CIRCUNCELIÕES: REVOLTA RURAL NA ÁFRICA ROMANA

June 1, 2017 | Autor: Regina Bustamante | Categoria: North Africa Studies, Religion and Politics, Ancient Rome History
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CIRCUNCELIÕES: REVOLTA RURAL NA ÁFRICA ROMANA?∗ Profª Drª Regina Maria da Cunha Bustamante Laboratório de História Antiga (LHIA) - UFRJ) ”Nos seus ataques noturnos invadem o lar dos clérigos católicos e deixam-nos absolutamente vazios; atacam também os sacerdotes que ferem a golpes de bastão, a golpes de gládio e os abandonam quase mortos... derramam e cravam profundamente nos olhos destes uma mistura de cal e vinagre; em vez de arrancá-los, preferem torturar à vontade, que tirá-los muito depressa. De início empregavam, para esta perversidade, apenas a cal; mas, tendo ouvido que suas vítimas logo se haviam restabelecido, acrescentaram vinagre.” Com estas palavras o bispo católico da cidade norte-africana de Hipona, Agostinho (Contra Crescônio III, 42), relatava, em 406, as agressões sofridas por seus companheiros. Mas, quem as havia praticado? Por quê? Não era a primeira nem a última vez que isto ocorria e os agressores eram sobejamente conhecidos, pelo menos para os católicos. Tanto assim, que, em 420, o mesmo Agostinho (Contra Gaudêncio I, XXVIII, 32) questionava de forma retórica: “Quem não conhece este tipo de gente, ocupada incessantemente em horríveis atrocidades, inerte para o trabalho útil, cruel ao extremo de assassinar terceiros, não fazendo questão de sua própria morte, levando, sobretudo, seu terror aos campos, abandonando os trabalhos rurais, mas rondando os celeiros das fazendas para encontrar o que comer, o que lhes vale o nome de circunceliões, opróbio do erro africano, desacreditado por quase todo o mundo?” O que teria levado os circunceliões, de acordo com os escritos católicos, a cometerem assassinatos, a desprezarem suas próprias vidas, a roubarem os bens de clérigos católicos, a espancarem-nos primeiramente com bastões – denominados por eles de “Israel” (AGOSTINHO. Salmos contra o partido de Donato 161; Contra cartas de Petiliano II, LXXXVIII; Comentários dos salmos 10, 15) – e depois também com espada (AGOSTINHO. Contra epístola de Parmeniano I, XII, 17 e II, III, 6; Contra cartas de Petiliano II, LXXXVIII, 195 e II, XCVI, 222; Contra Crescônio III, XLII; Epístola 88, 8; Comentários dos salmos 54, 26 e 95, 13), além de torturá-los com requintes de crueldade e sadismo? As práticas dos circunceliões na África do Norte podem ser compreendidas se inseridas na estrutura sócio-econômica da região, originada desde antes do domínio romano na região e sedimentada no decorrer deste, e na conjuntura religiosa norte-africana dos séculos IV e V. A partir do delineamento do contexto histórico, pode-se desvelar a origem social e compreender as reivindicações dos circunceliões.

Publicado em: BUSTAMANTE, R. M. da C. Circunceliões: revolta rural na África Romana? In: CHEVITARESE, A.L. et al. (Org.). O Campesinato na História. Rio de Janeiro : Mauad / FAPERJ, 2002, v.1, p. 39-64.



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1. ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA NORTE-AFRICANA: IMPLANTAÇÃO DE LATIFÚNDIOS E EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA A África do Norte, desde o domínio cartaginês, era reconhecida por sua prosperidade agrícola. Desanges (1983: 441), baseado nos estudos de botânicos, informa que o trigo durázio (proveniente talvez da Abissínia), a cevada, a fava e o grão-de-bico já existiam desde antes da colonização fenícia. Para Camps-Fabrer (1953: 11), a oliveira na África do Norte, surgida desde no Paleolítico Superior, teve o desenvolvimento decisivo de sua cultura somente ocorreu graças à ação cartaginesa (Vide: HERÓDOTO. História IV, 195; Périplo de Silax; TEOFRASTO. Os caracteres CCXXXII-CCXXXIII; DIODORO DA SICÍLIA. Biblioteca de História XX, 8; PLÍNIO, O VELHO. História Natural XVIII, 51-521) e foi estendida de maneira significativa no período romano. A vinha, apesar de existir no território argelino bem antes dos fenícios, teve a sua cultura iniciada somente com a chegada destes. Quanto ao figo, era a fruta nativa por excelência (CAMPS, 1960: 90). A vida agrícola da região é ainda confirmada pela Arqueologia através dos monumentos funerários que contêm cerâmica local (Ibid.). Já no século V a.C., com o domínio cartaginês, ocorrera uma ocupação do território norteafricano em busca de terras que permitissem o abastecimento das cidades e alimentar a sua população crescente. A expansão cartaginesa ocorreu a par do desenvolvimento do cultivo metódico da oliveira aliada à cultura de outras árvores e ao pastoreio. O resultado prático da expansão cartaginesa foi descrito por Diodoro da Sicília (Biblioteca de História XX, 8): extenso pomar irrigado por canais, pontilhado de moradias luxuosas, campos onde pastava gado bovino, ovino e eqüino e, principalmente, uma apicultura (mencionada por HERÓDOTO. História IV, 194, em relação ao povo gizante) desenvolvida com extremo sucesso, sendo a produção de mel (utilizado como adoçante) e de cera (utilizada com fins medicinais) exportada; este último produto era muito apreciado pelos romanos. Através de escritos latinos (COLUMELA. Da Agricultura I, 13; VARRÃO. A Economia Rural I, 1, 10 e II, 5,18; CÍCERO. O Orador I, 249; PLÍNIO, O VELHO. História Natural XVIII, 22-23), que citavam a obra atualmente perdida de Magon, escrita no século III a. C., obtêm-se informações sobre o conhecimento agrícola cartaginês, incluindo o cultivo da oliveira (KRINGS e DEVEVILLIERS, 1996). A importância da obra de Magon fez com que o Senado ordenasse a sua tradução do púnico para o latim. Picard (1990: 69) denomina de economia “magônica” aquela propriedade que combinava arboricultura com pecuária. No processo de expansão, os antigos proprietários locais foram em parte deslocados para terras menos férteis, enquanto que os cartagineses organizaram as melhores terras em latifúndios com arboricultura (oliveira, videira e tamareira) e pecuária, utilizando como mão-de-obra os escravos (também empregados nas docas, minas e serviços domésticos) e a outra parte dos

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Entretanto, num outra passagem (História Natural XV, 3-4), Plínio, o Velho se contradiz ao negar que a cultura da oliveira existisse antes dos romanos.

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proprietários locais. Os nativos, empurrados para o interior pelos cartagineses, foram abandonados à própria sorte em terras pouco férteis. Alguns preservaram o semi-nomadismo continuando a praticar o pastoreio; outros sedentarizaram-se adotando o cultivo de cereais, cujo produto parcial lhes era exigido como tributo pelos cartagineses. A décima parte de sua produção, tinha que ser entregue como tributo a Cartago, proporção que podia ser arbitrariamente elevada em época de guerra, ultrapassando o limite costumeiro. Desde o início do século II a.C., os romanos usufruíam das riquezas agrícolas norteafricanos através do comércio com os númidas. A região da Numídia teve sua atividade agrícola estimulada a partir do reinado de Massinissa (final do século III a.C. a 148 a.C.), apesar da pecuária ainda ser a atividade econômica dominante. De acordo com Políbio (História XXXVI, 16), o excedente da produção cerealífera era exportado em grande parte para Roma. Desde o período helenístico, o cereal norte-africano era um importante produto no comércio do Mediterrâneo. Houve uma intensificação do intercâmbio interno e externo, como demonstram os achados de cerâmica italiana e grega (as ânforas da Campânia e de Rodes encontradas nas tumbas e mausoléus da região). Durante o reinado de Micipsa (148 a 118 a.C.), o sucessor de Massinissa, o comércio da Numídia com Roma e a Itália tornou-se ainda mais ativo e, na época do governo de Jugurta, neto de Massinissa, a presença de negociantes italianos em Cirta e em Vaga (célebre mercado númida de gêneros comerciais) era significativa, segundo Salústio (Guerra de Jugurta XXVI e XLVII). Havia assentamentos não oficiais ultramarinos de italianos compostos por homens de modesta fortuna (artesãos, comerciantes e fazendeiros) que procuravam uma oportunidade de enriquecer para regressar à Itália. A potencialidade agro-pastoril da África do Norte fora, portanto, detectada pelos antigos romanos. Em meados do século I a.C., Salústio (Guerra de Jugurta XVII) informava que “(...) a terra é fértil em cereais, boa para gado, improdutiva quanto a árvores2 (...)”; e Pompônio Mela (Corografia I, 4 e 6), quase um século depois, confirmava: “Ela [a África] é de uma fertilidade maravilhosa nas regiões habitadas. (...) Ela [a Numídia] é maior que a Mauritânia, mais bem cultivada e mais rica.” Mesmo ainda quatro séculos mais tarde, a riqueza agrícola norte-africana continuava atraindo povos conquistadores: no século V, Vítor de Vita (História das perseguições nas províncias africanas I, 1, 3) destacou que esta riqueza foi um forte motivo para a invasão vândala (ALBERTINI, 1930). A terra era fonte por excelência de riqueza e de prestígio social na Antigüidade. A África do Norte despertava interesse dos romanos por apresentar um vasto território a ser ocupado. As terras conquistadas dos cartagineses pelos romanos transformaram-se em ager publicus populi romani, ou seja, propriedade do povo romano. A terra era classificada em várias categorias, segundo leis complexas de propriedade, constantemente modificadas. Com o passar do tempo,

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Salústio, ao mencionar a inadequação da arboricultura na África do Norte, estava defendendo os interesses dos terratenentes italianos, que queriam impedir a concorrência norte-africana com seus produtos.

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buscando-se uma integração das comunidades locais ao Império Romano, uniformizou-se o estatuto das terras das cidades peregrinas com o das propriedades das cidades romanas. A divisão agrária romana era tradicionalmente quadricular: a centuriação (quadrados de 2

710 m ). Embora os lotes dados aos imigrantes italianos do período republicano tenham sido de extensão moderada, houve uma tendência cada vez mais forte de formação de latifundia através da compra de terras de pequenos fazendeiros por seus vizinhos mais ricos ou da transformação destes pequenos proprietários em meeiros. O baixo preço das terras norte-africanas, em comparação às italianas, atraía o interesse de eqüestres, que compraram grandes extensões no último século da República. No Alto Império, predominou na África do Norte o latifúndio, como apresentado por Tertuliano, em Da Alma XXX, como: “Agradáveis domínios substituíram os desertos mais recalcitrantes, campos cultivados invadiram as florestas, rebanhos domésticos colocaram em fuga os animais selvagens.” Como explicitado anteriormente, a existência de grandes propriedades rurais não era, entretanto, uma novidade na África do Norte, na medida em que os cartagineses já as implementaram na sua pertica e utilizavam escravos e mão-de-obra local na sua exploração (WHITTAKER, 1978). O imperador romano possuía os ricos vales do rio Bagradas (Medjerda) e de seus afluentes, onde as inscrições conservaram os nomes de sete domínios imperiais (CARCOPINO, 1906), comumente chamados de saltus (termo que originalmente designava terrenos montanhosos e cobertos de mata ou de pastagens). Gradativamente, estes terrenos foram desmatados e transformados em campos de trigo, vinhedos e plantações de árvores frutíferas, sobretudo oliveiras, contendo também a casa central contornada por uma linha de aldeias onde viviam os agricultores. Formaram-se imensas explorações agrícolas imperiais, aumentadas com o confisco dos bens dos condenados pelo imperador. A organização dos domínios imperiais é conhecida principalmente através da Lex Hadriana (promulgada no governo do imperador Adriano) e da Lex Manciana (originada do nome de Curtilio Mância, talvez procônsul da África na época de Vespasiano), que são os regulamentos de sua exploração.3 3

Há divergências quanto à abrangência da aplicação destes regulamentos: ao conjunto do ager publicus em todo o Império Romano, à Africa do Norte ou à região dos saltus imperiais do vale médio do Bagradas. Os dois documentos determinavam os direitos e deveres dos conductores, dos uillici e dos coloni. Os domínios eram arrendados a ricos e poderosos empreiteiros chamados conductores, que empregavam uillici para dirigi-los. Estes exploravam diretamente uma parte do domínio, na qual utilizavam o trabalho de escravos e de trabalhadores agrícolas além das corvéias devidas pelos coloni, que eram agricultores livres a quem os conductores sublocavam a maior parte do domínio. O contrato com os coloni estabelecia que estes tinham direito de uso de uma parcela de terra, que poderia ser transmitida por herança ou vendida contanto que o novo detentor não interrompesse o cultivo por dois anos consecutivos, em troca entregariam um terço de sua colheita (confere com o C.I.L. VIII, 10570) e prestariam um número determinado de dias de corvéia (variável conforme o domínio, cf. C.I.L. VIII, 10570 e 14428) na terra controlada diretamente pelos uillici. De acordo com C.I.L. VIII, 14428, os produtos entregues pelos coloni seriam: trigo, cevada, vinho e azeite, um quarto de favas e um sesteiro de mel por colméia. Este esquema permaneceu na África do Norte durante o século V, conforme se deduz pelas Tabuletas Albertini (COURTOIS et al., 1952) que, ao tratar do domínio de Flávio Geminiano Catulino, estabelecem as normas de exploração das terras até os confins do deserto. A supervisão da exploração dos domínios imperiais ficava a cargo de um procurador do departamento patrimonial, pertencente à ordem eqüestre, que residia em Roma com seus funcionários. Sua função era preparar os regulamentos gerais e as circulares de implementação. Em nível provincial, havia um outro procurador, também eqüestre, que ficava encarregado de supervisionar os procuradores de distritos (os tractus) e de fazer a coleta de impostos indiretos, como a uicesima hereditatium que contribuía para o tesouro militar controlado pelo imperador. Este funcionário imperial também tinha poder judiciário, restrito aos litígios

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Os domínios privados (fundi) pertenciam às grandes famílias senatoriais romanas. Plínio, o Velho, em História Natural XVIII, 35, escreveu que, quando do confisco de Nero, não mais de seis proprietários possuíam a metade da África. No Baixo Império, através de um documento fiscal contendo o nome dos domínios privados, evidencia-se que o seu número igualava-se ao das cidades (SAUMAGNE, 1950). Outros proprietários eram altos funcionários do Estado, que utilizaram os seus períodos administrativos como procônsules ou legados para obter propriedades, em circunstâncias muitas vezes duvidosas (BOISSIER, 1901: 153). A maior parte desses proprietários era absenteísta, vivendo em Roma e recebendo as rendas de suas terras.4 A existência de latifundia não excluía de todo a presença de pequenos e médios proprietários. A prosperidade das cidades norte-africanas no Alto Império estava fundamentada no seu meio rural e os líderes mais proeminentes destas comunidades cívicas possuíam terras nas vizinhanças, não tão extensas quanto as do imperador ou de importantes senadores, mas suficientes para empregar uma força de trabalho razoável. Um mercado mediterrâneo integrado, como propiciava o Império Romano, favorecia o seu enriquecimento (GARSNEY e WHITTAKER, 1978: 223-245), o que se manifestou no embelezamento das cidades norte-africanas através de práticas evergéticas. A força destes pequenos e médios proprietários foi sentida quando do assassinato do procurador no distrito próximo a Thysdrus, em 238. De acordo com Herodiano (História dos sucessores de Marco Aurélio VII, 4-3), este funcionário imperial exigiu o pagamento de altas taxas, levando os pequenos e médios proprietários a organizarem seus trabalhadores contra o procurador e a aclamar o procônsul Gordiano como novo imperador.5 A agricultura era a principal atividade econômica desenvolvida pelos romanos na África do Norte. Para evitar a concorrência com o vinho e o azeite italianos, que dominavam o mercado no final da República e Alto Império, a oleicultura e a viticultura na África do Norte foram inicialmente desestimuladas através da queima das oliveiras e vinhas. Seu cultivo foi permitido apenas nas terras impróprias para cereais, as subsiciva. Com isso, a arboricultura, praticada na zona rural (chora) cartaginesa, sofreu uma regressão durante a dinastia Júlio-Cláudia, mas se recuperou nas dinastias dos Antoninos e Severos.6 fiscais. Sua sede ficava em Cartago. A partir de 135, o procurador passou a ser assessorado por um procurator Patrimonii responsável pela administração dos domínios imperiais e por um procurator III Publicorum Africae, responsável pela administração das rendas fiscais. Os procuradores dos distritos agrupavam um certo número de saltus, que, por sua vez, possuíam seu procurador que podia ser um liberto. As tarefas deste procurador de domínio eram: fazer contrato com os conductores, assegurar a execução dos regulamentos, arbitrar disputas entre conductores e coloni, e auxiliar os conductores na coleta de rendas. Havia, entretanto, conflitos devido ao desrespeito pelos direitos dos coloni. Através de uma petição dos coloni ao imperador Cômodo, a inscrição de Souk el Khemis, na Tunísia, sabe-se que os conductores e os procuradores aliaram-se para privar os coloni de seus direitos garantidos e aumentar arbitrariamente suas obrigações como os dias de corvéia devidos (CARDOSO, 1984: 147-148). 4 P. ex.: AGOSTINHO Epístolas II, 63; LVIII, LXXXIX e XCIX, 1, citou quatro exemplos: Símaco, Pamáquio, Festo e uma nobre dama cristã, de família senatorial, que tinha uma domus vizinha à catedral da cidade. Os proprietários africanos preferiam Cartago, com suas distrações e vida cultural mais intensa. 5 O governo de Gordiano foi extremamente curto pois os camponeses e algumas pessoas recrutadas rapidamente em Cartago não foram capazes de fazer frente às tropas enviadas pelo legado da Numídia. 6 Somente a partir do século II, a viticultura e, principalmente, a oleicultura puderam se expandir pelas terras norteafricanas. Vários fatores conjugaram-se para a promoção deste processo: a conquista de novas terras para a produção cerealífera tornou mais leve o encargo da África Proconsular; a crise da produção do vinho e azeite italianos; a política

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Grande parte da população romana7 tinha como base de sua subsistência o fornecimento de cereal pelo Estado.8 Roma, portanto, estava mais interessada em incrementar a produção de cereais9 para alimentar a sua enorme população carente, e, para isso, efetuou uma política de confinamento das tribos locais, manteve, no antigo território cartaginês, o trabalho hidráulico, herdado dos púnicos, graças aos esforços do exército romano, e expandiu a exploração intensiva agrícola para Numídia e Mauritânias. O destino da África seria se tornar o “celeiro de Roma” 10? A impressão de fertilidade norte-africana estava relacionada à obrigação do tributo em cereal.11 Tendo sido perdedora das Guerras Púnicas, a região cartaginesa devia entregar ao vencedor o seu trigo (POLÍBIO. História XIV, 18). A política do “panem et circenses” (JUVENAL. Sátira VIII, 118) para a plebe, desenvolvida em Roma pelos seus governantes, demandava uma quantidade significativa de cereal; estabeleceu-se a annona, ou seja, serviço institucionalizado de abastecimento de cereal, advindo da produção anual dos domínios imperiais e da arrecadação em espécie cobrada sobre outras terras. Inicialmente, a Sicília e a Sardenha abasteciam a cidade;

mais liberal de imperadores de origem provincial para com as regiões não-italianas; a existência de terras estépicas que eram insatisfatórias para a triticultura mas propícias para a arboricultura; e a rentabilidade do comércio de vinho e azeite. Se, no século I a. C., têm-se Salústio (Guerra de Jugurta XVIII) questionando a possibilidade de olivocultura na África do Norte e, no século seguinte, Juvenal (Sátiras V, 86-91) criticando o odor e o gosto do azeite africano, no Baixo Império, o quadro foi outro: Símaco (Relação 35), prefeito de Roma em 364, pediu às autoridades romanas na África do Norte para mandarem azeite a Roma. A extensão do cultivo da oliveira foi justificada por Aurélio Victor (Livro dos Césares XXXVII) pela necessidade de impedir a ociosidade dos soldados romanos. Adriano incentivou o desenvolvimento de plantações arbustivas nas terras virgens dos domínios imperiais, como se deduz pela inscrição encontrada em Tfilzi (Menaa) datada de 66, compilada no C.I.L. VIII, 2469. A Lex Manciana também acabou por estimular a olivocultura, ao favorecer a exploração de terrenos adversos, como matagais, pântanos, estepes, terrenos acidentados e terras esgotadas pelos trigais. Os coloni recebiam gratuitamente essas terras devolutas, excluídas do cadastro, adquirindo o direito de uso e cessão, para fins de cultivo. O plantio da oliveira foi particularmente bem sucedido, devido à peculiaridade da terra e às condições climáticas norte-africanas. 7 Segundo Barton (1972: 29), a população carente na época de Augusto chegou a alcançar 90% dos habitantes de Roma. Mahjoubi (1986: 491) calcula que, durante o governo de Augusto, 200.000 romanos recebiam gratuitamente uma ração de 44 l de trigo por mês, totalizando cerca de 1.000.000 de alqueires. 8 A cota de cereal era complementada ocasionalmente com o botim das campanhas militares ou com a patronagem de ricos senadores, cujos presentes em espécie ou em moedas possibilitavam uma melhoria no regime alimentar de azeite, de frutas, de vegetais, de vinho e algumas vezes até de carne. Durante o século III, alguns destes itens foram anexados à ração de cereal, mas esta continuou sendo a base da alimentação. 9 A quantidade de cereal variava de região para região na África do Norte. Já no século I, Pompônio Mela (Corografia I, 6,) expõe que a produção agrícola da Mauritânia era menor que a da Numídia. No século III, o gramático Solino (Erudito XXVIII), informou que a planície de Bisacena, que tinha duzentas milhas ou mais de extensão, era tão fértil que a semeadura rendia 100 grãos por 1. No final do século IV, Agostinho (Comentários dos salmos CXLIX, 3) mencionou que, se na Numídia cereal dava 10 por 1, na Getúlia obtinha-se era 60 e até 100 por 1. A região cerealífera norteafricana abrangia o vale de Bragadas, os altiplanos e planaltos da Numídia. Segundo o testemunho de Procópio (História das Guerras II, 12), a cultura cerealífera era praticada na região vizinha de Thamugadi, que era melhor irrigada. 10 Na capital do Império Romano, conforme Horácio (Carme I, 1, 10), quando se queria dizer que um homem era extremamente rico, dizia-se: “Ele tem em seus celeiros todo o trigo colhido pela África.” Plínio, o Velho (História Natural XVIII, 21) narrou que um procurador de Augusto lhe enviou 400 grãos que tinham saído de um só, expressando assim a idéia de que o trigo africano produzia mais que o de outras regiões. O mesmo autor, em História Natural XVII, 3, também se referiu à fertilidade do solo norte-africano ao descrever a facilidade de trabalhar a terra após as chuvas somente com uma charrua atrelada a um pequeno burro e a uma mulher. Em termos iconográficos, o epíteto “celeiro de Roma” é “lido” no mosaico encontrado na uilla Ercolia da Sicília, no qual a personificação da África aparece segurando espigas de trigo (LEPELLEY, 1979: 4), e numa imagem da Notitia Dignitatum, compilada em fins do século IV, na qual aparece uma dama agitando espigas de trigo, próxima às insígnias do procônsul; embaixo desta figura feminina, foram desenhados barcos carregados de sacos de trigo a caminho de Roma. 11 Segundo Plutarco (Vida de César LIV), Júlio César fez questão de propalar os resultados de sua vitória sobre os pompeianos em Tapso: “(...) os países que acabava de conquistar eram tão extensos, que o povo romano poderia receber deles, todos os anos, duzentos mil medimnos áticos de trigo e três milhões de libras de azeite”. Já durante a

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depois, houve a necessidade de se recorrer ao Egito e à África do Norte, que se tornou a principal fonte após Augusto. Segundo Tácito (Anais XII, 43), os bons cidadãos “gemiam de ver que a subsistência do povo romano estava ao sabor dos ventos e tempestades”

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; Roma afastava-se

definitivamente do antigo ideal de autarcia. Com a construção de Constantinopla, a dependência do cereal norte-africano por Roma aumentou, pois o cereal egípcio era utilizado para abastecer a população da nova capital do Império Romano do Oriente, de acordo com Claudiano (Guerra contra Gildão I, 60-65), poeta do final do século IV e início do V. A dependência de Roma em relação ao cereal norte-africano foi utilizada com arma política em diversas ocasiões pelos usurpadores, como Clódio Macer (comandante da III Legião Augusta) em 69 e Domício Alexandre (procônsul) em 308, e pelo norte-africano Gildão entre 387 e 398. A grande produção cerealífera exportada para Roma ocasionava, entretanto, fomes freqüentes na região. “Celeiro de Roma” não era, portanto, um cognome baseado no bem-estar da população norte-africana. Esta situação foi minorada no período entre meados do século II e meados do século III, quando ocorreu o cultivo das terras virgens, em especial, da Numídia, o que favoreceu o crescimento demográfico das populações rurais. No Baixo Império, o cereal fazia a fortuna de alguns (como latifundiários e especuladores), mas podia arruinar o pequeno agricultor. A alta dos preços, as más colheitas e os lucros dos latifundiários provocaram a falência de fazendeiros e colonos e aumentaram o número de camponeses arruinados, dos pobres e dos mendigos da cidade (AGOSTINHO. Comentários dos salmos LXX, 17). Eram raros os casos de enriquecimento de um camponês apenas pelo seu árduo trabalho na triticultura, como o descrito no C.I.L. VIII, 11824. A olivocultura, uma outra importante atividade agrícola norte-africana, também não favorecia a situação camponesa. Os olivais eram reservados aos terrenos em declive e esgotados pelos trigais, impróprios para a semeadura, inclusive nas montanhas e estepes. As árvores eram geralmente dispostas em forma de cruz, com uma plantada no centro (quincôncio). A oliveira somente começa a produzir a partir de dez ou doze anos, chegando até a quinze anos o tempo de espera. Durante todo este tempo, a terra permanece improdutiva, pois, em zona semi-árida, a oliveira não admite nenhuma cultura intercalada. As operações de lavra e de poda requerem pouca mão-de-obra, mas a colheita e a prensagem exigem muitos trabalhadores. Na Antigüidade, o pessoal permanente de uma fazenda não era suficiente para estes trabalhos, o que levava ao recrutamento de mão-de-obra sazonal, como os circunceliões. Tais condições de produção dificultavam que o pequeno camponês pudesse realizá-los. Assim, o latifundiário era o que sua campanha na região, Júlio César apreendeu trezentos mil alqueires de trigo estocados pelos italianos que viviam em Thysdrus e que pediram sua proteção, de acordo com Guerra da África XXXVI. 12 A importância dos suprimentos de cereais para Roma está representada na numismática romana (BARTON, 1972: 30): uma moeda da época de Nero tem a inscrição ANNONA AVGVSTI CERES e as figuras de Ceres, da deusa Anona e da popa de um navio, esta simbolizando a importação de cereais do além-mar; uma outra, também da época de Nero, tem gravada o novo porto de Óstia por onde entravam as importações cerealíferas; e uma terceira, do governo de Tito, tem a inscrição ANNONA AVG. e a proa de um navio, uma cornucópia, uma cesta de cereal e a deusa Anona carregando a estátua de Aequitas, simbolizando a mão justa do imperador na distribuição do cereal.

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apresentava recursos para fazer face aos pesados encargos e tornar a oliveira um investimento seguro e atraente economicamente. De acordo com o Código Teodosiano XI, 28, a África do Norte, mesmo no Baixo Império, quando a maior parte das províncias ocidentais sofria retração econômica, manteve sua riqueza baseada em produtos agrícolas, especialmente o cereal e o azeite (LEPELLEY, 1967). Entretanto, tal riqueza estava concentrada nas mãos de uma minoria enquanto uma maioria vivia em condições miseráveis, dentre estes, certamente os circunceliões. O interesse romano pelas terras norte-africanas, inicialmente, pelo antigo território cartaginês e, posteriormente, pelo território númida, afetou as populações locais. A propriedade tribal na África do Norte foi constantemente limitada em favor da ampliação crescente das terras de colonização afetando desta forma o direito de passagem, exceto na Mauritânia, na qual este permanecia irrestrito, pois não despertava muito o interesse econômico dos romanos. Este processo de confinamento das tribos para o interior e de expropriação de terras verificou-se no Alto Império e acentuou-se na época dos Severos, quando houve a expansão do limes na África do Norte. A progressão dos cultivos reduziu a pastagem dos pastores seminômades, cujos rebanhos arriscavam-se incessantemente a invadir terras cultivadas. Uma inscrição do século III já menciona um conflito entre pastores e agricultores (PICARD, 1990). A transformação das terras de nomadismo em áreas agrícolas, confiscando as terras férteis para a agricultura, e o fechamento dos caminhos de migração sazonal para a construção e para o melhoramento de estradas romperam o estilo de vida seminômade das populações locais (DYSON, 1975). Os campos mais ricos foram apropriados por imperadores, veteranos, colonos romanos ou italianos, companhias coletoras de impostos e membros da aristocracia romana (senadores e eqüestres), expulsando desta forma a população local para as estepes e para o deserto. Uma parte dos nativos mantiveram suas atividades de pastoreio, outros tornaram-se pequenos proprietários sedentarizando-se, mas houve também a transformação dos nativos em proletários rurais nos latifundia. Nos tempos de colheita, dirigiam-se às propriedades fundiárias com suas choças de palhas - as mapalia

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- e, durante a entressafra, procuravam sua

subsistência nas cidades. Este quadro ocasionou revoltas, como por exemplo, o movimento nativo liderado por Tacfarinas (17 a 24), que foi debelado com muito esforço pelos romanos. Foi necessário que a III Legião Augusta recebesse ajuda de forças do Danúbio, que permaneceram por mais quatro anos, até a supressão final da rebelião. Entretanto, apesar da paz aparente e vigiada que estimulou a produção agrícola, a insatisfação rural se manteve durante todo o domínio romano e eclodia em alguns momentos.

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Salústio (Guerra de Jugurta XVIII) a descreve como “oblongas, de cobertura com os lados recurvos, são como cascos de navios.” O mosaico Dominus Iulius, de fins do século IV, apresenta uma destas habitações dos circunceliões.

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Apesar do número extraordinário de cidades na África Romana, a maioria da população continuava vivendo dispersa no campo, nas fazendas, nos lugarejos ou aldeias. Esta constatação já fora realizada por Rostovtzeff (edição original em 1926; espanhola em 1972) para o Império Romano. Atuais estudos demográficos (p. ex., LASSÈRE, 1977) refutam a tese tradicional de despovoamento durante o Baixo Império (COURTOIS, 1955). Segundo Picard (1990: 61), a população norte-africana no seu conjunto cresceu no Império, principalmente entre os grupos menos privilegiados, que não tinham a prática costumeira de controle de natalidade como a elite. Mesmo com a distribuição desigualitária da riqueza, ainda que menos acentuada do que em outras regiões do Império, a permanência de fome e epidemia esporádicas foi suplantada por outros fatores que favoreceram o aumento populacional: a paz, melhores condições de higiene e, principalmente, a expansão agrícola. No Baixo Império, entretanto, quando as fronteiras agrícolas diminuíram, a carga fiscal aumentou e a população crescera, a pressão social era enorme resultando em movimentos como o dos circunceliões.

2. CONTEXTO RELIGIOSO NORTE-AFRICANO NOS SÉCULOS IV E V: DONATISTAS X CATÓLICOS As referências, bastante negativas, sobre os circunceliões advêm de seus inimigos, ou seja, dos membros da hierarquia eclesiástica católica. Nos escritos dos bispos católicos Optato de Milevi e Agostinho de Hipona, prevaleceu a imagem dos circunceliões como a ala extremista da cismática Igreja Donatista, compondo portanto o braço armado do donatismo recrutado entre os trabalhadores rurais. Havia o interesse católico de relacionar os circunceliões aos donatistas, fazendo com que as atrocidades dos primeiros lhes fossem imputadas, o que ocasionaria a interferência do poder secular em acabar com este movimento que ameaçava a ordem pública romana na região. Lepelley (1979) enfatizou que a relevância concedida a controvérsia entre donatistas e católicos pela historiografia tradicional origina-se na documentação, ou seja, nos escritos de Agostinho, que foi o principal defensor da Igreja Católica frente à ameaça donatista. O donatismo foi um cisma, surgido no início do século IV, que dividiu a Igreja Cristã na África do Norte. Iniciado com uma querela sucessória do episcopado de Cartago, ou na expressão de Courtois (1955) como um “simples conflito de sacristia”, acabou por formar duas Igrejas Cristãs rivais na região. O donatismo, cuja denominação advinha de seu líder Donato (pretendente ao episcopado cartaginês), criticava a condescendência católica em aceitar clérigos (traditoris) e fiéis (lapsi),14 que haviam renegado sua fé durante as perseguições, promovidas pelas autoridades romanas no final do século III e princípio do seguinte, quando o cristianismo era ainda 14

Havia diversas formas de ser apóstata: fazendo sacrifícios (suplicatio) às divindades pagãs frente às autoridades romanas (sacrificati), apresentando libelli (certificados oficiais de sacrifício) falsos ou comprados (libellatici) e clérigos entregando Livros Sagrados, objetos litúrgicos e os tesouros das igrejas (traditores).

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considerado uma religião ilícita. O sacramento do batismo, realizado por sacerdotes “traidores” reintegrados à comunidade cristã, não era reconhecido como válido pelos donatistas, daí a prática do rebatismo. Assim, uma pendência eclesiológica opunha os cléricos sobre a integridade e unidade de sua Igreja. Os donatistas arvoraram-se em defensores da tradição africana. Distintamente, a Igreja Romana, era favorável à eficácia religiosa do sacramento em si e por si, independentemente da pureza ritual de quem os administrava. Inicialmente,15 foram os próprios donatistas que solicitaram a interferência do imperador Constatino, que favorecera a Igreja Cristã com o Edito de Milão de 313, tornando o cristianismo uma religião lícita, e com a concessão de uma série de privilégios. O imperador, seguindo a posição da comissão conciliar em Roma e Arles, foi contrário ao donatismo. A perseguição que se abateu então sobre seus seguidores, e que tornou bem visível a aliança entre Estado e Igreja Católica, contribuiu mais ainda para animar os “rebeldes cismáticos” a uma persistente resistência; viam-se como um cristianismo novamente proscrito, tal qual o dos mártires no tempo dos imperadores pagãos. Eles se denominavam de Igreja dos Puros ou dos Santos, por seu dito rigorismo moral típico da religiosidade norte-africana, ou ainda Igreja dos Mártires, pois aqueles clérigos ou fiéis, que perdiam a vida defendendo a sua fé, eram considerados os novos mártires. Em alguns momentos, os imperadores foram tolerantes com o donatismo enquanto ainda era considerado como um cisma e não como uma heresia nem uma ameaça à ordem romana. A partir da Numídia, o movimento donatista expandiu-se por toda África do Norte, porém restringiu-se a esta região.16 Ele não foi reconhecido por nenhuma Igreja do Oriente ou do Ocidente. Houve uma verdadeira guerra religiosa na África do Norte em que as táticas dos circunceliões caracterizavam-se pelo terrorismo tanto para com cléricos católicos como para transfugas do donatismo (MONCEAUX, t. 4, 1912: 62-63 e 72 e 73). Sob o grito de Deo laudes (Glória a Deus), lançavam-se em combate e, por isso, se auto-denominavam de agonísticos pois travavam o bom combate pelo que acreditavam ser a verdadeira Igreja (AGOSTINHO. Comentários dos salmos 132, 6; Epístola 108, V, 14; Contra cartas de Petiliano II, LXV, 145-146 e II, LXXXIV, 186). Esta divisa também era encontrada nos epitáfios dos seus mártires, nos monumentos e basílicas donatistas. Os circunceliões também se intitulavam de santos, atletas de Deus e soldados de Cristo; os católicos, por sua vez, buscavam desqualificá-los moralmente imputando-lhes violências, bebedeiras, orgias e abortos (Breviário dos confrontos com donatistas III, VIII, 14; Para os donatistas após confronto XVII, 2 e 23; Contra Crescônio III, XLII, 46; Contra Gaudêncio XXXVI, 46; Epístola 16, 2; Contra epístola de Parmeniano I, XI, 17, II, III, 6 e II, IX, 1819; Epístola 35, 2; Contra cartas de Petiliano I, XXIV, 26 e II, LXXXVIII, 195; Epístola para os católicos sobre a seita donatista XIX, 50). De acordo com a crença donatista, quanto mais sangue 15

Os donatistas também solicitaram a interferência imperial em outras ocasiões: em 337 ao imperador Constante e em 362 ao imperador Juliano. 16 Sabe-se da existência de uma comunidade donatista, com seu bispo, em Roma que atendia a colônia norte-africana daquela cidade. Ela possuía uma igreja fora dos muros, que parecia ter sido uma catacumba numa colina, o que lhe valeu o adjetivo de montenses (montanheses) e a conotação pejorativa de rústicos incultos (DECRET, 1996: 141-142).

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de suas hostes jorrava, com mais orgulho se gabavam. Exaltavam as vítimas, prestavam-lhes culto como mártires.17 Como último recurso, era comum a prática do suicídio coletivo voluntário, seja através de incitamento ao homicídio pelos inimigos, de afogamento, de imolação pelo fogo ou de precipitação do alto das escarpas (AGOSTINHO. Contra Gaudêncio I, XXVII-XXIX; Epístolas 185, 2, 12 e 204, 1, 2; OPTATO DE MILEVI. Livros contra Parmeniano donatista III, 4). O suicídio por enforcamento era indigno, pois lembrava a morte do traidor de Jesus, Judas (AGOSTINHO. Contra cartas de Petiliano II, XLIX, 114;Contra Gaudêncio I, XXXVI, 46); o mesmo ocorria com o praticado com armas brancas pois ia contra o preceito evangélico. Pensavam que o suicídio devoto os redimiria dos pecados e os faria entrar imediatamente no céu. Segundo Agostinho, os donatistas e circunceliões participaram como aliados das revoltas dos príncipes berberes Firmo (371-375) e Gildão (387-398) contra as autoridades romanas (AGOSTINHO. Contra cartas de Petiliniano II, XXXIX, 94 e III, CIII, 237; Contra epístola de Parmeniano II, II, 4). Uma parte da historiografia contemporânea não se limitou a considerar apenas o âmbito religioso na disputa entre católicos e donatistas. No século XIX, duas tendências historiográficas se opuseram na busca de outras motivações que não apenas as religiosas para o conflito entre católicos e donatistas. A tendência de W. Thümmel

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, retomada por Frend (1952), fazia uma

leitura “nacionalista” ou “berberista”, como se diria atualmente, enquanto a de Martroye (1904), desenvolvida nos trabalhos de Brisson (1958) e dos historiadores marxistas, como Donini (1980), caracterizava-se por uma leitura “social”. O aspecto indígena do donatismo foi referido em dois níveis: um primeiro berbere, de caráter mais amplo, e o outro, mais regional, númida. Em relação ao primeiro, evocava-se a aliança entre Firmo e Gildão com os donatistas, denunciada por Agostinho de Hipona. Procuravase aí encontrar uma oposição donatista à ordem romana. O cisma seria fruto da hostilidade da população camponesa, que, contrariamente a Roma, permaneceu fiel às suas tradições ancestrais. O donatismo permitiria à população norte-africana expressar sua recusa da romanidade, que no Baixo Império acabou por se apoiar na Igreja Católica. Tal leitura desconsidera que Agostinho faz do bispo donatista Optato de Thamugadi um partidário e até mentor de Gildão para melhor acusar o inimigo vencido e morto e torná-lo um modelo negativo de bispo, típico do donatismo, em contraposição ao modelo católico de bispo. Para Février (1990: 175), a posição do bispo donatista Optato de Thamugadi aliando-se a Gildão se restringia apenas a ele. Deve-se lembrar que a Igreja Donatista aproveitava-se do poder e de bens e apelava inclusive aos tribunais romanos contra distensões internas da sua própria Igreja como a de Maximiano. Em relação ao caráter númida do cisma donatista, há referências nos próprios antigos. Em 411, o donatista Petiliano sublinhava que bispos católicos não estavam em todo lugar na Numídia 17

Février (1990: 175) destaca que o culto aos mártires também era uma prática difundida entre os católicos, sendo difícil a distinção dos monumentos respectivos de cada um. 18 THÜMMEL, W. Zur Beurteilung des Donatismus. Halle, 1893.

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e, quando ali estavam, eram em raros pontos. Posição polêmica, certamente; mas os católicos reconheciam que seus adversários eram mais numerosos na Numídia. Février (1990: 175) questiona o termo “númida”, defendendo que não se deve tomar uma realidade da geografia histórica como uma realidade étnica ou de outra natureza. Este autor contrapõe-se assim às posições de Gautier (1952: 243-244), que identifica, dentre outros elementos (como o da diferenciação econômica), a presença da alteridade étnica e lingüística entre romanos / romanizados e númidas, e a de Congar (1963), que defende a existência de uma oposição entre uma Numídia montanhosa e aquela do litoral. Na verdade, o donatismo estava em todo lugar e o mapa de sua implantação segue o processo de urbanização que caracterizou a África do Norte no século III. A base da hipótese “social” sustenta-se na ligação entre donatistas e circunceliões durante as perseguições movidas pelo Estado romano, relatadas pelo bispo católico Optato de Milevi e reproduzidas por Agostinho de Hipona. Tengström

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contestou esta situação alegando que os

numerosos recrutas circunceliões, advindos dos trabalhadores agrícolas que alugavam sua força de trabalho para as propriedades da Numídia, não estavam todos sob o comando donatista, e que a própria Igreja Donatista era muito rica e abrangia proprietários fundiários: Crispino de Calama, bispo donatista, tinha em enfiteuse bens do imperador e sob Juliano, no dizer de Agostinho, tornou-se fácil fazer legados às igrejas donatistas. Février (1990: 174) refere-se aos votos de doar vários domínios aos cismáticos, expressos por um testamento (o da irmã de um rico africano) em 399. Recentemente, apresentou-se uma terceira tendência historiográfica que busca privilegiar o caráter religioso da polêmica envolvendo donatistas e católicos na África do Norte. Brown (1972) e Février (1966)

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negaram a correspondência entre as diferenças religiosas e as étnicas e

sociais, alegando que de fato não havia distinção de etnia, de classe ou de educação entre Agostinho e os bispos donatistas, resgatando assim o conteúdo religioso da disputa. Para Février (1990: 172-175), por um lado, os atos religiosos estão entre os melhores conhecidos na sociedade antiga, constituindo-se, portanto, num bom revelador das disputas que a atravessam. Como nesta sociedade tudo era religioso, era normal que os antagonismos se revelassem por esta via. Por outro lado, a virulência de todos envolvidos neste conflito traduz certamente antagonismos profundos cuja percepção de seu sentido ainda nos escapa.

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TENGSTRÖM, E. Donatisten und Katholiken, soziale, wirtschaftliche und politische. Aspeckt einer nordafrikanischen Kirchenspaltung. Göteborg, 1964. 20 Lepelley (1979: 94-95, n. 109) coloca estes dois autores como influenciados por Emin Tengström (1964).

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3. CIRCUNCELIÕES: ORIGEM SOCIAL E REIVINDICAÇÕES O caráter rural do movimento dos circunceliões é inegável, mesmo entre os escritos católicos da época, que privilegiaram o seu aspecto religioso devido à polêmica contra os donatistas. Agostinho (Contra Gaudêncio I, XXVIII, 32) refere-se à ocupação profissional abandonada dos circunceliões: eram trabalhadores rurais despossuídos de terras para sua subsistência. Tratavam-se, pois, de proletários agrícolas, ou seja, trabalhadores sazonais que sobreviviam vendendo sua força de trabalho aos latifundiários durante os períodos de maior atividade agrícola quanto da semeadura e da colheita, sem possuir portanto terra nem um lugar fixo de trabalho. Modernamente, os denominaríamos de bóias-frias... A própria etimologia do termo circunceliões, advinda da expressão latina circum cellas, os definia: eram aqueles que erravam em torno das propriedades fundiárias e dos celeiros. Sua origem rural é confirmada em outras obras agostinianas (p. ex.: Contra epístola de Parmeniano I, XI, 18; Sobre as heresias para Quodvultdeus I, 69; Comentários dos salmos 132, 3). O bispo de Hipona (Comentários dos salmos 132, 3) descartava a possibilidade de advir do termo latino circellio, espécie de monge que errava por diversas capelas (cellae) dos mártires donatistas. A aliança entre circunceliões e donatistas não se deu de forma constante e nem imediata, apesar das acusações católicas (AGOSTINHO. Epístolas 108, V, 15 e 111, 1; Contra Crescônio III, XLII, 46 e IV, L, 60; Epístolas 133, 1 e 105, II, 3; Para os donatistas após confronto XVII, 22 e XXII; Breviário dos confrontos com donatistas III, XI, 21-22). Ela materializou-se com as perseguições que o donatismo sofreu na África do Norte. A repressão violenta empregada esporadicamente pelas autoridades romanas levou os donatistas a recorrerem aos circunceliões como uma forma de resistir ao confisco de bens e intimidar os seus inimigos católicos, no que parece que foram bem sucedidos segundo os escritos de Optato de Milevi e Agostinho de Hipona. A primeira aparição dos circunceliões como aliados dos donatistas foi em 320, quando o comandante militar romano Ursácio quis proceder o confisco das igrejas donatistas da Numídia, de acordo com a ordem de Constantino, e foi impedido pela resistência dos circunceliões (Sermão sobre a paixão de Donato)

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. Entretanto, os bispos donatistas não tinham controle sobre os seus

“aliados”. Aproximadamente em 340, o conde Taurino (em função entre 340 e 345) interveio a pedido dos próprios bispos donatistas para protegê-los diante da ameaça dos agitadores circunceliões cujos bandos se encontravam nos mercados rurais (nundinae) em busca de emprego e eram liderados pelos “chefes dos santos”, Axido e Fasir, dois nomes de origem indígena. Os donatistas reconheciam na petição que lhes faltava autoridade sobre os circunceliões, que aterrorizaram os campos númidas atacando os ricos e lhes fazendo emboscadas nas estradas. O conde enviou seus soldados aos mercados e um grande número de circunceliões foi massacrado (OPTATO DE MILEVI. Livros contra Parmeniano donatista III, 4). 21

É um dos raros escritos donatistas. Encontra-se em MIGNE, P. Patrologia Latina, t. VIII, c. 752-758.

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Contudo, mais tarde, em 347, a aliança donatistas-circunceliões foi retomada. Nesta época, o imperador Constâncio II enviou dois legados, Paulo e Macário, para investigar sobre o cisma africano. Os legados imperiais usaram a força contra os donatistas que apelaram novamente aos circunceliões. Os donatistas fizeram mártires as vítimas das duras repressões e o “tempo de Paulo e Macário” permaneceu na lembrança do povo como aquele de uma prova sangrenta e heróica. As obras de Optato de Milevi e de Agostinho (especialmente sua correspondência), as atas dos concílios africanos e da conferência de Cartago de 411

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citam as ações violentas dos

circunceliões contra seus inimigos e contra eles próprios. O suicídio devoto dá a medida do traumatismo advindo do excesso da miséria, da exaltação religiosa e do horror da repressão. No primeiro momento do movimento dos circunceliões, prevalecia um cunho nitidamente social na revolta que era incompatível com os interesses donatistas. Saumagne (1934) defende que os circunceliões formavam uma categoria jurídica muito precisa, um ordo de trabalhadores agrícolas itinerantes que oferecia seus serviços sazonais nas explorações agrícolas da Numídia. O bispo católico Optato de Milevi (Livros contra Parmeniano donatista III, 4) se refere aos mercados rurais onde se reuniam os circunceliões e eram recrutados, seja para o trabalho ou para combater pelos donatistas. Sua condição de itinerantes e sua estrutura de grupo organizado os tornavam mais aptos a uma revolta que os camponeses sedentários e os colonos isolados num domínio. Entre os donatistas, a começar por alguns bispos, havia grandes proprietários fundiários assim como fiéis pertencentes ao meio rural, no qual emergiu os circunceliões. Muito variada, a sociologia do donatismo, como a sua geografia, abrangia todos os grupos sociais: dos simples proletários agrícolas aos latifundiários, do povo das aldeias à aristocracia urbana. Os circunceliões eram um incômodo aos donatistas por sua revolta contra os terratenentes norte-africanos no seio dos quais os cismáticos contavam com poderoso apoio. Além disso, por sua agitação, os circunceliões comprometiam perigosamente a Igreja donatista em seu conjunto aos olhos de seus adversários, tanto dos católicos, que se viam como partidários da ordem, como do Estado Romano, pois nutriam a esperança de fazê-lo reconhecer a sua causa. A revolta dos circunceliões tinha causas precisas que estavam centradas sobre o problema das dívidas. Optato de Milevi (Livros contra Parmeniano donatista III, 4) denunciava que, no início do século IV, o alvo preferido dos ataques dos circunceliões eram os detentores de contratos de dívidas. Num universo rural, os devedores eram os camponeses e os credores, os proprietários fundiários. O processo de endividamento implicava em hipotecas das terras dos devedores e ameaçava a existência da pequena e média propriedade. A causa desta crise podia ser simples: uma série de anos de seca, sempre catastróficas na África do Norte, principalmente para pequenos agricultores que não dispunham de nenhuma reserva. Entretanto, a documentação, escassa para o período, não evoca fomes durante os anos 340, somente uma para o ano de 360 22

Monceaux (t. 4: 286-309 e t. 7: 79-292) analisou exaustivamente as obras agostinianas e os processos judiciários.

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ou 361, período melhor conhecido pelas obras de Amiano Marcelino e de Símaco. Acrescente-se que a prioridade absoluta dada ao serviço da annona podia ocasionar, em caso de más colheitas, uma grave escassez na África enquanto que o abastecimento da Urbs não era verdadeiramente perturbado. A fiscalidade imperial tornava-se cada vez mais pesada (ZÓSIMO. História II, 38) e nenhuma remessa de imposto não era dispensada se, por força das circunstâncias, as colheitas eram inferiores àquelas estabelecidas quando da indicação. Cidades e campos sofriam de uma crise agrária que, certamente, foi uma das causas essenciais da ausência total de obras urbanas conhecidas na Numídia durante o reinado dos filhos de Constantino (LEPELLEY, 1979). Os circunceliões buscavam impedir que os credores recebessem a quitação da dívida. Para tanto, enviavam-lhes cartas ameaçadoras exigindo-lhes a renúncia do pagamento da dívida e, caso recusassem, um grupo de circunceliões os atacava, os feria, os humilhava

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e,

freqüentemente, os matava. Era, portanto, uma reação ao empobrecimento dos camponeses que, premidos por suas dívidas, se viam na eminência de perder suas terras. Numa carta agostiniana (Epístola 185, IV, 14), um outro elemento da reivindicação dos circunceliões é explicitado: a libertação de escravos. Agostinho não explica se por solidariedade com os escravos ou para evitar a concorrência deste no trabalho agrícola. Para o bispo de Hipona, é mais importante destacar para o destinatário de sua carta, o tribuno militar e futuro conde da África, Bonifácio, que fora encarregado de eliminar as seqüelas do donatismo (definitivamente condenado em 411), o fanatismo e a irracionalidade das práticas dos circunceliões e donatistas: as casas dos proprietários eram destruídas ou incendiadas à noite; aristocratas foram selvagemente feridos ou acorrentados a uma pedra de moinho e chicoteados para movê-la como animais. Há uma polêmica historiográfica sobre a periodização do movimento circuncelião a partir de seu caráter social ou religioso. Frend (1952: 172-177) não faz distinção de períodos. Brisson (1958: 329-331) afirma que, tal como em 347, houve entre 380 e 400 uma ação revolucionária de tipo social e que os acontecimentos descritos por Agostinho na Epístola 185 referiam-se a fatos do início do século V. Numa posição de negação do caráter social do movimento, coloca-se Tengström (1964 Apud BROWN, 1972: 335-338) que minimiza a dimensão social dos ataques dos circunceliões descartando-lhe a possibilidade de ter sido uma “jacquerie”. Num meio termo, situa-se Lepelley (1979: 93-94): o caráter social da revolta dos circunceliões se restringiria a Numídia na primeira metade do século IV. Segundo este autor, no tempo de Agostinho, meio século depois, os circunceliões existiam ainda, insatisfeitos, violentos e fanáticos, mas seu campo de ação era muito mais limitado que aquele de seus predecessores do tempo de Constante: eles se contentavam em defender pela violência a Igreja Donatista ameaçada e esqueceram as dimensões sociais do combate de seus ancestrais. A esparsa referência agostiniana às ações

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Os senhores eram colocados para carregar o transporte e os empregados iam sentados nos lugares que antes lhes cabia.

16

desta natureza num período posterior24 foi considerada como uma forma desesperada de resistência frente à liquidação do cisma donatista após o edito de 412. Para Lepelley, a Epístola 185 de Agostinho de Hipona, escrita em 417, faz um histórico do conflito desde seu início para esclarecer Bonifácio na sua tarefa de repressão às sobrevivências donatistas. Para tanto, recorre ao texto de Optato de Milevi. Por sua vez, Optato de Milevi, que escreveu em 366, referia-se à revolta ocorrida antes de 347.

CONCLUSÃO Estudar a revolta do proletariado rural norte-africano no Baixo Império ajuda-nos a refletir mais lucidamente sobre os problemas sociais do Brasil contemporâneo, em que as questões da terra e das formas de luta por sua propriedade possuem uma importância nevrálgica na nossa sociedade atualmente. Desde a colonização púnica, a África do Norte teve a sua economia tradicional de pastoreio realizada por sociedades tribais restringida em detrimento da implantação de atividades agrícolas em grandes propriedades utilizando mão-de-obra escrava e local. A escolha e o destino dos produtos agrícolas atendiam mais aos interesses do mercado externo do que às necessidades de subsistência norte-africana. O domínio romano veio acentuar estas características, tornando a África do Norte seu celeiro, mesmo que para isso a população local se visse premida pela fome. Inicialmente, o aumento da fronteira agrícola sustentou as exigências da metrópole e algum bem-estar local que acarretou, por exemplo, o aumento populacional. Entretanto, com o estacionamento desta fronteira agrícola, o crescimento da população rural, o aumento da carga tributária por parte do Estado romano, o confinamento das tribos seminômades a áreas menos férteis e restrição de seu direito de passagem devido à crescente atividade agrícola em latifúndio exportador, criou-se um quadro de crise social, do qual emergiu o movimento dos circunceliões. A maneira católica de definir os circunceliões como fanáticos e bandoleiros foi reproduzida pela historiografia mais tradicional, como por exemplo, Monceaux (t. 4, 1912: 31-31, 36, 179-185) que os qualifica como “patifes e energúmenos” (Ibid.: 185). Atualmente, este tipo de discurso é contextualizado no conflito religioso opondo católicos e donatistas e busca-se compreender o movimento inserido na estrutura sócio-econômica norte-africana. Sendo a documentação relativa aos circunceliões produzida por eclesiásticos católicos (os bispos Optato de Milevi e Agostinho de Hipona), envolvidos na polêmica contra os cismáticos donatistas, foi acentuado o seu caráter violento e a sua submissão à causa donatista. Compreende-se que os circunceliões tenham sido o

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Lepelley (1979: 94, n. 107) refere-se à Epístola 108 em que narra que os circunceliões ajudavam colonos ou escravos fugitivos nos seus ataques contra seus senhores (possessores).

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braço armado da revolta, o donatismo lhes fornecia um embrião ideológico, uma justificativa moral de sua luta contra a ordem estabelecida, sem que esta contestação política e social tenha sido, entretanto, um elemento constitutivo permanente da Igreja cismática. A virulência do movimento foi assim encampada por um verniz religioso do donatismo, que também, por sua vez, se sentia marginalizado pelo poder imperial, que favorecia a Igreja Católica e empreendia perseguições aos donatistas, levando desta forma a uma aliança entre estes e os circunceliões. Contudo, não se deve minorar o sentido de revolta social rural que permite compreender o movimento dos circunceliões em toda sua complexidade. O movimento e a violência dos circunceliões encontramse inseridos numa reação do proletariado rural, oprimido pelos latifundiários e pela autoridade romana que apoiava esta exploração, cobrava pesados tributos e restringia as atividades econômicas tradicionais da população nativa.

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