Clichês e o processo de criação de imagens fílmicas
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Conferência Internacional de Cinema de Avanca 2015 - Portugal Clichês e o processo de criação de imagens fílmicas Joanise Levy da Silva Universidade de Coimbra, Portugal Sérgio Dias Branco Universidade de Coimbra, Portugal
numerosas, mas também cada vez mais diversificadas
Abstract
e mais intercambiáveis”. Ainda que imerso na pletora I propose that clichés in film can be classified according to the context in which they manifest themselves. In the film image is possible to observe the incidence of three types of clichés, they are: formal, within the mise-en-scène; semantic, articulating the film montage and narrative, organizing the dramatic structure. This proposal takes into account that the creation of the screenplay, beyond its demands regarding the technical field of dramaturgy and formal field of film narrative, are poetics mediated by a symbolic repertoire present in the imaginary, which are recovered in the act to fable. The appeal for originality therefore arises as an ideal increasingly unattainable, since the expansion of shared imagery repertoire engenders a kind of collective audiovisual memory. Thus, understanding the process of creating film images in its correlation with clichés, can lead to new approaches about the creative process of film images, in particular, the fable making of screenplays.
de imagens, fugir à imagem-clichê paira como uma recomendação primeira a quem se coloca a tarefa de criar. Contudo, a adesão ao clichê, se por vezes é inevitável, presta-se também a certa comunicabilidade. “O clichê sofre de uma dupla faceta: por ser conhecido, beneficia — tanto o espectador como os fazedores — do prazer do reconhecimento; por ser banal, gasta-se e a certo ponto aproxima-se da sua exaustão e provoca a rejeição (passando pelo riso)” (Areal 2011, 3). Recuperar
o
uso
do
termo
ajuda
a
compreender os sentidos que o mesmo foi assumindo ao longo do tempo. No ramo da tipografia, o clichê é uma placa metálica, com imagens e textos gravados
Keywords: clichés; creative process; film screenplay; storytelling; cinema
passou a designar aquilo que perde o seu valor por
A afirmação de Syd Field (2001) de que um é
uma
extensão, é também a imagem ou o texto resultante desse tipo de impressão. Em sentido figurado, clichê
Introdução
roteiro
em relevo, usada para a impressão em série e, por
história
contada
com
imagens,
causa da seriação, o que se torna banal, lugar-comum. O
cineasta
Giba
Assis
Brasil
sugere
que
a
dimensiona o desafio enfrentado por aqueles que se
incorporação desse sentido ao termo clichê remonta
dispõem a contar histórias numa sociedade marcada
ao século XIX.
pela onipresença das mídias audiovisuais, que tanto dinamizam a criação de imagens, quanto de um repertório
imagético
compartilhado.
Como
bem
observa Aumont (2005, 14), é “banal falar de ‘civilização da imagem’, mas essa expressão revela bem o sentimento generalizado de se viver em um mundo onde as
imagens são cada vez mais
Como na França de 1800 os jornais já eram diários e provavelmente não havia assim tanto assunto, ou tantas abordagens diferentes para assuntos muito semelhantes, tornou-se prática comum repetir partes de um clichê, ou mesmo clichês inteiros, de um dia para o outro. E a palavra foi ganhando um novo significado: de coisa banal, fácil de usar para quem escreve e fácil de compreender para quem lê, mas de
sentido progressivamente repetição (Brasil 2008).
esvaziado
pela
A representação do espaço e do tempo na imagem é quase sempre, portanto, uma operação determinada por uma intenção mais global, de ordem narrativa: o que se trata de representar é espaço e tempo diegéticos, e o próprio trabalho da representação está na formação de diegese, ou de fragmentos de diegese, em imagem. A diegese é uma construção imaginária, um mundo fictício que tem leis próprias mais ou menos parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele se tem. Toda construção diegética é determinada em grande parte por sua aceitabilidade social, logo por convenções, por códigos e pelo simbolismo em vigor numa sociedade (Aumont 2005, 248).
Não é incorreto dizer que o clichê tornou possível a seriação mecânica de imagens. E se é um recurso útil no processo de produção, é evidentemente condenado numa criação que se pretende original. Observo, todavia, ser necessária uma definição anterior, relativa à natureza mesma do clichê, de modo a superar a conceituação que o define apenas por oposição à originalidade e esta como sinônimo de criatividade. Observo que a imagem-clichê possui atributos que lhes são próprios e que sua incidência no cinema seja algo passível de classificação, conforme a instância do filme na qual se manifesta, seja ela a encenação, a montagem ou a narrativa.
Processo de originalidade
criação
e
o
Dialogar com as produções de seu tempo e garantir a aceitabilidade social conduz o roteirista a repertórios simbólicos, de tal maneira que há sempre o risco de ele ser tragado por um mar de coisas já
desafio
da
vistas,
reiteradas
por
um
repertório
imagético
compartilhado, o que revela ser o processo de criação por vezes mais tautológico, do que prospectivo.
Considerar o cinema uma indústria que fabrica
Tarkovski (1998) posiciona-se contrário ao uso
imagens para serem distribuídas como mercadoria, de
de reportórios
certo modo, justificaria a utilização de clichês, uma vez
procedimento
que nesse modo de produção a equação tempo e
encenação.
simbólicos o
e
responsável
denuncia ser por
este
empobrecer
a
custo descarta, facilmente, o ingrediente originalidade. Essa resposta, contudo, não explica o motivo pelo qual produções contextos
cinematográficas menos
desenvolvidas
condicionados
a
em
variáveis
comerciais, ainda assim, revelam-se marcadas por clichês. Também não explica a persistência de alguns
Nenhuma mise en scène tem o direito de se repetir, da mesma forma que duas personalidades jamais serão idênticas. Assim que uma mise en scène transformar-se num signo, num clichê, num conceito (por mais originais que possam ser), a coisa toda — personagens, situações, psicologia — torna-se falsa e artificial (Tarkovski 1998, 24).
clichês, a despeito das mudanças culturais, técnicas e estéticas pelas quais tem passado a produção cinematográfica em mais de um século de existência. Proponho uma taxonomia da natureza do
Prevalece na perspectiva de Tarkosvski, uma posição essencialista relativa à imagem, de modo a conferir a ela uma potência, cuja suposta verdade da
clichê como um recurso para melhor compreender o
qual é portadora seria revelada pelo artista.
processo de criação de imagens numa obra fílmica,
concepção considera a imagem como algo puro,
com destaque para a etapa inicial da fabulação do
genuíno, descurado do medium que participa da sua
filme: a criação do roteiro.
criação – seja o dispositivo, o contexto no qual a obra é criada ou o imaginário do artista.
Tal
e
que esta prática receba nomes outros, “[...] fala-se de
autenticidade, a noção de originalidade, presente no
‘reescrita’, de ‘intertextualidade’, quando há um
ideário romântico europeu do século XIX, ainda
modelo evidente, como é o caso de Homero para o
encontra lugar nos dias atuais.
Ulisses de Joyce, ou de Horácio para o Ricardo Reis
Como
sinônimo
de
singularidade
de Pessoa, mas já não se fala de imitação” A crença no valor absoluto da originalidade não é mais do que uma ideia reguladora. Ela não deixa de ser importante, pois aponta para um valor ainda significativo em nossa cultura. Mas num mundo recoberto por camadas e camadas de linguagem, no qual as práticas cotidianas são em grande medida operações com materiais culturais acumulados, apostar na criação de obras absolutamente novas é, no mínimo, duvidoso. Aliás, em épocas anteriores ao romantismo, não havia esse tipo de cobrança. É mais do que sabido que Shakespeare – para ficarmos num terreno acima de qualquer suspeita – tinha por prática partir de enredos de outros (Saraiva e Cannito 2004, 47).
(Fernandes 1986, 12). Segundo o autor, os artistas modernos quase sempre buscaram modelos antigos e sobre eles fizeram “variações”, sem que por isso perdessem a originalidade. Bordwell (1996) identifica derivações similares no cinema.
Em las películas de Godard, encontramos gran cantidad de intertextualidade – citas, alusiones, prestamos – así como lo que Gérard Genette llama ‘hipertextualidad’, lá derivación de um texto a partir de outro por transformación (sátira, parodia) o imitación (pastiche, remake) (Bordwell 1996, .312).
A concepção de que nada surge do nada (ex nihilo) é apregoada por vertentes filosóficas orientais há séculos, muito antes da ideia de originalidade se firmar como um ideal e um indicativo de criatividade.
A articulação entre novo e antigo, repetição e variação, está na base do conceito de criatividade. Na concepção de diversos autores “(Amabile 1996; Barron 1988; Lubart 1994; MacKinnon 1962; Ochse 1990;
For the Hindus (1500-900 B.C.), Confucius (c. 551-479 B.C.), and the Taoists and Buddhists creation was at most a kind of discovery or mimicry. […] The early Taoist and Buddhists emphasized natural cycles, harmony, regularity, and balance, therefore 'the idea of the creation of something ex nihilo (from nothing) had no place in a universe of the yin and yang' (Albert e Runco 1999, 18).
Sternberg e Lubart 1995)” (Lubart 2007, 16), o conceito de criatividade pode ser expresso como a capacidade de realizar uma produção que seja ao mesmo tempo nova e adaptada ao contexto na qual ela se manifesta. Como objeto de estudo, a noção de criatividade tem sido deslocada do conceito de originalidade e agregada à concepção de inovação,
A imitação torna o processo de criação
isto é, tornar novo um modelo existente.
tributário ao que já foi criado, ao que veio antes. Dionísio de Halicarnasso (séc. I a.C.) considerava a imitação (mimese) uma atividade que move o espírito para o que lhe parece belo. Com o tempo, o conceito de imitação confundiu-se com o sentido de cópia ou plágio, e como tal tornou-se prática indesejada. Contudo, Fernandes (1986) observa que a mimese é antes uma etapa do processo de criação, o que talvez explique o motivo pelo qual aderimos à imitação, ainda
Por definição, uma produção nova é original e imprevista quando se distingue pelo assunto ou pelo fato de outras pessoas não a terem realizado. Ela pode, contudo, ser nova em diferentes graus: ela pode não apresentar um desvio mínimo por relatar as realizações anteriores ou, ao contrário, revelar ser uma inovação importante [...] Por outro lado, uma produção não pode ser simplesmente uma resposta nova. Ela deve igualmente ser adaptada, ou seja, deve satisfazer diferentes dificuldades ligadas às situações nas quais se encontram as pessoas. [...] A importância
relativa da novidade e da adaptação depende, assim, da natureza da tarefa proposta aos sujeitos: por exemplo, o critério de adaptação é mais fortemente valorizado dentro das produções criativas dos engenheiros do que nas dos artistas (Lubart 2007, 16).
Como os primeiros clichês da tipografia, os clichês imagéticos podem ser considerados como matrizes utilizadas para a produção em série, mas são também a própria cópia. Esse comportamento parece
Novidade e adaptação são aspectos ligados à criatividade e variam conforme o contexto. Além disso, são balizas no estabelecimento de critérios de julgamento de uma obra. Relativo ao processo de criação, Lubart (2007) destaca que o mesmo deve também ser levado em consideração ao se julgar a criatividade, visto que uma obra criada por acaso, ainda que original e adaptada, pode não ser considerada criativa, uma vez que o ato criativo presume um trabalho árduo e intencional. Ostrower (2013), por sua vez, enxerga no acaso uma variável importante da atividade laboral. Segundo a autora, não existe criação artística sem acaso.
similar ao dos replicadores. O biólogo evolucionista Richard Dawkins, na obra O gene egoísta, discorre sobre a dinâmica dos genes e seu caráter replicador. Os
garantir
a
publicado, Dawkins destinou um capítulo para tratar do que
denominou
“memes”,
para
ele,
os
novos
replicadores. A palavra “meme” é uma adaptação do termo grego mimeme, cuja raiz encontra-se em mimese,
que
como
dito
anteriormente
significa
imitação.
Ejemplos de memes son: tonadas o sones, ideas, consignas, modas en cuanto a vestimenta, formas de fabricar vasijas o de construir arcos. Al igual que los genes se propagan en un acervo génico al saltar de un cuerpo a otro mediante los espermatozoides o los óvulos, así los memes se propagan en el acervo de memes al saltar de un cerebro a otro mediante un proceso que, considerado en su sentido más amplio, puede llamarse de imitación. Si un científico escucha o lee una buena idea, la transmite a sus colegas y estudiantes. La menciona en sus artículos y ponencias. Si la idea se hace popular, puede decirse que se ha propagado, esparciéndose de cerebro en cerebro (Dawkins 1993, 218).
incorporado em seu processo de criação. Admite-se ainda que a busca de uma visão nova pode surgir da associações
objetivo
preservar o DNA. Já em 1976, quando o livro foi
eventos cotidianos ao ser ressignificado pelo artista e
estabelecer
por
armazenam. No caso dos genes, o objetivo é
O acaso, portanto, destaca-se da sucessão de
de
têm
sobrevivência do material ou da informação que
Por mais surpreendentes que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário e sim dentro de um padrão de ordenações, em que as expectativas latentes da pessoa e os termos de seu engajamento interior representam um elo vital na cadeia de causaefeito (Ostrower 2013, 25).
capacidade
replicadores
entre
elementos já existentes. Em particular, a tarefa do
No âmbito da cultura, segundo Dawkins, o
roteirista, na visão de Saraiva e Cannito (2004) é, pois,
meme é uma unidade de imitação, capaz de ser
reconstruir
transmitida de um cérebro a outro. Diferentemente dos
e
ressignificar
fatos
aparentemente
desconexos da vida.
genes, os memes não são replicadores de alta fidelidade, no sentido de produzirem cópias fidedignas,
Pregnância e replicância como atributos dos clichês
pois
estão
submetidos
a
mutações
e
fusões
constantes, próprias do ambiente cultural. Com a presença
da
internet
e
as
novas
formas
de
sociabilidade nas redes sociais, os memes encontram
um embrião de signo visual latente tanto na imagem
um campo fértil para sua propagação. Sobre este
quanto na memória do espectador. Tal conceito
fenômeno, alguns estudiosos, como Recuero (2006) e
assemelha-se ao de significante imaginário, que
Blackmore (2008), têm dedicado especial atenção.
conforme define Metz (apud Areal 2011) é um
Por analogia, os clichês seriam uma espécie
significante de outra natureza que não linguística,
de unidade de transmissão cultural e se comportariam
constituído pela matéria do filme e ressignificado num
como
certos
segundo grau pelo imaginário do espectador/leitor.
esquematismos. Se as ideias podem ser contagiosas,
Dizer que o cinema obedece mais às leis da mente do
como sugere Dawkins, considerar o processo criativo
que às leis do mundo (Munsterberg apud Areal 2011)
suscetível ao contágio é admitir que a originalidade é
fortalece o argumento de que o clichê está ancorado
um referencial inalcançável.
no imaginário. Assim,
replicadores,
fazendo
perpetuar
O cinema vive de clichês e gera clichês — imagens que, quanto mais simplificadas, mais facilmente são retidas. Um clichê é ainda uma imagem que transporta um sentido ou uma significação segunda (além daquela que a insere no fio narrativo). Será então uma espécie de embrião de signo visual? [...] Na medida em que um clichê é um condensado de imagem, ideia e emoção, importa situá-lo enquanto processo de semiose muito presente no cinema (Areal 2011, 1).
[...] memórias e imaginações, representações e imagens, serão todas da mesma natureza; pertencem a um nível de pensamento onde se fundem os dados da experiência e encontram nexo os factos de uma narrativa, seja ela nossa ou alheia ou partilhada (Areal 2011, 2).
Do ponto de vista de seus atributos, além de seu caráter replicador, os clichês são também pregnantes. Considera-se que as imagens pregnantes possuem a qualidade de impregnar o espírito do
No cinema preconizado por Areal não há lugar
indivíduo e de ser por ele percebida dentro de uma
para a pureza, como advoga o cineasta russo
composição ou conjunto de elementos (Aurélio 2003).
Tarkovski.
Podemos correlacionar a palavra impregnar com impressionar o espírito, extraindo o sentido do termo
A pureza do cinema, a força que lhe é inerente, não se revela na adequação simbólica das imagens (por mais ousadas que sejam), mas na capacidade dessas imagens de expressar um fato específico, único e verdadeiro (Tarkovski 1998, 83).
impressão, tal qual na tipografia. Vale
acrescentar
um
outro
conceito
de
pregnância para ampliar a compreensão do termo. No século XVIII, o dramaturgo e crítico de arte, GottholdEphraim Lessing cunhou o termo instante pregnante
Se concordarmos com Tarkovski sobre a pureza original das imagens fílmicas, deveremos admitir que os clichês são imagens reutilizadas por indolência criativa ou medo de ousar. Contudo, afirmar-lhes o significado pelo regime de uso e centrarse na suposta má intenção de quem deles fazem uso, não diz exatamente o que os clichês são. Areal (2011) ao evocar o processo de semiose do cinema, aponta para a possibilidade do clichê ser
para designar o instante que melhor expressasse a essência de um acontecimento real, o qual seria fixado na representação, em questão, na tela de um quadro. À medida que os meios técnicos de reprodução da realidade progrediam, “a pintura se achou mais presa entre duas exigências contraditórias: representar todo o
acontecimento,
compreendido,
ou
a
fim
dele
de
que
representar
fosse
bem
apenas
um
instante, a fim de ficar fiel ao verossímil perceptivo” (Aumont 2005, 231).
Peirce esclarece que o signo é um índice quando mantém uma relação de contiguidade com o
De acordo com Aumont (2005), tal intento não
objeto que representa (Santaella 2004). Alguns gestos
se mostrou possível, visto ser difícil definir um instante
ou cenas podem ser indiciais porque remetem ao todo
que contivesse a essência de um acontecimento.
do filme, de tal modo que mesmo retiradas do contexto
Desse modo, “representar um acontecimento por um
do filme são facilmente reconhecidas pelo público
'instante' só é possível buscando apoio, bem mais do
como pertencentes à obra. Assim, é possível inferir
que pensava Lessing, nas codificações semânticas
que o “instante pregnante”, captado e representado na
dos gestos, das posturas, de toda a encenação”
imagem, é um clichê de aspecto indicial.
(Aumont 2005, 231). Para além da intencionalidade da cena ou até
Clichês formais, semânticos e narrativos
mesmo da interpretação peculiar do ator, há gestos Sugiro que os clichês sejam passíveis de
que se perpetuam por processos miméticos (ou meméticos) e aparecem de modo recorrente nas obras
classificação
conforme
fílmicas,
manifestam.
Nas
assim
como
existem
gestos
que
se
a
instância
imagens
fílmicas
na
qual
se
destaco
a
consagraram como simbólicos [1] em razão da sua
incidência de três tipos de clichês: são eles formais,
pregnância. Como exemplo podemos citar o gesto de
presentes no âmbito da encenação; semânticos,
Scarlet O' Hara, interpretada por Vivien Leigh, no filme
articulando a montagem e narrativos, organizando a
E o vento Levou (Victor Fleming 1939) ao prometer,
estrutura dramática.[3] Na acepção de Bordwell e Thompson (2013),
diante das adversidades que a acometiam, naquele momento, que jamais passaria fome novamente.
o termo mise-en-scène vem do francês e significa “por
Há certas imagens que de tão pregnantes,
em cena” ou encenação. Todos os elementos que
emblemáticas e conhecidas remetem ao todo do filme,
aparecem no quadro fílmico compõem a mise-en-
o que possibilita as citações cênicas, as paródias e o
scène: cenário, iluminação, figurino e comportamento
remix, recursos frequentemente utilizados pelo cinema
das personagens.
comercial contemporâneo ou, como denomina Jullier e
A imagem-clichê formal, como indica o nome,
Marie (2009), cinema pós-moderno. Tal cinema “é
situa-se no âmbito da forma e replica elementos
modesto e se baseia na consciência de que tudo já foi
abstratos,
dito, e que é preciso retomar as antigas regras (o que
enquadramentos
os modernos [2] se recusaram a fazer), renovando o
encenação.
tais
como e
gesto,
grafismos
cor,
luz,
texturas,
demandados
pela
que pode ser renovado” (Jullier e Marie 2009,.214).
Os autores chamam a atenção para a
Ainda segundo os autores, essa “consciência de vir
presença do ator como um elemento gráfico na tela.
depois”
“Como
provoca
certa
liberdade,
permitindo-lhes
outros
aspectos
da
mise-en-scène,
a
utilizar de todas as estéticas possíveis para “tudo
interpretação é criado para ser filmada. A interpretação
mostrar” e assim assistimos na tela ao desfilar de
de um ator é composta de elementos visuais
“alusões e piscadelas” dirigidas ao espectador, no
(aparência, gestos, expressões faciais) e som (voz,
sentido de estabelecer com ele certa cumplicidade.
efeitos)” (Bordwell e Thompson 2013, 233).
Tarkovski oferece um exemplo de clichê formal
Aumont (et al. 1995) cita Jean Mitry ao
na encenação do filme Terra (1930), do cineasta
exemplificar que em um western, “um plano que
soviético Aleksandr Dovjenko.
mostra, do alto de uma montanha, uma diligência preparando-se para entrar em um desfiladeiro basta
No filme Terra, de Dovjenko, o protagonista é morto com um tiro pelo kulak,[fazendeiro] e, para comunicar o disparo, a câmera se afasta da cena em que o protagonista cai morto; em alguma parte dos campos vizinhos, cavalos assustados erguem as cabeças, e a câmera volta em seguida para a cena do assassinato. Para o público, as cabeças erguidas dos cavalos constituem uma forma de percepção do tiro. Quando se introduziu o som no cinema, esse tipo de montagem deixou de ser necessário. E não convém remontar às brilhantes tomadas de Dovjenko para justificar o entusiasmo com que se faz uso gratuito da montagem intercalada no cinema moderno. Faz-se com que alguém caia na água, e em seguida, por assim dizer, "Masha está olhando, à procura". Em geral, não há a menor necessidade de recorrer a tais expedientes; tais tomadas parecem ser um remanescente da poética do cinema mudo. Uma convenção imposta pela necessidade passou a ser uma ideia preconcebida, um clichê (Tarkovski 1998, .81).
O exemplo mostra que ao se render à pregnância da imagem-clichê, o cineasta demostra obsolescência no uso da linguagem cinematográfica. No nível da montagem dos planos fílmicos,
para evocar para o espectador, na ausência de qualquer outra indicação, uma emboscada próxima armada pelos índios” (Aumont et al. 1995, 118). À presença de eventos presumidos e inferidos, os autores chamam de efeito-gênero, sendo esses responsáveis
Um plano pode ser definido
como o registro de um instante entre o ligar e o desligar da câmera filmadora ou ainda a menor
na cena seguinte de um filme, pelo modo como o plano imediatamente anterior enunciou a sequência. Entendendo que a montagem confere unidade aos planos do filme, ordenando a narrativa, seria correto afirmar que este é um processo que, inevitavelmente, recorrerá a clichês semânticos, no intuito de orientar e/ou induzir a significação do filme.
do
verossímil
Esse efeito-gênero tem dupla incidência. Em primeiro lugar, permite, pela permanência de um mesmo referente diegético e pela recorrência de cenas ‘típicas’, consolidar o verossímil de filme em filme. No western, o código de honra do herói ou a maneira de agir dos índios parecem verossímeis porque, de um lado, são fixos (durante um certo período, os filmes desse gênero conhecem apenas um código de honra e um comportamento para os índios) e, por outro, porque são ritualmente repetidos, reconduzidos de filme em filme. [...] O efeito-gênero permite, em seguida, estabelecer um verossímil próprio de um gênero em particular. Cada gênero tem seu verossímil: o do western não é o da comédia musical ou o do filme policial (Aumont et al. 1995, 147).
Contudo,
os
autores
advertem
que
o
verossímil de um gênero é suscetível de evolução em alguma medida, desde que não subverta por completo as convenções do gênero.
unidade narrativa de um filme. Quase todo espectador, algum dia, já foi capaz de deduzir o que iria acontecer
manutenção
necessário à coesão.
sugiro que os clichês mais recorrentes são de natureza semântica.
pela
No nível narrativo, identifico a incidência de clichês narrativos na estrutura dramática. O filósofo grego Aristóteles (384 a. C- 322 a. C) é considerado o primeiro a se ocupar da estrutura de um drama. Em sua obra Poética, dedicou-se a nomear e descrever cada um dos elementos presentes na tragédia, apontando o que visar e evitar na composição das fábulas.
Toda tragédia tem um enredo e um desfecho; fatos passados fora da peça e alguns ocorridos dentro constituem o enredo; o restante é o desfecho. Entendo por enredo o que vai do início até aquela parte que é a última antes da mudança para a ventura ou desdita, e por desfecho o que vai do começo da mudança até o final (Aristóteles XVIII 1996 48).
No que se refere aos enredos de ficção, costuma-se dizer que são sempre os mesmos, apenas contados de forma diferente. “Existem apenas duas ou três histórias humanas, e elas vão se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem acontecido antes” (Cather apud Vogler 2006, 47). Christopher
A estrutura dramática proposta por Aristóteles sugere que há um ponto de virada na trama, a partir do qual tem início o desfecho que segue até a resolução final. É um esquema que contempla mais ou menos
o
seguinte:
(motivação),
ele
o
herói
tem
um
objetivo
parte
para
alcançá-lo
(ação),
Vogler oferece um guia prático para o que ele chama de a Jornada do Escritor, alusão ao livro O herói de mil faces, de Joseph Campbell, no qual este descreve o mito do herói e sua jornada, tema persistente tanto na tradição oral, quanto na literatura e nas mais diversas culturas e épocas.
entretanto, algo se interpõe como um empecilho (conflito). Este tem sido o esquema seminal das tramas,
desde
hollywoodiano,
a por
Grécia
Antiga.
exemplo,
O
cinema
notabilizou-se
pela
criação de fórmulas para contar histórias, bem como pela reprodução das mesmas. A lista de manuais de roteiro é extensa. O escritor americano Syd Field (2001) consagrou-se como guru dos roteiristas graças aos seus manuais de roteiro. Nessa mesma direção,
Em seu estudo sobre os mitos mundiais do herói, Campbell descobriu que todos eles, basicamente, são a mesma história, contada e recontada infinitas vezes, em diferentes variações. […] A Jornada do Herói é um conjunto de elementos extremamente persistente, que jorra sem cessar das mais profundas camadas da mente humana. Seus detalhes são diferentes em cada cultura, mas são fundamentalmente sempre iguais (Vogler 2006, 49).
Vogler
observa
que
o
pensamento
de
Robert McKee (2006) analisa, na obra Story, os
Campbell se assemelha às proposições do psicólogo
ingredientes de alguns filmes de sucesso.
suíço Carl G. Jung sobre os arquétipos, sendo estes
No
Brasil,
clichês
e
estereótipos
são
“personagens
ou
energias
que
se
repetem
considerados sinônimos e aqui faço uma distinção.
constantemente e que ocorrem nos sonhos de todas
Ainda tomando por parâmetro o processo tipográfico, a
as pessoas e nos mitos de todas as culturas” (Vogler
estereotipia é uma técnica entre várias para a
2006, 49). E acrescenta:
confecção de clichês e, talvez por ser muito utilizada, seu significado tornou-se equivalente ao seu uso. Percebo porém, que os estereótipos são um tipo de clichê arraigados na premissa do roteiro, isto é, na “moral da história”, na suposta mensagem que legam, bem como na composição dos personagens, que podem
tender
à caricatura. Há várias estudos
dedicados à analise de estereótipos no cinema, porém mais interessados nos aspectos sociológicos do uso desses clichês.
Jung sugeriu que esses arquétipos refletem aspectos diferentes da mente humana – que nossas personalidades se dividem nesses personagens, para desempenhar o drama de nossas vidas. Ele observou que existia uma notável correspondência entre as figuras que apareciam nos sonhos de seus pacientes e os arquétipos comuns da mitologia. Assim, levantou a hipótese de que ambos provêm de uma fonte comum mais profunda, o inconsciente coletivo da humanidade (Vogler 2006, 49).
Vogler
conclui
que
construídas
maior relevância, por parecer se tratar dos mais
Jornada do Herói são
profundos temores e desejos humanos. Contudo,
fascinantes, porque tratam de questões universais, tais
McLuhan considera ambos igualmente meios de
como: “Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou
recuperação do passado.
quando morrer? O que é bem e o que é mal? Como
provocador no texto, cujo objetivo parece ser o de
devo agir com o bem e o mal? Como será o amanhã?
desmistificar a ideia de arquétipo, como no trecho em
Para onde foi o ontem? Será que tem alguém lá em
que cita o crítico literário canadense Northrop Frye
cima?” (Vogler 2006, 49).
(1912-1991): arquétipo é “um símbolo, de costume
segundo o modelo da
histórias
É possível notar um tom
A jornada do herói segue mais ou menos o
uma imagem, que se repete com bastante frequência
seguinte modelo: o herói está no seu mundo, é
na literatura a ponto de ser reconhecido como um
chamado à aventura, recusa o chamado, encontra o
elemento da experiência literária de cada um como um
mentor, faz a travessia do primeiro limiar, passa por
todo” (Frye apud Mcluhan e Watson 1973, 142).
testes, encontra aliados e inimigos, aproxima-se da
McLuhan comenta a citação dizendo que esta é, em
“caverna oculta”, passa por provações, consegue
particular, a definição de arquétipo mais “anti-Jung”,
“apanhar a espada sagrada”, faz o caminho de volta,
justamente por “sugerir que os arquétipos são
enfrenta a morte e “renasce” e retorna com o “elixir”.
artefatos humanos produzidos por muita repetição –
Como afirma Vogler (2006, 70) “uma compreensão
em outras palavras, uma forma de clichê” (Mcluhan e
dessas forças é um dos elementos mais poderosos no
Watson 1973,142).
baú de truques de um moderno contador de histórias”.
Na obra Da imagem ao clichê, do clichê à
Truques esses, vale dizer, repetidamente utilizados no
imagem, Rodrigo Guerón recupera um conceito de
cinema, este que há mais de um século tem fabricado
clichê formulado pelo filósofo Gilles Deleuze, que pode
imagens que povoam o imaginário de muita gente.
indicar uma outra compreensão do termo:
Para usar uma definição de Edgar Morin sobre o imaginário: “Entramos en el reino de lo imaginario cuando las aspiraciones, los deseos, y sus negativos, los temores y terrores, llevan y modelan la imagen para ordenar segun su lógica los sueños, mitos, religiones, creencias, literaturas, concretamente todas las ficciones” (Morin 2001, 23). Assim arquetípicas
como que
os
povoam
clichês, nosso
as
imagens
imaginário
Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável demais, para nos inspirar resignação quando nos é horrível, nos fazer assimilar quando é belo demais. Notemos a este respeito que mesmo as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando já não se sabe o que dizer: são esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê. Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa (Deleuze apud Guéron 2011, 14).
ou
Guéron (2011) sustenta que o clichê é parte
inconsciente coletivo se assemelham a estruturas
fundamental da nossa experiência cotidiana do real,
replicadoras e pregnantes. O teórico canadense
uma vez que a constitui, e apesar de aparecer no
Marshall McLuhan
publicou, em 1973, a obra Do
cinema de forma privilegiada, não é exclusividade do
clichê ao arquétipo, na qual analisa que o clichê
cinema ou de outros mecanismos de produção de
passou a ser vinculado ao arcaico, enquanto o
imagens. Entretanto, essa “imagem sensório-motora”
arquétipo, ao mágico, o que conferiu ao segundo uma
que nos acalenta e protege diante do mundo, também
reflete que o clichê é uma imagem esquemática que
nos aprisiona.
se assemelha a uma metáfora e pode condicionar nosso comportamento, em função de seu caráter
Pretendemos mostrar que o clichê será uma espécie de imagem-lei ou imagem-moral: imagem que vai funcionar como um índice determinador e padronizador de valor. Mostraremos ainda que, como expressão da moral, o clichê é também uma operação de poder: poder que opera à medida que se instala nos corpos, não só paralisando-os e atemorizando-os, mas fazendo-os perceber, sentir, agir, desejar, imaginar e sonhar dentro de determinados limites e direções (Guéron 2011, 25).
moralizante.
Guéron (1995) dedica-se a explorar o
conceito de clichê formulado por Deleuze, indicando que
o
clichê
ao
funcionar
como
um
índice
determinador e padronizador de valor, impõe-se como um operador de poder. As categorias elaboradas por Deleuze para sedimentar o que denominava de imagem-tempo rompe com o cinema narrativo. Por essa via, a proposição que faço de clichês narrativos seria em si
Para
Guéron
(2011)
não
é
possível
compreender o cinema como uma potência do real sem analisar a questão do clichê e não há imitação (mimese) no cinema simplesmente porque o real não pode ser reproduzido em si mesmo, ele tem de ser reinventado, recriado. “Os cineastas começam a perceber que é saindo em busca do lugar-limite, onde os sentidos se fecham num mundo sem saída para forçá-los a se abrir em outras perspectivas, que os clichês são desconstruídos” (Guéron 2011, 24).
mesma uma redundância, visto que a lógica narrativa, na perspectiva deleuziana, já é um clichê.
Em
oposição à representação indireta do tempo, próprio do que Deleuze chama de imagem-movimento e suas leis
(ou
clichês)
de
associação,
contiguidade,
semelhança, contraste e oposição; o filósofo propõe que na imagem-tempo é o movimento que se subordina ao tempo (pensamento). Decorreria daí a possibilidade do cinema manejar imagens puras, não mais
preestabelecidas
pela
mente
humana
e
Os clichês podem ser desconstruídos? A esta
representadas no cinema, mas originadas no e pelo
questão provocada pelo deleuziano Guéron (2011)
cinema, como se o filme fosse a materialidade do
corrobora o próprio Deleuze (2005) dizendo que é
“pensamento do cinema”.
preciso arrancar dos clichês uma verdadeira imagem,
O chamado cinema moderno ou cinema novo
sem metáforas. Não desconsidero o caráter inspirador
experimentou
da visão de Deleuze, assim como a de Tarkovski,
cinematográfica convencional, o que por vezes revelou
sobre o processo de criar, contudo, considero a
um acentuado niilismo frente a todo e qualquer modo
pretensão de verdade uma mística que pode mais
narrativo de cinema. A busca por “imagens puras e
limitar do que abrir os horizontes do artista.
verdadeiras” norteou o processo criativo de diversos
Considerações finais
o
rompimento
com
a
linguagem
cineastas, conferindo uma inflexão especial ao tema da originalidade. O que revelou ser esta uma perspectiva essencialista e mais preocupada em
O clichê no cinema tem sido explorado por alguns teóricos e seu aspecto de repetição é o que mais encontra consenso. Na obra A Imagem-Tempo (2005), lançada em 1985, o filósofo Gilles Deluze
encontrar a gênese do “mal” na linguagem, isto é, o clichê. Ora, não se denuncia o artifício da linguagem, valendo-se da própria linguagem para fazê-lo, daí a
negação do cinema como linguagem. A meu ver, tal
no contexto da encenação, da montagem ou da
negação garante a coerência do argumento, apesar da
estrutura dramática, a imagem-clichê é o dado
sua insuficiência de fato.
aparente de uma operação mental que conjura o que é
Tarkovski (1998), por exemplo, parece não admitir o artifício mesmo da criação de imagens, da fabulação,
antes
porém,
confere
ao
artista
reconhecido e o transfigura em reconhecível. A
opção
pelo
termo
pregnância
para
a
caracterizar um dos atributos do clichê, deve-se a uma
capacidade de revelar o “incriado” e, por isso, o belo e
maior precisão no seu sentido, visto que denota o
verdadeiro da imagem. Se a premissa do cineasta
poder que algo tem de impregnar a mente. Os clichês
russo evoca uma liberdade de criação sem limites, tão
impregnam, não simplesmente permanecem. Admito
necessária ao artista, por vezes pode levar a efeito
que parecem insondáveis os motivos pelos quais
contrário, ao pressupor a ausência de um repertório
algumas imagens reverberam e deixam marcas
simbólico que medeia as relações humanas e dá
indeléveis em nossa mente.
forma ao mundo por meio da linguagem. Destaco que o signo não é algo que se sobrepõe ao objeto como um adereço, é antes um modo de acessar o objeto, dotando-o de sentido e, portanto, trazendo-o para o mundo da linguagem. A imagem fílmica, a despeito da pretensão de verdade de alguns cineastas, não é pois o registro transparente do real, mas um recorte do mundo que “ganha outra vida” no mundo da linguagem do cinema. Podemos pensar, e convém que seja assim,
Um cliché será pois um tropo [figura de linguagem ou figura de estilo] tornado imagem. E enquanto imagem, afirma-se como um todo uno. Imprime-se na retina das nossas mentes como um dado instantâneo, sem dar espaço nem tempo a uma reflexão. Seduz e penetra pela sua simplicidade. Tem uma perfeição que nos faz reféns da sua forma, com a mesma força das formas elementares explicadas pela teoria da Gestalt. Também no cinema e na vida, a força do cliché está nessa psicologia da forma simples, numa gestalt do pensamento. A forma impõe-se diante dos nossos olhos e do nosso cérebro como modo de percepção e compreensão (Areal 2011, 8)
que a linguagem existe no plural e que sendo uma convenção é passível de mudanças no tempo e em contextos. Areal (2011) até sugere que os próprios clichês sofrem variações e adaptações, tal qual as figuras de estilo (tropo) que reúnem em si “imagem, ideia e emoção”. Na tentativa de tipificar os clichês, observo os limites da classificação aqui proposta em vista da impossibilidade de um delineamento preciso do “tipo”. O que seria o específico de um clichê formal ou
O argumento de Tarkovski sobre o mérito da imagem artística por oposição ao clichê é de que “a verdadeira imagem artística fundamenta-se sempre numa ligação orgânica entre ideia e forma” (1998, 26) na mesma direção é a assertiva de Areal para definir a potência da figura original, isto é, aquela que não se degenerou pelo uso: “A forma da figura define o modo de pensamento, tanto como a ideia que transporta” (Areal 2011, 9).
semântico ou narrativo? A aposta de Areal (2011) de que o clichê é um “embrião de signo” parece suficiente para definir essa imagem mental que se materializa em imagens visuais e sonoras, e que, mais que outras imagens, são pregnantes e replicantes. Ademais, seja
Ainda que as formulações aqui expostas sejam provisórias e carentes de uma confrontação empírica mais sistemática, observo que a criação de roteiros, além de demandarem o domínio técnico da dramaturgia e o domínio formal da narrativa fílmica,
são poéticas mediadas por um repertório simbólico presente no imaginário, os quais são recuperados no ato de fabular. As primeiras imagens do filme são pensadas
no
roteiro.
Entretanto,
encerrado
em
estruturas dramáticas lógicas e esquemáticas e em textos com regras de formatação rígidas, o roteiro nasce como uma bula, uma prescrição. É fato que o cinema narrativo não prescinde do roteiro, mas talvez a recuperação do sentido de fabulação reserve um lugar
para
o
acaso,
a
espontaneidade,
a
Areal, Leonor. Para uma teoria do clichê. 2011 Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Disponível em: Acedido em 13.05.2014. Aristóteles. Poética. 1996. São Paulo: Nova Cultura. Coleção: Os pensadores. Aumont, Jacques. A imagem. 2005. Campinas: Papirus, 10ª ed. Aumont, Jacques; Marie, Michel. 2004. A análise do filme. Lisboa: Texto e Grafia. Aumont, Jacques; Bergala, Alain; Marie, Michel; Vernet, Marc. 1995. A estética do filme. Tradução: Marina Appenzeller. Campinas – SP: Papirus.
imprevisibilidade e alguma imprecisão. Por fim, destaco que a busca pelo novo não é uma
questão
estritamente
estética,
mas
uma
aspiração que nos coloca em movimento rumo a outros horizontes possíveis, porém nunca se parte sem bagagens. É de se imaginar que a novidade de hoje pode se tornar o clichê de amanhã, ou ainda, que o clichê de hoje poderá estar “reconfigurado” na
Benjamin, Walter. 1996. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, , 10ª ed. Blackmore, Susan. 2008. Susan Blackmore on memes and "temes". TED. Disponível em: Acedido em 01 de junho de 2012. Bordwell, David. 1996. La narración em el cine de ficción. Barcelona: Paidós.
novidade de amanhã.
Notas finais
BordwellL, David; Thompson, Kristin. 2013. A arte do cinema: Uma introdução. Tradução: Roberta Gregoli. – Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo, SP: Editora da USP.
[1] Refiro-me aqui ao conceito de símbolo na acepção de Peirce. Quando a relação do signo com o seu objeto é dada por convenção, tal signo é um símbolo (Santaella, 2004. Assim, quero dizer que há gestos que como signos são simbólicos porque representam emoções e intenções que são reconhecidas pelo público).
Brasil, Giba Assis. 2008. Clichê. In: Blog de Giba Assis Brasil, 2008. Disponível em http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/giba-assisbrasil/clich%C3%AAs Acedido em 29 de setembro de 2012.
[2] O autor se refere ao Cinema Moderno, classificação que compreende o movimento surgido no período entre guerras e que se consolidou após a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), cuja proposta buscou romper certos paradigmas temáticos e estéticos, renovando a linguagem cinematográfica, tais como o Neo-realismo Italiano, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo Brasileiro (Xavier 2005; Mascarello, 2006).
Dawkins, Richard. 1993. El gen egoísta : las bases biológicas de nuestra conducta. Salvat. PDF Disponível em: Acedido em 10 de agosto de 2013.
[3] Areal observa que o clichê associa três polaridades triangularmente: forma, sentido e emoção (Areal 2011)
Fernandes, Raul Miguel Rosado (ed.). 1986. Tradado da imitação – Dionísio de Halicarnasso. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos das Universidades.
Bibliografia
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Albert, Robert S; Runco, Mark A. 2006. A history of research on creativity. In: Sternberg, Robert. J. (Ed.) Handbook of creativity. New York: Cambridge University Press.
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Deleuze, Gilles. 2005. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense.
Lubart, Todd. 2007. Psicologia da criatividade. Porto Alegre: Artmed. Jullier, Laurent & Marie, Michel. 2009. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac. Mckee, Robert. 2006. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte & Letra.. Mcluhan, Marshall & Watson, Wilfred. 1973. Do clichê ao arquétipo. Rio de Janeiro: Record. Mascarello, Fernando (org.). 2006. História do cinema mundial. Campinas: Papirus. Morin, Edgar. 2001. El cine o el hombre imaginario. Barcelona: Paidós. Santaella, Lúcia. 2004. O que é semiótica?. São Paulo: Brasiliense. Ostrower, Fayga. 2013. Campinas: Ed. Unicamp.
Acasos
e
criação
artística.
Recuero, Raquel. 2006. Memes e dinâmicas sociais em weblogs: informação, capital social e interação em redes sociais na Internet. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de 2006. Disponível em . Acedido em 10 de agosto de 2133. Tarkovski, Andrei. 1998. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes. Vogler, Christopher. 2006. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Xavier, Ismail. 2005. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. São Paulo: Paz e Terra.
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