Clínica-política e coragem da verdade: direitos e resistência

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Clinical Psychology, Political Psychology
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LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

Clínica-política e coragem da verdade: direitos e resistência Clinic policy and courage of truth: rights and resistance Política de la Clínica y el coraje de la verdad: los derechos y la resistência

Flávia Cristina Silveira Lemos Dolores Galindo Roberto Duarte Santana Nascimento Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

RESUMO: Este artigo propõe uma análise da clínica política como um dispositivo crítico do presente, na medida em que possibilita problematizar os acontecimentos e agir concomitantemente em que se pensa. Busca-se abordar um fazer baseado em uma atitude ética e histórica, em que a vida é movida no tempo e contra o tempo. Uma estética da existência é articulada a uma prática política que não se restringe à soberania jurídica dos direitos de forma legalista e nem às especialidades em contratos de reducionismos de algumas propostas de tratamentos médicos e psicológicos liberais. Uma atitude crítica se coloca na e com a clínica política e visamos falar algumas palavras da mesma como experimentação da atualidade em que vivemos. Não se trata de anular e/ou desqualificar as leis, os contratos jurídicos e psicoterapêuticos e os tratamentos médicos, buscamos não nos limitar aos mesmos como tática de invenção de novos possíveis. Palavras-chave: Clínica Política; Direitos; Ética; Estética.

ABSTRACT: This article proposes an analysis of clinical policy as a critical device of the present, in that it makes possible to question the events and act concurrently as it thinks. Seeks to address a do based on ethical and historical attitude in life is moved in time and against time. An esthetics of existence is linked to a political practice that is not restricted to the legal rights of sovereignty in a legalistic way nor consultants in the reductionism of some proposals of medical and psychological treatments liberal contracts. A critical attitude stands in the clinical and policy and aim to speak a few words in the same trial as the present in which we live. This is not void and / or disqualify the laws, legal contracts and psychotherapeutic and medical treatments, we seek not only limit ourselves to the same tactics as the invention of new potential. Keywords: Policy Clinic; Rights; Ethics; Esthetics.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

RESUMEN: En este artículo se propone un análisis de la política clínica como dispositivo crítico de la actualidad, en que hace posible cuestionar los hechos y actuar al mismo tiempo como se piensa. Trata de abordar un hacer sobre la base de la actitud ética e histórica en la vida se mueve en el tiempo y contra el tiempo. Una estética de la existencia está ligada a una práctica política que no se restringe a los derechos legales de la soberanía de una manera legalista ni consultores en el reduccionismo de algunas propuestas de los tratamientos médicos y psicológicos contratos liberales. Una actitud crítica se encuentra en la política clínica y objetivo y hablar algunas palabras en el mismo juicio que el actual en el que vivimos. Esto no es nulo y / o descalificar a las leyes, contratos legales y los tratamientos psicoterapéuticos y médicos, buscamos no sólo nos limitamos a las mismas tácticas como la invención de un nuevo potencial. Palabras clave: Clínica de Política; Derechos; Ética; Estética.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

A falta, a penúria, a fome, uma sociedade, ela pode codificá-los. O que ela não pode codificar é quando essa coisa aparece, onde ela se diz: quem são esses aí? Então, em um primeiro momento, o aparelho repressivo se põe em movimento, se não os pode codificar, tenta-se aniquilá-los. Em um segundo tempo, tenta-se encontrar novos axiomas que permitam recodificá-los por bem ou por mal (Deleuze, ano, p.).

Introdução Este artigo visa uma perspectiva de clínica política como dispositivo de testemunho e de escuta crítica do presente, em uma ética da existência que ultrapassa os psicologismos e os espaços de consultórios e atendimentos psicoterapêuticos tradicionais. Busca-se deslocar a clínica para uma análise do tempo presente, em seus acontecimentos políticos e históricos e contribuir, assim, com outras dimensões deste dispositivo de problematização e prática social. Em que aspectos a clínica política seria uma via para a produção de possíveis, de outras existências frente às violações de direitos e violências cotidianas? Fazer valer o dizer como risco dos que enfrentam os fortes em busca de justiça pode ser um modo de fabricar um ethos, uma estética e uma política de governo de si e dos outros em que a clínica seja mais do que a escuta tradicional. Uma clínica arriscada que não exime dos efeitos perversos dos que se subjetivam como bajuladores, como exploradores, como violentadores, como pistoleiros e integrantes de corporações baseadas no terror. Ter a coragem de “gritar os próprios problemas” ou “os verdadeiros problemas”, num sentido bergsoniano, ou seja, se referindo àqueles problemas que dizem respeito à nossa vida de fato, aos problemas que nos atormentam em cada empreitada, e à dignificação concreta de nossa existência e elaborar um trabalho sobre nós mesmos na relação com a cidade, com os outros, operar a parresía como ontologia histórica desse presente em que vivemos. A clínica

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política é uma contribuição marcante da psicologia social, comunitária, clínica, institucional e educacional neste intercâmbio em suas várias atividades. Esta clínica é uma experimentação e invenção, permanentemente atualizada por grupos e coletivos que tentam resistir aos modelos tecnicistas de aplicação da psicologia aos contextos de cuidado, na pesquisa-intervenção e nas ações de extensão e como dispositivo para pensar o presente em que vivemos fora de parâmetros das organizações e contratos profissionais dos atendimentos com especialistas. Exercício clínico em intercessão com os saberes da educação popular, dos movimentos sociais, de resistências à tutela, de trabalhadores e grupos que sofreram vitimizações variadas. Forjamos com algumas ferramentas de Deleuze e Guattari, da genealogia e arqueologia de Foucault, das análises de Hardt e Negri uma marca da crítica pela experimentação de existências e pela “ética dos encontros”, que deslocamos para o dispositivo da clínica política. Tomamos as noções de ética e de encontro aqui conforme o que nos ensina Gilles Deleuze ao longo de diferentes obras. Com efeito, segundo Deleuze, a composição de nossa vida é uma composição de encontros. Somos atravessados por encontros, por todos os lados, por todas as direções. Quer expostos à coletividade pública, como nos passeios, nas reuniões, nos amores, quer retraídos em nossa solidão, no escuro de um quarto ou no topo de uma montanha, não cessamos de encontrar seres, coisas, ideias, de com eles tecer novas relações. Quando Deleuze fala de Godard, por exemplo, sentimos isso que, de um lado, expressa o encontro de alguém com um artista e sua obra enquanto encontro com o fora – e não importa aqui se se trata do artista em pessoa ou de seus filmes ou ainda de um grupo de estudiosos e admiradores seus, pois, independente da natureza dos termos, um encontro com o exterior se faz. E, além disso, sentimos em sua fala que os encontros não se reduzem apenas à mensuração da variabilidade empírica ou extensiva dos seres, pois mesmo na solidão pode

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haver uma proliferação de encontros, são as solidões povoadas, lugares de conexões, de mudanças de gradientes, de criação de conexões. Não há como alhear-se à caótica dos encontros. No meio do caminho, há sempre algo que, esperada ou inesperadamente, nos acerta em cheio. Pode ser, assim, algo trivial, encontros que nos absorvem, que nos enredam, mas que estão dentro de uma gama conhecida de possibilidades: o encontro com alguém na rua, com a burocracia, com o lugar-comum da publicidade, por exemplo. Mas também pode ser um encontro no qual, entre as coisas reconhecíveis, familiares à nossa consciência, vibra uma força que nos acerta, algo que nos espanta, que nos encanta ou nos apavora, algo que desmonta nosso quadro de referências e faz irromper, na experiência ordinária, uma virtualidade extraordinária, vida que irrompe com força e nos pega desprevenidos. Somos, assim, emaranhados passageiros de relações. Dito de outro modo, mudamos de estado conforme somos tomados por novas relações, conforme transversalizamos de uma para outra. Ou ainda: do ponto de vista do que Deleuze chama de “encontros fundamentais” nós não somente nos confundimos com as tranversalizações do díspar, que cria relações em relações, mas também somos a transitoriedade delas, seu fluir intempestivo. Efeitos dessa caótica de determinações, estamos sempre sendo na multiplicidade das relações (Cf. NASCIMENTO, 2012, p. 23, 24, 35). Do mesmo modo, a ideia de “ética” não deve ser entendida neste texto conforme a leitura costumeira que muitas vezes a confunde com a ideia de Moral. Ainda seguindo o pensamento deleuziano, é preciso atentar à inspiração espinosana deste filósofo quando define ética não como um conjunto de valores vertical e previamente estabelecidos os quais devemos obedecer irrestritamente, mas sim entendermos ética como a variedade de avaliações práticas a respeito de nosso poder de sentir e de pensar diferentemente a realidade na qual estamos mergulhados e na qual nos constituímos em cada encontro problemático de nossa existência.

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De fato, os encontros provocam uma variação de nossa “força de existir”; neles, tornamo-nos mais ou menos capazes de perceber e de pensar diferentemente, mais ou menos em sintonia com a complexidade de nossas vidas. É que não é qualquer encontro que aumenta nossa potência de existir. O que queremos dizer é que certas variações, enquanto reconfiguração e criação de novas relações, podem nos enredar de tal modo e transformar tanto nossas relações anteriores, que vemos diminuída nossa força de sentir e, por consequência, de perceber e de pensar. Alimento ou veneno, não é sempre que os encontros com os outros seres e forças com os quais nos deparamos geram o aumento de nossa potência de vida. Portanto, a ética no sentido deleuziano em que a entendemos aqui, envolve um trabalho constante de avaliação e cuidado dos encontros. Pois não cessamos de entrar em novas relações: escrevemos coletivamente este texto e estamos inseridos numa determinada relação; de repente alguém se depara com um novo pensamento e é tomado por um outro ritmo de questionamento que faz variar o estado de escrita anterior; em seguida nos deparamos com as lutas até então caladas deste ou daquele coletivo social e já não podemos voltar da mesma maneira à escrita, pois sente-se diferentemente agora... Em tudo isso há encontros com diferenças, que geram aumentos e diminuições de potência, alegrias e tristezas. As temáticas envolvem problemas éticos, portanto, no sentido de que elas são vitais, ou seja, envolvem leis físico-químicas, relações ecológicas, dispositivos políticos, encontros singulares (NASCIMENTO, 2012, p. 80). E tudo isso não costuma ser tão simples, ao contrário: Essa seleção é muito dura, muito difícil. É que as alegrias e as tristezas, os aumentos e as diminuições, os esclarecimentos e os assombreamentos costumam ser ambíguos, parciais, cambiantes, misturados uns aos outros. E sobretudo muitos são os que só podem assentar seu Poder na tristeza e na aflição, na diminuição de potência dos outros, no assombreamento do mundo: fingem que a tristeza é uma promessa de alegria e já uma alegria por si mesma [...] A seleção

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dos signos ou dos afectos como primeira condição para o nascimento do conceito não implica, pois, só o esforço pessoal que cada um deve fazer sobre si mesmo (Razão), mas uma luta passional, um combate afectivo inexpiável em que se corre risco de vida, onde os signos afrontam os signos e os afectos se entrechocam com os afectos, para que um pouco de alegria seja salva, fazendo-nos sair da sombra e mudar de gênero. Os gritos da linguagem dos signos marcam essa luta das paixões, das alegrias e das tristezas, dos aumentos e diminuições de potência (DELEUZE, 1993, p. 180 [tr. 163]).

Deleuze, ao lado de alguns de seus aliados conceituais, tais como Foucault e Guattari, nota um efeito paradoxal nas malhas dos poderes que nos afligem, a saber: ao mesmo tempo em que esses poderes visam mais e mais a imanência criativa da vida a fim de capitalizá-la, à medida que certas Potências ampliam suas estratégias, tornando-se mais flexível e mais eficaz em produzir movimentos subjetivos que reiteram assujeitamentos e desigualdades, mais uma outra face da realidade se expressa, a saber, mais a vida se desdobra como multiplicidade não totalizável e cria linhas de fuga singulares. Quanto mais o poder sobre corpos e mentes ganha terreno, mais as resistências mostram-se vivas e alternativas. O avanço do controle biopolítico implica, cada vez mais claramente, lidar com a resistência da “vida no sentido mais pleno” e da “política no sentido mais próprio”. Michael Hardt e Toni Negri, no livro Império, mostram-nos que a ideia de biopolítica desdobra-se hoje em dia em novos sentidos. Antes, biopolítica era pensada a partir da perspectiva do poder, das grandes Potências, mas à medida que o poder avança, esse termo se libera em uma criatividade enunciativa, ganhando um novo sentido, um contra-fluxo ao sentido tradicional. Assim, biopolítica, no uso que fazem estes autores, torna-se algo a ser pensado do ponto de vista da potência da vida. A cada investida do poder responde uma potência biopolítica de resistência, de criação de novos caminhos (Cf. HARDT; NEGRI, 2005, passim). Em outras palavras, se é possível

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escapar ao controle das grandes Potências que organizam a vida exclusivamente em função de uma lógica de mercado, se a vida cria sempre novas linhas de resistência, é porque há uma potência criativa ou transformacional própria ao acaso dos encontros dos corpos, isto é, própria à a uma vida ainda não domesticada (Cf. NASCIMENTO, 2012, p. 69, 70). Cardoso Jr. define bem essa perspectiva, quando ele diz: no fundo, é como se Foucault [e outros autores] nos segredasse: perceba essa violência, essa artimanha, essa crueldade meticulosamente urdida... bem, apesar disso, se pode ir adiante, algo resiste por nós (CARDOSO JR, 2005, p. 346, aposto nosso). Pensar com estes movimentos e encontros é poder deslocar as forças, apostar na potência inventiva da vida e nas insurgências contra os medos e intimidações que tentam calar os movimentos garantistas de direitos em suas demandas e em suas revoltas diante da desproteção, das medicalizações, das violências e criminalizações que sofrem recorrentemente em meio às tentativas de enfrentar e agir por contrapoderes em contextos de exploração do trabalho, de ocupação da terra e de tetos, da crítica às remoções, da defesa da floresta e do ambiente, da demanda por demarcação da terra, da batalha pela garantia de políticas públicas, de tortura e ameaças de lideranças de movimentos sociais, pela busca de reconhecimento cultural e contra as capturas da sociedade punitiva, de segurança e medicalizadora das existências. Operar com a coragem da verdade e com a clínica política implica em pensar e agir no presente, na imanência das lutas que se fazem e são tecidas em meio às tensões e as resistências aos intoleráveis da sociedade em que vivemos. Forjar a vida diante da sobrevida das dores, dos medos e das ameaças é um desafio e uma coragem daqueles que ousam afirmar posições éticas, estéticas e políticas, fazendo valer garantias de direitos na produção da diferença.

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No curso O governo de si e dos Outros, Michel Foucault (2010) nos deixou importante legado a respeito das lutas do presente pela parresía. Na filosofia antiga, na Grécia e em Roma, o cuidado de si e dos outros era realizado pela prática da coragem de dizer a verdade e de viver o que se dizia. Se preparar para lutar por meio de exercícios físicos, pelas dietas, pela amizade filosófica, pela escrita, pela erótica, por práticas políticas, éticas e estilísticas da existência implicava em efetuar o governo de si na imanência do governo dos outros, em que cuidar de si não poderia ocorrer sem o cuidado da cidade. Em meio às tentativas de silenciar os parresiastas, estes não temiam e nem recuavam mesmo que fossem mortos e punidos com o ostracismo político. Viver sem querer fazer oratórias hipócritas, destituídas de vivências do que de fato se dizia, sem crítica e tutelado por interesses e por persuasões interesseiras era algo rejeitado e problematizado pelos parresiastas. Agamben (2011), no livro O que resta de Auwchivitz, ressalta como os sobreviventes do totalitarismo nazista dos campos de concentração só encontraram forças de viver criticando esta condição de sobrevivente, pelo uso da memória como testemunho diante das atrocidades a que foram submetidos. A escrita foi um dos modos de efetuar a coragem de fazer sentido na vida após esta experiência trágica. Agamben cita Primo Levi e como escrever era um exercício de resistência à culpa, ao medo, às dores de ser sobrevivente. Sair da condição vitimizante reativa da sobrevida para a de alguém que testemunhou os horrores do totalitarismo possibilitou viver.  

Quando as práticas clínicas fazem aliança com os discursos e práticas jurídicas em

Direitos Humanos, frequentemente, são capturadas em prol da produção de evidências. Para produzir discursos legítimos, as práticas clínicas invocam operações de codificação de fluxos, diminuição de intensidades. Afinal, é necessária a verbalização daquilo que pode ser procedimental, vinculante, encaminhável. Em nome da proteção à vida, incorre-se no risco de

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negar a potência da diferença. Nomeemos políticas da clínica o estabelecimento de quaisquer que sejam princípios programáticos que visem reger o trabalho aí efetuado. Assumamos que se há um programa é um antiprograma vazio de princípios pré-definidos; aberto a proposições, a inventar o que está em jogo. Numa clínica voltada para o reconhecimento das violações aos direitos humanos é preciso vincular fatos, diminuir a margem do incidental, conhecer e redistribuir o instrumental jurídico numa partilha do sensível e do inteligível que recorta dizibilidades e visibilidades. Corre-se o risco de uma clínica programática. Necessitamos pensá-la de outra maneira. Caso contrário, produziremos uma prática ou conjunto de práticas clínicas que atuam como dispositivos de polícia que atualizam políticas públicas que, como sabemos, constituem no mais das vezes o mínimo que se tornou tolerável diante de tantos intoleráveis. Ouvir relatos de violação de direitos e violências sofridas e potencializar uma clínica em que a atenção psicossocial ocorra juntamente com a produção de saberes, e com a organização de coletivos, que fazem de seus testemunhos de vida dispositivos de resistência no cuidado de si e dos outros. Ainda assim permanecem zonas não toleráveis do ponto de vista dos regimes de dizibilidade e visibilidade dos direitos que operem pela ética, mais que pelo legalismo. Os Direitos Humanos fazem parte de todo uma governamentalidade que emergiu como anteparo diante das grandes guerras do início do século XX. Junto com os Direitos Humanos emergiram, também, as instituições que responderiam por suas garantias, com destaque para os organismos multilateriais. Vivemos em meio a conflitos, cada vez mais dissipados, nos quais a forma da guerra cede a emergentes e atualização de já conhecidas formas de exercício do Racismo de Estado: vigilância continuada e miniaturizada mesmo junto àqueles que se visa deixar ou fazer morrer.

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Há muito para ver e ouvir, dizem-nos os aparatos de vigilância que, recentemente, redundaram em discussões tranasnacionais sobre espionagem de Estado. Torna-se premente, portanto, o exercício de práticas clínicas políticas que escutem e possam enunciar as insuficiências dos dispositivos dos quais dispõe para o encaminhamento das violações aos Direitos Humanos às quais, pretensamente, lhes caberia ouvir. Qual potência existe em escutar uma violação cujo reconhecimento terá que se dar pelo Estado Brasileiro e, apenas depois deste exercício, ser encaminhada para as organizações multilaterais que pretensamente nos resguardariram para assegurar garantias fundamentais? A lógica de garantia de Direitos Humanos é falha em seu modo de funcionamento, de encaminhamento e de reconhecimento. Dessa maneira, constitui um importante chamado à clínica política denunciar a violação que o próprio sistema multilateral de garantias de Direitos Humanos passou a exercer. O que significa constituir uma clínica que opera, sobretudo, para reconhecer violações aos Direitos Humanos? Os termos que compõe essse enunciado devem ser reenunciados. Como constituir práticas clínicas que não sejam reféns dos aparatos de proteção aos Direitos Humanos cujas bases estão em políticas de negação, dominação e extermínio seletivo? É preciso frisar que não se está propondo o descrédito nem abandono do exercício político. Ao contrário: uma clínica política é aquela que luta pela ampliação do acesso à política, ou seja, do direito a todos participarem e exercerem seu direito à política. Mais ainda: uma clínica política precisa atentar-se à necessidade de renovação das práticas políticas, ensejando mudanças que sejam tanto quantitativas como, sobretudo, qualitativas. No lugar de uma política viciada, excludente, que assegura práticas de sujeição e desigualdade social, propõe-se política que surja como efeito de uma micropolítica.

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E no que consiste esta micropolítica? Uma micropolítica se tece no esforço de pensar e problematizar, fora do quadro reinante de preconceitos e desigualdades, os problemas que nos afligem e que, via de regra, naturalizamos e reproduzimos; impedindo-nos de avaliar ética e politicamente, em função dos encontros que experimentamos ou somos impossibilitados de experimentar, se estamos aumentando ou diminuindo nossa potência de existir e nossa capacidade de devir outrem, ativando, ainda que em germe, outras formas de existir que não aquelas corolárias do senso comum. Em uma clínica atenta à política enquanto potência micropolítica, procura-se traçar resistências contra o intolerável em cada relação ou forma de poder, em cada totalização do senso comum, em cada comunicação massificadora, mesmo e, sobretudo aquelas que experimentamos em nós mesmos, que erigem em nós identidades poderosas e totalitárias, em detrimentos das miríades de subjetivações larvares que nascem e coexistem em nós como efeito de novas alianças intensivas com o mundo (Cf. NASCIMENTO, 2012, p. 150). É por tais razões que uma clínica política é também uma clínica propugna por uma ética e por uma estética. Por uma ética porque os modos de existência envolvem coletividades que se ligam não a modelos dados de antemão, mas à potência ou poder de sentir e perceber diferentemente em cada encontro (Cf. DELEUZE, 1969, p. 340). E por uma estética, porque os “estilos de vida” são efeitos de acontecimentos bio-histórico-sócio-mundiais que criam novos modos de sentir, de ver e de dizer, enfim, de habitar e construir o mundo. Em 1978, convidado a falar à Société Française de Philosophie, Foucault propõe que a governamentalização no Ocidente é acompanhada da formulação constante sobre como não ser governado de determinada maneira, “em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles”. Trata-se da arte de não ser de tal forma governado.

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A lógica institucional criada para garantia dos Direitos Humanos não deixa de ser, também, uma lógica perversa que prescreve modos de vida e toda uma dinâmica de reconhecimentos que passa pela tutela do estado ou pela reivindicação de uma cidania ativa que só pode ser enunciada de maneiras determinadas. Repete-se, sorrateiramente: de determinada maneira, apenas de determinada maneira serás ouvido. Vem, ensino-te a falar, Sensibilizo-te para fazer-se ouvir. Como produzir cotidianamente clínicas que ampliem os regimes do que é reconhecido como direitos humanos e que coloquem em xeque as alianças biopolíticas que pautam a dizibilidade. Aqui me parece que tocamos no problema central: será que precisamos ampliar os regimes do que é reconhecido como “direitos humanos” ou seria melhor diminuir nossa dependência dessa ideia abstrata em prol do mergulho na complexidade de cada caso problemático que nos assola aqui ou ali em nossa imanência, isto é, na variedade dos sistemas de forças pelos quais somos consciente ou inconscientemente atravessados? Afinal, quando tomamos a ideia de direitos humanos de forma abstrata não estamos contribuindo para omitir as nossas lutas e necessidades vitais e, com isso, facilitando nosso próprio controle? Parece-me que padecemos de excesso de escuta? Uma das potências da clínica política está em problematizar a ascendência do regime escuta-acolhimento- encaminhamento. Apoiando-nos em alguns apontamentos de aula de Deleuze ao final da década de 1970, “Esses aí” estão fora da dizibilidade e visibilidade do reconhecimento. Estão fora ainda que contra eles seja acionado, num primeiro momento, o aparato repressivo e num segundo momento tentar-se-ão recodificações por operações elásticas o suficiente para lográ-lo. Não há dúvidas sobre a importância de que nossas práticas clínicas se voltem ao reconhecimento de violações em direitos, contudo, igualmente é fundamental dizer que essa não constitui sua

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principal racionalidade se para isso estiver atrelada à adesão irretrista aos aparatos legais nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Como atentar para os movimentos táticos biopolíticos, para as estilísticas das existências e para as codifiçações/recodificações dos fluxos desejantes por axiomáticas que transitam no neoliberalismo à pistolagem? Como trabalhar por clínicas que evitem o decalque dos aparatos intitucionais e do chamado sistema de garantia de Direitos Humanos ainda que com eles faça aliança? Ao pensarmos, então, numa uma clínica política na Amazônia, talvez precisemos “sentir medo” se o medo puder acionar nossos fluxos desejantes para além do enunciável do ponto de vista das formas jurídicas. Buscamos produzir regimes de escuta, de olfato, de tato para aquilo que (ainda) não pode ser codificado; de práticas diante das quais operadores do Direito, das Psicologias reformistas e dos dispositivos de polícia dizem: “quem são esses aí?” Dizem: não entendemos o que falam, não entendemos a forma que adquirem as suas ações. Em, O governo de si e dos outros, Foucault (2010) ressalta que as governamentalidades operam em uma agonística, uma tensão de tentativas de governar as condutas uns dos outros. A brecha para a produção da liberdade é forjada nos entremeios e no jogo de lutar pela palavra, pelo uso das regras do jogo do ter voz própria com todos os riscos de fazê-lo. Neste curso, Foucault (2010) propôs a genealogia da modernidade como questão em que não defende um pertencimento a uma comunidade humana, mas ao presente em que vive. Pensar fora da menoridade e resistindo à tutela é conduzir-se por perguntas interrogantes dos acontecimentos do presente no que este nos inquieta e, em especial, pensar sem ser dirigido por outrem. Entretanto, Foucault alerta que muitos têm medo de andar com suas próprias pernas e caem pela covardia.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

O pensar não ocorre pela obediência e sim pela problematização das encomendas que nos são dirigidas para agirmos pela franqueza e coragem no cuidado de si que sempre pressupõe uma relação com os outros, na atitude crítica ética, estética e política do governo de si e dos outros, de acordo com Foucault (2010). Diferentemente de muitas psicoterapias e tecnologias de si modernas em que o cuidado de si foi reduzido apenas à cultura de si/conhecimento de si isolado do governo da cidade, a ontologia histórica do presente não pode acontecer separada do cuidado com os outros. Muitos movimentos sociais são silenciados ao tentar fazer valer a verdade, outros, se deixam persuadir pela oratória dos que fazem o uso privado da esfera pública. Na Amazônia, muitos povos foram exterminados e explorados por resistir ao jogo de bajulação e de dissimulação dos que buscam interesses apenas pessoais na vida pública. A parresía desvela a covardia, a hipocrisia e a cumplicidade dos que aceitam a impotência do medo e da intimidação, dos que matam e violam direitos, daqueles que extraem benefícios da persuasão, da oratória, da bajulação, sem dissimulação (Foucault, 2011). Muitos povos, grupos e pessoas foram ameaçados, mortos, criminalizados e medicalizados por ousarem lutar com a franqueza da palavra e sem deixar-se enredar pelas astúcias discursivas dos que visavam massacrá-los. Logo, fizeram parresía na medida em que o parresiasta “mesmo ameaçado de morte, ele levará sua tarefa até o fim, até seu último suspiro” (Foucault, 2011, p. 18). Lideranças de sindicatos rurais, integrantes do partido comunista, trabalhadores rurais, povos indígenas e ribeirinhos foram mortos, torturados e desapareceram no Pará, na Guerrilha do Araguaia durante a Ditadura Civil-Militar. Eles foram calados pela violência instrumental, seus filhos foram torturados, seus corpos desapareceram em rios e florestas. Em nome da defesa do território, da doutrina de segurança nacional, da lógica desenvolvimentista para a

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

Amazônia e da exploração dos recursos dessa região sem resistência, torturas e matanças eram práticas recorrentes. Visavam docilizar estes povos e silenciar qualquer revolta à ordem social prevista pelo Regime Militar e aos interesses econômicos da modernização capitalista que beneficiava poucos. Os que foram mortos e torturados ousaram arriscar a vida, falar a verdade e lutar corajosamente contra as injustiças desse período. A história dessas lutas está ganhando visibilidade, na atualidade, em que as comissões pela memória e verdade foram instituídas e passaram a contar outras versões questionadoras das oficiais a respeito da memória silenciada e calada pela dor e morte. Muitos dizem que não devemos mexer nesse passado próximo, que precisamos seguir em frente. Sim, é preciso seguir em diante, mas a clínica política do testemunho é fundamental para que esta página não seja virada da história e sim possa ser escrita e surja para fazer ranger o que foi impedido de circular no plano da ordem dos discursos e da coragem da verdade. Só é possível seguir após elaborar a dor deste passado e explicitar o que uma Ditadura foi capaz de fazer com os que questionavam o autoritarismo. Neste caso, lembrar é testemunhar a verdade em franqueza e lutar pela justiça. Abrir os arquivos da Ditadura, retirar placas e títulos de honra aos militares que torturaram e mataram; trocar os nomes de ruas e avenidas; alterar nomes de escolas e mudar os nomes de pontes é escrever outra história, em que nos lembremos dos que lutaram pelo dizer verdadeiro, dos que foram mortos pela coragem da verdade mesmo diante do terror na política. Assim, a parresía e a liberdade podem ser forjadas com o objetivo de fazer parar de sangrar a dor pelos mortos, desaparecidos, exilados e torturados.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

Memória e Verdade: direito para quem? Quem foram os atingidos? Quantos foram os torturados? Quem fomos os atingidos? Quantos fomos os torturados? Quem fomos e quem ainda somos os atingidos e torturados? Somos os nossos discursos, que produzem verdades e instituem nossos modos de existir. Verdades atravessadas pelas histórias que vão sendo contadas. Histórias que produzem presente. Presente, produtor de modos de ser, estar, saber e viver no mundo. Clínica-política que produz e transforma, onde é preciso desviar os olhos dos “objetos naturais” para perceber as práticas, bem datadas, que os objetivam e produzem uma certa política. A prática, assim, é sobretudo um trabalho que não é tomado apenas por um método, mas também por uma política – uma política do presente – que potencializa outras possibilidades de pensar, por considerar a história através de suas imanências, de um não esvaziamento de suas forças transformadoras. Que as verdades sejam potentes para reescrevermos nossa história. De um passado não tão distante e que, por vezes, se apresenta como presente. Que as memórias não nos traiam e não nos façam esquecer as torturas nossas de cada dia. Sim, nós sobrevivemos às torturas. Sim, as torturas também sobreviveram.

‘História’, palavra de origem grega que significa investigação, informação, é tratada aqui a partir do enfoque genealógico, presente na obra de Michel Foucault. Segundo Escobar (1984): “Uma história genealógica nem vertical nem horizontal, mas sim uma política e uma política já em suas práticas” (p. 13). História como potência que está a serviço de um fluxo de vida, em uma perspectiva que se preocupa em construir acontecimentos singulares que se entrecruzam formando redes. Tais práticas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio – mesmo que em determinados momentos pareçam cristalizadas –,

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

podendo ser quebradas, bifurcadas. Estão submetidas a derivações, pois o processo nunca está acabado, mas sempre se fazendo. Todas as linhas são de variação, pois sequer possuem coordenadas constantes que as fizessem possuir uma mesma trajetória. A clínica-politica orienta a intervenção revertendo o sentido tradicional de método, ou seja, não mais caminhar para alcançar metas pré-fixadas, mas à medida que se caminha, no percurso, traçar suas metas. Prescindir de regras já prontas e de objetivos previamente estabelecidos não significa agir sem direção, mas seguir pistas que orientam o percurso da intervenção, levando em consideração os efeitos do processo, tornando inseparáveis o conhecer e o fazer. “A intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência o que podemos designar como plano da experiência”. (PASSOS e BARROS, 2009, p. 17) Com Guattari (2004) a relação entre pesquisa, intervenção, clínica e política ganha destaque. E é por isso que ele propõe o conceito de transversalidade para problematizar os limites do setting clínico. Produzir uma clínica-política torna-se cada vez mais o trabalho de desestabilização do instituído, onde a operação de transversalização se apresenta num duplo registro. Por um lado, a clínica-política acolhe sujeitos dotados de histórias, de identidades, de verdades e memórias, e também um processo de subjetivação em curso que vai se realizando pelas frestas das formas, à medida que não se pensa num sujeito pronto e fechado, mas sim numa subjetividade indissociável da noção de produção contínua. Por outro lado, a clínicapolítica é um caso de transversalização à medida que se constitui como uma operação que se realiza na borda, na franja entre os processos de subjetivação que se passam na relação entre a clínica e o não clínico. Nesse sentido, o trabalho da clínica-política é a um só tempo o de produzir escutas, intervenções e criações de efeitos-subjetividade.

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A clínica-política opera por dispositivos, que não atuam de modo determinista. Não há termos de garantia que façam o dispositivo funcionar sempre do mesmo modo e produzir sempre os mesmos efeitos, pois as linhas que constituem os dispositivos se entrecruzam e se misturam a todo o momento. Assim, todo dispositivo se define pelo que detém em novidade e criatividade, pela sua capacidade de se transformar, por suas práticas na atualidade. Deste modo, o presente aqui não é tratado como algo que antecede o futuro e sucede o passado. Não se trata de um tempo linear e sucessivo, mas de um presente que coexiste junto a um passado e a um futuro, como uma atualidade em movimento. Segundo Kastrup (1997): “A atualidade traz certamente consigo o passado, certas configurações históricas caracterizadas pela regularidade. Mas é também na atualidade que tais regularidades são desestabilizadas e novidades são esboçadas, inclinando o presente na direção do futuro” (p.109). É na atualidade que se encontram as forças que bifurcam e fazem a diferença na história, apontando para o futuro. A atualidade, assim, configura um esboço, e não um desenho com contorno definido. E é neste esboço que se procura fazer da clínica-política uma ferramenta de intervenção, para produzir novas histórias que sirvam para repensar e refazer nosso presente, porque o problema não é somente entender o funcionamento de um dispositivo como produzido historicamente, mas, para além, entender como o presente é capaz de promover rachaduras nos estratos históricos estabelecidos e, assim, produzir novidades. Na Amazônia, quantas vidas testemunham os horrores dos grandes projetos desenvolvimentistas, da exploração sexual, das remoções forçadas, da destruição ambiental e do trabalho escravo, do tráfico de pessoas, do escalpelamento, das violências dos garimpos, da violência diante da luta pela ocupação das terras e demarcação de territórios indígenas e quilombolas? Quantos morreram lutando, foram criminalizados e medicalizados por

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efetuarem a crítica destas condições e ousarem gritar seus problemas, vivendo eticamente, esteticamente e no exercício político de ter a coragem de dizer o que tantos se recusavam por medo e intimidação? Ora, o parresiasta deve falar o insuportável e ser um interpelador; não deve se furtar a dizer o que as pessoas não querem ouvir; não pode ficar reservado. Sempre questiona e arrisca a si mesmo e também sua relação com o outro, pois pode sofrer ostracismos e retaliações, ser abandonado e rechaçado por dizer a verdade. A parresía implica a coragem de quem ouvir o parresiasta de aceitar a verdade ferina que lhe foi endereçada (Foucault, 2011). Em, A coragem da verdade, Foucault (2011) nos assinala que para dizer o que se pensa é preciso ter coragem, em uma relação de quem diz com quem ouve. Com efeito, a parresía é uma atitude e não uma profissão. O parresiasta fala em seu nome, não diz o futuro e nem interpreta, ele deixa algo a fazer com o que disse. A parresía se aproxima da clínica política no âmbito em que esta se faz clínica de testemunhos em nome próprio e solidariedade com as dores compartilhadas, que é apropriada para organizar novas lutas frente às violações de direitos sofridas.

Considerações finais Este artigo teve o objetivo de deslocar alguns saberes e poderes a respeito da clínica e ampliar seus vetores de possibilidade pela crítica do presente, efetuada na parresía, em especial, tentando traçar um paralelo entre esta atitude e a clínica política. Efetuamos uma escrita pautada na constituição de um campo ético e estético para problematizar os direitos na dimensão restrita em que eles têm sido trabalhados, qual seja, a contratualista e legalista liberal.

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Ainda buscou-se operar uma interrogação da noção de especialidades médicas psicológicas como única possibilidade de atendimento na produção de cuidado e propor que os acontecimentos também possam ser pensados e ativados na ética das existências, nas esferas não apenas dos consultórios e dos programas tradicionais de atenção em psicossocial. Estes dispositivos são usados e fazem parte de programas em saúde mental e coletiva vigentes, hoje. Tais práticas são engrenagens que podem ser articuladas ou não em redes com outras intervenções desde que possamos inventá-las e materializá-las. O texto teve como interesse a abertura de novos campos de possíveis no cuidado de si e dos outros, ao ativar a produção da liberdade como exercício ético, estético e político. Esta prática não invalida as anteriores e nem as desqualifica, apenas postula outra perspectiva de agir sobre e com os outros, em uma determinada sociedade, a que vivemos no presente e que pode compor ou não ou ainda deslocar as maneiras tradicionais e já postas de fazer a clínica agir. Trouxemos ao longo do texto alguns acontecimentos e análise em que os testemunhos de vida fora da noção de confissão gritaram e disseram com todos os riscos implicados neste agir e efeitos que os mesmos efetuaram como dispositivos na clínica política. Poderíamos ir além destes, é claro. Apenas situamos estes de forma breve neste texto visando ressaltar liames e linhas que podem fazer parte da analítica da clínica política enquanto poder saber subjetivação na coragem da verdade.

Referências AGAMBEN, G. O que resta de Auwchivitz. Rio de Janeiro: Boitempo, 2011. FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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_________. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CARDOSO Jr., H. R.; APOLONIO, T. A. Biopoder e Biopolítica: a inclusão do biopoder e o elo de articulação da sexualidade. Texto não publicado, cedido pelos autores. DELEUZE, G. Logique du sens, Paris: Minuit, 1969. (Lógica do sentido, tr.br. de L.R.Salinas Fortes, SP, Perspectiva, 2003). ______ Critique et Clinique. Paris: Les Editions de Minuit, 1993. (Crítica e Clínica, tr. Br. de Peter Pál Pelbart, São Paulo: Ed. 34, 1997). ESCOBAR, C.H. A genealogia (Foucault) ou os ‘leninismos’ na materialização de uma política nietzschiana. In: Michel Foucault (1926-1984) - O Dossier: Últimas Entrevistas. Rio de Janeiro: Taurus, 1984. GUATTARI, F. A transversalidade. In: Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. Aparecida do Norte: Idéias e Letras, 2004. HARDT, M.; NEGRI, A. Império. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2005. KASTRUP, V. A cognição contemporânea e a aprendizagem inventiva In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 49, nº4. Rio de Janeiro, Imago, 1997. NASCIMENTO, R. D. S. Teoria dos signos no pensamento de Gilles Deleuze. Campinas, SP: [s.n.] 2012. Tese (doutorado) em Filosofia - UNICAMP. PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 17-31. VEYNE, P. (1990). Como se escreve a história. Brasília: UnB, 1990.

LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D. C. G.; BICALHO, P. P. G.; NASCIMENTO, R. D. S. Clínica-Política: coragem da verdade e crítica às democracias atuais In: Psicologia Social, Direitos Humanos e História: transversalizando acontecimentos do presente.Curtiba : CRV, 2015, v.1, p. 21- 36. Impresso, ISBN: 9788544403365

 

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