CIVILIDADE, FETICHISMO TOTALITÁRIO, SOB ACONTRADIÇÃO CAPITAL TRABALHO. SOCIEDADE CIVIL E MODERNIZAÇÃO CRÍTICA

July 15, 2017 | Autor: Anselmo Alfredo | Categoria: Human Geography, Modernization, Karl Marx, Economic Crises
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CIVILIDADE, FETICHISMO TOTALITÁRIO, SOB ACONTRADIÇÃO CAPITAL TRABALHO. SOCIEDADE CIVIL E MODERNIZAÇÃO CRÍTICA

Anselmo Alfredo Introdução1

A modernização, seguindo aqui a importante contribuição de Hegel (1968) e Marx (1988), faz-se como realidade na medida em que é tanto as relações sociais que a constitui como, ao mesmo tempo, o pensamento que se põe como uma de suas determinações. Vale a crítica genial de Hegel de que não há nada entre o céu e a terra que não seja a imediatidade entre o mediato e o imediato, pois que todo imediato, ao ser a negação da mediação e já mediação identitária e negativa para consigo mesmo. Observemos este momento sobre a essência em Hegel:

Na esfera da essência se enfrentam primeiramente a essência e o inessencial, depois a essência e a aparência; e o inessencial e a aparência como resíduos do ser. Mas ambos, assim como a diferença da essência em relação a eles, não consistem em outra coisa senão em que a essência está considerada em primeiro lugar como algo imediato, e não como está em si, ou seja, não como a imediação que é imediação como pura mediação ou como absoluta negatividade (HEGEL, 1991, p. 349, grifos do autor).

O real é o ser em si lá superado, momento do modo de ser do próprio objeto, sendo não só objetividade, mas esta se pondo como figura do pensamento enquanto relação sujeito-objeto. Nesta circunscrição totalizante em que o real é a simultaneidade identitária posta pelos termos necessários e negativamente relativos na contradição, o devir temporal é a ‘forma do pensamento’ que ao objetivar-se, isto é, reconhecer-se na relação com o sujeito, reconhece seus momentos como síntese que instaura sua própria superação temporal. Isto porque a relação necessária posta não se pode fazer seguindo um tempo cujo negativo é posto numa passagem em que, enquanto pura absolutidade, só se o faz negando a identidade contraditória entre sujeito e objeto, pressuposto fundante da dialética a que se

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Texto elaborado para apresentação em mesa redonda na XX Semana de Geografia da Universidade Estadual de Maringá, 2011, sob o tema Cidade e Cidadania. Agradeço, ainda, os alunos ouvintes e matriculados, do curso de pós-graduação por mim ministrado Modernização e Contradições Espaço Temporais, versão 2011, que encamparam algumas discussões que possibilitaram as reflexões aqui elaboradas.

propõe. Posto assim, é contradição nos próprios termos. Em última instância, a coisa em si do tempo não pode se inscrever como a passagem pelo negativo e do negativo nele mesmo, isto seria admitir a coisa em si como o fundamento de uma dialética cuja verdade é a superação desta coisificação. O tempo- newtoniano-superado, enquanto pura absolutidade e independente de uma relação subjetiva é a mediação necessária do negativo, identidade de todo ser. É desta forma que compreendemos a passagem abaixo:

Igualmente não cabe retomar a concepção aristotélica da substância e fazer da contradição um processo que se desenrola no tempo. Um sujeito indeformável a pode receber, em tempos diferentes, os atributos b e não - b. [...] A fim de que a contradição real exista é preciso que os atributos opostos estejam numa certa presença que não se reduz simplesmente a um ponto de sequencia temporal. Requer assim, um movimento de presentificação que afeta o núcleo substancial do objeto (GIANNOTTI, 1985, p. 5, grifos do autor).

A cisão, entretanto, - no âmbito da identidade contraditória em Hegel - dos momentos constituintes que se põem no movimento negativo e identitário do próprio ser, negado pela sua essencialidade, é efetiva como momentos superados que culminam na conceitual identidade deste contradizer. Nisto, o sim e o não se fazem como unidade autolimitante no interior da contradição entre forma e conteúdo. A crítica admite que todo substrato material é a passagem formal de um conteúdo que põe no ser as determinações do pensamento como momento inalienável do próprio objeto. A passagem posta como relação identitária daquilo que é o ser do ser, nega-o necessariamente em sua abstrata contingência de ser, tornando-se, enfim, a forma contingencial desta expressão nada mais do que a efetividade desta lógica que é o contingente em sua incontingencialidade identitária. Esta superação, portanto, leva ao conceito, consciência da imediatidade pelos contrários, posta como passagem intemporal. A essência, identidade do ser, como passagem que identifica o ser retirando deste as suas determinações, sendo ela a indeterminação de si como sua determinação, faz com que o passar e o movimento se ponha como a identidade do ser. Posto que sempre passagem, esta é o ser passado, isto é, em contínua e ininterrupta passagem. Toda forma do ser é uma passagem presentificada em seu oposto. Nesta medida, tal passado ou passagem só o é se o for intemporalmente posta, porque é a imediatidade mediada, enquanto relação essencial, daquilo que se põe como identidade contraditória: Somente porque, a partir do ser imediato, o saber se internaliza, acha a essência por via desta mediação. O idioma alemão conservou a essência (Wesen) no tempo passado (gewesen) do verbo ser (sein); de fato, a

essência é o ser passado, mas o passado intemporal” (HEGEL, 1968, p. 339, grifo do autor).

É como esta apreensão, entretanto, que o próprio ser vem à existência, porque esta só se efetiva na medida em que expressa fenomenicamente as determinações da essencialidade do ser. Se para Hegel a essência aparece e, enquanto tal atividade é o seu negar - pois que a aparência é forma da essência, mas não ela mesma - a expressão fenomênica do ser é pôr a relação sujeito objeto que redefine, no fenômeno, a contradição entre aparência e essência. A expressão fenomênica do ser é, assim, em sua contradição identitária, a passagem da pura objetividade a uma forma de pensamento que leva à identidade do ser como negatividade. Vir à existência é o pôr de uma condição subjetiva sem a qual, isto é, sem uma forma de pensamento, a existência do ser não seria possível, pois que a efetividade é o pôr de uma determinação do pensamento para que a existência venha a ser. Remeter à objetividade do real, enfim, é já uma relação sujeito objeto que, enquanto relação imanente supera os pressupostos de uma estética transcendental em que o pensamento, para Kant (1980), poderia ser reconhecido apesar do próprio pensamento, pois que não se põe como objeto, mas como transcendência subjetiva, intuitiva, em relação ao próprio objeto que, assim posto, mantém o objeto como o ser em si lá. Vir à existência, entretanto, deve deter uma determinação do pensamento, sem a qual não se é possível existir, pois que existir é a imediatidade intemporal da relação sujeito-objeto e, portanto, mediada. Ao que pese o caráter aparentemente primacial de um idealismo simplório, Hegel está nos remetendo ao sentido forte de razão, porque, no existir, a relação sujeito-objeto é o que se põe enquanto objeto (gegenstand) distinto de objeto (ding- coisa), tornando-se impossível referir-se ao ser e a sua consequente existência sem que se o pense. O impensado, entretanto, é o inexistente. Mesmo que posto como impensado, este impensado, constituindo momento da própria existência, é forma do próprio pensamento. Não está aí a crítica contundente de Hegel à natureza? Ao contrário de um ceticismo estreito, para Hegel, é impossível efetivar o real sem que isto seja já uma relação com a subjetividade. Daí a conhecida, mas não menos importante assertiva, de que todo real é racional. Num exemplo esdrúxulo: como defender a existência dos dinossauros sem que os pensemos? Como efetivar este ser sem que o mesmo não nos coloque em sua expressão fenomênica que é a sua passagem à forma de pensamento? Como referir-se a algo se este algo não nos é forma de pensamento? Para além de se discutir se há uma essencialidade jurássica, o exemplo nos traz à tona a determinação do pensamento naquilo que constitui a própria existência, daí a importância da essência se tornar fenômeno, isto é, pôr-se na relação contra (gegen) o sujeito, sendo esta relação, como

já dito, o próprio objeto (gegenstand). Se, para Kant, o sujeito é a priori2, por isso objetividade não reconhecida como tal, em Hegel, toda forma de ser e de existência é já uma relação sujeito objeto, e só nesta relação que a essência aparece e, entretanto, sai à existência. Nesta constelação lógica, a aparência aparece como o inessencial e, assim, é o negativo deste essencial que leva, necessariamente, à essência como reflexão do ser em si mesmo. Daí a essencialidade do existente, que contém em si a contradição aparência e essência. Desta contribuição de Hegel, Marx, em O Capital, retoma aspectos essenciais para se pensar o ser do capital, enquanto forma de sociabilidade. Em primeiro lugar, e isto desde Kant, a crítica é, necessariamente, uma crítica às formas de pensamento. Se, ainda em Hegel, pensar o real como pura imediatidade é já uma forma de pensamento que carece ser superada, isto é, compreendida como momento intemporal do ser a ser considerado, mas não tomado como mera totalidade, em Marx (1983), a crítica é fundamentalmente à economia política como pensamento que figura o real em sua forma meramente aparente, isto especialmente quanto aos fisiocratas. Se em Hegel tornou-se necessária uma superação da fisiocracia temporal, ainda que isto permaneça no sentido de contradição, em Marx, a fisiocracia não levou a uma destruição completa das concepções físicas da forma social posta pelo capital. Reconheceu-se, ao contrário, que o plano ocupado pelas mesmas no desenvolvimento da lógica em O Capital é a de um momento do pensamento que superado faz desta materialidade a expressão ilusória do real posto como relação sujeito objeto. De um ponto de vista da forma social capital, contudo, a não superação desta fisiocracia é condição e resultado de sua própria reposição categorial. No plano desta materialidade incorporada como categoria explicativa de processos sociais determinados pela metafísica, a superação da física, na dialética do velho Marx, é o transpassar para uma relação sujeito objeto em que a materialidade se põe como a condição de uma figuração religiosa do pensamento enquanto momento do real. Ainda que não nos seja objetivo tensionar os termos postos entre metafísica e física em Marx3, é de interesse observar que, num sentido inverso entre os dois pensadores, a materialidade do real, tanto em Hegel como em Marx, é posta na relação sujeito objeto e assim figuram-se, ou seja, são, ao mesmo tempo, formas do pensar. Nada está lá que não

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Contradição in subjecto, na medida em que, para Kant (1980), o pensamento enquanto intuição (no plano da estética transcendental) é condição da experiência possível e, nesta medida, intuição a priori que se põe como pura subjetividade. 3 Para esta temática em Marx, recorra-se a Alfredo (2009; 2010).

careça reconhecer uma crítica ao pensamento. Vale, contudo, acrescentar que em Hegel a fenomenologia do espírito é, entretanto, um aparecer do próprio pensamento que se forma por seus momentos compreendidos conceitualmente enquanto tais e põe este processo de passagem intemporal pelos contrários como a verdade identitária do ser. A mediação pelo negativo, essencialidade contradizente, é pôr a verdade em qualquer um dos ângulos que se olhe e se perceba o real, pois em cada um desses polos há o caminho que leva a seu contrário, pondo esta passagem como sua própria identidade. Neste sentido, nos termos de Hegel (1991), o ‘curso do mundo’ se faz como consciência e razão apresentando-se uma verdade que se põe a 360° à subjetividade. O mau, assim é o bom, porque na luta entre os momentos da contradição obtém-se a virtuosidade de compreender que a verdade é esta luta mesma e que nesta está a identidade de todo real em sua universalidade. O indivíduo e a subjetividade, entretanto, se fazem como o universal nesta consciência:

Finalmente, pelo que se refere ao ardil por meio do qual pode o em si bom atacar astutamente pelas costas o curso do mundo, esta esperança é nula. O curso do mundo é a consciência desperta, certa de si mesma, que não se deixa atacar pelas costas, senão que dá frente a todos os lados, pois é de tal modo que tudo é para ele, que tudo está diante dele (HEGEL, 1991, p. 227).

A apresentação fenomênica do real, enfim, é sempre a antessala de sua essencialidade. Posta nesta consciência, explicita a sua forma de ser regida pela lógica do próprio conceito, sempre unidade em cada um dos seus momentos, mas só raciocinado quando na forma da ideia absoluta que reconhece até mesmo a ‘certeza sensível’ como momento sintético e conceitual do espírito. O objeto, então, é a passagem da certeza sensível para a contradição e para a universalidade desta contradição em sua forma singular e, neste movimento, "segundo estas três determinações deve, pois, a consciência saber o objeto como a si mesma" (HEGEL, 1991, p. 462). Neste delinear de seus momentos como totalidade regida pelo conceito, o ‘curso do mundo’ é a sua verdade mesmo, daí ela não poder se colocar no início, nem mesmo poder ser falada, senão que a se demonstra porque ela é o próprio desenvolvimento de si. Se isto leva ao sentido de que esta verdade se coroa enquanto sociedade cindida entre Estado e sociedade civil é aí mesmo que se tem uma forma importante de se compreender a distinção do percurso da consciência em Hegel e em Marx. É nesta negativa do conceito de Hegel em Marx que se fundam os sentidos da crítica à economia política. 1 Elementos da crítica à sociedade civil

Se num primeiro momento o jovem Marx carece retirar de si a idealidade hegeliana, pois que sob os sentidos de uma forma social põe a realidade para representar o movimento da ideia, sendo a realidade mero fenômeno desta, é de se considerar que a idealidade em Hegel detém uma questão que será, contudo, considerada na obra madura de Marx. Se num primeiro momento, em sua Crítica à filosofia do direito de Hegel (MARX, 2005) considera a exacerbação desta idealidade, note-se que aqui Marx ainda deixa a separação entre sujeito e objeto não observada do ponto de vista de uma relação intrínseca e necessária, de modo que o fato enquanto sociedade pode ser pensado como o em si da coisa. Nos termos de Marx: “O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico” (MARX, 2005, p. 31). Ao que pese a importância desta crítica, o que abordaremos mais a seguir, é necessário retomar a distinção tênue, mas definitiva, dos sentidos que o idealismo ganha no interior da crítica propriamente marxiana. Em primeiro lugar, considere que Marx encontra neste idealismo uma forma de compreender a justificativa de uma realidade que, enquanto tal, deve ser criticada. A idealidade do Estado, enquanto encarnação da ideia absoluta hegeliana, poria no movimento da ideia as contradições que passam, assim, a ser diluídas enquanto contradição entre Estado e sociedade civil. Nesta medida, são estas que passam a ser objeto de análise em Marx, de modo que a idealidade almejada como superação adquire o sentido de uma condição representativa que obscurece as contradições reais tidas, pela ideia, como não contraditórias. Mas é aqui mesmo que se funda uma questão. Não seria esta negativa de Marx à idealidade de Hegel um aproximar da mesma como questão própria da dialética? E na crítica do jovem Marx a Hegel:

O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica (MARX, 2005, p. 38-39).

Se há uma volatilização das determinações políticas no pensamento abstrato não são justamente as formas abstratas que passam a se constituir como o núcleo da crítica que se delineia, revelando-se aí o reconhecimento da efetividade metafísica? No jardim de inverno não se apresenta o sol idealista? Nesta crítica, tornar-se-á, entretanto, necessário

que se conduza uma forma de exposição que seja o desvelar de que, em última instância, este idealismo hegeliano é a forma pela qual o real se efetiva enquanto forma de pensamento. Nesta simultânea relação entre sujeito e objeto, entre o pensar e o pensado, em que o pensamento se faz como momento do ser, a crítica não se faz como um negar absoluto desta idealidade. Ao contrário, observa-se a necessidade de posicionar a idealidade no âmbito daquilo que se põe como relação sujeito objeto. Se na leitura política de Hegel (2001) há um nivelamento entre razão e sociedade, em Marx (2005) a crítica põe o acento neste desnivelamento que, nivelado como forma de consciência, não detém, enquanto pensamento, a consciência sobre a forma de ser do real. Antes, o real, em sua efetividade deve ser considerado como este desnível entre sujeito e objeto de modo que a própria individualidade subjetiva nesta constelação passa a ser uma forma determinada pela objetividade de ser das leis sociais que, assim, também se conformam como pensamento. A subjetividade não consciente das contradições postas como identidade do real para com ele mesmo é momento constituinte das contradições mesmas e conformam o ser do real. Nesta materialidade do jovem Marx da Crítica da filosofia do direito de Hegel já se apresentam os termos de uma dialética materialista cuja unidade contradita entre o concreto e o abstrato é o objeto da própria crítica. Diferentemente, contudo, do Marx de O Capital, a idealidade neste manuscrito ainda retém um sentido muito próximo do ideal enquanto mero pensado, pois, certamente, não estamos na crítica fundada na metafísica trabalho. É contundente, entretanto, considerar que a cisão entre Estado e sociedade civil não se faz como momentos resolvidos na esfera do conceito. Antes, as contradições de uma sociedade mediada pelo trabalho4 põem o Estado enquanto necessidade para que, por meio desta esfera superior, mova as contradições de modo a se representarem como organicamente não contraditórias. Nesta medida, resguardam-se já aqui os fundamentos invertidos da razão no seu processo de auto constituição. O Estado posto enquanto representatividade não deslinda uma lógica que é a supressão do pensamento em relação a suas representações e assim não se atingem os ditames do racional hegeliano enquanto consciência do real conciliado nos contrários. Ao contrário, a conciliação é ilusória e, disposta nesta forma, é o modo pelo qual o pensamento é posto como relação objetiva de sujeito.

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É Giannotti (1985) quem destaca que o materialismo do jovem Marx, em suacrítica a Hegel, está fundamentada na noção de trabalho enquanto atividade.

Na expressão do jovem Marx: “Que o racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que, por toda parte, é o contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é "(MARX, 2005, p. 82). Aqui a inversão materialista, se quiser, não é o abandono das determinações metafísicas e abstratas, ao contrário, é o pôr de uma idealidade que passa à racionalidade uma forma social que não se conceitua enquanto tal, a não ser em sua forma de aparência, esta como a forma de consciência possível sob os pressupostos de uma sociedade socializada pelo processo de troca. Nesta nova relação entre sujeito e objeto não se tem, entretanto, uma superação da metafísica, mas uma nova visada sob as formas de ser da mesma, em que o metafísico - aqui no jovem Marx - é uma conciliação ilusória das contradições que assim postas não aparecem como contradição. Posto que esta jovem metafísica marxiana se faz como figuração do real, não é mero engano, mas determinação de seu modo de ser. A posição da sociedade civil, entretanto, é possível dado o desenvolvimento próprio de uma realidade que se une pela cisão, a divisão social do trabalho, sendo esta o pressuposto de um ordenamento que reponha esta contradição como mera unidade definida como vontade geral. Nesta última, está o acerto da dimensão política. Sob as contradições postas como vontades particulares que podem ser de estamentos distintos há duas derivações. Uma primeira se põe como a compreensão da parte como mera totalidade, isto é, cada segmento se faz como uma totalidade que detém um conjunto de necessidades que se explicam por uma lógica que aparece como inerente e própria deste mesmo segmento. Na cisão, enfim, posta como metafísica totalizante, destituem-se os fundamentos da contradição entre universal e particular. Uma segunda é que, no relacionar destas totalidades em separado, num a posteriori de choques das múltiplas positividades, constitui-se a unidade funcional do todo. A formação desta realidade pelos mais variados estamentos é, contudo, o modo pelo qual o Estado tem de se apresentar como aquele que põe nele interesses particulares como gerais. Não no sentido de que o Estado é a defesa de interesses particulares, mas que cada um destes interesses só se efetiva na medida em que se põe enquanto Estado. A universalidade estatal, enfim, é forma de consciência que transcende ao universal sem a mediação do particular, tornando este uma totalidade abstrata. A contradição que não se racionaliza seguindo os termos hegelianos está posta, o ‘fundamento’ do Estado são as contradições que se põem nele representadas como adequação. A crítica à idealidade hegeliana é o seu incorporar como forma de pensamento a ser posta como alvo da crítica porque tal idealidade ou jovem metafísica é uma efetividade social.

A noção de

‘fundamento’ aqui é bem vinda. O individual/estamental contradito no universal só se põe no e enquanto Estado nesta contradição mesma. Ou seja, a resolução desta contradição, portanto, a adequação dos contrários no conceito, seria a falta de fundamento para o vir a ser do Estado. Nesta medida, recolher no âmbito político as diferenças que se põem como igualdade no Estado é a contradição identitária do mesmo. Se o Estado fosse o plano destas igualdades o seu próprio vir à existência careceria de fundamento. Esta fundamentação irracional desdobra-se na contradição nos próprios termos da moldura institucional que a carta constitucional é. Caso fosse a prática da igualdade pressuposta, a própria constituição carecia de uma razão suficiente para ser (MARX, 2005). Sua prática é a sua destituição e, enquanto necessária, fundamenta-se em contradições insuperadas no plano daquilo que a constituição se diz ser. Neste âmbito, se o fundamento do Estado são as contradições entre o universal e o particular, a articulação dos estamentos em sua conformação política estatal é o repor objetivo das desigualdades como sua manutenção. Já aqui se observa um sentido importante do fetichismo do conceito no jovem Marx (2005), só em sua condução fetichista é que tem efetividade o conceito enquanto forma de sociabilidade. Posta sob esta objetividade, a idealidade criticada de Hegel não desembarca em estações intermediárias operação, aliás, realizada por um materialismo marxista tosco -, ao contrário, põe-se como condutora de um percurso irrealizável como efetividade ilusória. A sociedade civil, entretanto, põe a relação entre sujeito e objeto numa outra constelação entre pensamento e coisa pensada. A identidade dos contrários só se apresenta como um pensamento que é a ilusória superação da contradição como momento da razão, pondo o irracional como fundamento da forma social moderna, o que, aliás, fundamenta a crítica necessária à própria civilidade identitária do moderno. Se a cidadania é a expressão fenomênica deste referencial lógico, que sentidos irracionais não levam a sua própria defesa? Qual a identidade, entretanto, entre cidade e cidadania? Recorramos primeiramente à seguinte argumentação: a cidadania, sob os ditames de uma inserção igualitária na estrutura de direito então posta é, em si mesmo, um ser carente de fundamento. Se nela advêm os sentidos de uma luta para participar no interior desta sociedade na medida em que o indivíduo socializado pelo capital e pelas fantasmagorias da forma valor é aquele que por direito deve deter alguma forma de propriedade, o embaraço lógico está formado, pois não há externalidade ao moderno. Vale a assertiva, possível somente pela simultaneidade já analisada mais acima, de que estar fora é já a forma antitética que diz sobre o interno e, assim, só na relação com o interno e como internalidade é possível circunscrever o externo. Nesta medida, a externalidade de algo se o faz como identidade

negativa e necessária daquilo que se põe como interno. A busca de inclusão ou mesmo a compreensão de que há uma externalidade à cidadania, faz desta externalidade algo necessariamente referenciado àquilo que se compreende, e mal, como cidadania. De um ponto de vista social, a formação lógica e genética do capital, forma distintas propriedades como cisões próprias da divisão social do trabalho em que se cinde nesta a própria cidade em relação ao campo e, ao mesmo tempo, forma-se o não proprietário como condição antitética e identitária da propriedade enquanto relação capital posta como valorização do valor. Nesta simultaneidade, necessária de ser conhecida, não há falta ou ausência de cidadania, mas que a sua unidade é a contradição entre interno e externo, entre falta e não falta, constituindo-se tais formas simultâneas e contraditas à totalidade do ser cidadão. Daqui, depreende-se que a crítica à carência de cidadania deve ser uma crítica à cidadania, e não a busca dela, pois que sua totalidade é este sim e não simultâneos que aparecem na temporalidade do Estado como forma fetichista de ser do real. A institucionalidade social posta sob as prescrições legais que formam o indivíduo jurídico sob a ilusão de igualdade é, ao mesmo tempo, a forma externa de si, o que não está sob a lei é a efetividade do legal. Nesta formação não há incompletude porque nesta não há dialética possível, pois que o termo da antítese se perde numa ausência de posição posta como o devir de sua efetividade. Neste sentido, a crítica ou é negativa ou é ilusória. Ou seja, o Estado é aquele que, no tempo, transformará a meia cidadania numa completude e, isto posto, o tempo retoma o seu locus na constelação da modernização. Forma fetichista de ser da contradição, a obscurece no plano de uma superação posta como coisa em si. Retirado o senso do contraditório, prevalece o nonsense de um vir a ser posto pela impensada natureza temporal.

2 Contradição capital trabalho e a moldura jurídica

A cisão entre Estado e sociedade civil está fundada na contraditória formação categorial sob a regência do conceito de capital. Aqui há uma contradição fundante que carece ser considerada. Por ora, fiquemos com a apreciação de que em sua obra da maturidade, O Capital, Marx incorpora os sentidos de uma forma de exposição que merece anotações, pois que há derivações importantes daquilo que se constitui a efetividade de seu objeto enquanto relação-capital. A elaboração do primeiro livro de O Capital, editado pelo próprio autor e publicado em vida, surpreende a uma leitura atenta, ao finalizar com dois capítulos que, à primeira vista, aparecem como exposição histórica ou meramente de gênese do capital. Sob

uma sociabilidade posta por determinações metafísicas a figuração do real só se faz por um processo em que o tempo é o demiurgo do vir a ser categorial necessário para a efetividade de uma forma de sociabilidade enquanto figuração não conceitual daquilo que se põe enquanto consciência individual socializada sob o capital. A exposição de tal objetividade não pode desdizer o seu modo de ser e O Capital não pode se circunscrever numa contradição in subjecto ao pôr como início e princípio de sua efetividade uma determinação físico concreta de seu ser encarnada na subjetiva forma temporal da efetivação de si. Nesta disposição capitular, entretanto, é necessário que a forma seja uma contradição que remeta a identidade de conteúdo, justamente porque em sua efetividade a forma é conteúdo dela mesma5. Posta a efetividade por esta metafísica formal, conteúdo negativo, enquanto sociabilidade, o tempo é a apreensão subjetiva fetichista da simultaneidade contraditória da forma para com ela mesma porque efetividade negada enquanto processo social prático. Sob estas determinações de forma e conteúdo iniciar pela gênese é negar o princípio lógico que move a identidade contraditória do ser capital. No extremo, seria desistir da compreensão do capital para elaborar uma indeterminante história do capital em sua forma de capitalismo. Diante de tal forma de ser da negatividade posta como capital, a própria disposição capitular enquanto aspecto formal da exposição da obra há de corresponder a esta negatividade. Problematiza-se, portanto, que: A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como primitivo porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde” (MARX, 1983, p. 252, grifos do autor).

Não há aí uma originalidade social entre lógica e história que Marx nos oferece? Afinal, como desdobrar a pré-história do capital posto, este ‘pré’, como um processo definido pela determinação da acumulação enquanto relação-capital? Isto é, como pensar um ‘pré’, genético, cuja universalidade é a acumulação enquanto relação capital? O tempo, isto é, a gênese, posta em último lugar, é expressão de sua forma negada, mas nesta exposição, a própria acumulação primitiva não pode se pôr como um momento histórico do capital, esta contradição tem de fundar-se no próprio objeto da exposição, isto é, na ‘acumulação primitiva’ mesma. Vejamos como isto se dá, pois que aqui se reúnem os sentidos da crítica à sociedade civil. 5

Sobre este aspecto, Ruy Fausto (1997) é contundente. Uma derivação a respeito dessa análise pode-se consultar Alfredo (2010). Para efeito de uma primária observação considere-se que a forma monetária D tem por sentido, isto é, conteúdo, a própria forma monetária, D', mediada pelo processo de trabalho. Neste aspecto, D-M-D' é a passagem da forma para a mesma forma como conteúdo dela mesma, sendo esta a figuração entre forma e conteúdo na dialética do velho Marx (1983). Sobre as derivações desta análise, confrontar as bibliografias acima referidas.

A questão está na contradição inerente à própria acumulação primitiva. Em sendo esta a formação de capital, considere-se que Marx está sob o fio de expressar o capital numa dada situação em que, enquanto formação e não reprodução, tem-se a formação categorial do capital, contudo, já posta pelo conceito de capital. De que modo se operacionaliza esta contradição inerente enquanto principio lógico de uma gênese histórica? Neste ponto, o advento do capital resguarda um sentido próximo daquela totalidade hegeliana em que posto sob a lógica identitária de si mesmo não contém em si a externalidade possível, ou se se preferir, o externo é o limite do interno numa relação recíproca que funda a boa infinitude. Se o capital se apoia sobre o feudalismo, de modo que a decomposição deste libera os elementos do capital Marx (1983, p. 252), vejamos esta como uma imagem contradita, pois que a modernização se põe negativamente aos sentidos de uma história que transcende o próprio capital. Se decomposição carrega o perfil lógico do que em sua forma putrefata não mais efetiva a unidade que dá sentido às partes, isto é, não mais exerce a lógica unificadora de seus momentos, a determinação deste apoio exerce, entretanto, o sentido de uma negatividade original, que não cobra mais do passado nenhum tributo para sua efetividade enquanto capital, trata-se de ruptura e não de evolução. Nesta outra operacionalidade, o negativo ou é autorreferente, ou não é negativo. Sem esta auto referência identitária em sua essencialidade negativa é, ao contrário, o choque de duas positividades que perdem relações de necessidade identitárias de si, recaindo na contingencialidade da má infinitude. Marx, enfim, não abandona, na ‘Acumulação Primitiva’, o sentido forte de seu método em que se põe a inversão da dialética hegeliana. Na fenomenologia do espírito posta como capital, as contradições ao se externalizarem em seu vir à existência põem-se numa forma em que a relação entre aparência e essência não leva à essência, mas fetichiza-se, ‘aparece’como primitivo, enquanto esta contraditória gênese do capital. Afinal, nesta aparência de primitividade não se revela aquilo que se põe como “momento essêncial” (MARX, 1983, p. 267), da própria acumulação primitiva: a exploração máxima do trabalho como algo cujo sentido só se o faz na medida em que regido pelo conceito de capital. Ao contrário, tal fenômeno se põe como adequação justa na medida em que a própria lei institui-se enquanto domínio jurídico da propriedade privada que, então, não se expressa enquanto relação social, relação capital. Nesta sua apresentação, a contradição capital trabalho se fetichiza como adequação social numa unidade jurídica em que, emoldurando as contradições num quadro social, detém a determinação de se apresentar como o determinante e não o determinado. Assim, a partir de sua pretensa estruturação fixa e rígida, enquanto regra social, a sociedade é um fato social.

Algo que pode ser observado apesar do sujeito - contradictio in subjecto - que, neste observar, a pensa como dotada de formas próprias como se assim, entretanto, já não fosse uma forma de pensamento. Posto o sujeito deslocado de si enquanto fato social, sujeita o ilusório fato aos desígnios de uma razão que, assim cindida, julga o objeto. Nesta ação julgadora põe o real nela subjetivado de modo que o negativo que cinde o não pensamento do fato como a forma de ser do pensamento se apresenta como mera ação do juízo, de modo a dissipar essa contradição entre sujeito e objeto em mera igualdade à ação jurídica. Neste ‘ajuizar’ "não faz passar tal ajuizar como outra maneira de ser mau, senão como a consciência justa da ação..."(HEGEL, 1991, p. 338, grifos do autor). Neste deslocar as contradições sociais para uma materialidade natural em que a propriedade é sua materialidade escrita, linguagem que mistifica a linguagem enquanto forma social, a ‘consciência julgadora’ é aquela que não detém a razão, enquanto revelação ou consciência de sua contradição fundante. Por isso mesmo, em seu julgar, é o dizer da razão que está ou não está no outro, sendo essa a sua hipócrita razão. Enquanto tal, o justo posto ilusoriamente desta forma apriorística, define um sentido social pretendido que, contudo, já está posto, embora não revelado. Se para Hegel da ‘Fenomenologia’ tal intuicionismo - numa crítica mais desvelada do que velada ao transcendentalismo kantiano - leva à consciência de sua forma hipócrita por meio do negativo daquilo que ela é, no interior das determinações postas enquanto capital, ao contrário, a lei é a forma do indivíduo impetrada pelo capital enquanto consciência na medida em que a esta adequação formal da pura igualdade iludida como diferença se desdobra um modus operandi social autoponente. Nesta posição de si enquanto práxis social, confisca nesta igualdade formal, o estar ou não dentro de sua moldura jurídica como totalidade do ser capital. A essência do capital, entretanto, aparece como um primitivo que, externalizado do capital, porque pré-histórico ao mesmo, se faz problemático porque distinto daquela diferença jurídica que é a pura igualdade para com aquilo que ela mesma julga. Neste seu vir à existência, o capital é a totalidade entre ser e não ser, sendo ‘o não’ antevisto numa temporalidade cuja resultante é o pensamento da adequação temporal e não da determinação. Sua primitividade temporal é o feitiço do tempo!!! Esta dialética do Marx barbudo que, assim, internaliza o negativo e se faz na contradição entre aparência e essência, fenômeno, não é ela possível somente enquanto moderno? Se de acordo, a primitiva acumulação deve se desdobrar sob uma perspectiva racional em que a realização da lógica categorial se faz em sua simultaneidade para com o conceito cuja resultante é a fetichização deste tornando-

se o fetiche a sua identidade essencial. Afinal, neste primitivo tem-se o capital sem suas categorias e aí, o conceito é um fetiche. Neste ‘quiproquó’, a formação categorial é necessária de ser considerada sob as determinações de uma formação social que seja a do capital e nisto reside uma originalidade. Se, para Hegel, o conceito efetiva a razão que se põe como passagem negativa pelos contrários, reconhecendo nisto a pertinência das categorias identificadas na contradição, no velho Marx, a categorização do capital se faz por uma conceituação que se põe em sua ausência categorial, posta enquanto pressuposição. A acumulação (primitiva), enfim, se põe apesar de suas categorias, afinal, ela é a formação categorial e não uma lógica através das mesmas. Nesta medida, o conceito, sem a fundamentação categorial, tem efetividade, já em sua gênese, enquanto fetichismo que põe o modo de ser da figuração do real enquanto relação sujeito objeto. Daí a própria gênese histórica do capital não poder ser observada segundo os pressupostos de uma mera historicidade. Se o seu efetivar é o pôr em escombros lógicas outras, tornando-as prescindíveis para a relação-capital, a acumulação primitiva tem de ser o apresentar de uma forma social em que o tempo é negado, posto que as determinações lógicas, enquanto acumulação, definem o próprio modo de o tempo ser enquanto este negativo temporal. De um ponto de vista formal, é de se questionar se a exposição dos ‘capítulos XXIV e XXV’ do primeiro livro de O Capital de Marx, são um texto realmente histórico. Pensado em outros termos, seria de se questionar se aqui não se tem uma crítica ao histórico, no sentido de que este é posto negativamente enquanto forma de exposição, dada a razão nuclear do objeto considerado. Esta lógica genética resguarda uma identidade quando da ‘reprodução do capital’, visto que a própria acumulação se faz como forma de consciência determinada pela crise imanente. Na reprodução ampliada, enfim, a crise imanente deve fetichizar o conceito de acumulação para a sua efetividade identitária enquanto crise e acumulação6 . Diante deste perfil sincrônico, de onde derivar uma externalidade que não seja forma de ser do capital? Como, então, pensar uma acumulação posta por um processo não categorizado pelo capital, mas cujo ‘não’ só faz sentido na medida em que mediado pelo próprio capital? Afinal, aquilo que se põe como conteúdo deste processo social nada mais é do que a ‘acumulação’, mesmo que primitiva.

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Sobre este aspecto confira-se Giannotti (1999).

O seu desenvolvimento, considerando aquilo que Marx (1983) reconhece como a expropriação da base fundiária dos camponeses, expressa, aliás, os sentidos dos elementos da forma lógica da sociedade civil. A violência inerente ao processo expropriativo, posta como ‘potência econômica’ (Marx 1983) se coloca a partir de uma passagem entre distintos modos de produção em que a ruptura é uma forma de passagem negativa, isto é, ‘sem transição’ de um para outro. Na expressão do próprio autor:

As queixas daquelas antigas crônicas são sempre exageradas, mas ilustram exatamente como a revolução nas condições de produção impressionou os próprios contemporâneos. Uma comparação dos escritos do chanceler Fortescue e de Thomas Morus torna visível o abismo entre os séculos XV e XVI. De sua idade de ouro, a classe trabalhadora inglesa caiu sem transição, como Thornt diz acertadamente, à idade do ferro (MARX, 1983, p. 255).

Sob os ditames da expropriação, temos, entretanto, as separações, mais que conhecidas, entre proprietários e meios de produção e a libertação do servo, agora livre para vender sua força de trabalho que é, em última instância, a formação de um mercado interno para a grande indústria. Estas separações, divisões, unidas pelo mercado que as reafirma, reúnem a unidade social posta pela divisão campo cidade. Os fenômenos próprios da expropriação “[...] conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros” (MARX, 1983, p. 265). Nesta ruptura, a legislação deve atribuir um sentido de igualdade pelo trabalho, abstração que põe a forma de ser do processo social. Ou seja, sob os desígnios da ‘legislação sanguinária’ na unidade posta sob o trabalho produtor de valor, a condição de mendigo e mesmo de vagabundo só se faz enquanto tal nos trâmites legais na medida em que eles se portam como a antítese identitária de uma sociabilidade mediada pelo valor, isto é, a própria força de trabalho. A unidade, portanto, se firma sob os aspectos de uma contradição interna em que ela é a diferença de si como sua própria igualdade, pondo nesta partição negativa o sentido próprio de totalidade. Sob estas condições, a diferença que identifica o modo de ser do moderno não carece de algo além ou aquém do próprio moderno para se identificar enquanto tal, o seu negativo internaliza-se e faz do moderno a identidade da identidade e da diferença. Nesta realidade, se os que se adestram ao mundo do trabalho - seja nos presídios-fábricas ou sob outras formas de tortura - são trabalhadores, os mendigos, famélicos, fugitivos, os enforcados, enfim, toda a horda de perambulantes nas cidades fabris

em pleno processo de desenvolvimento é a objetividade do trabalho enquanto forma social. Nesta divisão, enfim, a internalidade e a externalidade ao trabalho são imediatamente uma única e só identidade. Como nos rememora Marx a respeito das ‘leis sanguinárias’ inglesas durante a acumulação primitiva: “Aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá ser novamente açoitado e ter a metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém, o atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado” (MARX, 1983, p. 265). O trabalho, no entanto, se põe como a unidade e identidade do que se faz como não trabalhador. A unidade efetivada como sociabilidade é ser e não ser trabalhador, forma subjetiva da objetividade do trabalho enquanto categoria mediadora da sociabilidade regida pelo conceito de capital. ‘Reúnem-se aqui os sentidos da moderna cidadania’, em que o civil e o bárbaro são uma única e contraditória lógica. Na divisão social do trabalho que aí tem lugar, as condicionantes jurídicas expressam as contradições próprias desta sociedade unida em suas cisões, de modo que tais contradições devem se apresentar como adequação e justiça. Esta última, aliás, fundada nesta identidade pela diferença institui-se como a moldura institucional onde a totalidade contraditória dos fenômenos sociais, mediados pelo valor e sua categoria fundante, o trabalho, figura-se no anagrama da ilusão jurídica. Os processos próprios que carecem da representação de igualdade no Estado, evidenciada tal igualdade como o ‘grave inimigo da comunidade’, transmutam-se, em verdade, em uma fetichista determinação do jurídico. Posto a partir deste, a resultante da efetividade capital é o não contraditório que conduz à inversão de que definida pela justiça o real é a adequação dele para com ele mesmo. Neste ‘quiproquó’, a justiça e aquilo que, ao longo do XIX, vêm a ser o código civil aparecem como o originário do qual resulta o social. Nesta figuração anagramática a justiça ou é a ilusão ou não é efetividade. Afinal, não é isso mesmo o sentido que leva as Bills for Inclosures of Commons (leis de cercamento das terras comunais)? Numa irônica, mas não menos marcante passagem de Marx lê-se que “o progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora veículo do roubo das terras do povo” (MARX, 1983, p. 259). Numa análise sobre a modernização dos Pirineus franceses, Lefebvre (2011) expressa como a condição comunal de Campan, passando por duas importantes rupturas, a do direito costumeiro e a do direito romano (positivo), é sobreposta pelos sentidos do direito escrito como supressão da palavra. Nestas passagens, as posições hierárquicas e comunais começam a ser vendidas -‘a venalidade dos ofícios’- de modo que a sua efetividade torna-se mediada pelo dinheiro. Campan mantém-se como comunidade desde que representada no

direito escrito por mandatários que são, enfim, personae monetárias em Campan. A inversão da justiça é a posição da comunidade campanense enquanto valor de uso para a efetividade do valor de troca que põe a forma valor como sentido do processo social, contradito em si mesmo. Nesta medida, Campan perpassa por uma lógica em que a unidade simples não mais é suficiente para expressar enfim uma realidade definida, então, pela contradição entre ser e aparecer. Neste sentido, o direito escrito, objeto de fé, tem de se colocar como o demiurgo de tudo por ele posto, e assim se sacramenta enquanto justiça. A modernização, entretanto, se faz pela armadura de uma consciência religiosa que, em múltiplas instâncias, aqui destacada a do direito, configura a relação sujeito objeto enquanto modernização. Se o movimento desta objetividade do real é sua figuração enquanto justiça, ilusória consciência de uma unidade simples, não contraditória, de uma romantização do comunal como forma de pensamento, a revolução industrial é este movimento fundamentado no trabalho. Em primeira instância, a cidade se posiciona como o lócus fetichista onde esta ilusão, o justo, se coloca em sua forma mais apurada. Desdobrando-se em sua forma mais acabada, a cisão campo-cidade apresentou-se como instauração temporal, por meio da cidade, lócus originário da justiça almejada enquanto trabalho. O fundamento desta coroação da cidade referente ao campo se fez pela divisão social do trabalho que foi, ao mesmo tempo, uma separação entre o fazer e o pensar. Nisto, a ideação coisificada da realidade posta sob sua unidade contraditória tinha de apresentar-se originária, isto é, a partir de um ponto sobre o qual se expandia, revirando uma consciência possível da simultaneidade posta pela fundante contradição/cisão desta originariedade ilusória. Nesta medida, se cidadania se vincula à cidade, o seu fetichismo é duplo: espacial (o lócus da originariedade cidadã) e em si mesmo, pois a própria face do direito a que cidadania remete resguarda o fetichismo posto como ilusão jurídica. Sempre considerando que a justiça é esta ilusão e não poderia ser outra coisa senão a ilusão a que remete, pois seu fundamento são as contradições que não se colocam, na relação sujeito-objeto, como forma da consciência julgadora. Afinal, sua condição de direito positivo é a não identificação do negativo pela contradição. Esta cisão, enquanto relação sujeito objeto, aliás, coloca-se como própria da contradita unidade entre o urbano e o não urbano, totalizando como diferente a igualdade formal entre o que está no interior de legalidade cidadã e aquilo que não está, sendo este não estar a forma de ser fetichizada de sua integralidade legalista. A expansividade ilusória de uma realidade urbana, determinando os ditames não menos ilusórios de uma incorporação à noção de justiça, põe na própria cisão a má compreensão de uma externalidade que carece ser incorporada de modo a obnubilar a unidade a que cidadania

carece, como sua identidade, posta na contradição entre a cidade e a não cidade, entre cidadão e não cidadão. Nesta identificação formal de cidadania à cidade, limitação indeterminante da má infinitude, a externalidade aparente esconde os limites do entendimento a expressar uma diferenciação que é nada além de pura identidade formal do direito para consigo mesmo. A diferença aparente, como aquilo que se colocaria como momento da contradição, é uma externalidade relacionável só se for a mera e indeterminante igualdade de justiça. Neste limiar de um pensar que evita a contradição, a diferença como momento de ser da intemporalidade contraditória só faz sentido quando deixar de ser a diferença identitária e negativa do próprio direito. A generalização urbana enquanto o dever ser, na boa completude hegeliana, é a ausência de qualquer determinação, é o não pensar como forma de pensamento, mas que não se compreende como tal. É o devir que se põe como um relacionável posterior que não define, entretanto, a relação que faz a necessidade daquilo que se é no presente. Nesta medida, uma generalização do urbano ou uma generalização do não urbano é o destituir de ambos, tornando-se um nonsense manter-se a razão no âmbito daquilo que não se contradiz. Nesta desenvoltura em que se atinge a contradição entre ser e aparecer, a própria urbanização tem de se pôr enquanto uma má infinitude que, assim, o seu antípoda é necessidade reposta. Em sua infinitude que nunca se chega o fim, o próprio urbano, a partir do capital é a forma de ser do processo social que transcende qualquer dimensão intrínseca a uma lógica categorial especifica. Nele, entretanto, transcende-se uma positividade totalizante onde seu antípoda não urbano só pode ser visto como aquele temporal que ainda não é urbano. A esta objetividade (isto quer dizer, se a esta condição objectual em que a contradição campo cidade se faz a partir desta forma de pensamento, tornando tal forma momento do próprio objeto, ainda que não revelado enquanto tal) está dada uma ontologia, um ser dotado de uma lógica, ainda que a negação desta como um superar de seu próprio ser, seja momento desta ontologia negativa que é senão uma sociabilidade posta pela metafísica trabalho, ou melhor, tempo de trabalho. Nesta negatividade enquanto ontologia identitária, pensar esta como pura positividade existencial não se faz como equívoco da universalidade posta enquanto relação sujeito objeto, ao contrário, é modo de ser, momento determinante da própria negatividade ôntica que ela não se revele em seu modo negativo de ser. Compreende-se assim, o sentido crítico, isto é, negativo, de Adorno (1975) quando apresenta a forma da má infinitude da consciência do indivíduo moderno como condição necessária de uma consciência que não entreveja no movimento negativo da identidade do moderno a sua própria negatividade

categorial. A ontologia, entretanto, é a consciência segura, numa realidade posta pelos contrários em que a verdade é a própria passagem em que, assim, nada está assegurado. Nesta medida, não só o trabalho é uma ontologia que se adere à materialidade dos músculos, nervos e cérebro, mas em sua forma genérica a ontologia é a própria existência, pois que existir assegura a condição indelével do próprio ser, qualquer que seja ou que venha a ser. Em tal positividade não se nega cidade, urbano, agrário, mas se disputa qual deles vai se generalizar, sendo isto o próprio nonsense de uma consciência julgadora, prelúdio de uma religiosidade efetivada enquanto um ‘além de’ da Fenomenologia de Hegel. A cada indivíduo ontologizado positivamente há que se erguer a sua catedral para nela rezar o credo de sua perpetuidade prática e corporativa. Em tal superfície, o vazio posto como totalidade há de ser religiosamente defendido para assegurar a sua aparência de profundidade. Em termos categoriais, a exatidão do argumento tem de ser a fé da verdade. Há que se agarrar a algo como um credo para garantir o seu quinhão no esboroar do real como sua contraditória identidade, a passagem é o que não se passa. A que grau a defesa disciplinar do pensamento isso expressa, a profissão de fé dos especialistas o pode revelar. A cidade instaurada na consciência moderna como a localização do justo, em que o injusto é a mera carência de adequação cidadã, é expressão formal daquilo que se põe como a justiça no trabalho. Esta relação de necessidade se justifica porque é o trabalho em sua condição identitária, isto é, relação capital trabalho que se faz como trabalho e não-trabalho, que se figura enquanto unidade simples na sua expressão civil de legalidade ‘liminar’ ou jurídica. Ou seja, é a expressão formal do que se resguarda, se assegura em garantir-se nesta forma de direito: isto é liminar.

3 Força de trabalho e adequação civil. Mais valia absoluta e relativa

Sendo a mais valia absoluta extensão temporal através da jornada de trabalho, a posição ‘do capital em seu conceito’ é a contradição inerente do tempo de trabalho como não tempo. Nesta passagem enquanto forma de sociabilidade, o capital é a superação da má infinitude, no tempo, como forma de autovalorização. Em sua má infinitude, a infinita capacidade de exploração do trabalho enquanto relação capital trabalho não se permite atingir esta determinação quantitativa em sua contraditória qualidade. É só na finitude temporal da jornada de trabalho que se realiza a antitética infinitude da valorização do valor. Sob este prisma, a própria extensão da jornada de trabalho é já um momento em que a relação entre finito e infinito se faz necessária. É em sua relação recíproca consigo que

os tempos de trabalho e de mais trabalho são unidade proporcional cuja ascensão do mais trabalho é redução do trabalho necessário, a ponto de que a própria relação entre o mais e o necessário destitui a identidade contraditória a que se permite ampliar o processo de valorização. Nesta boa infinitude, entretanto, o capital se põe em sua forma contraditória. Nesta contradição identitária, o tempo de mais trabalho é tanto mais infinito quanto mais finito o tempo de trabalho necessário. O tempo do capital é a negação de si enquanto tempo. Disposta esta nuclearidade do objeto numa contradição social, o finito e o infinito não se conceitualizam porque sua conceitualidade é a negação de sua própria unidade contraditória. A extensão infinita do mais trabalho coincide com a finitude de seu antípoda, o necessário, de modo que a jornada de trabalho posta na identidade desta contradição não mais efetiva a sua resultante e condicionante que é a valorização do valor. No interior desta unidade, em que o tempo é sua autonegação enquanto relação categorial, ele aparece porque mercadoria naturalizada no trabalho e no desgaste de cérebro, nervos e músculos coisificado em sua unidade simples como mera sucessão temporal, em sua má infinitude. 7 Em sua ‘manha teológica’, metafísica ( Marx, 1988), o tempo abstrato personificado em sua absolutidade como extensão faz-se em sua emolduração jurídica como adequação. Em sua forma de exploração absoluta do trabalho alheio, mesmo o trabalho diurno e noturno estão limitados a uma constrição física que é a do limite do trabalhador e ao limite diário de 24 h. Todo aumento da massa de trabalho está numa relação física que contradiz as determinações metafísicas do tempo enquanto forma de sociabilidade. Nesta sua aparência de extensão absoluta da jornada de trabalho que obscurece um tempo social médio determinante da reposição do capital individual em sua condição de capital, desenvolve-se a luta pela redução da jornada de trabalho. Os limites daquilo que não tornava possível a infinita exploração do trabalho, mas determinada pela infinitude da exploração enquanto sentido, se expressam nas lutas pela redução da jornada de trabalho e pelas leis fabris para o melhoramento das condições de trabalho. Em verdade, já se exponenciava que a infinitude astronômica do tempo não era condizente com uma determinação social e contraditória daquilo que se fazia enquanto negatividade temporal. Tal limitação formal se colocava em certa indistinção entre tempo astronômico e a negativa forma temporal entre o trabalho necessário e mais trabalho que se fazia, ao contrário, pela incongruência entre ambos. Nesta incongruência, o sucessivo e o diário têm de aparecer como totalidade do real e não momento aparente do mesmo. A própria indistinção, do ponto de vista do capital, entre dia e noite

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Sobre a mais valia absoluta e relativa ver MARX, 1983, Liv. I, Vol. 1, seção III, p. 142 e segs.).

revela, nas entrelinhas, os termos desta má infinitude que é não aderente, a não ser como figuração fetichista de tempo, à forma negativamente temporal de ser do capital. Numa passagem de Marx pode-se observar o seguinte:

Depois que o capital precisou de séculos para prolongar a jornada de trabalho até seu limite máximo normal e para ultrapassá-lo até os limites do dia natural de 12 horas, ocorreu então, a partir do nascimento da grande indústria no último terço do século XVIII, um assalto desmedido e violento como uma avalancha. Toda barreira interposta pela moral e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite foi destruída. Os próprios conceitos de dia e noite, rusticamente simples nos velhos estatutos, confundiram-se tanto que um juiz inglês, ainda em 1860, teve de empregar argúcia verdadeiramente talmúdica, para esclarecer "juridicamente" o que seja dia e o que seja noite. O capital celebrava suas orgias (MARX, 1988, p. 211).

Em sua expressão fetichista, como mero transcorrer do antes e do depois, permitiuse o tempo figurar numa luta contra a jornada de trabalho, cuja resultante foi a formação de uma consciência julgadora na qual o trabalho, assim justiçado, se faz como o que tem a razão posta por esta consciência mesma. A institucionalização do tempo de trabalho foi, em última instância, a passagem deste em sua forma formal jurídica em que o trabalho se põe como o justo. Diante desta redução, o capital observava para si mesmo a não realização do tempo infinito em sua condição concreta e mensurável. Pôs para si a necessidade de superar esta barreira temporal porque a infinitude desmensurante de sua forma de ser era metafísica e assim, pressuposta na sua relação negativa com a concretude temporal que, sem a consciência desta negatividade, tal concretude era ilusória. As lutas operárias se reduzem à jornada de trabalho, são a objetividade desta contradição em que a infinitude não se põe em sua extensão astronômica e, assim, expressam as determinações de uma infinita exploração do trabalho que deve se realizar na finita jornada de trabalho, seja de 10 ou menos horas. Tomá-las (as lutas) como demiúrgicas do processo social é próprio de uma consciência arraigada à estrita materialidade temporal do real em que assim compreendidas põe a coisificada separação entre sujeito e objeto e, neste invólucro subjetivista, tudo aparece como determinação pessoal, ao invés de personificada. Estender ao extremo esta jornada de trabalho já é a objetividade da infinitude do tempo de mais trabalho que se põe na sua contradição finita. Posto em sua condição de processo social, os trâmites de sua razão não se pautam em determinações da natureza, mas que devem aparecer como tal, daí adequar o trabalho, categoria datada e social, sob uma forma de tempo natural em que a sua própria negatividade identitária não se possa vislumbrar.

A estruturação jurídica sob a qual ele passa a ser compreendido redunda numa lógica em que a contradição capital trabalho aparece sob os sentidos de uma reposição de um equilíbrio que retoma a sua natureza, naturalizando-se assim o próprio trabalho. As lutas operárias, entretanto, são personificação desta contradição identitária do próprio tempo cuja resultante é a formação do trabalho enquanto consciência do em si não superada, na medida em que a finitude da jornada não desvela a identidade negativa do infinito. Neste pesar, a força de trabalho vista em sua condição de trabalho aderida a um tempo natural, naturalizante, adéqua a contradição como a não pensada reposição do trabalho em sua natureza, isto como forma de consciência. A passagem da mais valia relativa pela absoluta, posta pela contradição da infinitude já mencionada, coloca uma consciência de que ao referir-se ao trabalho em sua condição legal faz do injusto tão somente aquilo que estava fora e porque estava fora da lei. Nesta introjeção, legal e ilegal se desvanecem enquanto identidade na contradição e o tempo se desdobra numa outra figuração daí resultante: a adequação justa do injusto depende de um transcorrer temporal em que num dado momento tudo se porá enquanto lei, de modo que a simultaneidade entre o sim e o não se desdobra numa compreensão evolutiva. O civil, posto na sua figuração de código, em realidade codifica, mas não decodifica, que na simultaneidade dos contrários o cidadão e o não cidadão são unidade em que a crítica de um é, necessariamente, a crítica à forma categorial do outro, o que não evita a possibilidade unilateral e fetichista da crítica. Enquanto a consciência se põe diante desta temporalização do real através de sua forma jurídica e, assim, codificada na civilidade cidadã, as leis fabris de redução da jornada de trabalho naturalizando o trabalho - porque com a lei está dentro de sua natureza, isto é, não mais contradiz o tempo astronômico no qual está inserido - estão já sob o contexto do desenvolvimento das forças produtivas. Ou seja, a formalização legal de uma codificação do trabalho só se torna possível na mesma medida em que o capital deixa de se basear na mais valia absoluta para fazê-lo sob a forma de mais valia relativa, em que no finito da jornada de trabalho se permite a infinita exploração do mais trabalho. A inserção no plano legal do trabalho obscurece, enfim, a totalidade do valor determinando a unidade como o sim e o não da lei. Inserir-se nos tramites legais é pensar uma passagem legal em que o não trabalho não é forma de ser do trabalho, mas aquilo que não se identifica com o trabalho. Nesta temporalização, a contradição identitária se dissipou e a crítica é reafirmativa, porque vê no outro de si mesmo da legalidade mera externalidade e, neste sentido, não há o negativo identitário, mas o ilegal é tão somente o que não se põe interno ao positivo legal.

Expondo como fora o que é momento e identidade da própria condição civil - o não legal - a sociedade civil põe no interior de sua forma de consciência a totalidade totalitária da realidade capital. As contradições próprias desta sociedade, na medida em que fundamentadas na contradição capital trabalho que se efetiva enquanto mais valia relativa, detém, na civilidade, uma expressão coerente que engloba a totalidade social em sua forma de totalitarismo econômico. Estar dentro ou fora é tão somente uma referência unívoca à valorização do valor. A sua expressão legal, a subjetividade nesta relação com o objeto - ainda que não se apresente como tal totalidade amalgamante - nada mais é do que a forma mercadoria travestida em sua expressão de justiça. Se a consciência julgadora é o que detém a condição subjetiva de dizer quem tem ou quem não tem razão, ela mesma se isenta de tê-la e, assim, a contradição fundante de si enquanto lei não se mostra através dela. Tem-se aqui, entretanto, o econômico totalizando o modo de ser e de pensar sob a égide da troca, pondo-se como totalidade entre aquilo que e é que ‘não’ é trabalho, visto que este ‘não’ refere-se a sua identidade, ainda que assim não revelado. Neste filtrar da contradição numa positividade simples, o civil é a externalização da violência - o bárbaro -, posta como algo que se faz por estar fora do direito e não como uma forma de sê-lo que, no endereçar disto à consciência social, personifica-se no indivíduo, forma de consciência na relação sujeito objeto, que se faz na socialização sob o capital. A efetividade? O holocausto adorniano.8 Nesta personificação do social, relação sujeito objeto que se resolve no indivíduo, o que se julga são processos sociais cujo limite individual resguarda a carga objetiva das contradições do capital nos estreitos horizontes de uma culpabilidade pessoal. Se do ponto de vista do trabalho o ‘quiproquó’ fetichista temporal se resolve na ilusória menor exploração do trabalho que vela a mais valia relativa enquanto negatividade simultânea da valorização do valor, obscurecendo, portanto, a contradição entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas e transistoricizando o trabalho; sob o viés da civilidade há uma consciência genérica de que o Estado somos todos nós em nossa forma restrita, contudo, de indivíduo. Em suas diferentes maneiras de ser, tem-se o indivíduo garantido como universalidade legal, no Estado e enquanto Estado 9. Numa outra forma de expressar esta mesma razão enquanto modo de ser da civilidade e sua correspondente sociedade, tem-se o legal reconhecendo no indivíduo a culpabilidade pela sua inserção na identidade contraditória do social, quando reconhecido como meramente fora da lei. Nesta 8 9

Refiro-me à noção de totalitarismo como generalidade desenvolvida em Adorno (1975). Sobre o Estado enquanto forma de consciência genérica, ver a contribuição Kosminsky e Andrade, (1996).

medida, o indivíduo, ao ser cada um o Estado como representação universal social, é, ao mesmo tempo, a universalidade que prescinde do outro para sê-lo. Nisto há a prescindibilidade física de cada um em relação ao outro e, assim, de todos, como forma de consciência posta enquanto indivíduo legalizado e justiçado como figuração da forma mercadoria, sociabilidade universal sob o capital. Neste totalitarismo econômico, a civilidade é o holocausto generalizado sob o indivíduo, forma de consciência da e na relação sujeito/objeto. O projeto individual, a carreira ou sucesso individual, tidos objetivamente pairados sob nós como uma abstração, um deus ex-machina, na forma individual em que este é a universalidade enquanto tal, faz desta forma de ser universal a supressão do outro como forma de efetividade de cada um. O civil, entretanto, é tão somente uma forma de ser do totalitário, determinado pela totalidade engolfante da forma mercadoria. Estar dentro ou estar fora da forma é tão somente uma referência e uma reverência a ela. Nesta medida, o segregado, o guetizado, o marginal e o excluído são formas de expressão desta prescindibilidade como forma de ser do capital enquanto sociabilidade e formas fetichistas de expressar a unidade dos opostos como identidade capital. Estas separações, entretanto, não são o que está fora da forma, mas sim modos de ser da forma mercantil que, figurado como forma de consciência, ‘aparece’ como o que carece de direito e de cidadania. Nesta anagramática formulação social, o civil é forma de ser do totalitarismo econômico que, já dito, amalgama o universal sob sua expressão legalista. É o momento do econômico onde as contradições cabem como não contraditórias porque o seu nexo lógico formal é o de expulsar de si o negativo como sua identidade. O não de si ‘aparece’ como o outro do outro ainda que seja o outro de si mesmo. Nesta medida, o civil ‘aparece’ como a fetichista finitude da violência, mas, como o que é próprio da realidade capital, está fundado numa contradição deste fundamento. A substancialidade do capital nada mais é do que a imediatidade entre valorização e desvalorização. A textura jurídico-moral da civilidade esconde, enfim, que, na carapaça da exploração legal e civil do trabalho, reside a coincidência não contingencial entre aumento da capacidade de exploração e redução da capacidade de autovalorização do capital. Se o fundamento desta civilidade está sob esta contradição, a própria expressão civil do totalitarismo capital carece redefinir sua forma de representação, posto que as contradições capital não mais cabem em sua moldura que perde o apoio do seu ponto movediço: a contradição capital trabalho ou a contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção.

Em sua expressão palpável, isto é, fetichista, a sociabilidade capital se expressa pelo acesso aos resultados do processo produtivo. Um fetichismo que se forma obscurecendo a contradição entre materialidade e metafísica, de modo que o aumento da produção material é a crise da metafísica valorização do valor, mas também que no plano desta mesma contradição justifica-se ao indivíduo, como consciência, sob os pressupostos de ‘acesso aos bens de consumo’. O lixo, forma de ser desta contradição, tão somente aparece como civilidade quando definido no âmbito das formas institucionais de operacionalidade, se fazendo assim, como aquela externalidade indeterminante e fetichista e escondendo que seu volume se faz como forma de ser da crítica valorização. Diante de tal ‘acesso’, a cisão entre Estado e sociedade civil, fundada na contradição capital trabalho, permite a consciência estatista individual na medida em que a universalidade da forma valor se apalpa no acesso ao consumo mercantil. Este, afinal, conduz a uma consciência participativa igualitária daquilo que é a contraditória relação capital e trabalho. Ainda que posta sob as distinções de capacidade de consumo, a formação desta igualação também é fetichizada no tempo de uma possível maior capacidade de consumo em que cada consciência totalitária se permite atingir, mesmo que na dispensa do outro. Nesta medida, toda civilidade é um ajustar das contradições no tempo, na medida em que o seu polo antitético e identitário é sempre posto, pela emolduração jurídica mesma, como o que está fora e, neste duplo sentido, tal civilidade internaliza a totalidade do processo capital em si. A formação do indivíduo, entretanto, paira como o objetivo primordial subjetivista da sociedade posta, especialmente a do século XX, quando da dissipação dos capitais familiares. Nestes, irrompia-se a necessidade de a personificação do capital se efetivar na própria família. Uma família bem nucleada era a expressão da bem aventurança da modernização, ainda que não se obtivesse a consciência desta relação porque a própria personificação a ocultava. O capital monopolista de Estado10, ao contrário, é a dissipação da consciência sobre esta personificação, seja na família, seja em seu chefe burguês, que redunda numa nova formulação da nuclearidade familiar que se faz sob nova contradição identitária. A família, enfim, é o núcleo que permite a realização do indivíduo para além dela mesma e contra ela. A família bem sucedida nesta nova nucleação é aquela que melhor projetou seus filhos numa condição individual acima e para além dela. Ela é, enfim, o vivenciar da contradição interindividualista, generalizada no século XX, cuja vivência é o desconforto romântico da 10

O capital monopolista pode ser observado em várias obras, aqui cito algumas: Altvater (1983-1989); Arendt (1979); Boccara (1978); Lenin (1986), dentre outros.

perda de seus laços sanguíneos. A nova forma de ser da contradição capital trabalho, das sociedades postas sob o anonimato do capital em ações, dívidas e créditos, fusões, enfim, da concentração do capital, vê naquilo que se apresenta como seu momento anterior a forma não contraditória da personificação do capital enquanto família nucleada. Mas na impossibilidade lógica deste retorno vê a sua salvação na boa carreira individual de seus filhos que nada mais é do que a efetividade individual contra o núcleo familiar. A interpolação dos indivíduos concorrentes no interior do próprio núcleo seria uma expressão desta contradição in subjecto da própria condição familiar enquanto genérica forma de ser da prescindibilidade do outro. Esta personificação que não mais se refere ao dono dos meios de produção ou ao da força de trabalho, é expressão dos sentidos críticos imanentes da própria valorização do valor. O capital em sua forma concorrencial se revoluciona e constitui o capital através das grandes aglomerações tanto produtivas quanto financeiras. Os níveis de investimentos não mais são compatíveis com a dimensão do capital concorrencial e esta ascensão do indivíduo é ‘momento’ de um processo que se desdobra no século XX. A expansão desta forma monopolista nas realidades periféricas, ao longo do século XX, fundamenta-se num desenvolvimento qualitativo diferenciado da contradição capital trabalho. Em última instância, isto se funda numa posição da crise da reprodução, pelo seu lado de superacumulação fictícia, em que as realidades nacionais não mais agregam os termos da contradição posta entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção. A simultaneidade da crise posta entre centro e periferia aparece, no primeiro, como eterna capacidade de expansão e acumulação e, na segunda, como o vir a ser temporal do centro na periferia, acantonada sob o rótulo desenvolvimentista. Ao que pesem as contradições da relação capital trabalho, a sociedade civil, em sua cisão entre Estado e sociedade civil, é o pôr do indivíduo enquanto Estado, forma de ser do totalitarismo econômico, cuja efetividade é possível na medida em que a produção do valor define o fetichismo de igualdade por meio da distribuição das categorias do capital em sua forma de consumo. É neste, enfim, como acesso às consideradas benesses da modernização que a representação de igualdade torna-se possível enquanto forma de ser do moderno (MARX, 2005). Considere-se, inclusive, que a posição da periferia em relação à reprodução do capital mundial, era a de produzir um valor que buscava solver as contradições do capitalismo central em sua crise de superprodução. O excedente invalorizável recaía sob a periferia pondo a valorização deste como sua tarefa histórica. Se esta foi uma valorização

que tornou possível a igualdade totalitária da forma mercadoria enquanto razão de Estado, aquilo que Ernest Mandel (1983) e Robert Kurz (1993) consideram como a terceira revolução industrial, baseada na microeletrônica, aprofunda a contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção, de modo a redefinir as contradições identitárias da sociedade civil. Aqui a redução tanto em termos relativos - o que é próprio do capital em sua forma de mais valia relativa - quanto em termos absolutos da massa de mais valia - especificidade da terceira revolução industrial - leva a uma reprodução das relações sociais de produção postas sob a égide do capital fictício. Os ‘quiproquós’ se redefinem. Dada a dessubstancialização do capital, a sociedade civil tem de pôr como sua razão suficiente o aceitar das desigualdades como o sentido da civilidade. O Estado, enfim, em sua crise de representatividade, tem de dizer que a crise de sua razão de ser é a sua própria razão e, nessa medida, tem de ser o legislador das desigualdades e tornar as mesmas aceitáveis enquanto forma de ser da figuração de civilidade posta pela forma fictícia de ser do capital. Aquilo que é a crise de seu fundamento tem de aparecer como sua razão suficiente. O fetichismo se desdobra em uma razão de segundo grau, não se tratam dos fetichismos inerentes à sociedade civil, mas que se tem um fetichismo de sociedade civil mesmo.

4

Reprodução crítica e ruptura da moldura institucional. Sociedade civil e

totalitarismo

Se trabalho e não trabalho constituem momentos negativos e identitários da categoria trabalho ou força de trabalho, a crise posta por esta negatividade é imanente e própria da condição categorial e, entretanto, não se tem um desdobrar nisto no tempo. A valorização do valor, se posta pelo trabalho, só o faz na medida em que o não trabalho está pressuposto e, nesta forma, tem a sua efetividade enquanto não-trabalho. Em sua crise de valorização, o não trabalho posto pressupõe o trabalho como identidade negativa deste ‘não’. O fato é que trabalho e não trabalho se fazem como formas distintas de uma só unidade. Nesta medida, a crise do trabalho ou o não trabalho não coincide com seu fim, mas tão somente é forma de ser de uma sociabilidade posta pelo trabalho, ainda que qualitativamente a reprodução esteja redefinida. Efetivamente, isto não se faz seguindo os estritos termos da lógica hegeliana, especialmente em se constituindo uma forma de sociabilidade como relação sujeito objeto e não mero movimento do próprio pensar.

Se o processo é o de pôr esta negatividade identitária, cujo resultado é a dessubstancialização do valor, o fundamento do capital atinge o seu limiar identitário: o fundamento é sua desfundamentação. A reposição das relações sociais de produção atinge o limite de se o fazer ao mesmo tempo em que estas mesmas relações são uma razão que ficcionaliza a condição categorial. Ao explicitar a noção de ‘capital fictício’, aliás, Marx (1988) não só explana que a circulação de dinheiro, em suas diferentes assinaturas, está deslocada da produção de valor, de modo que este crédito é uma ficção de valor e não mais mera promessa de trabalho, mas que a condição fictícia de capital é uma figuração, forma de consciência necessária para que a reprodução se ponha, ainda que sem sua substância medida como tempo de trabalho. Assim, o capital fictício traz em si a possibilidade de se ficcionalizar na medida em que a ficcionalização é, ao mesmo tempo e necessariamente, uma relação sujeito objeto. A condição fictícia do capital só tem efetividade na medida em que há uma consciência que ficcionaliza as categorias do capital como ‘momento’ necessário para que se tenha a sua efetividade. Nesta contradita fundamentação, o real é ficcional, ou ainda, a ficção é real.11 Nesta posição de sua identidade - a ficcionalidade do capital, forma de sua efetividade - aquilo que se resguarda como fundamento da expressão de suas contradições na justa moldura julgadora civil, destitui a possibilidade de tal moldura poder expressar a totalidade como mera positividade do capital para consigo mesmo, pondo como injusto meramente aquilo que se lhe aparece como sua externalidade. Se o não-trabalho se faz como o não legal que carece ser, no tempo, incluído na moldura institucional, a desvalorização do valor como posição do não-trabalho sobre o trabalho faz com que o civil seja a legalização do que estava fora, destituindo a positividade identitária do civil. A crise da valorização do valor, entretanto, ao integrar simultaneamente a legalidade e a ilegalidade, torna necessário que o fora da lei seja por ela incorporado como legal sem, no entanto, adequar o recém inserido segundo os ditames da ‘consciência julgadora’. A auto ruptura do capital para, nesta crise, manter-se como tal é um desdobrar da lei em que a forma negativa da valorização do valor seja uma legalização da ilegalidade, visto que as determinações do processo social são jurídicas tão somente como aparência. Aquilo que, enquanto forma negativa de ser da forma valor e que, sob o código civil é tido como o que não pertence a este mundo, passa a redefinir-se como legalidade pondo a lei em sua identidade contraditória que nega assim a sua condição de mera positividade. Em última

11

Sob este aspecto de uma realidade fictícia fizemos alguns desdobramentos também em Alfredo (2010).

instância, o direito positivo, nos termos acima expostos, não mais contempla a expressão fetichista de que a externalidade a ele não é forma de ser do valor. Sob a crise da valorização do valor, o pressuposto da propriedade privada em suas diferentes formas não mais produzida em sua forma ampliada, a não ser negativamente, é inoperante como forma de reposição social. A condição civil perde a sua base e tem de ser a legislação de seu antípoda que a põe sob uma contradição in subjecto. E necessário legislar como forma valor aquilo que, sob a crise de sua autovalorização, é o negativo identitário do direito, mas que na necessidade de velar a contradição que o mesmo tem, este legislar é pôr o próprio civil em sua condição de o fora da lei, já que a contradição continua a forma de ser do real que a ele não cabe. Não se tem uma revelação da identidade contraditória entre bárbaro e civil, entre legal e ilegal, ao contrário, a positividade do direito tem de conformar o ilegal como, contraditoriamente, a forma positiva de ser da lei. A civilidade passa a se expressar como os termos não mais do que pune o externo para incorporá-lo sob a i-razão julgadora, mas, ao contrário, faz-se como lei aquilo que era sua forma negativa, torna-se, assim, a permissibilidade. Sob a sua forma de mediação social, esta contradição aparece como dada situação em que nenhuma lei é suficiente... Se a reprodução se põe por uma ficcionalização das relações sociais e da consciência como momento integrante e sintético destas, desata-se um processo social em que a expressão jurídica do indivíduo socializado pelo conceito de capital enquanto Estado se mantém, contudo sem se ver no reflexo da consciência julgadora que então o legitimava. Na identidade pela crise em que toda a reprodução é o que se punha fora da civilidade, a legislação é o tornar legal aquilo que na forma negativa do valor era objeto de punição e assim a ilegalidade é a lei. A lei, enfim, é um legislar daquilo que se faz como o que não se lhe adequa, contradizendo os pressupostos legais de uma mera positividade, pois a unidade é a desvalorização. Se o acesso aos resultados da produção pressupõe a produção de valor, o capital em sua forma crítica de reprodução é meramente uma distribuição material do valor, posto na mercadoria, de modo que a contradição identitária da mercadoria, valor de uso e valor, está prejudicada. No outro polo, a distribuição do valor na forma de equivalente geral, o dinheiro, sem a produção de valor que ele deveria refletir, é o reflexo invertido, uma ficcionalidade que não se revela. Nesta medida, a reposição fetichista pela materialidade exacerbada da mercadoria, ao ter como fundamento antitético a redução do valor que nela se põe para, por meio de sua forma material e fetichista, circular o valor, ficcionaliza tal circulação na medida em que o valor descola-se de seu valor de uso. A exacerbação material obscurece a sua determinação antitética, a redução crítica do valor e de sua

consequente valorização. Nesta forma de distributivismo, a própria condição civil se ficcionaliza, pois que nesta distribuição não se repõem os pressupostos da valorização do valor, fundamento da civilidade em sua contradição identitária. Se o ilegal é o travestir-se da legalidade, e não o adequar-se a essa, o indivíduo é a consciência que se põe não mais vista na igualdade enquanto Estado, mas na ilegalidade que a própria jurisdição se pressupõe ser, é o Estado independente da esfera política que o medeia. Nesta crítica reprodução do valor, a violência que se fazia como implícita porque na reposição dos pressupostos da valorização como legalidade civil, o violento aparecia como bárbaro, o externo, se explicita e internaliza o bárbaro, não como o que não é o civilizatório, mas como a sua forma genérica de efetividade. No clamor de uma consciência romântica, fixada na positividade crítica do código civil, tudo aparece como falta do rigor e do vigor da lei. A forma totalitária de consciência posta na subjetividade enquanto indivíduo, entretanto, se obscurece na medida em que a ilegalidade se faz como lei. A severidade do clamar pela pena de morte, da extrema punição de crimes, da formação de um plano secreto de ação do exército brasileiro, por exemplo, para manter os ditames da ordem12, obscurece o esboroamento daquilo que punha a distinção, fetichista, entre o legal e o ilegal. Na individuação estatista, o tráfico de drogas, o acesso ao erário, assim chamado público, de modo privado, denominado genericamente como corrupção, a circunscrição totalitária dos territórios de milícias nos morros de favelas do Rio de Janeiro e nas favelas dos vales dos rios em São Paulo e por toda parte, e mesmo o Estado legislando a forma de subornar um dos totens da modernização, a propriedade privada da terra para dela fazer objeto de negócios ou negociatas, o próprio exército é, contraditoriamente, acionado para resguardar a normalidade civil. É diante da ocupação militar de setores civis da sociedade brasileira que se tem, por exemplo, a normalidade civil. Diante de tal quadro, a falcatrua não se põe como externalidade à forma valor, mas como forma de sua efetividade num momento em que o seu fundamento, o trabalho, faz negativamente a sua forma de presença enquanto sociabilidade capital. A mudança, em sua forma crítica é que o totalitarismo econômico- a reprodução social ou é na forma valor ou não se efetiva - é a posição generalizada de milícias individuais ou coletivas. Desde as consideradas fora da lei, até as aceitas ou mesmo legalizadas como a segurança particular pessoal, de quarteirões ou de condomínios de alto, médio e baixo padrão de consumo. No extremo, tem-se o miliciar do indivíduo para consigo

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Segundo matéria da revista Carta Capital, o exército brasileiro definiu um plano de ação e vigilância da sociedade civil inconstitucional para manter a ordem constitucional. Carta Capital, ano XVII, n. 668, 19/10/2011, p. 28-32.

mesmo no enclausuramento de si no forte doméstico do que se denomina lar. Cada um é o exército de si, o que põe o próprio indivíduo como uma consciência que se faz para além do Estado enquanto Estado e não Estado através do Estado. A contradição entre desigualdade e igualdade fetichizada na vontade geral, o fetichismo próprio do Estado Civil que é o pôr da forma valor e de suas contradições, se desloca para o fetichismo de que cada um em si mesmo não é a objetividade do valor subjetivada no indivíduo, forma de consciência, mas que cada um é, independente do outro - contradictio in subjecto - a normalidade positiva civil. A capacidade pessoal e sua eficácia em se auto ajudar repõe no indivíduo uma noção de totalidade totalitária em que a prescindibilidade do outro é a generalidade. Neste anagrama entre individual e vida geral, a materialidade do indivíduo, nervos, cérebro e músculos, ontologiza a sua condição de sujeito de modo que seria tão impossível pensar que não é sujeito quanto desacreditar na circulação sanguínea. A forma sujeito13, enfim, mantém o fetichismo de sociedade civil em que cada um é uma sociedade civil total, cuja resultante é o repor do totalitarismo enquanto forma de sociabilidade capital. Neste distribuir, cada um é o totalitarismo de sua civilidade assegurada no Estado como razão de si, contradição da qual o Estado se vê em dificuldades de obscurecer em sua expressão de civilidade, unitarismo monádico que permeia tanto as formas de defesa da lei como aquelas que se põem como fora da lei, visto que a distinção se desvanece. Quando a condição do consumo atinge a generalidade das camadas sociais por esta forma de distribuição do capital fictício, o pressuposto da igualdade que é a produção de valor está comprometido. A generalização da civilidade é sua crise enquanto expressão fetichista de igualdade. A configuração da desigualdade é o plano daquilo que efetiva o civilismo. A diferença e a desigualdade sociais passam, assim, a ser razão de Estado e a injustiça o justo. O fundamento real da ilusão de igualdade, o trabalho, não se faz como mediação da mesma, pois que se tem o consumidor apesar do trabalho14. Nesta configuração fictícia do capital, subjetivada como consumidor, a violência da ‘dignidade pelo trabalho’ se transmuta numa violência para o acesso ao consumo cuja determinação é o salto mortal, mas fictício, da mercadoria como reprodução de capitais urbano industriais, meros pressupostos da circulação do capital financeiro. Se isto se dá de forma a legalizar o ilegal, como nova condição do código civil, em sua crise de codificação, em outros planos, a corrupção posta como normalidade da reprodução em seus mais distintos modos de ser, desde o acesso ao erário público de modo individual, até a forma de ascensão fictícia das cotações do 13 14

Sobre este aspecto, considerar Kurz (2000). Acessível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm. Sobre o consumidor apesar do trabalhador confira-se Silva (2008).

mercado financeiro assegurado pelo que se passou a considerar como falta de regulamentação, é a expressão dos percalços em que se põe a necessidade de novas formas do ardil do não trabalho15. Nesta desigualdade posta como razão insuficiente do Estado, tem-se a presença de ambos os polos da contradição no interior da moldura jurídica problematizando a sua forma meramente positiva de ser; totalitarismo e civilidade não se põem como formas antagônicas de expressão política da forma valor e tão somente o Estado em sua individuação pode fetichizar a sociedade civil em sua forma totalitária. Sob esta forma da reprodução, o terrorista é outro e, na generalização do terror enquanto forma de sociabilidade, há que se localizá-lo como consciência não reveladora de sua generalidade. A ação estatal, entretanto, não se limita aos termos dos Estados nacionais, ao contrário, ela tem de ser mundial como superação da crise do fetichismo de civilidade nacional. Há que se forjar um representante da ordem mundial cuja universalização enquanto forma de Estado militar se funda na crise de seu particular e a paz eterna se funda num militarismo mundial. Sob os ditames da simultaneidade crítica da valorização do valor, ordem é a palavra de ordem que vela a desordem do valor para consigo mesmo, seu antípoda identitário. Ordem e desordem se maniqueísam de modo a substituir os sentidos contraditórios de uma valorização que é desvalorização do valor e que, sob esta última forma, tal contradição não se repõe sob a égide do civil até então operante. A derrocada do endividamento do euro se obscurece na luta europeia-americana em deflagrar, sob esforços de guerra, a civilidade democrática naquilo que se apresenta como a espacialidade do terror. O assassinato de então aceitos líderes terroristas - que nada mais são do que personificações do totalitarismo do dinheiro e da forma mercantil que, em sua crise exigem a condição sanguinolenta explícita de sua reprodução em tais espaços - se faz como a condição liminar dos direitos civis como guerra mundial permanente, posicionando-se os sentidos da paz enquanto fundamento desta sociabilidade capital. Na subjetividade individual, socializada pelo capital, põe-se a necessidade de se escolher este ou aquele terror, ocidental ou oriental, sendo esta cisão geográfica a materialidade de uma distinção ilusória da abstração monetária que permeia a sua própria forma de apresentação. Numa outra forma de ser deste processo crítico, a consulta popular da Grécia, símbolo da democracia defendida pela sociabilidade totalitária do dinheiro, a respeito das medidas econômicas exigidas pelas agências ficcionais do capital, é a própria ameaça aos

15

Alusão a Giannotti (1983).

desígnios da civilidade defendida. Nesta postura, o governo grego põe em questão o próprio sentido democrático e de cidadania que, ironicamente, a Grécia, aliás, tem se colocado como o exemplo histórico romântico milenar à sociedade totalitária do dinheiro. Os pressupostos da expressão democrática do voto, como ilusão de liberdade que permite o imperar do totalitarismo econômico, já não se posicionam como a forma possível desta fetichização de liberdade. No acirrar da negatividade do capital para como ele mesmo, a positividade do civil se faz precária e só se prevalece na medida em que as decisões devem o ser em sua forma militar ou de expulsão. A própria democracia, neste caso grega, é o convidar de George Papandreou a se retirar do cargo por exagerar em sua dose democrática. Não estaria aí um vislumbrar de que a democracia e a civilidade são formas de ser do totalitarismo? Sob a iminência de recusar o pacote restritivo dos fundos ficcionais internacionais, por meio do pretendido plebiscito, a Grécia se vê ameaçada de estar fora da zona do euro. A panaceia, contudo, é a de se salvar com ou sem plebiscito da forma dinheiro para a forma dinheiro. A democracia plebiscitária, ainda que problemática para os bancos europeus endividados, que não terão no turismo grego a reprodução ficcional de seus títulos financeiros, é um desfraldar desesperado da ilusão de liberdade que põe a sociedade grega a escolher entre o dinheiro e o dinheiro. A legalidade, enfim, torna-se a permissibilidade do ilegal como sua forma crítica, ser democrático, entretanto, é a contradição que não se revela. A dicotomia entre ditadura e democracia é o limite de uma consciência que se permita transcender os termos desta relação e a resultante é a reposição crítica do valor e de sua armadura política totalitário-democrática. Considerações finais A sociedade civil se faz na divisão entre Estado e sociedade civil, cujo fundamento é a valorização do valor em sua contradição capital trabalho. Em sua forma afirmativa, isto é, produção de valor, a positividade do direito põe o seu negativo, isto é, o ilegal, como aquilo que está fora da lei. Assim, a positividade civil fetichiza a morte, a fome, a miséria, como mera falta de civilidade e obscurece a sua identidade totalitária. Na generalização deste lado negativo da lei, a civilidade tem de ser a generalização do ilegal e enquanto tal a crise do valor é a revelação de uma crise da condição civil que torna lei o próprio totalitarismo. Referências

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