Cirilo de Alexandria e a construção das “atas do concílio de Éfeso”: um estudo a partir das cartas relativas à “Reunião” de 433

June 5, 2017 | Autor: R. Della Torre | Categoria: Cyril of Alexandria, Council of Ephesus
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XX Semana de História

A Escravidão e os Novos Mundos

______________________________ 03 a 06 de agosto de 2015 UNESP/ campus Franca

ANAIS COMPLETOS

COMISSÃO ORGANIZADORA Organizadores Ma. Ana Carolina de Carvalho Viotti Prof. Dr. Marcos Sorrilha Pinheiro Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira Comitê Científico Profa. Dra. Denise Aparecida Soares de Moura Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Profa. Dra. Karina Anhezini de Araújo Profa. Dra. Milena da Silveira Pereira Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França Comitê organizador discente Adrielli Costa Carlos Henrique Garcia Diego Andrade Bispo Gabriel Gurian Hugo Fernando da Costa Saranholi José Henrique Lopes de Lima Júlia Amad Campioti Letícia Aga Nayara Barbosa Nayara Vignol Luchetti Pedro Augusto Balieiro Rapahel Souza Dias Rodolfo Nogueira da Cruz Victor Ferreira Pinto Waslan Araújo

Diagramação dos Anais Ana Carolina de Carvalho Viotti Nayara Vignol Luchetti

Arte da capa Navio Negreiro – Cândido Portinari, 1950.

Apoio institucional Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica (CEDAPH)

Fomento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Realização e apoio:

Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História

Cirilo de Alexandria e a construção das “atas do concílio de Éfeso”: um estudo a partir das cartas relativas à “Reunião” de 433

Robson Della Torre Doutorando em História UNICAMP – SP Bolsista CNPq Resumo: Esta comunicação tem por intuito analisar o processo de compilação de documentos que deu origem às “atas do concílio de Éfeso” (431) a partir da correspondência do bispo Cirilo de Alexandria (412-444) relativa à dita "Reunião" com os bispos orientais em 433. Nessas cartas, podemos perceber como o bispo egípcio fazia referência a documentos produzidos ao longo do concílio de 431 e das negociações de paz subsequentes para legitimar tanto sua concepção doutrinária quanto sua atuação conciliar e a de seus aliados. Além disso, esses textos portavam consigo pequenos dossiês documentais que possuíam objetivo semelhante. Defendo aqui, portanto, que essas cartas e os documentos anexos a ela desempenharam uma importante função de orientar os trabalhos de compiladores das coleções posteriores de documentos relativos a Éfeso (431), conferindo-lhe uma orientação manifestamente pró-cirilina e preservando sobretudo textos relativos ao concílio que valorizassem o bispo de Alexandria como grande baluarte da ortodoxia no século V. Palavras-chave: Concílio de Éfeso (431); Cirilo de Alexandria (412-444); Cristianismo; Antiguidade Tardia. Abstract: This presentation aims to analyze the process of compilation of documents that gave rise to the “acts of the Council of Ephesus” (431) from the correspondence of the bishop Cyril of Alexandria (412-444) concerning the so called “Reunion” with the oriental bishops in 433. In these letters, we can notice how the Egyptian bishop made reference to documents produced throughout the council of 431 and the following negotiations to an agreement of peace both to legitimize his own doctrine as his conciliar practice and his allies’. Besides, these texts brought with them small documentary dossiers that had a similar goal. Therefore I argue that these letters and documents attached to them played an important role of guiding the work of compilers of later collections of documents concerning Ephesus (431), giving them a highly pro-cyrilline orientation and preserving texts about the council that valued the bishop of Alexandria as the great reference of orthodoxy in the fifth century. Keywords: Council of Ephesus (431); Cyril of Alexandria (412-444); Christianity; Late Antiquity.

O concílio que se reuniu na cidade de Éfeso entre junho e outubro de 431 conta com a boa sorte de ser um dos episódios mais bem documentados de toda a Antiguidade. Inicialmente convocado pelo imperador Teodósio II (408-450) para resolver uma disputa doutrinária entre os bispos Nestório de Constantinopla (428-431) e Cirilo de Alexandria (412-444), o concílio de Éfeso acabou tomando proporções gigantescas, envolvendo não só bispos e monges de várias partes do Império como também diversos oficiais romanos e membros da corte imperial. Sobre ele, dispomos de uma documentação tão farta que somos capazes de acompanhar em detalhes a escalada na polêmica entre os bispos, de saber os nomes e as opiniões das centenas de seus aliados1 e de traçar, com uma precisão incomum para o período, os meandros que cada partido explorava para obter os favores dos oficiais imperiais e mesmo o acesso direto ao imperador.2 Quanto ao concílio em si, seus registros são tão minuciosos que, em certos momentos, conseguimos acompanhar os debates entre os bispos dia-a-dia e as várias oscilações da atitude de Teodósio II frente ao conflito.3 Tal riqueza de informações só nos é permitida por causa de duas peculiaridades do concílio. Em primeiro lugar, a disputa entre Cirilo e Nestório estava tão polarizada que o encontro se dividiu logo no início em duas assembleias distintas. De um lado, havia Cirilo e seus principais aliados: Mêmnon de Éfeso, Juvenal de Jerusalém, Flaviano de Filipos e, um pouco mais tarde, os legados do bispo Celestino de Roma4. Do outro, bispos oriundos sobretudo das regiões da Síria, da Fenícia e da Mesopotâmia, todos simpáticos à

Estudos prosopográficos sobre os participantes do concílio de Éfeso são bastante comuns na historiografia. A título de exemplo, veja-se CRABBE, Anna. The invitation list to the council of Ephesus and metropolitan hierarchy in the fifth century. Oxford, Journal of Theological Studies, v. 32, nº 2, p. 369-400, outubro de 1981 e DE PLOCH, María G. G. P. Hombres de fe, hombres políticos. El concilio de Éfeso (431) y sus participantes. Murcia, Antigüedad y Cristianismo, v. 18, p. 9-397, 2001. 2 Para uma narrativa bastante detalhada sobre o concílio de Éfeso, ver MCGUCKIN, John A. St. Cyril of Alexandria: The Christological Controversy. Its History, Theology, and Texts. Yonkers, NY: St. Vladimir Seminary Press, 2004 (1ª edição: 1994), p. 20-121. 3 Sobre a disputa dos partidos eclesiásticos envolvidos pelos favores do imperador, ver MILLAR, Fergus. A Greek Roman Empire: Power and Belief under Theodosius II (408-450). Los Angeles; Berkeley: University of California Press, 2007 (Sather Classical Lectures 64), p. 149-161. 4 Os bispos Arcádio e Projecto e o presbítero Filipe, todos vindo do Ocidente para representar Celestino no concílio, chegaram apenas no dia 10 de julho a Éfeso, sendo que o concílio cirilino começou suas atividades no dia 22 de junho. 1

teologia de Nestório e reunidos em torno de João de Antioquia5. Por conta dessa divisão, cada um das assembleias tentou convencer o imperador sobre sua legitimidade e sobre a ilegalidade de sua rival por meio de dossiês documentais que enviavam à corte e que contavam com uma pletora de textos de naturezas diferentes: cartas trocadas entre bispos, petições endereçadas ao imperador, sermões, tratados teológicos, constituições imperiais, etc. 6 Em segundo lugar, todo esse material produzido por ambos os partidos durante as negociações conciliares foi compilado posteriormente naquilo que se costuma chamar de “atas do concílio de Éfeso”. Essas atas, como resultado de todo esse esforço propagandístico, são gigantescas: na última edição feita delas no início do século XX por um filólogo alemão chamado Eduard Schwartz (1858-1940), elas ocupavam nada menos dos que 2000 páginas divididas em cinco volumes!7 No entanto, apesar dessa abundância fantástica de material, as “atas de Éfeso” são muito seletivas. Por exemplo, elas preservam muito mais textos relativos ao concílio reunido em torno de Cirilo do que daquele de seus rivais. Do mesmo modo, elas não preservam o registro de todas as sessões conciliares, mas apenas daquelas que mais interessavam à defesa da ortodoxia de Cirilo.8 Para complicar ainda mais a situação, essas “atas” não são resultado do esforço direto de compilação documental empreendido na época do concílio, seja por Cirilo, seja por seus aliados, seja pela corte imperial. Na verdade, sequer existe um conjunto definido de “atas de Éfeso” (por isso prefiro falar delas entre aspas), mas apenas coleções documentais posteriores – a mais antiga não sendo anterior

Os registros das sessões do concílio dos bispos orientais não registram jamais a presença de Nestório junto a eles, embora o bispo de Constantinopla estivesse em Éfeso durante quase a totalidade do concílio e a assembleia oriental lhe fosse favorável. É possível que os registros de que dispomos apenas tenham sido editados para eliminar o nome de Nestório. 6 Esses dossiês documentais enviados à corte durante as negociações de 431 ainda não foram analisados detalhadamente pela historiografia, em especial no caso dos textos enviados pelos bispos orientais. Apenas o primeiro dossiê enviado pelo concílio cirilino a Teodósio conta com um estudo minucioso: GRAUMANN, Thomas. ‘Reading’ the First Council of Ephesus (431). In: PRICE, Richard; WHITBY, Mary (eds.). Chalcedon in Context: Church councils, 400–700. Liverpool: Liverpool University Press, 2009 (Translated Texts for Historians, Contexts 1), p. 2744. 7 Vide tabelas 1 e 2 abaixo. 8 Sobre esse aspecto, ver as observações de SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars IV: Collectio Vaticana 120-139. Berlim; Leipzig: Walter de Gruyter, 1928, p. XVII-XVIII. 5

a 480 – que preservam diferentes documentos relativos ao concílio de 431 em ordens variadas. Ao todo, são ao menos quatro coleções gregas e seis latinas, todas elas editadas separadamente por Schwartz. Isso sem contar as ditas “coleções menores” (assim definidas pelo editor), que são muito mais breves e apenas reproduzem material já presente nas principais coleções,9 nem as traduções para o copta, o siríaco e para o armênio.10 Para se ter uma ideia da diversidade dessas coleções, faço um breve apresentação das principais nas tabelas abaixo.11

Tabela 1: as principais coleções gregas de “atas de Éfeso” Coleção Vaticana (V)12

172 documentos ao todo, não anterior ao século VII

Coleção Seguierana (S)13

145 documentos (todos já contidos na Vaticana), não anterior ao século IX

Coleção Ateniense (A)14

177 documentos (por volta de 50 deles exclusivos dessa coleção), não anterior ao século IX

Editadas em SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars VII: Collectio Seguierana. Collectio Atheniensis. Collectiones minores. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1929, p. 171-174. O editor ainda apresenta várias outras coleções “menores” no prefácio do primeiro fascículo das atas gregas (idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars I: Collectio Vaticana 1-32. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1927, p. VII-XI). 10 Mencionadas por GEERHARD, Maurice. Clavis Patrum Graecorum. Volumen IV: Concilia, Catenae. Turnhout: Brepols, 1974, p. 32. As ditas “atas coptas” foram traduzidas para o alemão por KRAATZ, Wilhelm. Koptische Akten zum ephesinischen Konzil vom Jahre 431. Leipzig: J.C. Hinrichs, 1904 (Texte und Untersuchungen 26, Heft 2). Para os problemas inerentes a essa coleção específica, ver SCHWARTZ, Eduard. Cyrill und der Mönch Viktor. Wien; Leipzig: HölderPichler-Tempsky A.-G., 1928 (Akademie der Wissenschaften in Wien, Philosophisch-Historische Klasse, Sitzungsberichte, 208. Band, 4. Abhandlung), em especial p. 21-51. 11 Além dos comentários do editor sobre elas contidos nos prefácios a cada fascículo e a cada volume de sua edição, veja-se também: DELLA TORRE, Robson. Um breve panorama sobre as coleções gregas das ‘atas do concílio de Éfeso (431)’ (no prelo) e idem. Alguns apontamentos sobre as coleções manuscritas latinas das ‘atas do concílio de Éfeso I (431)’ (no prelo). (no prelo). A breve descrição contida em MILLAR, Fergus. A Greek Roman Empire: Power and Belief under Theodosius II (408-450). Op. cit., p. 236-241 pode ser útil, mas contém imprecisões significativas. 12 Editada em SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1927-1928, 6 fascículos. 13 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars VII: Collectio Seguierana. Collectio Atheniensis. Collectiones minores. Op. cit., p. 2-16. 14 Editada em idem, p. 18-167. 9

Coleção do Código Vaticano grego 1431 (R)15

75 documentos (mais da metade exclusiva dessa coleção), escrita por volta de 480-490 em Alexandria

Tabela 2: as principais coleções latinas de “atas de Éfeso” Coleção de Tours (T)16

76 documentos (quase todos traduções de textos já preservados na Vaticana), escrita em Constantinopla talvez por volta de 520-530

Coleção Palatina (P)17

57 documentos (a maioria exclusiva dessa coleção), compilada em parte por Mário Mercator entre as décadas de 430-450, concluída talvez no segundo quarto do século VI

Coleção Veronense (U)18

31 documentos selecionados nos arquivos da igreja de Roma, possivelmente de meados do século VI

Coleção Cassinense (C)19

312 documentos (mais da metade exclusiva dessa coleção), escrita pelo diácono romano Rústico em Constantinopla em 565 como uma expansão da coleção de Tours

Coleção Sichardiana (S)20

18 documentos (somente dois inéditos, mas muitas traduções são diferentes das demais coleções latinas), publicada inicialmente em 1527 por Jean Sichard com base em diferentes manuscritos medievais

Coleção Winteriana (W)21

25 documentos (todos traduzidos de textos já presentes na Ateniense), publicada por Robert Winter em 1542 com base em um manuscrito hoje perdido

Editada em idem. Codex Vaticanus gr. 1431: eine antichalkedonische Sammlung aus der Zeit Kaiser Zenos. München: Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenchaften, 1927 (Abhandlungen der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Philosophisch-philologische und historishe Klasse: XXXII. Band, 6. Abhandlung), p. 5-62. 16 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen III: Collectionis Casinensis sive Synodici a Rustico Diacono compositi Pars I. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1929. 17 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen V, pars I. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1924, p. 1-215. 18 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen II: Collectio Veronensis. Berlim; Leipzig: Walter de Gruyter, 1925-1926. 19 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen IV: Collectionis Casinensis sive Synodici a Rustico Diacono compositi Pars altera. Berlim; Leipzig: Walter de Gruyter, 1922-1923. 20 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen V, pars altera. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1926, p. 246318. 21 Editada em idem. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen V, pars altera. Op. cit., p. 342-381. 15

Em minha pesquisa de doutorado, ocupo-me justamente dessa variedade das coleções documentais sobre Éfeso para entender em que medida elas conformam nossa interpretação sobre a querela entre Cirilo e Nestório e sobre a atuação imperial nessa disputa. Pretendo entender, por exemplo, quais os critérios que favorecem a preservação de determinadas cartas e tratados teológicos em algumas coleções e não em outras e como a disposição diferente desses textos dentro da narrativa de cada coleção altera seu sentido. Em minha opinião, assim como na de Schwartz22, boa parte dessas escolhas efetuadas pelos compiladores de “atas” se relaciona a controvérsias teológicas posteriores, sobretudo relativas às disputas entre calcedonianos e monofisistas no século VI (o que explica, em parte, a origem temporal da maioria dessas coleções). No entanto, nenhum desses compiladores partia do vácuo. Afinal, todo o material que copiaram foi produzido na época do concílio e foi preservado nos arquivos eclesiásticos de diversas cidades até serem reunidos nos séculos seguintes. Sendo assim, pretendo investigar na minha fala alguns indícios presentes na própria documentação conservada nas coleções de “atas” que sugerem porque alguns documentos foram copiados e que função narrativa cumpriam nelas. Em particular, pretendo me ocupar de algumas cartas de Cirilo escritas poucos anos depois do fim do concílio e que foram incluídas nas “atas”. Para mim, seu interesse reside no fato de o próprio bispo de Alexandria mencionar textos que considerava importantes para provar sua ortodoxia e a legitimidade de seu concílio e que, possivelmente, orientaram o trabalho dos compiladores posteriores. Essas cartas de Cirilo com que trabalho dizem respeito a um dos desdobramentos imediatos do concílio de Éfeso: a assim chamada “Reunião” do ano de 433. De fato, em outubro de 431, Teodósio II dissolveu o concílio – ou melhor, os concílios – reunidos em Éfeso por considerar que o faccionalismo entre os bispos impedia qualquer tipo de acordo. Sendo assim, Cirilo e seus adversários

Dentre outros textos em que discute essa questão, ver SCHWARTZ, Eduard Neue Aktenstücke zum ephesinischen Konzil von 431. München: Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenchaften, 1920 (Abhandlungen der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Philosophisch-philologische und historishe Klasse: XXX. Band, 8. Abhandlung).

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voltaram para casa com relações rompidas. No ano seguinte, com os ânimos serenados, o imperador tentou novamente reconciliar os partidos beligerantes, porém, desta vez, apenas por meio de cartas e da atuação de um tribuno imperial chamado Aristolau, que tinha bom trânsito junto aos clérigos. Esse oficial ficou responsável por conversar com os rivais de Cirilo em Antioquia, que estavam reunidos então em torno do bispo local, João, para proceder às negociações. Esse tribuno também tinha a obrigação de obter desses bispos em Antioquia uma proposta de conciliação a ser enviada a Alexandria. Assim que obteve o documento, Aristolau partiu junto com um desses bispos, chamado Paulo de Emesa, e chegou ao Egito por volta do fim do ano. Aí, os dois se reuniram com Cirilo e conseguiram convencê-lo sobre a necessidade do acordo, que implicava em que cedesse em alguns pontos de sua doutrina que defendia com ardor desde o início da polêmica com Nestório. O resultado é que Cirilo fez uma contraproposta que foi novamente enviada a Alexandria e aceita em abril de 433, concretizando, assim, a reunião entre as partes. Nós só dispomos dessa narrativa geral sobre as negociações de paz dos anos 432-433 por conta dos documentos preservados nas coleções de “atas” – em especial, duas gregas, a Vaticana e a Ateniense. Elas preservam as primeiras cartas enviadas pelo imperador, alguns dos documentos trocados entre Cirilo e seus oponentes na Síria, as cartas finais de reconciliação e até mesmo alguns sermões de Cirilo e de Paulo de Emesa pronunciados em Alexandria, tal como podemos ver nas tabelas abaixo:

Tabela 3: Documentos relativos à Reunião de 433 preservados na coleção Vaticana (V) V 120 = A 102

Carta do imperador Teodósio a João de Antioquia

V 121 = A 104

Carta de Teodósio a Simeão Estilita

V 122 = A 109

Petição dos bispos orientais a Cirilo de Alexandria

V 123 = A 110

Carta de reconciliação de João de Antioquia a Cirilo

V 124 = A 111

Primeiro sermão de Paulo de Emesa pronunciado em Alexandria

V 125 = A 112

Segundo sermão de Paulo de Emesa pronunciado em Alexandria

V 126 = A 113

Sermão de Cirilo pronunciado em Alexandria

V 127 = A 114

Carta de reconciliação de Cirilo a João de Antioquia

Tabela 4: Documentos relativos à Reunião de 433 exclusivos da coleção Ateniense (A) A 103

Carta de Teodósio a Acácio de Beroeia

A 105

Proposta de paz de João de Antioquia apresentada a Acácio de Beroeia e encaminhada a Cirilo de Alexandria, mas rejeitada por ele

A 106

Carta de Acácio de Beroeia a Alexandre de Hierápolis

A 107

Carta de Cirilo de Alexandria a Acácio de Beroeia

A 108

Carta de João de Antioquia a Cirilo de Alexandria, mas não recebida por ele

A 115

Carta de Cirilo de Alexandria a João de Antioquia sobre Paulo de Emesa

A 116

Carta de Cirilo de Alexandria a João de Antioquia sobre a oposição dos bispos orientais ao acordo de paz

No entanto, essa é apenas uma amostra de todo o conjunto de textos trocados entre Alexandria e Antioquia nesse período. Prova disso é a coleção latina de Monte Cassino, que reproduz uma quantidade maior de cartas trocadas entre os próprios bispos orientais durante as negociações e que mostram como eles estavam divididos quanto a aceitar ou não fazer um acordo com Cirilo. Aí é que vem minha pergunta: por que as coleções gregas preservam apenas esses textos e não também aqueles conservados na Cassinense? Dentro desse universo documental, podemos dizer que os textos que possuímos sobre a Reunião de 433 são representativos das negociações de paz como um todo? Ou ainda, esses documentos que chegaram até nós são representativos do quê exatamente? Nisso chegamos às cartas de Cirilo em questão, pois o acordo de paz, embora celebrado com otimismo tanto por Cirilo quanto por João de Antioquia, foi motivo de inquietação junto a alguns de seus seguidores mais radicais. No caso dos bispos orientais, a coleção de Monte Cassino reproduz quase uma centena de cartas que mostram a resistência de certos clérigos ao acordo e as

subsequentes negociações que se estenderam até 436 para por fim à querela.23 Quanto a Cirilo, as coleções gregas reproduzem cerca de uma dezena de cartas que escreveu nos anos seguintes a 433 a alguns de seus principais apoiadores explicando que o acordo com os bispos da Síria não era uma capitulação de sua doutrina prévia nem uma concessão a alguns pontos dos ensinamentos de Nestório. Eis a lista:

Tabela 5: Cartas de Cirilo de Alexandria posteriores à Reunião de 433 V 128 = A 127

Primeira carta de Cirilo a Acácio de Melitene

V 129 = A 129

Carta de Cirilo de Alexandria a Dinato de Epiro Vetus

V 131 = A 125

Carta de Cirilo de Alexandria a Maximiano de Constantinopla

V 132 = A 131

Memorando de Cirilo de Alexandria a seu presbítero Eulógio, então residindo em Constantinopla

V 133 = A 132

Carta de Cirilo de Alexandria a João de Antioquia e aos bispos reunidos em torno dele

V 134 = A 155

Segunda carta de Cirilo de Alexandria a Acácio de Melitene

V 135 = A 4

Carta de Cirilo de Alexandria aos monges de Antioquia

Como explica na primeira dessas cartas, endereçada a um bispo de Melitene, na Armênia, chamado Acácio [= V 128], o compromisso assumido em 433 apenas reconhecia que tanto ele, Cirilo, quanto os orientais se expressavam de formas diferentes sobre as mesmas realidades teológicas e que, portanto, nada tinha mudado. Mas o que mais me intriga nessa carta é que o bispo de Alexandria decide provar seu ponto fazendo referência uma série de textos inseridos posteriormente nas “atas”:

Quando o decreto imperial foi revelado no Oriente [= V 120] […], os bispos orientais se reuniram em torno do muito venerável e piedoso bispo de Beroeia, Acácio, e providenciaram que escrevesse para mim [= A 105] que a solução do acordo, ou melhor, a solução da paz das santas igrejas não conviria ser diferente daquilo que tinha sido concebido por Sobre essas negociações dentro do próprio partido dos bispos orientais, ver SCHOR, Adam M. Theodoret’s People: Social Networks and Religious Conflict in Late Roman Syria. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2011 (Transformation of the Classical Heritage 48), p. 81110.

23

eles. […] Sobre isso, escrevi [= A 107]: “Todos nós seguimos a profissão de fé elaborada pelos santos pais na cidade de Niceia, não falsificando nada do que está contido aí […], mas o que escrevemos corretamente contra as blasfêmias de Nestório, nenhuma fala nos convencerá que o que foi feito não é bom”. Mas era necessário, ao invés disso, que os bispos sírios renunciassem publicamente ao adversário da glória do Salvador [ou seja, Nestório] conforme a opinião do imperador piíssimo e amado de Cristo e do próprio santo concílio que se reuniu na cidade de Éfeso, que anatematizassem suas ímpias blasfêmias, que confessassem sua condenação e que consentissem com a consagração do muito devoto e piíssimo bispo Maximiano. Assim, tendo enviado essa carta a eles, enviaram a Alexandria o muito devoto e piíssimo bispo Paulo de Emesa; houve muitas e longas conversas com ele sobre o que foi dito e feito em Éfeso de forma cruel e indecente. […] Então, ele me entregou uma carta [= A 108] que não continha o que devia conter, mas que, pelo contrário, foi ditada não de modo conveniente […]. Como o muito devoto bispo Paulo dizia estar pronto para anatematizar as blasfêmias de Nestório, confessar sua condenação por escrito e fazer isso como que em nome de todos os muito devotos bispos orientais, repliquei dizendo que o documento que ele próprio trazia sobre isso [= V 122] já bastava para o necessário da comunhão de nós todos, mas confirmei que, de qualquer modo, seria conveniente que o muito devoto e piíssimo bispo João de Antioquia professasse uma confissão por escrito dessas coisas [= V 123]. Isso de fato aconteceu, e teve fim o que dividia as igrejas e as incentiva a se manter afastadas.24

Como se pode perceber pelo relato de Cirilo, sua exposição sobre a sequência da negociação é muito parcial e enfatiza, a todo o momento, como ele próprio – Cirilo – estava sempre em posição de vantagem, como quem tivesse sido injustiçado e que apenas estivesse dando as coordenadas para a reabilitação de seus rivais. Por razões que não cabem aqui explicar por causa do tempo, Cirilo não estava em posição de tamanha vantagem em 433, sofrendo inclusive pressão de Teodósio II para ceder em alguns pontos e se reconciliar com João de Antioquia. Mas o fato é que o bispo de Alexandria, com base nessa e em outras cartas, conseguiu construir uma narrativa plausível sobre as negociações de paz que satisfazia as dúvidas de seus seguidores. Por conta disso, acredito que foram essas narrativas de Cirilo que, em parte, favoreceram a preservação de determinados documentos em certas ordens, em especial nas coleções gregas. Mas há mais. Não foi só por meio de narrativas desse tipo que Cirilo instruiu seus aliados sobre como deviam entender o que se passou em sua SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars IV: Collectio Vaticana 120-139. Op. cit., p. 2122. Todas as traduções nessa comunicação são de minha autoria.

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reaproximação com os orientais. Ele também compôs pequenos dossiês que fez circular entre seus apoiadores logo após 433 e que tinham a mesma finalidade apologética da carta a Acácio. Encerro aqui com o memorando escrito por Cirilo a certo presbítero alexandrino chamado Eulógio, que então estava em Constantinopla agindo como emissário de Cirilo [= V 132]. Afinal, em tempos conturbados, era importante ter alguém com acesso fácil e rápido a oficiais imperiais que pudessem ser úteis de algum modo. Nesse caso, o bispo de Alexandria instruiu seu clérigo a remeter a um praepositus anônimo – mas que provavelmente se trata de Crisáfio,25 alguém que seria muito influente junto a Teodósio nos anos seguintes – um dossiê documental que explicava não só como a controvérsia devia ser entendida no geral, mas também como cada documento individualmente deveria ser compreendido.

A carta a Acácio, em especial, cujo início é “É algo doce e digno de admiração o endereçamentos aos irmãos” [= V 128], contém uma bela defesa sobre todas essas coisas [i.e. sobre a Reunião de 433]. Mas tens na bolsa muitas cartas que deves entregar com muita pressa. Leve até o magnífico praepositus os dois livros que enviei, um contra as blasfêmias de Nestório [= V 166], o outro contendo o que foi feito no concílio contra Nestório e os que pensam como ele [= A 73-79]26, e as minhas respostas contra os que escreveram contra os capítulos: são dois bispos, André [de Samósata] [= A 24] e Teodoreto [de Ciro] [= V 167-169]. O mesmo livrinho contém, ao final, exposições abreviadas sobre a economia sobre Cristo, muito belas e que podem ajudar. Leve também a ele cinco cartas daquelas feitas em pergaminho, uma do bem-aventurado papa Atanásio a Epicteto [= R 55]27, outra nossa a João [= V 127] e duas a Nestório, uma pequena [= V 4] e outra grande [= V 6], e a carta a Acácio [= V 128]28.

Por fim, gostaria apenas de chamar a atenção para um ponto que julgo muito importante, mas que nem sempre é levado em consideração no estudo das “atas”. Esses documentos que foram preservados assim o foram em grande

Seguindo a identificação do praepositus proposta por SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars IV: Collectio Vaticana 120-139. Op. cit., p. XVIIII. Para uma opinião contrária, ver RUSSELL, Norman. Cyril of Alexandria. London: Routledge, 2000 (The Early Church Fathers), p. 131. 26 Idem, p. XVIII-XVIIII. 27 Ou seja, Atanásio de Alexandria, que foi bispo entre 328 e 373. O termo “papa” era muito comum em autores egípcios para designar o bispo de Alexandria até o século V, ao menos. 28 SCHWARTZ, Eduard. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen I: Acta Graeca. Pars IV: Collectio Vaticana 120-139. Op. cit., p. 37.

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medida pela seleção efetuada por Cirilo e seus partidários após o término do concílio para desempenhar uma função propagandística muito clara. Instruídos por narrativas como essas do bispo de Alexandria, até mesmo seu lugar nas coleções posteriores era determinado para cumprir determinada função narrativa. Não é à toa, por exemplo, que a maioria das coleções posiciona a carta a Acácio de Melitene imediatamente após a famosa carta de Cirilo a João de Antioquia em que ele finalmente concordava com os termos do acordo de paz. Isso não significa que as “atas” já tivessem existido como tal no século V: esses dossiês cirilinos estão muito longe de ser representativos da quantidade de material preservada pelas coleções de “atas” posteriores. Mas, como disse acima, os compiladores medievais não trabalhavam no vácuo: todo o seu processo de compilação depende das condições legadas pelos cirilinos no século V.

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Rustico Diacono compositi Pars altera. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 19221923. ______. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Tomus 1: Concilium Universale Ephesenum (AD 431). Volumen V, pars I. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1924-1926, 2 fascículos.

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