiamente, promovendo em território dominicano, tese que teve como principal ideólogo Joaquin Balaguer, um dos principais intelectuais do estado trujillista, que ainda viria a ser presidente da República Dominicana duas vezes.

por extensão também não possui direito à cidadania dominicana. Foi uma “sentença de princípio”, o que significa que o parâmetro estabelecido terá aplicabilidade para todos os casos similares. A sentença propunha ainda “uma auditorial minuciosa” nos livros de registro desde 1929 até a data (23/09/2013) para compor uma “Lista de estrangeiros inscritos irregularmente no Registro Civil”. Com isso, a infame sentença 168 retirou, retroativamente, a cidadania de dominicanos de origem haitiana. O evento se deu através de uma mudança na interpretação dos princípios da constituição: do jus soli (direito ao solo, ou seja, reconhecer a cidadania de quem nasceu num dado território) para o jus sanguini (cidadania transmitida por hereditariedade), convertendo pessoas que nasceram e cresceram na República Dominicana, e sempre foram considerados cidadãos dominicanos, em imigrantes ilegais. Dentre os ex-dominicanos que mudaram de status com a sentença 168 da JCE, a imensa maioria é composta por descendentes de haitianos, cujos pais, mães e avós teriam entrado ilegalmente, a partir de 1929, na República Dominicana. Essa decisão causou polêmica na mídia e nas organizações internacionais, e foi questionada tanto pela CARICOM quanto pela ONU. O período de tempo que ela abarca retroativamente é abissal. Teme-se que, com tal amplitude, dezenas ou mesmo centenas de milhares de pessoas que não são haitianas (muitas das quais não falam o kreyol haitiano e não conhecem ninguém lá), ao perderem a nacionalidade dominicana, se tornem apátridas. Há um conjunto de ONGs, como MUDHA, OBMICA e GARR, que encabeçam a luta pelos direitos de migrantes e descendentes de migrantes haitianos na República Dominicana, que buscam combater práticas que consideram discriminatórias. Por exemplo, hoje há dois tipos de certidão de nascimento para bebês nascidos na República Dominicana, uma em cor branca, para “nacionais”, e outra em cor rosa, para “estrangeiros”. Essa atribuição feita na maternidade se desdobra em consequências posteriores, pois o recém-nascido não poderá tirar cédula de identidad nacional.8 Essa decisão judicial não deixa dúvidas de que o esforço de separação entre os dois países não se dá apenas num plano territorial, mas reverbera em qualquer ponto da República Dominicana. Feita essa ressalva, passo agora à descrição do espaço onde a separação se materializa de forma mais evidente e ostensiva. A fronteira e os postos. 8 É um documento que concentra diversas informações sobre seu portador, desde filiação e endereços de residência e emprego, até informações biométricas. Ele precisa ser apresentado para matricular uma criança na escola, para acessar a rede de saúde pública, para votar nas eleições, para comprovar local de residência, para dar entrada num hotel, entre outros. Assim, concentra-se uma série de registros e funções que, no caso brasileiro, estão dispersos em uma multiplicidade de registros e documentos paralelos, como CPF, título de eleitor, carteiras de identidade expedidas por diversos órgãos etc. A exceção à concentração de funções neste documento único que é a cédula de identidad dominicana é o passaporte, que continua tendo uma existência separada e independente. Um homem me garantiu – mas eu não quero acreditar que seja verdade – que além das informações biométricas, a nova cédula dispõe de um dispositivo de geolocalização. Ele contou isso orgulhoso do que ele descreveu como “tecnologia muito avançada”, que uma firma especializada dos Estados Unidos havia sido contratada para confeccionar as cédulas, que permitirá encontrar qualquer ladrão ou foragido da polícia com facilidade, que isso tornará o país um lugar melhor para se viver. Na opinião dele – que possui documentos tanto haitianos quanto dominicanos – o Haiti ficou para trás nesse esquisito, mas é questão de tempo, também estão renovando seus documentos por uma versão mais moderna, que também possui chip. Existe um tipo de cédula de identidad específico para estrangeiros, que diferencia o acesso a serviços públicos. Não tenho condições de desenvolver, mas noto en passant o estudo de Lauren Derby (2009:227-255) segundo o qual a instituição desse documento e de um registro único foi parte importante do projeto trujillista, e que movimentos milenaristas se apropriaram dele para usos mágicos.

Hastings Donnan e Thomas Wilson (1994, 1999) propõe a ideia de que as fronteiras ao redor do mundo se parecem em algum sentido, e que essas semelhanças podem fornecer uma base para comparações; questões de segurança da/na fronteira estão sempre em pauta, há estradas principais dotadas de postos e há caminhos não autorizados pelo estado, os sistemas educacionais nacionais privilegiam os tempos e lugares onde os inimigos foram derrotados e/ou onde foram estabelecidos os limites da expansão nacional, é um lugar típico de demonstração de poder estatal e palco importante das relações internacionais, e por fim sua demarcação se conecta com movimentos de amplitude mundial, como no cenário da guerra fria, quando ambas as superpotências agiam facilmente em suas respectivas áreas como world police.9 Donnan & Wilson colocam ainda uma diferença entre um “sentido literal” e um “sentido simbólico” da ideia de fronteira, no sentido de fronteiras sociais não necessariamente ancoradas em territórios. Embora me pareça prudente evitar termos que postulem a existência de um referente literal a partir do qual os outros seriam metáforas, me parece importante a distinção entre um sentido mais estrito, de fronteira entre diferentes países, com diferentes moedas e estruturas burocráticas completamente separadas, independentes e soberanas (pelo menos enquanto ficção jurídica), do sentido mais inclusivo de fronteiras que não contam com todo esse aparato. No presente artigo, a ideia de fronteira é usada no sentido mais estrito. Há ainda a distinção a fazer entre a região fronteiriça, cujos contornos possuem extensão variável e dependem de percepções locais a seu respeito, e a fronteira enquanto linha que demarca com exatidão onde termina o território de um país e onde começa o do outro. Como concluiu o célebre geógrafo Ratzel (apud Donnan & Wilson), entre essas duas ideias, a de “linha” é a mais abstrata. Parto desse ponto para formular perguntas que orientam a descrição a seguir; Como essa abstração se concretiza? Como uma ficção jurídica ganha corpo? Os pontos que marcam a linha são os postos fronteiriços, que funcionam como pontos de passagem e de conversão, dum domínio a outro. Cada posto possui portões, grades, policiais, militares e outros funcionários (ou que, pelo menos, se declaram como tais) não-uniformizados. Tentarei começar a pensar o que cada posto reproduz, quais movimentos convida. Ao longo da fronteira dominico-haitiana, há quatro postos principais. Indo daquele mais ao norte até aquele mais ao sul, são eles; Wanamint/Dajabón, Carrizal, Malpas, e Anse-à-Pitre/ Pedernales. Não cheguei a conhecer o primeiro, os outros três sim. Além destes quatro postos principais, há outros menores.10 9 Todas essas questões colocadas pelos autores como de ordem mais geral se colocam claramente na fronteira dominico-haitiana, que, como vimos, para se constituir como tal, primeiro contou com intervenção militar direta, dos dois lados da fronteira (1916-1924 na República Dominicana, 1915-1934 no Haiti), depois com a atuação de exércitos nacionais treinados e financiados pelos Estados Unidos. 10 Cheguei perto de apenas dois desses postos menores, um próximo a Thiotte, na cadeia montanhosa no sul do Haiti, outro num caminho também montanhoso próximo a Hondo Valle, na República Dominicana (perto a um povoado haitiano chamado Savanette). Na segunda ocasião eu viajava sozinho, não conhecia nem confiava em nenhum dos mototaxistas, e havia sido avisado que era uma área erma onde eram comuns assaltos e desova de cadáveres, preferi não chegar até lá. Contaram-me que lá também havia um portão e militares dominicanos postados, checando documentos, mas que com a módica quantidade de cem pesos (cerca de U$ 2, ou R$ 7), qualquer pessoa passa sem problemas. Sobre o posto de Thiotte ouvi comentários parecidos, e meu amigo haitiano que viajava junto não achou boa ideia chegarmos até lá.

Malpas Entre a cidade de Jimaní e a seção comunal de Fonds-Parisien está o posto de Malpasso. Na minha humilde opinião, o lugar merece totalmente o nome que tem. Embora fique entre os dois maiores lagos de todo o Caribe (Azuei, no Haiti, e Enriquillo, na RD), o ar é muito seco. Tudo que passa por lá, em questão de minutos, fica coberto por uma fina poeira branca, aparentemente vinda das cavas de extração de areia nas montanhas ao redor, do lado haitiano. O nível de ambos os lagos subiu muito nas últimas duas décadas, cobrindo diversas construções e casas. Segundo meus interlocutores, alguns trechos da estrada que cruza Malpas precisaram ser refeitos até quatro vezes (do lado dominicano), pois era preciso subir o nível da estrada a cada vez que o lago a alcançava. Em algum momento, temeu-se que as águas cobrissem a linha que divide os dois países, criando uma fronteira lacustre, mas nos últimos anos o nível dos lagos baixou, e isso não aconteceu. Caminho mais curto entre as principais cidades, Malpas é o principal ponto de entrada/saída de mercadorias por onde passa mais da metade do comércio entre os dois países. Há um grande fluxo de caminhões, que formam grandes filas para serem vistoriados na aduana. Há ao todo três portões em Malpas. Do lado dominicano, a estrada onde os caminhões fazem fila vai dar direto no primeiro portão, o maior deles, onde há sempre alguns militares de guarda. A “migración”, que é como chamam os guichês onde ficam funcionários civis, onde os passaportes são carimbados e as taxas pagas,11 fica um pouco afastada dessa rota principal, e há cointainers e barracas que não a deixam imediatamente visível, o que na minha primeira passagem por lá deu origem a um “mal-entendido” que talvez não seja incomum, ao qual voltarei em breve. Passado esse primeiro portão, já é território haitiano, e há barracas vendendo alguns produtos (a maioria vende gêneros alimentícios, comidas prontas, e peças de moto). Perto do portão, de ambos os lados, há uma infinidade de mototaxistas oferecendo seus serviços, e também de cambistas (autônomos) trocando pesos, gourdes, dólares e euros. O próximo portão demarca a aduana, é onde as autoridades haitianas vistoriam os carregamentos dos caminhões que entram no país. A distância entre os portões é de cerca de um quilômetro e meio ou dois, e exceto pelas barracas muito próximas ao portão dominicano, não há nada além de pedras, sol escaldante, nuvens de poeira e veículos em trânsito. Pouco depois da aduana, há mais uma cancela, com uma grossa corrente, em frente a migração haitiana onde os documentos são checados. Assim como na República Dominicana, estrangeiros precisam pagar uma taxa de U$ 10 para entrar no Haiti. Entre essas três barreiras, num espaço de algo entre dois e três quilômetros, não há residências.12 Do lado dominicano, há um número considerável de militares de uniforme e metralhadora, a 11 Estrangeiros precisam comprar um visto de turista para entrar na República Dominicana, pelo custo de U$ 10, com validade de trinta dias. Esse visto está disponível apenas para os países que não precisam de autorização prévia, como o Brasil, e não vale para quem vem do Haiti. Existe uma modalidade de visto especial para haitianos, que qualquer pessoa com passaporte pode comprar, tem validade de um ano e custa U$ 260. Existem ainda um visto especial para estudantes também, caso estejam matriculados numa universidade dominicana. 12 Pouco após a migração haitiana, à beira da estrada, há o que chamam de “o projeto”; um pequeno conjunto habitacional feito para receber gente que foi exilada da República Dominicana. Sua construção antecede a sentença 168/2013 e a recente ameaça de deportação em massa, deixando claro que, apesar do momento político “quente” (essa metáfora de temperatura é recorrente no Haiti), estão em jogo tensões bem mais antigas.

maioria guardas da CESFRONT (unidade especializada em segurança fronteiriça), além de policiais à paisana. Do lado haitiano, evidentemente não há militares, já que o exército haitiano foi dissolvido pelo ex-presidente Jean Bertrand Aristide. O batalhão da MINUSTAH (missão da ONU ainda ativa no Haiti) responsável por patrulhar as fronteiras é de contingente peruano, e eles possuem uma base perto do posto de Malpas, mas não são uma presença visível na fronteira. Há, contudo, muitos policiais uniformizados e armados patrulhando a área, além dos funcionários civis da migração. A passagem para pessoas e veículos abre às oito da manhã e fecha às seis da tarde.13 Duas vezes por semana, às segundas e sextas-feiras, é dia de mercado em Malpasso (do lado dominicano do posto). Entre meus interlocutores principais, ninguém frequentava esse mercado, e uma quantidade significativa de pessoas quis me alertar que o lugar estaria cheio de ladrões. Embora tenha passado por Malpas quatro ou cinco vezes para cruzar a fronteira, evitei passar mais tempo que o necessário para apenas atravessar de um lado pro outro, não só pelas advertências que recebi quanto pelo fato de que eu realmente não gostava de lá, achava o lugar horroroso e insalubre (opinião compartilhada por alguns de meus amigos em Fonds-Parisien), e preferiria trocar de tema a ter que fazer minha pesquisa ali. Apesar de nunca me demorar, em pelo menos três ocasiões diferentes vi gente sendo presa e algemada no camburão pela polícia haitiana, uma delas em meio a uma correria generalizada da qual participei sem nada entender do que estava acontecendo. Na minha primeira passagem por lá, eu não sabia onde ficava o escritório da migração, e desci da moto que me levou desde Jimaní em frente ao portão. Na hora em que cheguei, eu era a única pessoa “branca” no lugar, muito obviamente estrangeiro, e em poucos segundos fui abordado por um grupo de homens que me cercaram exigindo que eu mostrasse meus documentos. Entreguei o passaporte, e então me anunciaram que eu precisaria pagar uma taxa de U$ 70 para entrar no Haiti. Eu disse que não tinha esse dinheiro ali comigo, que não sabia da existência dessa taxa, e nesse caso precisaria voltar a Jimaní e me organizar para voltar em outro momento. Um dos homens disse “então pague U$ 35”. Só então entendi o que estava acontecendo. Já era tarde. Outros homens vieram, logo um grupo de uns doze homens conferenciavam à minha volta. Todos usavam roupas civis, com exceção de um soldado dominicano, armado e fardado, que não integrava o bolo de gente ao meu redor mas estava perto, assistindo à cena impassível, o que me pareceu um óbvio sinal de cumplicidade. Durante a negociação em torno da suposta taxa, eu reafirmando diversas vezes que não havia a menor chance, eu não tinha trinta e cinco dólares comigo, me perguntaram afinal quanto eu tinha. Àquela altura era óbvio que estavam me extorquindo, tinham meu passaporte com eles e me cobravam um resgate para devolvê-lo. Tudo que eu tinha comigo eram RD 2.200, que lhes mostrei, e negociamos o preço da “taxa” por RD 1.200. Paguei, e um deles veio comigo até o guichê da imigração, que por sua posição não tão óbvia, eu ainda não havia visto. Lá onde fica esse guichê estavam todos os oficiais, de uniforme. O sujeito que tinha meu passaporte em mãos 13 Não cheguei a ir ao posto à noite, mas segundo me disseram é possível passar depois das 18hs, desde que se tenha contatos e algum dinheiro para gastar. Bem perto de onde eu morava, havia diariamente muitos caminhões dominicanos parados para passar a noite, enquanto esperam a abertura dos portões na manhã seguinte.

entregou lá, e o funcionário atrás do guichê se indignou com a ação daqueles que chamou de ladrones. Convidaram-me a dar a volta e entrar numa outra porta por trás, parar contar o que havia ocorrido a um policial (de uniforme), quanto dinheiro eu havia dado, e a quem. Eu e o policial fomos juntos atrás do sujeito, e o encontramos com grande facilidade. Não havia nenhum clima de animosidade entre ele o policial, ambos estavam bem tranquilos. Ele se desculpou dizendo que essa taxa se aplica a alguns outros casos mas não ao meu, explicou qualquer suposta minúcia burocrática que seria a fonte do engano, e que devolveria meu dinheiro sem problema. Dos mil e duzentos pesos que lhes paguei, devolveu mil, afirmando que os outros duzentos ficaram como um presente que eu lhes havia dado. O oficial também usou o mesmo verbo, disse que eu regalei a eles, o que depois da tensão vivida e do medo de ter meu passaporte roubado, me pareceu dos males o menor. Voltei a ouvir a expressão regalo em contextos similares, em outros momentos, ao passar por Malpas e por outros postos fronteiriços, o que me deixa a impressão de que o “mal-entendido” pelo qual passei não é uma ocorrência rara. Depois do posto de Malpas, o segundo maior ponto de passagem (em volume de passageiros e de mercadorias) entre os dois países fica no norte, entre Wanamint e Dajabón. Além da importância econômica do posto, essa região foi o principal palco do massacre de 1937. Por dificuldades logísticas e financeiras, eu ainda não consegui conhecer essa passagem. Carrizal O posto de Carrizal fica entre as cidades de Belladere e Elias Piña. Ao contrário do que acontece em Malpas, nesse posto as duas cidades são bem mais próximas da linha da fronteira, e há muito mais casas ao longo da estrada. Aqui há um portão que durante o dia fica aberto, e uma grossa corrente que está sempre sendo levantada o abaixado para controlar o fluxo de veículos. Quase não há caminhões ou veículos grandes, mas sim uma infinidade de motos. Do lado haitiano, a polícia fica postada numa guarita. Às vezes essa guarita parecia vazia, e embora tenham me garantido que eles nunca paravam ninguém, em uma das vezes que passei por lá, ao verem um blan na moto, nos chamaram para checar meu passaporte. O escritório da migração fica a uma certa distância, e geralmente não havia quase ninguém presente além dos funcionários atrás do guichê (muito diferente da agitação do posto de Malpas, onde o escritório da migração vive cheio de cambistas, “despachantes” e mototaxistas oferecendo seus serviços). Do lado dominicano, é diferente. Se há poucos estrangeiros entrando no Haiti pelo posto de Carrizal, há um bom fluxo de estrangeiros (especialmente haitianos) entrando na RD. Junto ao posto ficam três funcionários civis e um guarda do CESFRONT, devidamente armado e uniformizado, todos em pé, próximos à cancela. Mais à frente, há outra cancela onde fica a aduana, e onde as mercadorias são vistoriadas. Além de muitos guardas da CESFRONT, há também um grande número de homens em roupas civis que dizem trabalhar na migração. Aqui também, o escritório da migração fica um pouco fora do caminho principal, homens à paisana pediram meu passaporte, que me neguei a dar. Em um caso,

um deles se irritou e tentou, fisicamente, impedir minha passagem caso eu não lhe mostrasse o passaporte, eu pedi para ver algo que provasse que ele trabalhava ali, e ele tirou do bolso o que acho que era sua cédula de identidad, onde me deixou ler uma referência ao consulado, guardando-a rapidamente em seguida. Um militar do CESFRONT chegou junto e afirmou que ele trabalhava mesmo ali, e que eu devia apresentar o passaporte, o que eu fiz mostrando-o à distância, sem deixar que ele o pegasse em sua mão. Ele queria me cobrar uma taxa de U$ 20, eu disse que a pagaria dentro do escritório da migração e aduana (ambos ficam na mesma edificação), e me desvencilhei negando a intermediação que ele me oferecia. Ao chegar lá, o procedimento de fato era como ele havia falado, e me cobraram U$ 20, dessa vez com recibo e carimbo. Duas vezes por semana, também às segundas e sextas, há um mercado bastante movimentado em Elias Piña, onde a maioria das vendedoras são mulheres e haitianas. Em uma ocasião, tentei passar a fronteira sem documentos, me garantiram que nos dias de mercado era fácil, o portão fica aberto e não param ninguém. O que era verdade para meus amigos haitianos não se aplicava a mim, que, única pessoa branca presente no momento, não consegui entrar nem dois metros na República Dominicana sem ser parado e mandado de volta. Um dos guardas que me abordou, que parecia ser o chefe dos três, e que vestia roupas civis, demonstrou “saber” que eu era cubano embora eu tivesse afirmado ser brasileiro, e foi bem enfático afirmando que não seria autorizado a entrar na RD. Ao voltar ao lado haitiano, um mototaxista veio abordar. Ele falava espanhol fluente, e me garantiu que havia muitas rotas alternativas para entrar em Elias Piña, que era uma voltinha de nada, um outro caminho ali pertinho, que por ali eu poderia entrar tranquilo. Perguntou-me se eu estava sozinho ou com amigos, eu disse que estava sozinho e ele piscou com um olhar cúmplice dizendo que não tinha problema, perguntou “quantos cubanos” estavam comigo, que bastava eu reunir meus “amigos cubanos” e combinar um dia que ele nos atravessaria para o outro lado, podia arranjar que nos levassem até Santo Domingo, havia feito isso com um outro grupo recentemente, os havia trazidos desde Pétionville (na zona metropolitana de Porto Príncipe) até o outro lado da fronteira. Era de chamar a atenção como, por mais que eu negasse, pelo menos duas pessoas tinham certeza que eu era cubano, suposição que ninguém fez a meu respeito em nenhum outro lugar do Haiti. Tanto no entorno do posto de Carrizal quanto no mercado de Elias Piña (distantes apenas cerca de um quilômetro), são generalizadas as tentativas de extorsão. Mercadorias podem ser confiscadas de forma arbitrária em qualquer ponto do caminho, o que eu presenciei tanto por guardas do CESFRONT, policiais e funcionários da aduana à paisana, quanto pelos chamados cobradores, os responsáveis por cobrar as taxas no mercado. A própria direção do mercado admite que as taxas cobradas de vendedoras haitianas é muito mais alta que a cobrada a vendedoras/es dominicanas/os (Petrozziello & Wooding 2011). No caso dos guardas, as mercadorias que se ameaçava confiscar eram sempre liberadas mediante pagamento de RD 100. Essa propina de cem pesos parece tabelada, é um valor cobrado por todo o território nacional (para a polícia e o exército – para os cobradores

no mercado, o sistema era diferente, e o valor devido dependia do tamanho da banca, de quanta mercadoria estava à venda). Anse-a-Pit O último posto fronteiriço que conheci fica no litoral sul, entre Anse-a-Pit e Pedernales. Foi o que menos conheci, não passei lá mais que duas horas, em uma sexta-feira. Lá também há um mercado binacional, que coincide acontecer também às segundas e sextas-feiras. Esse mercado fica possui uma área própria, com estrutura fixa, stands de vendas (bem diferente de Elias Piña, onde o mercado toma as ruas em estruturas improvisadas que são desmontadas ao fim do dia). Nesse ponto da fronteira, um pequeno rio separa os dois países. Uma ponte para pedestres e motos liga os dois lados. Há um pequeno portão no fim da ponte, do lado dominicano, que em dia de mercado fica todo aberto, dando acesso direto à área do mercado sem precisar passar pelos guardas do CESFRONT que vigiam a estrada ao lado, para onde estão viradas as duas saídas do mercado. A única estrada que chega a Anse-a-Pit vem desde Thiotte, nas montanhas. A rota é bem pouco povoada, a estrada é de péssima qualidade, e pagar uma moto é muito caro para padrões haitianos (250 gourdes por pessoa, num percurso que leva entre duas e três horas). Não há linhas terrestres regulares de passageiros. A comunicação principal do povoado com o resto do Haiti é feita num barco que viaja três vezes por semana, sai de Anse-a-Pit duas da manhã para chegar em CayesJacmel às seis da manhã. Por 125 gourdes, a passagem de barco é muito mais barata do que em uma moto. Das quatro passagens oficiais, Anse-a-Pit é sem dúvida a mais isolada do lado haitiano (Pedernales, por outro lado, é bem conectada por estradas). A negociação da travessia. O movimento é quase unidirecional, com exceção dos caminhoneiros em Malpas, é difícil encontrar dominicanos entrando no Haiti. O movimento inverso, saindo do Haiti pra entrar na RD, é muito mais frequente, e problemático, do ponto de vista das autoridades dominicanas, e como veremos em breve, não só delas. Apesar das regulamentações, é fácil entrar na RD. Há diversos caminhos por fora dos quatro principais postos (me disseram que apenas em Belladere há seis estradas alternativas), e mesmo nos postos oficiais, basta dar cem pesos na mão do guarda responsável pelo portão para passar para o outro lado, cena que eu presenciei algumas vezes. Contudo, permanecer é bem mais complicado que entrar. Migrantes indocumentados precisam de alguma sorte e dinheiro para não serem logo mandados de volta. Viajando de transporte público pela RD, quando se sai do Haiti rumo a Santo Domingo a viagem demora o dobro que no sentido contrário. Os veículos que vem da fronteira são parados com grande frequência, enquanto os que estão indo no rumo do Haiti dificilmente são checados. Há chequeos militares a cada dezena de quilômetros, assim como em todos os entrocamentos importantes. A maioria das pessoas nesses transportes, viajando desde a zona da fronteira no sentido de Santo Domingo, eram haitianxs com

passaporte, visto e todos os documentos em dia. Mas das vezes em que havia gente nãodocumentada, sua presença foi ignorada por 100 pesos na mão do guarda de turno no chequeo. Se o valor individual do suborno é baixo, sua frequência e generalidade certamente garante um valor considerável à soma total. A prática não é segredo para ninguém, e enquanto no Haiti era comum ouvir que “dominicano é tudo ladrão”, na RD muitas pessoas se resignavam, entendendo o lado dos guardas que ganham mal e também precisam alimentar suas famílias. 14 Os cem pesos por vezes eram chamados de regalo, ou regalito, e também eram usados em outros casos não relacionados com a presença haitiana, como para deixar passar irregularidades nos veículos. Não sei quão longe é possível ir de regalito em regalito, sei que existem outros esquemas para grupos maiores e distâncias mais longas, mas ainda não sei como funcionam. De todo modo, está claro que existem possibilidades diversas para entrar, é como um muro cheio de buracos 15, mas a indocumentação complica e encarece não só a circulação mas também o acesso a serviços, e a ameaça permanente de deportação precariza muitíssimo a força de trabalho. Se há diversas alternativas para atravessar, há diversos empecilhos para permanecer. Viajando pela RD ao longo da fronteira, ouvi diversos relatos de que as pessoas já vem sendo deportadas há muito tempo. Em Las Matas me garantiram que dez anos atrás tinha muito mais haitianxs por lá, que agora há cada vez menos (los están llevando todos), o que me foi justificado como medida de segurança (a opinião era que o pessoal do Haiti cometia muitos crimes na RD) que nada tinha a ver com a sentença 168, e que a antecedia. Em San Juan, falaram que la guardia andava passando uma vez ou duas vezes por semana a buscar haitianos não documentados. Nas conversas, era comum que esse assunto viesse mesclado a considerações de ordem policial.16 Presenciei ainda a chegada de grandes contingentes militares à fronteira, da ordem de milhares de homens, presença que em cidades pequenas causa grande impressão. Aproximava-se o dia 16 de junho, fim do prazo do plano de regularização de estrangeiros. Havia fortes rumores que, no dia 17, haveria uma deportação em massa, aqueles que não tivessem tirado seus documentos a tempo seriam todos levados de volta ao Haiti. Isso (ainda) não aconteceu, mas o tom de ameaça no ar motivou muitas “saídas voluntárias”. Muita gente preferiu sair por vontade própria, com medo de que, caso fossem expulsas, tivessem que deixar para trás todos os pertences, podiam não ter tempo de se organizar minimamente. Ao lado das expulsões súbitas e violentas, há aquelas conquistadas pelo cansaço. As ameaças não vinham apenas do estado, houve ainda casos de hostilidade entre vizinhos que chegaram a se apossar de terras, casas e animais que o pessoal do Haiti teve que deixar para trás. As ameaças de deportação em massa funcionam também como promessa, satisfação dada 14 Mas claro que nem todo mundo está de acordo. Em uma ocasião, em Barahona, presenciei a indignação das passageiras num guagua pelo pagamento do regalito para que passassem dois meninos haitianos, que viajavam sozinhos e não deviam ter mais que dez anos da idade. As reclamações eram sobre o procedimento dos guardas, nenhuma palavra foi dita sobre a circulação de gente haitiana, assim como ninguém se dirigiu às crianças, que estavam caladas no fundo do veículo. 15 Em Carrizal há um muro construído sobre a linha que divide os dois países. Mas o muro possui buracos, e tanto em uma ponta como na outra, termina em um grande espaço aberto (a estrada segue um pouco, o portão fica à frente), como se não tivessem terminado de construí-lo, como se parte dele tivesse sido demolida. 16 Principalmente quadrilhas de ladrões de gado (tema inclusive antigo na literatura, muito enfatizado no romance clássico El Masacre se pasa a pie, escrito por Eddy Prestol Castillo, testemunha do genocídio de 1937) e de motocicletas (tema menos antigo).

a um anseio popular. Na República Dominicana, a ideia de que haitianos sem visto devem ser deportados encontra pouquíssima resistência. Dos mais pró-haitianos aos mais anti-haitianos, a necessidade de que “tenham que voltar pra sua própria casa” era reconhecida por todo mundo. Eu não precisava puxar o assunto, “os haitianos” são um tema de conversa muito comum. Justificativas morais para as deportações eram variadas, mas o esforço de justificar aparecia sempre. Basicamente, o leque de argumentos é o seguinte; existe um complô estrangeiro pela unificação da ilha, para transformar a República Dominicana e o Haiti num mesmo país; todo país tem direito de policiar suas fronteiras, em qualquer país do mundo as pessoas precisam se registrar e não podem sair andando por aí assim; os estrangeiros estão tentando mandar os haitianos para RD com o objetivo de com isso evitar que os haitianos invadam seus próprios países; ninguém quer os haitianos, de todos os países do mundo quem melhor os trata é a RD, e os haitianos são ingratos e não reconhecem isso; a RD também é um país pobre, não tem condições de absorver a miséria haitiana, em especial nos leitos hospitalares; a RD tem soberania de estabelecer sua política migratória como quiser, fazer as próprias leis é uma prerrogativa de todo país independente; a censura internacional é uma interferência colonial dos grandes poderes nos assuntos internos da RD; não queremos ser o mesmo país. Existe pressão popular pelas expulsões, os mais exaltados desejando um novo massacre, 17 outros mais simpáticos aos haitianos dizendo apenas que se precisam voltar para sua casa, que voltem, mas em segurança e em posse de todos os seus bens. Minha posição levantava polêmica por si própria, eu não precisava dizer muito. Bastou perguntar numa livraria à vendedora o que ela tinha sobre as relações da RD com o Haiti para ela disparar; “não sei porque todos vocês estrangeiros sempre querem saber dos haitianos, haitianos pra cá, haitianos pra lá, que saco!, entende uma coisa, os haitianos não são coitadinhos não, nós ajudamos muito eles, mais que qualquer outro país, e vocês estrangeiros vem aqui nos encher o saco querendo nos dizer o que fazer.” Bastou mencionar que minha pesquisa era sobre haitianos na RD para revoltar um senhor, que chegou a dar um soco na mesa (estávamos num pequeno restaurante, sentados em mesas diferentes) gritando comigo “e porque caralho você não vai buscar haitianos no Haiti?! Aqui não tem nada pra você, vá pra lá ver como é, como vão te comer com mandioca” (o verbo comer tanto no Haiti quanto na RD também é usado como metáfora para matar). O pior é que, no fim das contas, eu vou seguir o seu conselho. De fato não dei sorte buscando famílias haitianas em território dominicano (que no começo era o meu plano para o próximo período de campo). As pessoas com quem fui conversar desconfiavam, com óbvia razão, de um branco nunca visto que 17 Um homem, em Hondo Valle, falou em voz alta, para que todo mundo o ouvisse, para um grupo de moradores antigos com quem eu conversava segundos antes que “se a polícia não fizer o trabalho dela, nós temos que fazer o nosso!” Estava muito exaltado, dizendo frases como “vamos amolar nossos facões!”, “os cães do mato vão engordar!”, que não via a hora de se livrar dos haitianos, que agora vão todos embora por bem ou por mal. Um dos senhores tentou ponderar, e o homem se revoltou dizendo que não entende como alguém pode querer defender essa imundície haitiana. Estávamos ao lado da praça, local mais público possível do pueblo, era começo de tarde. Ele falava como quem convida à ação. Naquele momento, ninguém entrou na onda dele. Quando foi embora, os senhores com quem eu antes conversava, e que sabiam que eu estava vindo do Haiti, me olharam constrangidos como que se desculpando por ele, pedindo que eu não ligasse, que ele era bruto e analfabeto.

chegava fazendo perguntas. As pessoas que mais se dispunham a conversar comigo eram as que tinham os documentos em dia. No Haiti, ao contrário, era fácil abordar as pessoas e conversar, mas o assunto das deportações, tão onipresente do outro lado da fronteira, nunca surgia naturalmente caso eu não perguntasse. 18 Como resposta às perguntas, após o dia 17, ouvi que em Malpas estava tudo normal, como de costume. O rumor era que as deportações estavam acontecendo nas fronteiras ermas, para evitar os jornalistas estrangeiros. Falaram-me de carros lotados de gente deportada passando pela estrada, mas que não pararam, foram direto para Porto Príncipe. Li que em Wanamint haveria um grande abrigo com quinze mil pessoas, e foi por jornais estrangeiros que li na internet que primeiro ouvi falar de um abrigo em Fonds-Parisien. Fui procurar o lugar, e precisei perguntar a muita gente até encontrar um homem que sabia onde era. Ficava em um colégio, num conjunto de casas perto de Malpas, isolado do núcleo de Fonds-Parisien. Estavam lá cerca de trinta pessoas, sendo talvez metade crianças. Foi meu único contato com gente efetivamente deportada. Contaram que a maioria das pessoas expulsas da RD tinha passado apenas uma ou duas noites no abrigo, antes de irem em busca de parentes ou amigos. Quem ainda estava no abrigo duas semanas depois era quem realmente não tinha para onde ir. No caso da família com quem conversei mais – estavam muito dispostos a falar, inclusive para o meu gravador, me confundiram com um jornalista e pareciam querer que sua história fosse contada – disseram que vinham sendo ameaçados há dias por vizinhos hostis, e que no dia da deportação esses vizinhos estavam junto com a polícia, que alguns foram agredidos e tiveram suas casas saqueadas. Agora além de não saberem bem para onde ir (viviam há duas décadas na RD), dois membros da família estavam doentes, o que prolongou sua estadia na sala improvisada da escola. Apesar desse contato, a questão dxs deportadxs tinha uma visibilidade menos evidente no Haiti que na RD, onde era quase uma obsessão. No Haiti aparecia de forma bem mais sutil. Por exemplo, a maior parte do tempo eu era sempre chamado de blan (branco, ou gringo), mas em momentos mais tensos eu notava mais gente me chamando de panyol (dominicano), por vezes num tom nada amigável. Nota sobre o contrabando. A modalidade mais visível é a do que no Haiti se chama de anboatye, que são como quentinhas com mini-compartimentos internos, para vender/servir comida, feitas do que parece um tipo de isopor. Segundo me contaram, sua comercialização estava proibida devido a pressão feita pelo governo dos Estados Unidos, pois as correntes marítimas levariam as anboatye descartadas no Haiti para sujar as praias da Florida. Se a proibição teórica visaria evitar indisposição com o governo norte-americano, ninguém dava a mínima para uma proibição prática. Em Belladere, pode-se ver o tempo inteiro motos completamente carregadas de anboatye, mal sobrando espaço para o 18 Única exceção foi o pastor Briz, que me perguntou sobre meu trabalho, perguntou o que eu tinha visto lá, se mostrou preocupado e indignado, e contou de movimentos de refugiados em Fonds-Parisien no fim dos anos 80, afirmando que havia algo cíclico nesses movimentos.

motoqueiro na frente, com as quentinhas atrás dele ultrapassando e muito a altura de sua cabeça e a largura de seu corpo, dando às motos carregadas o visual estranho de um mini-caminhão de duas rodas. Em Fonds-Parisien, elas entravam em barcos também muito carregados e facilmente visíveis a grande distância, e aparentemente não eram incomodados por ninguém. Havia uma atitude de deboche e ridicularização com proibições e regras dessa ordem. Alguns membros da família com quem eu dividia o lakou em Fonds-Parisien trabalhavam com caminhões, e me contaram que as mercadorias não eram todas declaradas na aduana, mas apenas uma parte do carregamento. Qual é a proporção declarada dependia de contatos, de relações pessoais, numa economia que tem toda chance de também envolver “presentes”. Um interlocutor frequente, haitiano, que trabalhava dirigindo caminhões – a frequência das viagens era bem inconstante, por vezes ele passava semanas sem pegar nenhum trabalho, a depender da demanda do “chefe” em Porto Príncipe, personagem que não cheguei a conhecer – contou que antes costumava pela outra estrada, pelo posto de Carrizal em Belladere, onde um tinha um grande amigo. Na época, o preço do imposto era mais barato por lá, compensando a viagem mais longa. Hoje, como mantém boas relações com a atual direção do posto de Malpas, tem feito o caminho por lá mesmo, que é bem mais perto para quem é de Fonds-Parisien. Tanto para o fluxo de mercadorias quanto para o de pessoas, não é sempre fácil distinguir uma taxa oficial de um suborno, um pagamento feito em nome de interesses públicos ou privados. O próprio pertencimento de pessoas que oferecem seus serviços na fronteira a uma ou outra das estruturas burocráticas oficiais não é claro. Enquanto os guardas da CESFRONT são identificáveis à distância por seus uniformes, há um grande número de agentes vestidos à paisana que se apresentam como policiais e funcionários consulares. Soldados e policiais de uniforme por vezes agem como se fossem completos estranhos e não tivessem relação (como no caso em que me levaram para reaver meu dinheiro de gente à qual se referiram como “ladrões”), por vezes confirmam que trabalham lá e lhes dão legitimidade. Minha impressão é que, tanto no caso da diferença entre taxas oficiais e subornos quanto naquela entre funcionários oficiais e prestadores de serviços autônomos, não vale a pena pressupor uma descontinuidade inequívoca. Dito de outra forma, embora a taxação sobre importações/exportações e a política migratória sejam claramente assuntos que competem ao estado, me parece que o estado não deve ser tratado como um todo coerente, essa coerência existe “apenas” como ficção jurídica. Por outro lado, o investimento numa diferenciação entre os dois países foi bem-sucedido em vários níveis (urbanístico, arquitetônico, linguístico), não no sentido de criar uma separação pura, sem mistura, mas sim no de fragilizar quem está na condição de visitante, e de deixar muito claro onde é a “casa” de quem. A conflação, na fala local, entre as ideias de “país” e “casa” é muito generalizada, e possui ressonâncias importantes na compreensão de como um deve comportar-se em casa alheia, como se faz a passagem de um registo ao outro, tema que pretendo aprofundar ao longo da pesquisa.

Bibliografia. BAUD, Michiel. State Building and Borderlands. Em: DJICK, Pitou Van, Arij OUWENEEL & Annelies ZOOMERS (ed.s), Towards a Borderlands Latin America. Amsterdan: Cedia Latin American Studies 87, 2000. DERBY, Lauren. Haitians, Magic and Money: Raza and Society in Dominican Borderlands 19001937. Comparative Studies in History and Society, vol. 36, no. 3, pp. 488-526, 1994. _________________. The Dictator's Seduction. Los Angeles: UCLA Press. 2009. DERBY, Lauren & TURITS, Richard Lee. Temwayaj Kout Kouto, 1937. Eyewitness to the Genocide. Em: ACCILIEN, Cécile, J. ADAMS & E. MELANCE (ed.s). Revolutionary Freedoms – a history of survival, strenght and imagination in Haiti. 2006. DILLA, Haroldo & CARMONA, Clarissa. Notas para la Historia de la Frontera Dominico-Haitiana. In: Dilla, Haroldo et al. La Frontera Dominico-Haitiana. Santo Domingo: Editora Manatí, 2010, pp. 33-74. TURITS, Richard Lee. A World Destroyed, a Nation Imposed: the 1937 Haitian Massacre in Dominican Republic. Hispanic American Historical Review, 82:3, 2002. DONNAN, Hasting & WILSON, Thomas, eds. Border Approaches: Anthropological Perspectives on Frontiers. Lanham, MD: University Press of America. 1994. DONNAN, Hasting & WILSON, Thomas. Borders: Frontiers of Identity, Nation and State. Oxford: Berg. 1999. PRESTOL, Freddy. El Masacre se pasa a pie. Santo Domingo: Taller. 1993. (Primeira edição de 1973.) PETROZZIELLO, Allison & WOODING, Bridget. Fanm nan Fwontyè, Fanm Toupatou: Una Mirada a la Violencia Contra las Mujeres Migratorias em Tránsito y Desplazadas en la Frontera Dominico-Haitiana. Santo Domingo: Observatório de Migraciones en el Caribe, Mujeres del Mundo, Cies-Unibe. 2011. WOODING, Bridget & MOSELEY-WILLIAMS, Richard. Needed but wanted: Haitian immigrants and their descendants in Dominican Republic. London: Catholic Institute for International Relations, 2004.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.