Clivagem da democracia no plano digital da esfera pública

July 16, 2017 | Autor: Juliano Carvalho | Categoria: Comunicação
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Clivagem da democracia no plano digital da esfera pública Juliano Maurício de Carvalho André Luís Lourenço INTRODUÇÃO A democracia possui como premissa a extensão do direito à participação no exercício do poder e na tomada de decisão a todos os cidadãos. No contexto de uma democracia por representação1, aos agentes políticos – ou atores eleitos no sistema político 2– é delegada a função de decisão sobre as Políticas Públicas empreendidas nas diferentes instâncias do Poder Estatal. Entretanto, após a escolha dos representantes – por meio das eleições livres, periódicas e diretas –, não há garantias de que as demandas das diversas comunidades ou grupos de indivíduos, sobretudo os “excluídos ou em estado de vulnerabilidade social”3, sejam atendidas. Somado a isso, as experiências de democracia representativa têm revelado um contínuo processo de distanciamento entre os cidadãos e as instâncias do poder decisório, reduzindo a participação política aos eventos de escolha dos representantes. Esse fenômeno denota uma crise do modelo por representação, exigindo seu incremento. Para tanto, Habermas (1997) propõe um modelo de democracia deliberativa, que se baseia no princípio de que as decisões, afetando o bem-estar de uma coletividade, devem ser o resultado de um procedimento de deliberação livre e razoável entre cidadãos considerados iguais moral e politicamente. ¹Modelo aplicado no Brasil, a democracia representativa é aqui entendida por regime de governo no qual os cidadãos transferem seu poder de decisão política a representantes legais eleitos em eleições livres, periódicas e diretas. Portanto, regime no qual a população mantém sua soberania, mas delega seu poder de decisão a terceiros. Esse modelo se difere da democracia direta, na qual a própria população detém o poder de decisão política constantemente em seus domínios. Apesar de aparentar ser mais justo, em função de manter a premissa de ‘governo do povo’, a democracia direta se mostra inadequada à sociedade de massa e ao Estado complexo contemporâneo. ²Entendido segundo Lindblom (1981), em essência, como um sistema de regras que especificam os diferentes papéis a serem desempenhados pelo Presidente da República, Deputado, ou cidadão comum, por exemplo. Indica, ainda, quem pode exercer cada função, de que modo as pessoas devem ser escolhidas para os diferentes papéis, bem como o quê é permitido a cada ator. ³Segundo relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), publicado em 2007, ‘excluídos’ seriam aqueles indivíduos cujo acesso aos serviços públicos ou o trânsito pelos diferentes grupos sociais em uma dada sociedade estariam totalmente cerceados, seja pelo aspecto econômico, de trabalho, étnico, de gênero, religioso ou relacionado à orientação sexual. Já o termo ‘vulnerabilidade social’, conforme o documento, descreve uma situação intermediária de dificuldade de acesso a serviços e trânsito a outros grupos sociais.

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Isso significa dizer que a sociedade necessita de mecanismos de atuação e discussão política independentes do Estado e das lógicas comerciais, que mantenham o debate sobre a ‘coisa pública’ permanentemente em pauta. De acordo com Habermas (1984, 1997), entre esses mecanismos está a formação de uma esfera pública, considerada um locus de representações simbólicas no qual a sociedade, diferentes comunidades ou grupos podem tornar públicos anseios do âmbito privado e influenciar, por vezes determinar, as decisões políticas nas esferas administrativas do Estado. No contexto de uma sociedade complexa, como aponta Habermas (1997), uma série de arenas públicas é criada pela sociedade civil no interior da esfera pública; e por meio do embate entre as opiniões consolidadas nas diferentes arenas chega-se a uma opinião pública que pode vir a se tornar a própria força de pressão da sociedade sobre o Estado – o que não significa, segundo Lippmann (2008), que se trate de uma única opinião, mas, na verdade, uma opinião comum sobre um determinado assunto. O raciocínio referente à influência da opinião pública sobre o processo decisório é reforçado por Lindblom (1981), que afirma que as decisões políticas são tomadas após o entrecruzamento das opiniões emitidas pelos diferentes atores políticos e indivíduos ou entidades envolvidas no debate público, que disputam uma espécie de ‘competição de ideias’ que visa o convencimento e o apoio político com base na persuasão. A competição de ideias ocorre em função de cada setor da sociedade ou ator político possuir uma interpretação específica em relação aos assuntos de relevância pública, por meio de processos comunicativos diversos, e buscar benefícios também específicos. Na concepção de esfera pública de Habermas (1984, 1997), isso significa que, na medida em que existe uma superexposição de um determinado tema – ou uma opinião pública específica – na esfera pública, sendo inevitável sua atenção por parte das autoridades políticas, as demandas de comunidades ou grupos marginalizados ganham destaque e têm maiores chances de receberem atendimento – uma vez que se aumenta a chance de a demanda sensibilizar ou ser apoiada por representantes legais do Poder Estatal nas esferas de decisão, fazendo com que determinados temas ingressem na agenda governamental. Entretanto, vale lembrar, ainda que essas mensagens cheguem às instâncias de decisão do Estado, não há garantias de que a opinião pública consiga tal feito. Mesmo que a formação de arenas públicas não determine a efetiva influência da opinião pública na decisão política, é indiscutível que a existência de espaços de discussão e deliberação é fundamental para aproximar a sociedade civil da classe política – uma vez que uma discussão acerca de uma temática específica, cujo início do processo de debate se deu nos pequenos grupos sociais organizados em torno de uma questão também específica da vida cotidiana, passa a contar com a possibilidade de alçar ao debate em outras arenas públicas de maiores amplitudes, de modo que os representantes políticos tomem conhecimento. Essas arenas públicas são formadas em diferentes locais, como associações de bairros e comunitárias, universidades, veículos

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de comunicação alternativos à lógica comercial4, entre outros. Há cerca de uma década, a sociedade tem observado a popularização – ainda que pouco expressiva – de um novo espaço com potenciais possibilidades de promover o debate e conscientização sobre política: a internet. Pouco expressivo, pois na sociedade brasileira, por exemplo, apenas cerca de 37% da população possui acesso a essa ferramenta tecnológica – conforme levantamento realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009 5, divulgado em setembro de 2010. Embora fortemente presente na sociedade, ainda que em níveis insatisfatórios em relação aos índices de acesso da população, a internet não possui consenso na Comunidade Acadêmica acerca de sua relação com a esfera pública e as arenas públicas. Essa incerteza está ligada às características dessa plataforma tecnológica de comunicação. Também não há consenso sobre sua função no contexto da democracia por representação. Assim, este artigo analisa a relação entre internet e esfera pública, além de indicar limites e contribuições da Internet, e dos espaços e conversação contidos nessa plataforma, para a participação política da população e para o estabelecimento da democracia deliberativa. DEMOCRACIA E DELIBERAÇÃO: A FUNÇÃO DA ESFERA PÚBLICA A democracia, como governo do povo, exige a participação política dos mais amplos e variados setores da sociedade. Neste contexto, Gomes (2005a, p. 59) aponta que uma democracia capaz de satisfazer aos requisitos básicos de participação democrática deve contar, em níveis socialmente relevantes, com quatro fatores essenciais: ‘volume adequado de conhecimento político estrutural e circunstancial’; ‘possibilidades de acesso a debates públicos’; ‘meios e oportunidades de participação em instituições democráticas ou grupos de pressão’; e ‘habilidades para e oportunidades eficazes de comunicação da esfera civil’. O primeiro aspecto referido por Gomes (2005a, p.59), ‘volume adequado de conhecimento político estrutural e circunstancial’, trata da existência de um estoque apropriado de informações não-distorcidas e relevantes, de modo que os cidadãos possam adquirir subsídios suficientes para a compreensão sobre questões, argumentos, posicionamentos relativos aos negócios públicos e ao jogo político.

4 O que está considerado neste argumento é o fato de os veículos de comunicação de caráter comercial

não se apresentarem como mecanismos de informação unilateral, alimentando o debate público, mas não promovendo o debate – como seria caracterizada uma arena pública de fato. Aqui, coloca-se o exemplo das rádios comunitárias como possibilidade de formação de arena pública por meio dos veículos de comunicação (Lourenço, 2011). 5 Dados resumidos do levantamento realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, divulgado em setembro de 2010, podem ser obtidos em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1708.

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Com outro quesito, ‘possibilidades de acesso a debates públicos’, o autor sugere que os cidadãos devem ter acesso aos debates públicos já iniciados, além da possibilidade de criar novos debates – podendo, assim, envolverem-se em procedimentos deliberativos no interior dos quais possam formar as próprias opiniões e decisões políticas, ou ainda influenciar as opiniões de seus pares, por meio de um processo argumentativo que visa à persuasão. Em relação à exigência de ‘meios e oportunidades de participação em instituições democráticas ou grupos de pressão’, Gomes (2005a, p.59) se refere à oportunidade de participação em espaços que exerçam efetiva construção de decisões políticas. Trata-se, especificamente, da oportunidade de atuar, enquanto cidadão, em espaços de deliberação, como Fóruns, Assembleias, Audiências e Reuniões Públicas, entre outros espaços democráticos. Por fim, sobre questões de participação política, o autor aponta a existência de ‘habilidades para e oportunidades eficazes de comunicação da esfera civil’. Essa exigência se liga à necessidade de proximidade entre a sociedade civil e seus representantes, em níveis diversos, com o objetivo de cobrar explicações e prestação de contas, sugerir mudanças de perspectivas às autoridades políticas etc. Porém, Gomes (2005b, p. 216) salienta que a experiência democrática moderna, sobretudo nos modelos baseados em sistemas por representação, produziu uma esfera de decisão política apartada da sociedade.

O âmbito da decisão política é constituído, então, por agentes em dedicação profissional e por membros de corporações dedicadas ao controle e distribuição do capital circulante nesta esfera – os partidos –, dotando-se de altíssimo grau de autonomia em face da esfera civil. Constitucionalmente, as duas esferas precisam interagir apenas no momento da renovação dos mandatos, restringindo-se o papel dos mandantes civis à decisão, de tempos em tempos, sobre quem integrará a esfera que toma as decisões propriamente políticas. É neste contexto que se destaca o fortalecimento da esfera pública para obtenção de oportunidades de participação política, sobretudo das camadas ‘marginalizadas’ ou em ‘estado de vulnerabilidade social’. Essa perspectiva vai ao encontro da construção habermasiana do conceito de democracia deliberativa, cunhada pelo autor em suas obras mais recentes – entre as quais ‘Direito e Democracia’ (1997). Maia (2001, p. 03) explica que, na visão de Habermas, levando-se em consideração um contexto pluralista, a democracia depende de dois aspectos fundamentais: a “institucionalização das condições necessárias e dos procedimentos para o estabelecimento da comunicação entre os cidadãos” e a “interpenetração entre a tomada de decisão institucionalizada e a opinião pública”, Esta última construída de modo informal, em espaços não institucionalizados. Para a autora (2001, p. 03), a teoria da democracia deliberativa de Habermas é

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alicerçada em dois planos.

Há uma distinção e descrição normativa (a) do processo informal da formação da vontade na esfera pública e (b) da deliberação política, a qual é regulada por procedimentos democráticos e é orientada para a tomada de decisão em sistemas políticos específicos. Estas são duas dimensões dependentes. Assim, esclarece Maia (2001, p. 02), Habermas concebe um modelo de democracia que considera de maneira mais ativa a dimensão comunicativa na política, que, por sua vez, favoreceria a circulação de poder. Esse modelo destaca, sobremaneira, a necessidade de formação e fortalecimento de uma esfera pública. Na definição de Habermas (1984, p. 42), a esfera pública é a esfera de pessoas privadas reunidas em um público, cujo espaço representa um canal de reivindicação contra o Estado, porém, regulamentado por ele. Ou seja, as pessoas privadas reunidas num público passam a transformar em tema público a sanção da sociedade como uma esfera privada. A esfera pública de discussão é, portanto, o espaço em que ocorrem interações entre os indivíduos que coabitam numa mesma realidade. Esse espaço também pode ser considerado um locus de representações simbólicas da própria sociedade eivado de características, modelos e práticas cotidianas e tradicionais, onde a própria sociedade é reproduzida. De acordo com Habermas (1984, 1997), quando ideal, por meio dessa interação entre os indivíduos de uma comunidade, um coletivo representativo pode ser consolidado e, por meio dele, empreender resistência ou apresentar oposição às forças hegemônicas sociais, garantindo-lhe a possibilidade de exercer influência sobre os processos decisórios nos diversos níveis de governo. Segundo Maia (2003, p. 01), trata-se de uma esfera de deliberação no contexto de uma democracia por representação. Para a autora, as concepções deliberativas da democracia baseiam-se no princípio de que as decisões, afetando o bem-estar de uma coletividade, devem ser o resultado de um procedimento de deliberação livre e razoável entre cidadãos considerados iguais moral e politicamente. Maia (2003, p. 01) destaca ser condição necessária ao funcionamento de um regime dito democrático sob os moldes da participação da população que aquilo que será considerado como o “interesse comum” resulte de um processo de deliberação coletiva. “Deliberação aqui não é entendida como tomada de decisão que se dá num determinado momento, mas, ao invés disso, como um processo argumentativo, intercâmbio de razões feito em público”. Ainda segundo a autora, esse processo visa à obtenção de legitimidade para o exercício do poder público nas principais instituições de uma sociedade, e de racionalidade para tomada de decisão política nas esferas político-administrativas, independente do nível de governo. Assim, Habermas (1997, p. 92) destaca que a esfera pública pode ser apontada como uma rede adequada para a comunicação, tomadas de decisão e opiniões. “Nela

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os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos”. Numa sociedade complexa, de fluxos de informação oriundos dos diversos setores sociais, a esfera pública, segundo Habermas (1997, p. 107)6, forma uma estrutura intermediária que faz a interlocução entre as instâncias institucionalmente formalizadas do poder do Estado e a sociedade civil, e na qual são definidas e defendidas diversas opiniões públicas, de grupos distintos, debatidas posteriormente. Para o autor, essa estrutura intermediária compreende um ‘sem número’ de arenas – termo utilizado por Habermas (1997) – que se sobrepõem umas às outras e que se articulam de acordo com pontos de vistas específicos e de temas agendados particularmente. O autor afirma que essas arenas públicas formadas no interior da esfera pública são as instâncias que ligam as opiniões consolidadas no âmbito da esfera privada, e que têm o poder de levar as reivindicações e posições da sociedade civil às instâncias do Poder Estatal por meio da esfera pública. Portanto, a rede de fluxos de informação definida como esfera pública, conforme Habermas (1997), também é um fenômeno social emergido da interação empreendida pela própria sociedade civil 7. As arenas públicas devem ter por objetivo captar os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, os reunir e os transmitir à esfera pública política. Dessa forma, para Avritzer e Costa (2004, p. 709), à sociedade civil cabe a responsabilidade de produzir microesferas públicas associadas à vida cotidiana, ou arenas conforme Habermas (1997), com a função de captar os anseios da própria sociedade e levá-los ao conhecimento público e, por conseqüência, à ciência dos representantes da população nas instâncias político-administrativas do Estado. É nesse movimento de condução das opiniões oriundas dos diferentes núcleos da sociedade civil às instâncias do poder político-administrativo do Estado que Habermas (1997, p. 105) defende residir o poder de influência da sociedade civil sobre as decisões políticas, não por meio de atuação administrativa, mas exercendo pressões por meio de mensagens que percorram os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional, alcançando os núcleos decisórios. Sob a ótica de interpretação de Habermas (1997), as decisões políticas são tomadas por meio do entrecruzamento das opiniões emitidas pelos diferentes atores políticos. Isso ocorre, conforme Lindblom (1981), devido ao fato de cada ator social

6 Essa

perspectiva representa uma reformulação do conceito de esfera pública empreendida pelo próprio Habermas. Enquanto no livro “Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa”, publicado originalmente em 1962, Habermas afirma a existência de uma esfera pública que abarcaria o debate sobre as questões de interesse público, na obra “Direito e Democracia”, publicada na década de 1990, o autor – talvez influenciado pelas contribuições das pesquisadoras Nancy Fraser e Hannah Arendt – reformula sua perspectiva e defende a existência de um grande número de arenas que comporiam a esfera pública, donde seriam originadas as opiniões de pequenos grupos de indivíduos e publicizadas nos outros âmbitos da esfera pública. 7 Conforme Habermas (1997, p. 99), a sociedade civil é composta por movimentos, associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, os quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.

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apresentar sua interpretação em relação aos assuntos de relevância pública e, a partir de cada posição, conflitante ou não, ser empreendida uma competição de idéias – baseada em um processo de persuasão. O mesmo raciocínio, o da existência de arenas públicas, é defendido por Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), que afirmam que no âmbito da esfera pública surgem espaços democráticos onde a comunidade recebe e repercute as ‘publicidades’ do Estado e da própria sociedade civil, a partir da influência de determinados agentes formadores de opinião, estatais ou não, com destaque à imprensa de massa, mas com possibilidade de esses espaços serem tomados por grupos comunitários que assumem papel de disseminadores da idéia de participação e discussão horizontal sobre a ‘coisa pública’ ou temáticas de interesse público. Entretanto, Maia (2003, p. 11) salienta que, embora uma esfera pública deliberativa possa constituir certo poder de influência sobre as instâncias político-administrativas do Estado, não há garantias de que suas demandas e necessidades sejam atendidas tais como conceberam durante o processo de construção da opinião pública. Isso porque, segundo a autora, existe a possibilidade de que haja, nos processos de tomada de decisão nas instâncias governamentais, formas ilegítimas de poder que envolvam as instituições sociais e determinem seu perfil de atuação – muitas vezes distanciado de seu sentido original. Neste contexto, conforme a interpretação de Maia (2001) acerca do quadro teórico habermasiano reformulado, a comunicação exerce relevante função tanto nas arenas comunicativas da vida social quanto nas instâncias de decisão dos sistemas políticos constitucionais. Daí decorre a importância da mídia, e da investigação acerca de sua atuação, no processo de construção democrática. Por fim, Maia (2001, p. 05) aponta que Habermas (1997) indica a existência de diferenciação entre três tipos específicos de esferas públicas parciais, nas quais emergiria uma trama de arenas comunicativas. A episódica seria composta por espaços informais e não institucionalizados como bares, cafés, encontros de rua, entre outros. Já a de presença organizada, ocorreria em momentos como reuniões de partidos e congressos, ou seja, em arenas institucionalizadas. A terceira, denominada de abstrata, seria geralmente produzida pelas mídias, portanto, por meio de veículos de comunicação comerciais, comunitários, alternativos, institucionais, governamentais, entre outros. Porém, aponta Maia (2001), Habermas (1984, 1997) não tematiza o que seria uma ‘esfera pública virtual’, constituída por meio da infraestrutura das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC).

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A INTERNET COMO AGENTE REVIGORANTE DA ESFERA PÚBLICA Tendo-se em vista a perspectiva habermasiana de construção de um modelo específico de democracia, a deliberativa 8, o esforço, neste momento, passa a ser o de definir as características da internet e compará-las às noções debatidas no tópico anterior, com o objetivo de empreender um debate acerca da caracterização da internet no contexto da esfera pública e das mais diferentes arenas possivelmente contidas nesse espaço virtual. De acordo com Gomes (2001, p. 02), a internet se refere a uma rede extremamente extensa, desnacionalizada e descentralizada de computadores.

As circunstâncias de sua criação a constituíram de maneira tal que a massa de computadores em rede funciona como malhas intermediárias conectadas entre si e ao todo ou, numa outra metáfora, como auto-estradas que servem ao tráfego eficaz de gigantescas quantidades de informações, enquanto uma miríade de computadores e microcomputadores serve-se dessa fabulosa infraestrutura de rede de redes para enviar e receber informações. A internet seria, então, nada mais nada menos que um meio ou ambiente de interconexão. Dessa forma, o autor ressalta que o fenômeno comunicacional importante envolvido nessa trama seria o da chamada “comunicação mediada por computadores”, que ocorreria de um indivíduo a outro, de um a muitos, de muitos a muitos – e todas as suas consequências em termos de sociabilidade contemporânea. Para Santaella (2010, p. 91), essa comunicação mediada por computadores, e a interação resultante dessa plataforma, é capaz de produzir uma realidade paralela que “abriga megalópoles, ou bancos de dados comerciais, e uma infinidade de portais e sites de todas as espécies”, e que tem sido denominado de ‘ciberespaço’. A autora (2010, p. 91) aponta que o ciberespaço consiste em uma realidade multidirecional, artificial ou virtual incorporada a uma realidade global, “sustentada por computadores que funcionam como meios de geração e acesso”.

Nessa realidade, da qual cada computador é uma janela, os objetos vistos e ouvidos não são nem físicos nem, necessariamente, representações de objetos físicos, mas têm forma, caráter e ação de dados, informação pura. É certamente uma realidade que deriva em parte do funcionamento do mundo natural, físico, mas que se constitui de tráfegos de informação produzida pelos empreendimentos humanos em todas as áreas: arte, ciência, negócios, política e cultura.

8 Modelo

que atribui à comunicação relevante função tanto nas arenas comunicativas da vida social quanto nas instâncias de decisão dos sistemas políticos constitucionais, e, portanto, defende o fortalecimento da esfera pública e das arenas públicas nela contidas.

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Desse apontamento decorre a definição de cibercultura. Segundo Santaella (2010), trata-se da cultura do ciberespaço, ou seja, forjada no ambiente digital a partir das manifestações e experiências humanas nesse espaço. A autora aponta que os conceitos de cibercultura e ciberespaço, até pouco tempo atrás, se referiam à Internet fixa e abarcavam uma série de espaços e iniciativas como redes privadas, centros de informação, blogs, grupos de discussão, entre outros. Porém, com o advento dos dispositivos móveis de acesso, a partir da Internet móvel, as noções de cibercultura e ciberespaço deixaram de apoiar-se ou definir-se em uma realidade apartada da vida cotidiana, na medida em que constituiu espaços que Santaella (2010, p. 92) denomina de ‘espaços intersticiais’.

Os espaços intersticiais referem-se às bordas entre espaços físicos e digitais, compondo espaços conectados, nos quais se rompe a distinção tradicional entre espaços físicos, de um lado, e digitais, de outro. Assim, um espaço intersticial ou híbrido ocorre quando não mais se precisa “sair” do espaço físico para entrar em contato com ambientes digitais. Sendo assim, as bordas entre os espaços digitais e físicos tornam-se difusas e não mais completamente distinguíveis. Dessa forma, salienta a autora, a sociedade pode passar a não perceber a distinção entre os espaços físicos e virtuais, já que esses ‘espaços intersticiais’ tendem a dissolver a fronteira rígida até então existente. Esse fenômeno pode ser encarado de forma natural, uma vez que a Internet se configura em uma evolução da comunicação e da sociabilidade contemporânea, passando a ser parte integrante do modo e das formas de interação interpessoal da sociedade. Segundo Gomes (2001, p. 03), a Internet não pode ser considerada propriamente um meio de comunicação, mas a própria conexão ou conectividade material à disposição dos computadores – estes últimos, sim, funcionando como instrumentos de comunicação. Em outras palavras, a Internet se refere a uma ferramenta, ou plataforma, capaz de proporcionar espaço para iniciativas focadas na promoção de debate sobre a ‘coisa pública’ ou difusão de informações de quaisquer gêneros. Para o autor (2001, p. 03), na comunicação mediada por computadores, a qualquer momento, sem autorização social e sem grandes investimentos em recursos, “(a) qualquer sujeito pode se tornar emissor, (b) qualquer receptor pode se tornar emissor e vice-versa, (c) qualquer receptor pode se transformar em provedor de informação, produzindo informação e distribuindo-a por rede ou simplesmente repassando informações produzidas por outro”. Além disso, continua Gomes (2001, p. 03), a internet se destaca pelo grande volume de informações de toda a natureza.

Trata-se de extraordinário volume de informações de toda a natureza e sobre qualquer tipo de objeto (a) disponível exclusivamente para acesso on-line, (b) si173

tuado de forma disseminada por computadores em rede por todo o mundo, (c) organizados de forma a serem lidos ou vistos e, frequentemente, reproduzidos e distribuídos em linguagens mais ou menos padronizadas e, de qualquer forma, facilmente disponíveis aos usuários da rede. Marques (2006, p. 167) destaca que a internet se apresenta como um espaço apto, inclusive, a atender demandas individuais. Isso porque, por meio dessa ferramenta, cada internauta tem a possibilidade de buscar a informação que deseja, podendo modificá-la ou adicionar suas considerações para uma posterior publicação, sem grandes dificuldades ou custos. Também pelo grande volume de informações, cresce a necessidade de que os internautas desenvolvam capacidade crítica suficiente para que não sejam facilmente induzidos ao erro em função de má interpretação ou ingenuidade – ainda que tal afirmação seja bastante controversa, se pensado o caso brasileiro, que enfrenta e convive com defasagens históricas no ensino, sobretudo, o público. Em razão do baixo custo e facilidade de navegação, continua o autor (2006, p.167), a internet teria potencial para exercer papel “revigorante” na esfera pública política argumentativa, uma vez que concede oportunidade de expressão a vozes marginais, sem as barreiras impostas pela censura governamental ou pelos interesses das indústrias do entretenimento e da informação. Marques (2006, p.167) ainda destaca outras barreiras possíveis de serem transcendidas pelo advento da Internet, que ofereceria a chance da reciprocidade discursiva advinda da esfera civil.

A superação de barreiras como o espaço (a comunicação digital não leva em conta as fronteiras dos países) abre caminho para a participação de usuários em diversos contextos geográficos. O direito de uso da palavra, a isegoria, conforme chamavam os atenienses, o poder falar em “assembléia”, daria à internet, de acordo com as referências acima indicadas, a propriedade fundamental para o estabelecimento de um espaço argumentativo digital, o que tornaria o computador um meio de comunicação diferenciado em termos políticos. Assim, Marques (2006, p. 167) defende que, a partir do momento em que favorecem a troca de experiências e conteúdos, as redes telemáticas 9 também atuam, pelo menos em potência, como ambiente propício ao diálogo e ao entendimento. “Falandose em termos ideais, isso traria aos cidadãos interessados a possibilidade de, novamente, possuir certa influência nos rumos da esfera pública política, encontrando, comodamente, outros cidadãos para discutir questões de interesse público”.

9 Telemática

é o termo utilizado para definir o conjunto de tecnologias de transmissão de dados resultante da junção entre os recursos das telecomunicações (satélite, telefonia, fibras ópticas, cabo etc.) e da informática (computadores, softwares, periféricos e sistemas de redes). Esses recursos possibilitaram o processamento, a compressão, o armazenamento e a comunicação de grandes volumes de dados – em diferentes formatos – em curto espaço de tempo, entre usuários dos mais variados locais do planeta.

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Porém, ainda há uma questão bastante instigante, e controversa, na caracterização da internet no contexto da esfera pública, ou de sua capacidade, enquanto plataforma tecnológica, de abrigar uma série de arenas públicas. Trata-se da questão do anonimato. Conforme Silveira (2009, p. 115), o anonimato se refere à condição ou qualidade da comunicação não-identificada, ou seja, da interação entre vários interagentes que não possuem identidade explícita ou que a ocultam. Para o autor (2009, p. 122), a modernidade forjou um sujeito histórico portador de direitos e de uma identidade individual.

Trouxe também a comunicação de massas e novos ideais do que seria o legítimo e o ilegítimo em uma interação social. Como bem apontou Zygmunt Bauman, a modernidade tinha um especial horror à indefinição, à incerteza e à ausência de controle. Nesse contexto, o anonimato foi considerado um fator de incerteza em um mundo que clamava por identidades precisas e centradas. Segundo Silveira (2009, p. 128), a principal tese contra o anonimato na esfera pública parte das possíveis consequências negativas da ausência de responsabilidade pelo que é dito.

Manifesta-se no que Habermas, em sua investigação sobre a pragmática universal pela busca das condições universais de compreensão mútua, denominou de pretensão de validade de um discurso como verdade (HABERMAS, 1996). Um efeito nefasto do argumento anônimo irresponsável e moralmente repreensível, inverídico, mas apresentado como verdadeiro e correto, é o de gerar uma rápida ação injusta, cujos efeitos não podem ser reparados. Silveira (2007, p. 128) ainda apresenta outra deficiência da internet como espaço de conversação apto a abrigar processos argumentativos de deliberação, indo além da crítica à comunicação anônima.

(...) a descorporificação na rede não pode substituir o encontro face-a-face. Nas redes, estaríamos vivendo uma desestabilização generalizada do sujeito. A multiplicação de representações e simulacros no ciberespaço nos leva a um estado de hiper-realidade, conforme descrito por Baudrillard, onde oposições binárias real/ irreal, sujeito/objeto, público/privado, homem/máquina, tenderiam a implodir, e um mundo de simulacros emergiria podendo se tornar a única realidade para os participantes. Desse modo, o uso público da razão comunicativa estaria prejudicado no ciberespaço. Do outro lado, existem autores que não delegam ao anonimato um caráter assaz negativo. De acordo com Gomes (2005a, p.65), um espaço de conversação on-line dispensaria uma série de dificuldades que estão sempre a rondar as discussões off-

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line. Entre as dificuldades citadas pelo autor estão as superações das injunções, filtros e controles interpostos, geralmente, por parte de instâncias que se estabelecem fora da situação de debate. Outra questão apontada por Gomes (2005a) se refere à ausência de disparidade inicial nas discussões promovidas pelas diferenças de valor relativo de cada indivíduo na sociedade, reduzida justamente pela possibilidade do anonimato, limitações de espaço e tempo que afetam as discussões off-line etc. Dessa forma, Marques (2006, p. 172) faz uma reflexão acerca dos principais aspectos, positivo e negativo, do anonimato aplicado às interações sociais ocorridas na internet.

Se o anonimato permite a expressão política de indivíduos tímidos ou que não podem se manifestar por pressões outras (de seus familiares ou dos chefes no trabalho), por outro lado, condiciona os entes do discurso a se tornarem, tendencialmente, menos confiáveis uns aos outros, ou menos confiáveis do que seriam se conversassem face a face: as linhas de um diálogo em bate-papo não permitem que se apreenda a entonação da voz, a reação de quem interage quando dado posicionamento é exposto. Sobre a possibilidade de abusos de internautas camuflados pelo anonimato, há que se considerar uma questão adicional que, aliás, é determinante: talvez não haja o anonimato da maneira como se aparenta, ou seja, sob o aspecto da não-identificação total e ausência de responsabilizações. Isso porque, salienta Silveira (2009, p. 120), não é possível se comunicar na internet sem um IP (Internet Protocol)10 . Na verdade, não é possível abrir uma única página sequer sem um endereço de IP. Embora não haja nenhuma necessidade de vincular uma identidade civil a um número de IP para que a comunicação se estabeleça, é fundamental que se vincule um IP ao computador utilizado que, por sua vez, seu local é passível de identificação. Vale lembrar, neste momento, que, atualmente, os internautas possuem informações pessoais suficientes na rede para tornarem-se relativamente fáceis os cruzamentos de informações, de modo que a identidade do usuário possa ser determinada ou sugerida como ponto de partida de uma eventual investigação provocada por possíveis abusos. O caso das conexões à internet efetuadas por meio de dispositivos móveis – como telefones celulares, palms e laptops sem fio, entre outros – também não escapam à possibilidade de responsabilização. Santaella (2010, p. 93) aponta que esses equipamentos tecnológicos modernos são denominados de mídias locativas e os define como “tecnologias baseadas em lugares, ou seja, tecnologias sem fio, tecnologias de vigilância, de rastreamento e de posicionamento que permitem que a informação seja ligada a espaços geográficos”.

10 O

endereço IP (Internet Protocol), de forma genérica, se refere a uma espécie de endereço que indica o local de um determinado equipamento, normalmente computadores, em uma rede privada ou pública.

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Para a autora, cada vez mais essas tecnologias da mobilidade, sensíveis aos locais, podem acessar a internet e permitir que as informações sejam armazenadas e recuperadas a partir de bases de dados remotas. Diante disso, é possível afirmar que excessos cometidos por internautas podem ser responsabilizados nas figuras de pessoas físicas, por meio de uma investigação relativamente simples – independentemente de conexões efetuadas via Internet fixa ou móvel. Portanto, a questão do anonimato parece não se configurar em um verdadeiro problema à formação de arenas públicas na Internet, uma vez que se mostra de fácil responsabilização. Conforme as diretrizes apontadas, a internet pode ser considerada um novo componente da esfera pública ‘geral’. Ou seja, trata-se de um novo tipo de esfera pública parcial, tal como abstrata, episódica e de presença física. Isso porque, pode-se encarar a internet como uma grande plataforma que depende da criação de espaços de debate, que seriam as arenas públicas, para poder formar uma esfera pública complementar à esfera convencional analógica e suas esferas parciais. Vale lembrar, a função de criação de arenas seria da própria sociedade civil, ou aquela parcela que possui acesso à tecnologia. O raciocínio vai ao encontro do que afirma Marcondes (2007, p. 08). A autora aponta que a Internet, como um todo, não é uma esfera pública autogerada, ou seja, compartilhada por visitantes regulares transformados magicamente e que lá depositam atitudes, práticas e objetivos que promovam modificações na sociedade. Diante desses argumentos, é possível apontar que existe a possibilidade de que a Internet se torne uma esfera pública parcial, na medida em que sejam criadas arenas públicas por iniciativa da própria sociedade civil, que fomentem o debate sobre a ‘coisa pública’, a troca de experiências e posicionamentos políticos, e que tenham a possibilidade de extrapolarem os limites do universo virtual, de modo que as deliberações e opiniões geradas nos espaços democráticos contidos na internet possam influenciar as decisões políticas por meio da inflamação da esfera pública. INTERNET, SUAS CONTRIBUIÇÕES E LIMITES, NO CONTEXTO DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA Como já afirmado, as experiências de democracia representativa têm demonstrado frequentemente um distanciamento no relacionamento entre a sociedade e as instâncias de decisão política – reduzindo a participação da população no exercício do poder apenas aos eventos periódicos de escolha de representantes. De acordo com Gomes (2005b, p. 218), a alternativa histórica à democracia representativa é a democracia direta. Porém, esse segundo modelo se mostra inadequado à sociedade de massa e à complexidade do Estado contemporâneo, que exige profissionalismo de quem governa e de quem legisla.

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A introdução de uma nova infraestrutura tecnológica, entretanto, faz ressurgir fortemente as esperanças de modelos alternativos de democracia, que implementem uma terceira via entre a democracia representativa, que retira do povo a decisão política, e a democracia direta, que a quer inteiramente consignada ao cidadão. Estes modelos giram ao redor da idéia de democracia participativa e, nos últimos dez anos, na forma da democracia deliberativa, para a qual a internet é, decididamente, uma inspiração. Gomes (2005b, p. 218) aponta, a partir do contexto explicitado acima, o surgimento de uma nova denominação referente à participação da população por meio da utilização da internet. Trata-se da ‘democracia digital’ 11, que, segundo o autor, se refere às possibilidades de extensão das oportunidades democráticas instauradas pela infraestrutura tecnológica das redes de computadores. Neste contexto, o autor afirma que o termo ‘democracia digital’ se apóia em um conjunto de pressupostos referentes à internet e à participação política da sociedade no exercício do poder. O primeiro pressuposto indicado por Gomes (2005b, p. 218) aponta que a internet permitiria resolver o problema da participação do público na política que afeta as democracias representativas contemporâneas. Isso porque, a plataforma tornaria a participação mais fácil, mais ágil, conveniente e confortável. O benefício prático salientado pelo autor se liga à afirmação de, atualmente, a sociedade civil encontrar-se desorganizada e desmobilizada. Outra questão com a qual Gomes (2005b) trabalha indica que a internet teria a capacidade de permitir uma relação sem intermediários entre a esfera civil e a esfera política. Esse fato poderia culminar no bloqueio, ao menos parcial, das influências da esfera econômica e, sobretudo, das indústrias do entretenimento, da cultura e da informação de massa – que notadamente controlam o fluxo da informação política disponibilizada à sociedade. A possibilidade de a sociedade se tornar não apenas consumidora de informação política é o terceiro pressuposto com o qual Gomes (2005b, p. 218) empreende o debate. Segundo o autor, ao menos, a internet impediria que o fluxo da comunicação política fosse unidirecional – o que determinaria uma espécie de restrição sobre as possibilidades de interpretação dos cidadãos. “A internet representaria a possibilidade de que a esfera civil produzisse informação política para o seu próprio consumo e para o provimento da sua decisão”. Com base nos pressupostos apresentados, Gomes (2005, p.218) afirma que “democracia digital se apresenta como uma alternativa para a implantação de uma nova experiência democrática fundada numa nova noção de democracia”. Isso porque, a internet se mostra uma ferramenta bastante efi ciente na promoção de espa-

11 Apesar

de utilizar a expressão ‘democracia digital’, Gomes (2005b) também aponta a possibilidade de aparecimento de outros verbetes que se referem ao mesmo fenômeno, tais como democracia eletrônica, ciberdemocracia, e-democracy, entre outros.

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ços de conversação, que permitem aos cidadãos e grupos da sociedade interagir, sem mediações institucionais. Dessa forma, como afirma o autor (2005b, p. 220), a internet desempenha importante função na realização da democracia deliberativa, já que pode assegurar aos interessados em participar do jogo democrático dois requisitos fundamentais: informação política e espaços de interação e debate político. Entretanto, o autor admite que apenas o acesso à internet não garante o incremento da atividade política.

Flaming, conflitos, fragmentação, inconclusão, tudo isso além de qualquer limite racional, aparecem como constituindo a natureza da discussão online em um grande número de pesquisas empíricas sobre comunicação política por meio da internet. Pesquisas demonstram, ademais, que as discussões políticas on-line, embora permitam ampla participação, são dominadas por uns poucos, do mesmo modo que as discussões políticas em geral. Em suma, apesar das enormes vantagens aí contidas, a comunicação on-line não garante instantaneamente uma esfera de discussão pública justa, representativa, relevante, efetiva e igualitária. Outra questão levantada pelo autor, e que se apresenta como um limite ao ideal de fomento à participação política, está ligada ao fato de o usuário da ferramenta não necessariamente possuir ‘habilidade e tempo’ para organizar e gerenciar o grande volume de informações políticas existente na rede mundial de computadores, tampouco competência para empreender uma leitura crítica dos conteúdos disponíveis. A esse dado é importante acrescentar o fato de que, no Brasil, cerca de 75% das pessoas entre 15 e 64 anos não conseguem ler, escrever e calcular plenamente – ou seja, são considerados analfabetos funcionais. Esses dados são apontados pelo Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf)12, referente a 2009. Esse número inclui 68% de analfabetos funcionais e 7% de analfabetos absolutos, ou seja, sem qualquer habilidade de leitura ou escrita. Diante desses números, é possível determinar que apenas 1 a cada 4 brasileiros possui capacidade plena de leitura e escrita e de uso dessas habilidades o contínuo processo de aprendizagem. Portanto, uma variável interessante é a capacidade de os internautas selecionarem as informações relevantes em meio a uma imensidão de emissores de opiniões. Além disso, é importante ressaltar que as tecnologias da informação e da comunicação, apesar de tornarem a participação política mais confortável e acessível, não a garante. Isso porque, existem muitos aspectos que devem ser levados em consideração, entre os quais uma possível ausência de interesse político da comunidade de usuários da internet, bem como a limitação de acesso – seja por falta de competência

12 O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) é um levantamento realizado a cada dois anos em parceria

entre o Instituto Paulo Montenegro (IPM) e a Organização e a Ação Educativa. Dados completos dessa pesquisa podem ser obtidos pelo endereço eletrônico http://www.ipm.org.br.

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ou possibilidade econômica de acesso. De acordo com dados verificados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, divulgado em setembro de 2010, apenas cerca de 37% da população brasileira possui acesso à rede. Portanto, por si, esse dado relata que se trata de uma restrição à participação da população. O INCREMENTO DA DEMOCRACIA A PARTIR DO COMPLEMENTO DIGITAL DA ESFERA PÚBLICA A partir da discussão teórica empreendida, é importante destacar alguns apontamentos baseados na análise acerca da função da Internet à esfera pública e ao incremento do regime democrático por representação. A Internet se mostra, sim, como uma ferramenta com potencial revigorante à esfera pública e à democracia, na medida em que oferece a possibilidade de formação de grupos e espaços de discussão política, além de permitir um elevado volume de informações políticas disponíveis aos usuários. Outro aspecto se refere o fato de a Internet facilitar a transformação do cidadão consumidor de informações políticas em cidadão produtor de informações – o que pode acarretar no incentivo à composição de um número maior de sujeitos ativos politicamente, combatendo o quadro de afasia política notadamente instaurado nas experiências democráticas modernas, com destaque ao caso brasileiro. É evidente que a eficiência e a eficácia da utilização da ferramenta tecnológica para fins de participação política esbarram em deficiências de cunho educacional e de acesso, ou ainda em relação ao interesse dos usuários, ou a falta deles, em atuar em debates sobre a ‘coisa pública’ ou buscar e emitir informações políticas. Essas questões, aliás, se mostram bastante relevantes na presente discussão. Entretanto, não é possível desqualificar o potencial da Internet em razão de falhas existentes na estrutura do Estado, que muitas vezes não oferece condições de igualdade no acesso à ferramenta e nem uma educação formal que favoreça a compreensão da sociedade acerca de aspectos políticos. Também se pode apontar que o interesse político depende da cultura política da sociedade, que é fruto de um processo contínuo de debate e conscientização. Portanto, o fato de a Internet não atingir as expectativas de utilização para a participação política não retira seu potencial. É viável imaginar que as iniciativas existentes a partir da Internet, pelo menos, podem ser capazes de atuar de forma pedagógica e educativa sobre seu potencial para a participação política da população. Também se sobressalta a possibilidade de discussões empreendidas nesse espaço virtual alcançarem e, quando ideal, provocarem outros setores da sociedade, sobretudo a classe política – tais como as demais arenas públicas estabelecidas no plano físico. Por manter a mesma lógica das arenas públicas realizadas, ou instituídas, no plano físico, pode-se apontar que a Internet não se refere a uma nova esfera pública, mas um novo componente da esfera pública ‘geral’ já existente, seguindo a mesma

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perspectiva das esferas públicas parciais – abstrata, episódica ou de presença física –, ou seja composta por diferentes arenas. Isso porque, apesar de inaugurar uma nova era no que diz respeito às possibilidades de participação política e ao estabelecimento de espaços de conversação e deliberação, trata-se de um recurso tecnológico resultante do processo histórico de evolução da própria sociedade. A Internet não se mostra como uma ruptura, mas sim como complemento à esfera pública. Se a Internet representasse uma ferramenta que oferecesse a possibilidade de geração de arenas públicas (blogs, Fóruns, Chats etc) apartadas das arenas públicas reconhecidas no universo físico (encontro de organizações civis, assembléias, Audiências etc), poderia ser considerada uma nova esfera pública. Porém, é possível perceber que as discussões iniciadas no plano digital tendem a extrapolar as barreiras da virtualidade para alcançarem e influenciarem os debates empreendidos no plano físico. Com isso, nota-se que a Internet se configura em um complemento à esfera pública, um possível agente revigorante e catalisador da participação política, mas não se apresenta como uma nova esfera pública. Um exemplo que reforça as afirmações efetuadas é o site Observatório de Botucatu (www.observatoriodebotucatu.com.br) – uma iniciativa oficialmente desvinculada de organizações partidárias. No site existe um Fórum permanente, cuja participação do internauta é irrestrita e anônima – lembrando que, conforme a discussão apresentada nos tópicos anteriores, o anonimato não se configura em um problema à inserção da internet com plataforma tecnológica que abriga arenas públicas virtuais. Com foco na Cidade de Botucatu13, esse espaço se diferencia justamente por restringir a discussão às questões ligadas ao Município e, dessa forma, se coloca como objeto interessante de análise sobre as possibilidades de promover debates políticos locais no ciberespaço. Embora a participação dos internautas tenha como característica o anonimato, existem participantes que indicam preferência ou militância por determinados agrupamentos partidários, por meio do nome com o qual se identifi ca no referido Fórum permanente digital. Além do espaço de discussão, o site ainda se propõe a publicar materiais jornalísticos veiculados por Assessorias de Comunicação e Imprensa, como a Prefeitura de Botucatu, a Câmara Municipal de Botucatu, além das universidades locais e organizações civis e privadas. Também disponibiliza um link direto para comunicação com a Ouvidoria da Prefeitura de Botucatu. Conforme o próprio site, o objetivo é o de “oferecer aos botucatuenses ferramentas colaborativas para que todo cidadão engajado possa trazer a conhecimento público informações relevantes, contradições, questões que merecem atenção, erros, viola-

13 Botucatu é uma cidade do interior do Estado de São Paulo, com aproximadamente 130 mil habitantes,

conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística de 2010, e que está localizada cerca de 240 km da Capital do Estado.

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ções, análises críticas e propostas de ação”14. Importante ressaltar que o termo ‘engajado’ está colocado pelo próprio site, apesar de qualquer indivíduo com acesso à Internet ter a oportunidade de participar. Ao longo de sua trajetória, que teve início nos primeiros meses de 2009, o site já proporcionou debates abertos com a participação de vereadores, lideranças políticas e representantes do Poder Executivo Municipal, com significativa participação de diferentes internautas – cerca de 450 diferentes pessoas, sejam como debatedores ou observadores do debate, como na última participação dos vereadores da Câmara Municipal de Botucatu (2009-2012) em uma rodada de debate com internautas, ocorrida em março de 201115. Na oportunidade, vale destacar, o debate foi pauta da imprensa local, que repercutiu as colocações e os desempenhos dos parlamentares botucatuenses. A partir da constatação de que a iniciativa conseguiu sensibilizar e provocar representantes do poder decisório local, chamá-los à discussão direta mediada por computadores – além do fato de ter pautado a mídia do Município –, é viável afirmar que os debates empreendidos em espaços de participação não institucionalizados, arenas públicas existentes na Internet, podem alçar ao universo físico e influenciar, por vezes determinar, as decisões políticas nas esferas do Poder Estatal. Portanto, para concluir, ressalta-se que a internet se mostra uma ferramenta revigorante à esfera pública e um potencial de incremento da democracia, e representa uma força empírica à consolidação de um modelo de democracia baseada em processos comunicativos de deliberação por meio da participação política da população. REFERÊNCIAS AVRITZER, L.; COSTA, S.. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 47, n. 4, 2004, p. 703- 728. DAGNINO, E. (org.); OLIVIERA, Alberto J. (org.); PANFICHI, Aldo. La Disputa por la Construcción Democrática en América Latina. 1. ed. Ciudad do México: Fondo de Cultura Económica, 2006. v. 1. 536 p. DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Aspectos conceituais da Vulnerabilidade Social. Brasília: Dieese; 2007. GOMES, W.. Opinião pública na Internet: uma abordagem ética das questões relativas à censura e liberdade de expressão na comunicação em rede. In: Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós), X. Anais.... Brasília: Compós, 2001. Disponível em: www.unb.br/fac/comunicacaoepolitica/ 2001.html.

14 Essa explicação está disponível no próprio ‘Observatório de Botucatu’, no link “Sobre nós – . Acessado em 31 de janeiro de 2012. 15 A informação foi confirmada pelo próprio idealizador da iniciativa, o botucatuense Rafael Romagnolli, em entrevista aos autores deste texto.

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