\"Circulação não é fluidez \" - Entrevista com Kapil Raj

June 2, 2017 | Autor: M. Alves Duarte d... | Categoria: History of Science, Circulation of Knowledge
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Boletim Eletrônico da Sociedade Brasileira de História da Ciência Número 9 - Junho de 2016 ISSN:2447-1607

“Circulação não é fluidez” - Entrevista com Kapil Raj

Com formação inicial em matemática e filosofia, Kapil Raj é atualmente professor e pesquisador em História da Ciência na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Seus trabalhos abordam a circulação e a construção de conhecimentos entre a Ásia Meridional e a Europa Ocidental entre os séculos XVII e XX. Nessa entrevista, Kapil Raj fala de seus principais estudos e discute o lançamento da coleção Histoire des Sciences et des Savoirs, cujo segundo volume, Modernité et Globalisation, foi co-organizado por ele. Matheus Duartei: Você dirigiu recentemente com H. Otto Sibum o segundo dos três tomos da coleção Histoire des Sciences et des Savoirsii. Em sua opinião, qual a diferença entre ciências e saberes? Quem, historicamente, traçou a fronteira entre esses dois termos? Kapil Raj: Qual é a diferença entre ciências e saberes? Formalmente não há alguma diferença. O que nós chamamos de ciência é um conjunto de teorias, de conceitos, de práticas intelectuais, mas também manuais. A ciência não é apenas um trabalho cerebral, mas um trabalho manual, um trabalho social, porque compartilhado com outras pessoas, onde existe um saber-fazer. É um trabalho hierarquizado, ou melhor, uma atividade hierarquizada. Esse conjunto podemos chamar de ciência, mas também podemos chamar de saberes. Nos dois casos é a mesma coisa. Mas, se de fato formalmente é dessa maneira, no que concerne a utilização dessas palavras no nível linguístico, há diferenças. A diferença não é formal, isto é, nós não podemos olhar duas práticas distintas e dizer: isso é ciência e isso é saber. São os atores que hierarquizam e criam as diferenças entre ciências e saberes. Portanto, quem historicamente estabeleceu a fronteira entre ciências e saberes? Pode-se dizer que foram e são os praticantes que as traçaram. Esta é a tese de Thomas Gieryn que defende que estabelecer tais fronteiras, traçar esses limites e policiálos para não deixar que os outros entrem, é também parte integrante do trabalho científicoiii. Quando olhamos, por exemplo, a história da homeopatia no século XIX, vemos que os fundadores desse método, dessa forma de abordar a terapia, eram formados nas mesmas

universidades alemãs que seus homólogos alopatas. Eles tinham a mesma formação, mas outra interpretação. E eles vão ser excluídos pelos médicos alopatas. MD: Mas os médicos homeopatas vão se apresentar como cientistas, como praticantes de uma ciência. KR: Mas claro! Não se trata de loucos (risos). Um outro exemplo. Aqui na França existia um famoso cientista, chamado Jacques Benvenisteiv, que há mais ou menos 30 anos realizou pesquisas numa Grande École francesa sobre a memória da água. Ele publicou mesmo um artigo sobre essas pesquisas na revista Nature e depois quase toda a comunidade científica o condenou ao ostracismo, incluindo os próprios editores da Nature que publicaram o seu artigo e depois o renegaram. Ele foi praticamente excluído da comunidade científica, porque suas pesquisas eram quase uma heresia. Então, essa questão do que é ciência e o que não é ciência, não cabe a nós, do exterior, responder. Nós não podemos apenas olhar e dizer, epistemologicamente, isso é ciência e aquilo não é ciência. Esta questão epistemológica encontra a sua resposta no plano sociológico. Podemos contar a história desse processo sociológico, quer dizer, a história da maneira pela qual esses atores traçaram essa distinção. Nós podemos ter a nossa própria opinião, mas a nossa opinião não conta na disputa. Não é o público que decide, nem o historiador da ciência, nem um filósofo. Muito menos um filósofo. É uma questão dos atores históricos entre si. Por outro lado, existem historiadores que compreendem que a ciência é o que as pessoas usualmente chamam de ciência, mas que seria necessário fazer uma história dos saberes, saberes que não são oficiais, para que se possa fazer justiça a tudo que se passa no mundo intelectual. Porque, é necessário dizer que nós, historiadores, nós temos tendência de olhar apenas os saberes produzidos pelas elites, que acabamos chamando de ciência, e ignoramos, por exemplo, os saberes populares com os quais as pessoas mais pobres convivem e que não foram totalmente formalizados pelas elites. Quer dizer que se cria uma diferença, que nós historiadores acabamos reforçando. Ignoramos, por exemplo, o trabalho de outros personagens, como os técnicos em um laboratório. Portanto, sem os técnicos, um laboratório não funcionaria, como você sabe muito bem, com o exemplo do laboratório de Waldemar Haffkinev. Não nos podemos limitar a fazer a história de Haffkine, é preciso fazer também a história de tudo o que se passava em Bombaim, nomeadamente com os colaboradores indianos e a complexidade da sua organização. De outra maneira não compreenderemos como as coisas se passaram. Nós, como historiadores, tivemos a tendência de olhar apenas o trabalho das elites, ou melhor, da elite da elite. Não nos

interessamos, por exemplo, pelo que faziam outros personagens, como os cientistas comuns, por exemplo. Mas eu gostaria de voltar ao título da obra, ciências e saberes (sciences et savoirs). Ao escolhermos esse título, não queríamos restringir o assunto apenas à ciência, como essa palavra é entendida no senso comum. Queríamos incluir outras coisas, que surpreendessem as pessoas e portanto, aumentamos o enfoque da obra, para falar dos saberes. Queríamos ser o mais inclusivos possíveis, dando espaço a assuntos que as pessoas tendem a considerar como nãocientíficos. Veja, por exemplo, o capítulo dedicado aos museusvi. Eles acabam sendo muitas vezes compreendidos, apenas, como espaços de vulgarização científica, porém, a ciência também ocorre nesse tipo de local. Mas é verdade que no livro, nós preferimos não entrar nessa polêmica entre o que são ciências e o que são saberes. MD: Continuando a debater sobre as questões presentes na coleção que você coorganizou, poderia nos falar sobre o problema da alteridade e da constituição do eurocentrismo? Você acredita que, atualmente, a Europa está mais aberta ao mundo? KR: Infelizmente não. Acredito que não vivemos um período de abertura. Nós, no segundo tomo, procuramos discutir a questão da alteridade. Há toda uma parte dedicada à construção da alteridade e, precisamente, o ponto central da introdução do segundo tomo é a construção histórica do eurocentrismovii. O segundo tomo foi concebido para abordar o século XIX, que é considerado, tradicionalmente pela historiografia, como um “longo século”, iniciando na Revolução Francesa, em 1789, e terminando na Grande Guerra de 1914. Ora, as duas datas, especialmente a primeira, são problemáticas, porque essa maneira de dividir o século é eurocêntrica, posto que os dois eventos são europeus. O mesmo ocorre com a História da Ciência. Se partirmos do pressuposto de que para que haja ciência moderna é necessário que haja o laboratório e a matematização, nós só vamos encontrar isso na Europa. Você não vai encontrar laboratórios desse tipo em momentos anteriores em algum lugar do mundo, nem a Revolução Francesa em outras partes do mundo. Se utilizamos esse modelo, vamos acabar concebendo a Europa como o motor do mundo. A partir disso, no que tange a globalização da ciência, acabamos nos transformando em difusionistas e nos questionando como outras partes do mundo receberam e se apropriaram da ciência concebida na Europa Ocidental. Foi, justamente por criticar esse modelo, que eu, na introdução do tomo, procurei mostrar que é possível estabelecer os marcos do século XIX de maneira diferente, para que possamos incluir as outras partes do mundo. Por isso, eu procurei estender o marco inicial até o meio do século

XVIII, momento em que determinadas cartas políticas são embaralhadas e redistribuídas. Se olharmos, por exemplo, para a parte da Ásia onde está a Índia, o Irã, o Oriente Médio, nós veremos que alguns dos principais regimes dessas regiões estavam em decadência nesse período, sobretudo o Império Mongol na Índia e os Safávidas no Irã. E isso não tem nada a ver com o que se passava na Europa Ocidental. São dinâmicas que lhes são próprias. Outro exemplo é a Rússia, que começa a se expandir em direção ao leste e entrará em choque com o Japão e mesmo com a Espanha na costa da Califórnia. Quando se tem um olhar eurocentrado, você acaba não vendo essas outras dinâmicas. Esse período é também o momento da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), evento que acabamos escolhendo para ser o ponto de partida do segundo tomo. Escolhemos o evento por conta do seu simbolismo, pois, embora haja uma tradição historiográfica que o compreende como um conflito entre a França e a Inglaterra, ele vai causar tensões em diversas partes do mundo, como nas Filipinas, no Senegal e entre o Brasil e a Argentina. Então, de certa maneira, trata-se de uma “primeira guerra mundial”. Por conta dessas razões, eu me distanciei na introdução dos marcos tradicionais do início do “longo século” XIX ─ as revoluções ─ procurando vê-los de outra maneira. MD: Do ponto de vista da história da ciência, você pensa que há uma abertura em relação a outros continentes, que existe uma “des-eurocentrização” em curso? KR: Não, eu acho que não. Os historiadores da ciência, e mesmo os historiadores tout court, estão construindo, ou reforçando, o eurocentrismo. Inconscientemente, eu espero. Mas é algo bem ativo. Veja, por exemplo, o primeiro tomo da coleçãoviii. A questão de fundo desse volume é a seguinte: como a ciência europeia se mundializou no início da Era Moderna? Ora, a maneira de colocar a questão só pode permitir uma resposta difusionista e eurocêntrica, e isso foi produzido em 2015! De forma alguma eu penso que essa questão foi posta de má fé. Longe disso. É algo que parece natural para os pesquisadores e isso é que é trágico. Olhe, por exemplo, qualquer revista de história da ciência. A maior parte dos artigos incide sobre as ciências produzidas em laboratórios e/ou na Europa. MD: Vamos falar agora de seus outros trabalhos. O conceito de circulação está presente em suas obras, mas as circulações parecem se passar entre lugares extremamente distantes, como entre Calcutá e Londres. Utilizando o seu conceito, podemos falar de circulações de conhecimento em uma escala menor, entre regiões de um mesmo território, de uma mesma cidade, talvez entre os departamentos de uma mesma universidade?

KR: Exatamente. Eu concebi o conceito de circulação, mas não inventei a palavra, e isso gera alguns problemas. Então, farei antes uma digressão. O que significa circulação para mim? Porque a palavra circulação é de uso corrente, e, talvez, quando as pessoas a empreguem, quando as pessoas falam de “circulação”, pode ser apenas outra maneira de dizer que as coisas se difundem. Por exemplo, na economia, quando afirmamos que o dinheiro circula, estamos a referir-nos a uma coisa que se move, mas que, em teoria, não muda, nem se transforma. Para mim, circulação não é unicamente o fenômeno do movimento. É o que se passa quando os conhecimentos e as práticas se transformam ao se deslocarem. Mas, não é qualquer coisa que se transforma ao se deslocar. Não posso aplicar o meu conceito nem ao dinheiro, nem também a um celular, por exemplo. Claro que um objeto desse tipo circula, e circula bastante, mas tudo é feito, pelas companhias que o produzem, para bloquear qualquer tentativa de mutação. Então, para mim, no que concerne às ideias, às práticas do universo científico, estou interessado nas mudanças que são produzidas por um movimento. E por que essas mutações ocorrem? Porque esses movimentos não são apenas físicos, mas também de meios, de campos diferentes. Se uma ideia sai do seu campo de produção e entra em outro, há a possibilidade de uma transformação, e também há a possibilidade de que ela retorne transformada ao local em que foi primeiramente produzida. Por circulação eu entendo esse processo dinâmico, de transformações que ocorrem nesses processos de idas e vindas. Essa é a minha questão, a minha problemática. Eu não quero dizer que tudo vai mudar, mas se nos colocarmos a questão, seremos capazes de ver que, talvez, ela poderá ocorrer. Se não nos colocarmos essa questão, não veremos nada. Eu, justamente, utilizei essa questão da circulação para pôr em xeque a ocidentalidade da ciência dita “ocidental”. Em que medida essa ciência é ocidental? E o que acontece quando as coisas mudam? Nos meus trabalhos, eu procurei compreender essas questões a partir do meu país, a Índia, e as relações dela, entre os séculos XVII e XX, com a Grã-Bretanha e com a França, e mais recentemente em minhas pesquisas, com Portugal. Então, é verdade que nos meus estudos a circulação acontece entre lugares distantes. Mas o meu colega, Otto Sibum, por exemplo, estudou a cidade de Manchester, e as diferentes comunidades dentro dela, como os cervejeiros, os físicos e os cobradores de impostosix. Seu olhar não sai jamais dessa cidade, mas seu trabalho mostra também as diferentes circulações entre essas comunidades. Logo, a escala não é o mais o importante, o principal é o movimento e a transformação, o que acontece quando as coisas se movimentam e cruzam determinadas fronteiras. Essas fronteiras podem ser geográficas, sociais, mas também entre dois departamentos de uma mesma universidade. Por exemplo, hoje em dia, embora os domínios de investigação dos matemáticos e biólogos sejam diferentes, eles trabalham juntos, atravessam essas fronteiras. Então se trata de uma circulação, e não de uma

difusão ou de uma mera hibridização. Porque os objetos, os produtos, que nascem dessas interações não são nem metade uma coisa, nem metade outra, mas algo novo, diferente. Quando essas novidades emergem, elas não têm nada a ver com as práticas anteriores, trata-se de algo original, inesperado. MD: Uma crítica que se poderia fazer ao seu trabalho é que suas pesquisas enfocam apenas as elites, sejam elas britânicas ou nativas da Índia. Como você se coloca diante dessa objeção? KR: Veja bem. Essa pergunta comporta duas respostas. Em primeiro lugar, um historiador da ciência, como eu, é obrigado a analisar as elites. Como escapar a isso? Porque são as elites letradas que deixam traços. Eu não posso querer compreender a ciência desse período sem olhar as elites. Vejamos, por exemplo, o caso do Brasil. Existem trabalhos excepcionais sobre ciência e medicina dos escravos, tal qual o livro de James Sweet sobre Domingos Alvares x. Embora fosse um escravo, esse personagem era originário de uma elite na África. E era por isso que ele conhecia determinadas práticas medicinais. Não é porque ele se tinha tornado escravo que ele não fazia parte de uma elite, mas, é claro, é preciso frisar que existem elites e elites. A segunda questão está ligada ao que se chama de saberes tradicionais. Temos a tendência a pensar que esses saberes não são propriedades de elites, pois são populares. Ora, nessas sociedades também há hierarquias e os saberes são quase sempre o apanágio de elites. Além disso, quero sublinhar que quando eliminamos as elites da ciência tradicional acabamos por reduzir os saberes não-ocidentais, a saberes nativos, locais, ao Indigenous Knowledge. Eu contesto essa compreensão, porque seria aceitar novamente a suposta fronteira entre ciências e saberes, dessa vez entre ocidentais e não-ocidentais. É precisamente isso que eu contesto, porque para mim não existe uma “ciência ocidental”. Então, se eu começo a olhar os saberes populares, eu aceito que a ciência é ocidental, e o que nos resta é reconstruir os saberes locais. Se eu o fizesse, acabaria tendo que aceitar que existe uma diferença epistêmica, uma fronteira, entre a ciência ocidental e outras formas de saberes. Enquanto historiador, eu não posso considerar essas fronteiras como dadas, tenho que entender como é que, historicamente, elas foram formadas.

MD: Outra crítica que se poderia fazer ao seu trabalho é que, ao falar de interações culturais, você acabaria omitindo questões como as assimetrias de poder. KR: Para retomar a pergunta anterior, uma elite não é apenas um conjunto de pessoas letradas, mas de pessoas que exercem um poder sobre os outros. Ora, concordando, em linhas gerais, com Foucaultxi, é possivel dizer que os saberes são, e sempre foram, o apanágio daqueles que exercem o poder sobre os outros. Seja no interior de uma sociedade ou de uma sociedade sobre a outra. E essa questão acaba se relacionando com a pergunta anterior. Porque há uma tendência a pensar os chamados saberes locais como se eles fossem mais democráticos. Mas não é verdade. Jamais. Mesmo no interior das sociedades tradicionais, na Amazônia, por exemplo, aquele que tem a função de curar é alguém que exerce um poder sobre os outros. Em todas as sociedades, minimamente hierarquizadas, isso aconteceu. Não é uma característica única das sociedades ocidentais ou das ditas imperialistas. Portanto, os saberes são sempre formas de exercer um poder. Vejamos, por exemplo, as assimetrias dentro do Império Mongol, uma sociedade “pré-colonial”, por assim dizer. Os saberes dentro dessa sociedade eram extremamente codificados e ligados ao conhecimento de determinadas línguas, como o sânscrito ou o persa. O mundo letrado na Índia Mongol era um mundo persianizado. Esses conhecimentos pertenciam a quem conhecia essas línguas que funcionavam como filtros a que só essas elites letradas, mas também de posses, tinham acesso. É interessante perceber, também, que eram elites que sofreram uma aculturação. Havia, por exemplo, elites hindus que aprendiam o persa, alcançavam determinadas posições sociais e exerciam um poder sobre a população nativa, graças à utilização de saberes transnacionais, que eram saberes dos mongóis e que se tinham misturado aos saberes hindus e haviam sido codificados em outra língua, o persa xii. Desses encontros emergem, por exemplo, novas teorias de administração, novas maneiras de controlar o território. Essas elites que conheciam tais línguas tinham um enorme poder. Não foi o poder britânico que introduziu uma hierarquização, uma exploração e uma assimetria. As assimetrias já existiam. Mesmo os ingleses, em alguns momentos, se submeteram a assimetria que lhe eram desfavoráveis. Num caso ocorrido na costa do Malabar, um indiano é insultado por um britânico e ele registra uma queixa junto às autoridades inglesasxiii. Esse indiano trabalhava para o europeu, era, portanto, inferior hierarquicamente a ele. Poderíamos pensar que o óbvio seria que essa queixa fosse ignorada pelas autoridades britânicas. Mas não. A queixa do indiano recebeu uma resposta do governo inglês e a pessoa que o insultou foi punida e presa. Por que os ingleses fizeram isso nesse caso? Porque eles precisavam dessas elites locais para governar. Nesse ponto os meus trabalhos se distanciam da concepção de Foucault, pois

enquanto ele compreende a relação entre saber e poder de maneira estrutural, eu procuro entender como essa relação se define de maneira conjuntural. Com isso, eu defendo que há toda uma geometria do poder que deve ser levada em conta pelo pesquisador, havendo momentos em que o colonizado poderia ter mais poder que o colonizador. Claro que em um contexto global, estrutural, o colonizado tinha menos poder que o colonizador, mas se olharmos os contextos específicos, em análises micro, poderemos ver, que por vezes, essas relações de força se invertem. MD: Para continuar a falar de assimetrias, um dos principais conceitos utilizados pela historiografia, de uma maneira geral, para abordar essa problemática é a ideia de “centro” e “periferia”. De que maneira os seus trabalhos dialogam com um referencial clássico sobre esse tema, e com ideias mais recentes, como as propostas pelo grupo de pesquisa STEP (Science and Technology in the European Periphery) para quem o centro e a periferia mudariam em relação ao emissor? KR: Os conceitos de centro e periferia foram conceitualizados de maneira diferente, principalmente pelos economistas Raúl Prebisch e Hans Singerxiv, e pelo sociólogo Edward Shilsxv. Para Prebisch e Singer a periferia está condenada a afastar-se, sem cessar, e a ser objeto de uma exploração crescente dos centros. Para Shils, o centro corresponde ao conjunto dos valores que constituem uma sociedade, valores que esse centro procura impor à periferia. Assim, a dinâmica é imposta pelo centro. Nos dois casos a periferia só se constitui na visão do centro. Portanto, pensar-se como periferia é, afinal, aceitar a primazia do centro, o que conduz, inevitavelmente, a construir a história do ponto de vista do centro. Há, evidentemente, a utilização do modelo centro-periferia por Immanuel Wallerstein, mas este autor nunca o teorizou – faz apenas apelo ao seu poder de atração intuitivo. É claro, se pode usar o termo centro de maneira descritiva para designar lugares, como algumas cidades, que possuem uma concentração de saberes. As cidades são lugares de acumulação de dinheiro, de artefatos, de pessoas. Podemos, então, entender um centro como uma concentração e dentro dessa concepção, podemos dizer, informalmente, que o mundo é policêntrico. Isso não quer dizer que o poder não exista, mas o poder também é distribuído. Dizer centro, porém, não nos obriga a dizer que há uma periferia. Centro pode significar uma acumulação, uma concentração, um ponto para onde as coisas convergem. O que me incomoda verdadeiramente é a ideia de periferia. Nos meus trabalhos eu contesto essa concepção. Porque o que é atrativo nessa questão de centro e periferia é que ela pode ser interessante do ponto de vista geográfico. O centro seria

a fonte do poder e a periferia seria aquilo que sucumbe a esse poder. Essa ideia de centro, por exemplo, também é utilizada por Bruno Latour, quando ele fala de centros de cálculo xvi. Ele concebe os centros como imensas máquinas de acumulação, que formulam e reformulam ideias, as estabilizam e depois, as difundem. Isso quer dizer que depois que essas ideias estão criadas, elas podem atravessar o mundo sem se transformar. Para mim, essa é uma visão extremamente eurocêntrica, para não dizer “francocêntrica” de conceber o mundo e a França como o lugar em que os conhecimentos são acumulados, criados e depois difundidos. O que no fundo repete o modelo iluminista. Então, por que utilizar os termos centro e periferia? Para que dizer que há diferentes periferias? Não, na verdade existem diferentes centros! Por que falar apenas da periferia como faz STEP? Essa proposta me parece um pouco o Sermão da Montanha, em que você tem que ser pobre para entrar no Reino dos Céus. Não, eu não quero ser pobre! Eu não quero ser a periferia! (risos) Porque se eu aceitar essa categoria de periferia ─ que é, no fundo, a maneira pela qual todos os lugares que se concebem como centro enxergam as outras partes do mundo, ─ cederei a uma profecia que se auto-realiza. Eu vou acabar virando a periferia. Portanto, eu sou um “anti-step” e também um “anti-latouriano”, em relação a esse ponto do seu pensamento. MD: Nos seus trabalhos você aborda com bastante frequência a produção e a circulação de objetos, como os mapas. Em que medida seus trabalhos dialogam com a teoria atorrede proposta por Bruno Latour e Michel Callon que concede um papel preponderante, uma agência, aos objetos dentro da produção científica? KR: Quando eu falo de circulação, eu quero entender como os objetos, os humanos, suas práticas e seus saberes incorporados mudam, se transformam, a partir do fenômeno do deslocamento. O que me interessa é perceber como, no processo de circulação, as coisas mudam. Na teoria do ator-rede é diferente. Para essa teoria, são os atores que interessam os outros, é o estudo de como um ator faz para que outros adiram aos seus projetos. Trata-se de uma sociologia da adesão e da participação dentro de uma rede. Eles não se colocam a questão da mudança, mas sim da negociação. Segundo essa teoria, a rede é eficaz se o ator se mantiver em seu centro. A eficacidade da rede poderia ser medida pela capacidade daquele que está no centro de controlar o resto. É um modelo ultraliberal, o modelo do empresário, um pouco como Donald Trump, de alguém que quer dominar o mundo, sem conceder muitas mudanças e que quer ficar ao centro. Eu, por outro lado, quero compreender o movimento, as mudanças. Há diferenças fundamentais entre a minha teoria da circulação e a teoria do ator-rede. Callon e

Latour procuram compreender a estabilização, ao fazer uma sociologia do controle. Eu procuro ver as mudanças, historicamente falando. A teoria do ator-rede pode funcionar para vários casos, por exemplo, para entender a Apple e todos os dispositivos que ela utiliza para continuar a ocupar o centro. Entretanto, se eu utilizar a teoria do ator-rede para responder as minhas questões, eu não vou obter sucesso e seria obrigado a mudar as minhas questões. São as questões que ditam as teorias. Outra razão pela qual essa teoria me incomoda é que um ator poderia criar uma rede que iria incluir todo mundo, teoricamente. Na minha teoria da circulação, os objetos circulam dentro de circuitos espaciais, dentro de espaços que possuem regras codificadas. Em resumo, circulação não quer dizer fluidez, um pouco como nos lembra todo dia o rádio ao falar do trânsito em Paris (risos). Vejamos o exemplo histórico tirado da produção cartográfica na Índia. James Rennell, no prefácio do seu mapa da Índia, agradece a diferentes personagens pela colaboração, mesmo os franceses com quem os ingleses estavam recorrentemente em guerraxvii. Nessa mesma seção do livro, ele conta que não teve acesso aos mapas portugueses e que, portanto, as partes relativas a Gôa e à costa ocidental da Índia estão um pouco desatualizadas. Ora, os portugueses eram um dos principais aliados dos ingleses e, no entanto, não houve uma circulação desses mapas entre eles. Portanto, os espaços de circulação permitem ou travam a conexão entre diferentes partes do mundo, dependendo das conjunturas. MD: No ano que vem, o Brasil será a sede do 25º Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia. A temática escolhida para o evento foi: “Ciência, tecnologia e medicina entre o global e o local”. Você acredita que nós assistimos a uma renovação da historiografia das ciências que valorizará cada vez mais a importância entre esses dois polos, o global e o local? Como você articula esses dois polos no seu trabalho? KR: Essa é uma questão difícil! Eu e boa parte dos meus colegas trabalhamos bastante sobre essa questão. A relação entre o global e o local está no centro das principais discussões da nova historiografia da ciência, que data dos últimos quarenta anos. Para essa nova maneira de compreender a ciência, todo conhecimento é local, ao contrário do que pensava a antiga historiografia da ciência, para quem as ideias científicas eram universais. Segundo essa concepção mais tradicional, as ideias eram aceitas pela força de suas bases epistemológicas e se alguém não aceitava determinada ideia, o problema era ele. Seja porque ele era atrasado, não-racional, ou porque estava imerso em uma sociedade que possuía barreiras ao desenvolvimento científico. Ainda segundo essa concepção, o local era o lugar da resistência e da não-aceitação de alguma ideia. Para a nova historiografia, como todo o conhecimento é local,

a questão que se coloca é: como algo se tornaria universal? Quais seriam os mecanismos pelos quais o local se transformaria em universal?xviii Essa é uma das perguntas que a teoria do atorrede busca responder. Para Latour e Callon as coisas se difundem não pela sua qualidade epistêmica, mas pela capacidade de convencimento dos atores. Mas, há outras respostas a essa questão, como, por exemplo, a explicação em torno da calibragem dos instrumentos oferecida por Harry Collinsxix. Para a teoria da circulação, o local é algo que se fabrica graças à circulação. Para mim, o local é um lugar onde diferentes áreas de circulação se cruzam. Mas, essas áreas de circulação mudam, se transformam e o que circula entre elas também se transforma. Temos, por exemplo, a intensa circulação que existia entre o Brasil e a costa ocidental da África e que mudou radicalmente após a abolição do tráfico negreiro. O que é interessante é tentar compreender a mundialização, não como uma nuvem que cobriria pouco a pouco o globo, mas como o processo pelo qual essas áreas de circulação se cruzam, desaparecem e se transformam. É importante frisar que essas áreas não cobrem tudo nem todos, são determinados objetos, determinadas práticas e determinadas pessoas que circulam. Para mim, o local não seria algo fixo, estável, ameaçado pelo global, mas algo fluido, que se transforma constantemente. O que eu acho importante é ver como a novidade emerge. Para concluir, segundo a teoria da circulação, o local não é algo que está em guerra contra o global, nem que resiste a ele, mas o resultado histórico dos cruzamentos de diferentes áreas de circulação.

i

Bolsista de doutorado pleno da Capes na EHESS. A entrevista foi realizada originalmente em francês e vertida

ao português pelo entrevistador. Agradeço à professora Catarina Madeira-Santos pela revisão e sugestões. ii

RAJ, Kapil; SIBUM, H. Otto (orgs). Histoire des sciences et des savoirs, Tome 2: Modernité et globalisation.

Paris: Seuil, 2015. iii

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333, 30 June 1988, p. 816 – 818. v

Waldemar Haffkine foi o criador de uma vacina contra a peste bubônica em Bombaim, em 1896-1897, e seu

laboratório contava com pessoal local especializado, entre eles os Koojas, minoria muçulmana. Esses personagens são discutidos pelo entrevistador na tese em preparação, intitulada: “Rats, puces et bacilles : interactions culturelles et construction du savoir sur la peste bubonique (1894-1914)”. vi

LEVIN, Miriam. « Musées, expositions et contexte urbain ». In: RAJ, Kapil e SIBUM, H. Otto. (Orgs). op.cit,

2015, p. 73-91.

RAJ, Kapil e SIBUM, H. Otto. “Globalisation, science et modernité: de la guerre de sept ans à la grande guerre ».

vii

In: RAJ, Kapil e SIBUM, H. Otto. op.cit, 2015, p. 11-30. viii

VAN-DAMME, Stéphane (org). Histoire des sciences et des savoirs. Tome 1 : De la Renaissance aux Lumières.

Paris : Seuil, 2015. ix

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Essa problemática encontra-se discutida de maneira mais aprofundada em: RAJ, Kapil. Introduction:

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