Código Processo Penal português - a 15ª alteração - ano de 2008

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Paulo Saragoça da Matta

Principais modificações ocorridas com a 15ª alteração ao Código de Processo Penal ao nível dos crimes económicos Considerações Prévias – A 15ª alteração ao CPP, manifestou-se politicamente – e até com respaldo num sector muito expressivo da Advocacia portuguesa – como uma muito necessária alteração à lei processual penal. – Apesar disso, não foi tal alteração acompanhada sequer de qualquer preâmbulo ou justificação de motivos, que permitisse apreender as efectivas e reais razões que de modo mais ou menos atabalhoado iam sendo aventadas como justificando a alteração. – Logo, torna-se hoje muito difícil perceber qual a filosofia que a reforma pretende implementar! Tanto mais quando, como poderemos ver adiante, algumas das alterações parecem direccionar o processo penal em determinada direcção, quando outras manifestam o desejo do legislador de ir em direcção oposta (v.g., redução do segredo de justiça e aumento do segredo no que respeita a alguns meios de prova, como é o caso das escutas telefónicas). – Paralelamente, detectaram-se alterações introduzidas no CPP que não tiveram origem, e que assim não foram motivadas, nos trabalhos da Unidade de Missão que preparou o projecto… o que de per si não implica qualquer estranheza, conquanto se consiga apurar a paternidade da alteração, e, do mesmo passo, a ratio que a motivou. – Porém, havendo alterações de pai incógnito gera-se alguma perplexidade óbvia na comunidade científica do direito… além de ser impensável que, num processo legislativo de um Estado de direito democrático, qualquer pessoa possa inopinadamente e infundadamente introduzir alterações nas leis sem que se consiga determinar em que momento e lugar, e concretamente quem, fez a alteração no projecto… – Esta 15ª alteração implica modificações em mais de 180 normativos legais, i.e., em mais de 1/3 do Código de Processo Penal, diploma que apresenta 524 artigos (claro que algumas se traduziram em alterar extensos por números, etc. … i.e., alterações meramente cosméticas superficiais). – Por outro lado, traduz a 15ª alteração ao CPP uma considerável inovação em questões fundamentais e estruturantes do ordenamento jurídico processual penal, como sejam a já referida redução quantitativa e qualitativa do segredo de justiça, a redução do âmbito de aplicação da prisão preventiva (a mais grave das medidas de coacção), alterações profundas em alguns momentos da efectivação prática dos meios de obtenção de prova (buscas nocturnas, perícias), etc. – Apesar do sublinhado, de modo totalmente incompreensível, seja política seja dogmaticamente, estipulou-se uma vacatio legis de 11 dias! Tal é, a todos os títulos, totalmente incompreensível e inaceitável. Com efeito, basta atentar que na reforma introduzida pela Lei n.º 58/98 de 25 de Agosto, a entrada em vigor foi fixada para 1 de Janeiro de 1999. – Por fim, inexistem a acompanhar a 15ª Alteração ao CPP normas especiais de aplicação da lei no tempo… termos em que se terá necessariamente Página 1 de 17

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de lançar mão de critérios dogmáticos, alguns de difícil concreta operacionalização, para saber se uma concreta norma se aplica ou não a partir do dia 15 de Setembro e a que processos (aos processos que estão pendentes? Àqueles que se iniciarem no futuro, claramente… mas a data da prática do crime ser anterior ou posterior ao dia 15 de Setembro será relevante ou não? Pior: sendo regra geral que as normas de processo se aplicam imediatamente aos processos pendentes, não menos certo é que as excepções do art.º 5º já fizeram correr rios de tinta normas processuais penais de conteúdo material ou direito processual penal material. Ex. dos problemas que poderiam ter sido resolvidos com estas normas transitórias são as libertações de presos preventivos a aguardarem o trânsito em julgado de decisão em recurso. Só ignorância ou incompetência justificam este tipo de procedimento).

– Ponderando que parte das questões atrás respigadas será objecto de comunicações de outros conferencistas, circunscreveremos a nossa análise às questões enunciadas inicialmente.

Aspectos estruturantes da 15ª alteração ao CPP –

A 15ª alteração ao CPP trouxe, como referido retro, considerável inovação em questões fundamentais e estruturantes do ordenamento jurídico processual penal, v.g. •

Redução quantitativa e qualitativa do segredo de justiça;



Redução do âmbito de aplicação da prisão preventiva (a mais grave das medidas de coacção);



Alterações profundas em alguns momentos da efectivação prática dos meios de obtenção de prova (buscas nocturnas, perícias), etc.



Todavia, atenta a total falta, como também já sublinhado, de uma exposição de motivos que permitisse ao intérprete acompanhar o sentido das alterações impostas, uma análise dos aspectos estruturantes da alteração ao CPP será necessariamente indutiva e não dedutiva, i.e., uma análise construída a partir da concreta apreciação dos diversos institutos e momentos fulcrais do processo penal, tarefa essa que, a nosso ver e grosso modo, esgota os temas das conferências que serão proferidas até ao final do dia.



Com efeito, apenas uma análise dos regimes legais relativos aos tópicos que seguidamente se enunciam permitirá a final concluir no sentido de que a alteração segue neste ou naquele caminho.



Por outras palavras, apenas: •

Analisando as alterações aos princípios fundamentais e aos regimes de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial;



Analisando as alterações introduzidas nos meios de prova e nos meios de obtenção de prova, bem como os concomitantes mecanismos de contrôle;



Analisando as modificações introduzidas aos métodos de investigação e recolha de prova;



Analisando a tramitação processual prevista no CPP após esta 15ª alteração;

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Se poderá saber quais os aspectos estruturantes desta alteração ao CPP, que o mesmo é dizer que apenas no final da apresentação de todas as conferências deste dia se poderá à guisa de balanço concluir com segurança que os aspectos estruturantes da “alteração” são estes ou aqueles.



Assim sendo, não querendo meter a foice em ceara alheia, limitarnos-emos a manifestar as nossas sensações relativamente ao que sejam esses aspectos estruturantes, com isso obviamente não perturbando conclusões que os Conferencistas que se nos seguem venham a tirar e que, inclusivamente, não sejam consentâneas com a opinio iuris que aqui expendemos.



Nestes termos, anunciemos já ser nossa sensação que os aspectos estruturantes da 15ª alteração ao CPP são os seguintes: •

Preocupação em destruir o segredo de justiça em processo penal tal como era conhecido, substituindo o cenário legal por outro totalmente diverso, seja quantitativa seja qualitativamente, sem prejuízo de uma excepção de relevo, e, a nosso ver, totalmente injustificada;



Preocupação em satisfazer o clamor público que há largos anos vinha crescendo em torno da prisão preventiva, i.e., no sentido da redução da aplicabilidade dessa medida de coacção;



Preocupação em dificultar a outrance, de modo que igualmente consideramos totalmente injustificado, a aquisição do estatuto de Arguido;



Preocupação em garantir a criação de várias vias de, por motivos exclusivamente formais, inviabilizar a investigação processual penal, prejudicando a busca da verdade material e a justiça de mérito em benefício de uma justiça formal (diríamos, a criação de mecanismos de potenciação da obtenção de absolvições da instância em prejuízo da obtenção de absolvições do pedido e/ou de condenações).



Tudo quanto melhor se explicita subsequentemente, não sem antes apresentar algumas notas sobre o conceito de criminalidade económica, a fim de garantir utilizarmos todos a mesma linguagem.

A criminalidade económica (realidade virtualmente “indefinível”) –

Criminalidade económica é expressão de uso enraizado e consagrado, seja no âmbito jornalístico e sociológico, seja mesmo no âmbito jurídico, mau grado a quase impossibilidade da respectiva definição. Aliás, difícil é encontrar dois autores que se refiram à mesma realidade subjacente quando lançam mão de tal designação, tal como acontece com a utilização da expressão, de raiz criminológica, crime de colarinho branco, criando-se assim uma profunda confusão dogmática seja ao nível jurídico, seja ao nível da criminologia, sempre que se utilizam tais significantes.



Assim que com a expressão criminalidade económica possa querer referir-se realidades muito distintas (a este respeito cfr. o nosso A responsabilidade penal dos "Quadros" das Instituições no domínio da criminalidade

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económica, Dissertação de Mestrado, Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, Capítulo I, pp. 18 e ss.).



Para efeitos desta conferência, e na linha do que vimos defendendo na fonte bibliográfica citada, “consideram-se como crimes económicos apenas aqueles comportamentos ou actividades económicas que são por lei considerados crimes, tipicamente. Com amargura, contudo, se depara com nova problematicidade, pois mesmo cingindo-nos à classe de comportamentos que são legalmente tipificados como crime não se encontra unanimidade quanto a saber quais desses comportamentos é que verdadeiramente são crimes económicos. É que um direito penal económico pressupõe, para individualização dos respectivos tipos de crime, um modelo ou estrutura social e um qualquer grau de desenvolvimento económico, tudo dados altamente variáveis no espaço e no tempo. Assim, qualquer definição de direito penal económico será necessariamente conformada pela estrutura económica da sociedade e pelas concepções de Estado e de Direito, de igual característica se revestindo os crimes respectivos1.”



“Assim que a doutrina parta em regra da definição de Direito da Economia (…) numa tentativa de conformar através deste o âmbito do paralelo Direito penal económico. Com semelhante metodologia desemboca-se numa definição de Direito penal económico como conjunto das normas jurídico-penais que protegem a ordem económica, sendo esta a regulamentação jurídica do intervencionismo estatal na economia. Como bem salienta Mourullo, será então o Direito penal económico uma "parcela do denominado Direito económico, ou seja, do Direito da Economia dirigida pelo Estado."2. Mas logo emergem observações críticas, compreensíveis. É que se é certo que o Direito penal económico, como atrás se disse, acompanha a estrutura social e o grau de evolução económica de cada momento histórico, então existirá um Direito penal económico próprio de cada época, que será aquele que tutela os valores económicos desse momento. Sendo assim, como logicamente parece ser, não será difícil encontrar, nos Códigos Penais vigentes na maioria dos Estados, normas que outrora tutelavam (e se calhar ainda hoje tutelam) precisamente esses valores económicos considerados essenciais ao longo da nossa caminhada civilizacional. E realmente, sob títulos ou capítulos de extensão variável, encontramos crimes contra o património ou contra a propriedade, que noutros tempos eram seguramente o mais longe que o Estado intervinha no seio da vida económica 3/4.”

1 Gonzalo Rodriguez Mourullo, Consideraciones político-criminales..., in ADPCP, cit., p. 680 escreve: "... cada sistema económico genera su propia delincuencia económica, sucediendo por ello que lo que se considera delito en una economía dirigida no lo es en una economía de libre mercado, y a la inversa". 2 Gonzalo Rodriguez Mourullo, Consideraciones político-criminales..., in ADPCP, cit., p. 679. Em igual sentido, M.Bajo Fernández, Derecho Penal económico ..., cit., 1978, p. 37. 3 Tais crimes contra o património, ou contra a propriedade, claramente de ascendência Romanística, visam, também e ainda hoje, a protecção da "ordem económica", ou melhor, de um certo aspecto da ordem económica, nomeadamente daquela que erige a propriedade num valor fundamental da colectividade. Sobre tal filiação cfr. J. Mª. Rodríguez Devesa, Consideraciones generales sobre los delitos contra la propiedad, in ADPCP, 1960, p. 39. É interessante a apresentação comparativa feita por este autor entre os actuais tipos penais e os seus antepassados Romanos, demonstrando que o furto radica no furtum, o roubo na rapina, a usurpação de imóveis na invasio, a burla no stellionatus, a usura Página 4 de 17

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“Por outro lado, muitos dos tipos penais desenhados em múltiplos diplomas legais demonstram que lhes subjaz uma ideia de economia ainda muito rudimentar, ou individualizada. São comuns os tipos penais que radicam em concepções medievais de comerciante (…). E não se julgue que esta compreensão de empresário e de comerciante foi já esquecida pelos sistemas jurídicos contemporâneos. Que assim não é demonstram-no muitos dos tipos penais em matéria falimentar. Por tudo isto não será de espantar o surgimento de um conceito de Direito penal económico em sentido amplo, que engloba, para além do núcleo de criminalidade atrás delimitado (o Direito penal económico em sentido restrito), os velhos crimes de conteúdo económico-patrimonial, como a usura, a burla, a usurpação de imóveis e mesmo o roubo e o furto. Ou seja: usando este conceito lato de Direito penal económico pretender-se-ia abranger não só os comportamentos que violam a regulamentação da intervenção do Estado na economia mas também outros tipos de comportamentos, que lesando imediatamente interesses patrimoniais particulares só reflexamente atingiriam a ordem económica de determinado Estado5.”



“Assim se justifica historicamente o surgimento dos dois entendimentos paralelos do Direito penal económico. Mas indubitavelmente que a simples existência destes dois conceitos é suficiente para gerar algumas perplexidades6, as quais por seu lado serão responsáveis pela menor credibilidade e aceitação da autonomia científica deste ramo do direito. Na linha de circunscrição que se tem vindo a adoptar resultará evidente que o conceito amplo de nada nos pode servir. A abrangência aqui gera inadmissibilidade dogmática, uma vez que não cabe unificar sob um mesmo conceito realidades de conteúdo muito díspar, que lesam bens jurídicos de natureza distinta, mesmo que em última análise impliquem sempre uma qualquer lesão da ordem económica. Como é referido por muita doutrina, reflexos económicos ou patrimoniais e efeitos sobre a ordem económica podem surgir de todo o tipo de comportamento, podendo mesmo tal comportamento ser exclusivamente de ordem privatística ou implicar o preenchimento de tipos penais ditos clássicos, que nada têm que ver com a criminalidade económica7.”



“Há pois que lançar mão do conceito restrito de Direito penal económico atrás delineado, mas mesmo aqui com a advertência de que nunca se conseguiu, o que será porventura uma inescapável fatalidade, elaborar um conceito indiscutível8 e com potencialidades

no dardanariatus, o dano no damnun iniuria datum, etc. 4 Lê-se no nº 9 do Preâmbulo do D.-L. n.º 28/84 de 20 de Janeiro a seguinte afirmação do legislador: "Não se desconhecendo, embora, a proximidade material entre os crimes contra a economia e os crimes contra o património (...) não pode ignorar-se a natureza eminentemente supra-individual dos bens jurídico-económicos para o efeito da determinação das sanções a aplicar às condutas que com eles contendem. " 5 Exemplos deste tipo de comportamentos seriam as falências fraudulentas, a concorrência desleal, eventualmente o crime de emissão de cheques sem provisão, etc. 6 U. Balestrino, I problemi dei reati societari, Milano, 1978, p. 12. 7 Rodriguez Mourullo, Consideraciones político-criminales..., in ADPCP, cit., p. 680 exemplifica com o suicídio de um banqueiro, com o assassinato de um empresário e com ofensas ao bom-nome de uma empresa. 8 Precisamente a volatilidade do conceito de Direito penal económico, potenciada pela variabilidade Página 5 de 17

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que ultrapassem a mera enumeração descritiva. Julga-se, assim, ser possível afirmar que o Direito penal económico é o conjunto das normas jurídico-penais que protegem e regulamentam o intervencionismo estatal na Economia, devendo tal critério ser casuisticamente completado com a ponderação do conteúdo essencial do tipo cuja subsunção na referida categoria se pretende. E para tal ponderação há que averiguar, na falta de outro critério, o bem jurídico que com o comportamento incriminado é necessária e directamente ofendido. Não cabe, pois, aqui, utilizar um critério ampliativo, como seria o caso se se desse relevância a todos os interesses que resultariam violados, mesmo mediatamente, pela conduta típica. Munidos deste conceito podemos avançar, com a certeza, porém, de que a todo o momento se podem alterar as fronteiras do nosso Universo, bastando para tanto que se altere o grau, intensidade ou profundidade do referido intervencionismo, ou que se modifique a perspectiva Estatal sobre a via de tutela dos comportamentos concretamente visados9. Todavia, tal flutuabilidade não deve ser de molde a fazer-nos desencorajar. Uma vez mais socorrendo-nos da autoridade e expressividade de Mourullo, concluise que "lo importante en esta hora no es determinar si este o aquel hecho deben considerarse o no como delitos contra el orden económico y si éste puede o no considerarse desde el punto de vista dogmático como un específico bien jurídico, sino si, para el buen desarrollo de la vida económica, es necesario que este o aquel hecho se configuren como delito"10.” –

“Não obstante, e sem querer cair na tentação enumerativa (…), sempre se julga ser possível afirmar que o Direito penal económico se desdobra hoje por diversas áreas, v.g. o ambiente, a actividade bancária, cambial e de bolsa, o branqueamento de capitais, os processos falimentares, a indústria e a tecnologia, o trabalho, as sociedades comerciais, a fiscalidade, a regulamentação urbanística, as questões da produção, comércio e consumo de bens e serviços, a saúde pública, os subsídios e subvenções e as disposições comunitárias em todas estas matérias11”.

Alterações processuais com impacto na criminalidade económica –

Em face da definição tendencial apresentada de criminalidade económica, e ponderando aqueles que atrás considerámos serem os

espácio-temporal das realidades merecedoras de tutela e de intervenção estatal, é que leva muitos autores a preferir regulamentar esta matéria com recurso a figurinos não penais, ou seja, recorrendo àquilo a que os Anglo-saxónicos chamam de regulatory offenses, e que os continentais, sob diversas capas, identificam como sendo os mala prohibita, as contra-ordenações, o direito administrativopunitivo, etc... 9 Klaus Tiedemann, Wirtschaftsstrafrecht im Ausland, in GA, 1969, p. 320, salienta também a instabilidade e dinamicidade do Direito penal económico. 10 Rodriguez Mourullo, Consideraciones político-criminales..., in ADPCP, cit., p. 681. Igual posição, aliás, sustenta Bajo Fernández, Derecho penal económico, cit., p. 51. 11 Sem querer daí retirar qualquer argumento, confira-se, por exemplo, o índice de matérias da RTDPE, editada pelas Edizioni Cedam, no qual se encontra o seguinte elenco: problemáticas gerais do Direito penal da economia, Comunidade Europeia, Direito penal do ambiente, Direito penal bancário, Direito penal falimentar, Direito penal industrial, Direito penal do trabalho, Direito penal societário, Direito penal tributário, Direito penal urbanístico, Produção, Comércio e Consumo, Crimes contra a saúde pública e Crimes contra a administração pública. Página 6 de 17

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aspectos estruturantes da 15ª alteração ao CPP, analisem-se então os impactos que as alterações respigadas podem ter na investigação e julgamento dos crimes susceptíveis de integrar a categoria identificada. •

A “destruição” e a “subversão” do segredo de justiça –

Distingue-se tradicionalmente na doutrina, e nas legislações, o segredo de justiça interno do segredo de justiça externo. O CPP, até 15 de Setembro de 2007, consagrava um regime de estrito segredo de justiça interno e externo até ao termo da fase do Inquérito, e um regime, quase que excepcional, de segredo de justiça externo até ao termo da fase da Instrução, verificados certos pressupostos. Em julgamento o processo era, sob pena de nulidade, público.



Ora, como atrás referido, detecta-se nesta 15ª alteração ao CPP a preocupação de extinguir o segredo de justiça, o que aliás constituiu resposta consentânea com pressões mediáticas permanentes que nos últimos 4 ou 5 anos vinham sendo apresentadas por alguns sectores políticos e mesmo alguns dos operadores judiciários (maxime a advocacia).



Com efeito, profundamente molestados com os incómodos, injustiças e abusos de poder que resultavam da realização de primeiros interrogatórios de arguidos detidos em que estes se encontravam totalmente desconhecedores do objecto do processo e mesmo dos factos de que eram acusados, os Advogados, no papel de Defensores, pugnaram durante longos anos por uma mudança do regime legal que lhes permitisse, e aos seus constituintes, enfrentar as ditas diligências judiciais em situação que não fosse de ignorância absoluta. Pretensão, sublinhe-se, perfeitamente legítima.



O fim pretendido pelos ditos Defensores, repita-se, era um e único: garantir que nos primeiros interrogatórios de arguidos detidos estes não fossem conduzidos a uma situação de material ausência de defesa, mercê da total ignorância de quais os factos de que eram acusados.



Sublinhe-se que tal situação material de ausência de defesa não era, manifestamente, admitida pelo espírito subjacente ao CPP, nem, muito menos, pela Constituição da República, maxime do art.º 32º do diploma fundamental.



Porém, como a maioria dos procuradores da república titulares de inquéritos e dos juízes de instrução criminal não davam cumprimento aos princípios enformadores do regime legal traçado, obviamente que ao arguido detido nada era esclarecido, capciosa e insidiosamente se tentando que um Arguido vendado se desviasse dos escolhos processuais existentes, tentando-se que o mesmo inadvertidamente acabasse por, por ignorância, entrar em contradições e acabasse por se auto-incriminar (muitas vezes até por lapsos formais, naturais ou induzidos).



O sistema era, obviamente, insustentável, como insustentável ainda é o confrangedor cenário em que hoje em dia se desenrolam as instruções criminais e que o legislador não curou de inverter (questão a que abaixo se regressará).

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Para obviar a tal cenário foi proferida pelo Tribunal Constitucional, cobrindo aliás jurisprudência do STJ, jurisprudência obrigatória que determinava o inequívoco direito do arguido detido de ser informado dos factos de que era acusado, para que desse modo não estivesse numa situação de nem sequer saber em rigor de quê é que se defendia.



Porém, não satisfeito com a solução doutamente fixada pela jurisprudência – e que era mais do que suficiente para evitar os fenómenos de indefesa referidos –, nem sequer com a tradução de tal jurisprudência na letra da lei12, o legislador de 2007 entendeu por bem estabelecer o regime regra de que o processo criminal, em todas as suas fases, será público sob pena de nulidade.



Afirmam alguns que tal se deveu ao facto de igualmente prejudicar os direitos de defesa a ignorância pelo Arguido do conteúdo do inquérito, o que de modo algum podemos aceitar em termos de justiça e equilíbrio do processo penal, como abaixo melhor se verá.



Ao erradicar, por regra, o segredo de justiça do processo penal, mesmo do inquérito, o legislador, contudo, foi muito mais além do que aquilo que seria esperável (pelos Advogados), defensável (pela doutrina) e admissível (por todos os cultores e aplicadores do processo penal).



Com efeito, olvidando a distinção entre segredo de justiça interno e externo, o legislador fulminou com a nulidade os inquérito em que haja segredo, tout court (ressalvada excepção a que adiante se alude), assim eliminando não só o segredo de justiça interno (que impedia “as partes” de conhecerem o teor dos autos, e, assim, de estarem em situação material de impossibilidade de defesa), mas também o externo.



Veja-se, portanto, o art.º 86º – Para existir segredo de justiça em inquérito, de duas, uma: •

ou o MP por despacho determina a aplicação de segredo de justiça, tendo o JIC de validar tal decisão em 72 horas (!) – (mais um caso em que o processo tem de ser remetido ao JIC, perdendo-se agilidade da investigação) –;



ou o arguido, o assistente ou o ofendido o requerem ao JIC, que ouvindo o MP decidirá se há ou não segredo conforme a publicidade prejudique ou não, a seu ver, os direitos dos ditos requerentes… atente-se no dano que pode causar a todos os Arguidos mediáticos o facto de o processo ser público desde o inquérito, mesmo contra a decisão do MP…

12 Art.º 61º n.º 1 al. c) – Uma boa alteração: o Arguido tem direito de ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade – com esta norma consagra-se em letra de Lei a última jurisprudência tirada pelos Tribunais Superiores no Caso Casa Pia… Afigura-se ser uma boa mudança, posto que o Arguido deixa de estar às cegas, como até hoje estava quando prestava declarações (v.g. em primeiro interrogatório judicial de arguido detido). Mas se é uma boa alteração, há que ter cuidado. Uma coisa é informar os factos que são imputados ao visado, outra coisa comunicar-lhe os meios de prova que existem contra si… (como foi anunciado e como fora discutido em casos judiciais recentes)… tal comunicação dos meios de prova poderia por em perigo a própria investigação. Felizmente não consta do art.º 61º n.º 1 al. c)… veremos o que decidirão os Tribunais em futuras situações em que a questão venha a ser suscitada.

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Ora, como se sabe, o responsável único pelo inquérito é o MP, é ele o responsável pela investigação, e ele melhor que ninguém sabe se a estratégia investigatória implique ou mesmo impõe o segredo… outro sujeito, que nenhuma responsabilidade tem sobre a investigação, é que decide… o JIC, juiz das liberdades, chamado a decidir do segredo e, assim, da sorte de toda a investigação! Parece-me incoerente e incorrecto.



Mais: a publicidade pressupõe a possibilidade de assistência pelo público em geral à realização dos actos processuais (86º n.º 6)… pergunta-se: o público em geral pode entrar no gabinete do magistrado para assistir ao interrogatório do arguido?



Com esta alteração abriu-se a caixa de pandora! Tanto mais que o segredo de justiça, mesmo quando excepcionalmente exista, tem em inquérito a duração prevista no art.º 276º CPP (6 meses ou 8 meses, em regra, ou 8, 10 ou 12 meses excepcionalmente)…



A partir de 15 de Setembro de 2007, portanto, ao inquérito podem aceder (e assistir aos respectivos actos, bem como pedir cópias, extractos, certidões, etc.) quaisquer pessoas, e não só o Arguido e seu Defensor e o Assistente e seu Advogado.



Este regime regra apenas será excepcionado na eventualidade de o Ministério Público determinar, fundamentadamente e com confirmação judicial no prazo de 72 horas, a subordinação do processo ao regime do segredo de justiça, e ainda aqui apenas durante os limitados períodos de duração do inquérito.



Ultrapassados os prazos legais de duração de inquérito sem que o inquérito esteja encerrado, independentemente do dano que tal possa causar à investigação, ao Arguido e/ou ao Assistente, desaparece o segredo de justiça imposto ao processo, quer internamente, quer externamente.



Quanto à instrução, a mesma será sempre, e sem excepção, fase tão pública como já era o julgamento anteriormente.



A admissibilidade e bondade do regime são, a nosso ver, totalmente indefensáveis, em geral, e particularmente no que respeita à chamada criminalidade económica, atentas as particularidades, especificidades e dificuldades investigatórias que caracterizam esse tipo de criminalidade, maxime quando a mesma se manifesta nos seus níveis mais perigosos e socialmente danosos, a saber: a criminalidade transnacional, especialmente complexa atentos os meios de comissão do crime ou a área da economia em que se verificam, a criminalidade altamente organizada, etc.



Dir-se-á: mas nesses tipos de criminalidade os prazos de duração dos inquéritos são mais latos do que na criminalidade normal, termos em que os prazos de duração de inquérito já são mais latos, consequentemente beneficiando o investigador da possibilidade de manter os autos secretos muito mais tempo.



Convirá, contudo, recordar algo que o legislador, na ânsia de proteger os arguidos (ou pelo menos alguns Arguidos cuja protecção não terá deixado de ser ponderada), que o segredo de justiça NUNCA protegeu apenas o sucesso da investigação e o trabalho do Ministério Público. Ao invés, e contra a errada corrente jurisprudencial quase que uniforme dos Página 9 de 17

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Tribunais portugueses, o segredo de justiça tinha múltiplas funções, apontadas pela melhor doutrina, nomeadamente, e ao lado da garantia do sucesso da investigação, a protecção do Arguido (da sua honra, bom-nome, crédito, e mesmo integridade física), e do Assistente (idem). –

Ora, ao criar um regime inultrapassável de publicidade, regra, do inquérito, o legislador nem sequer permitiu que o processo se mantenha secreto a requerimento do próprio Arguido e/ou do Assistente. Este é um caso em que, como nos ensina sabiamente o povo, “o diabo tanto quis à mãe que lhe tirou um olho”…



Uma certeza, porém, nos fica: havendo a correcta motivação, gerada por um ou outro caso mais mediático, e de sopetão surgirá uma nova alteração legislativa a permitir a criação de algo que o regime já devia consagrar, a saber: uma válvula de segurança que autorize o Juiz de Instrução Criminal a prorrogar, para além dos prazos legais, o regime do segredo de justiça.



E quanto se diz para o inquérito vale, sobremaneira, para a fase instrutória: recorde-se que até aqui a Instrução poderia ser secreta se, tendo a mesma sido requerida pelo Arguido, este requeresse a manutenção do segredo. Pergunta-se: porque seria esse o regime? Precisamente porque o segredo, na fase de instrução, poderia ser a via única para garantir a tutela dos bens jurídicos pessoais do Arguido, e até para garantir que a instrução era feita pacífica e serenamente sem a constante pressão de estranhos (que nenhum interesse poderão ter, seja a que título for, na realização da justiça, mas apenas na mediatização de um ou outro caso, mercê de um excessivo endeusamento de liberdades de imprensa ou outras, que hoje em dia tudo justificam, independentemente da magnitude dos interesses por essa liberdade violados ).



A partir de 15 de Setembro, portanto, mesmo que todos os sujeitos processuais estejam de acordo na manutenção do segredo, mesmo que os bens jurídicos do Arguido e do Assistente impusessem a manutenção do segredo, mesmo que a justiça apenas se pudesse realizar através de uma investigação secreta, o processo será público, sob pena de nulidade.



É, pois, manifesta a total falta de fundamento e de bondade do regime instituído. Quisera o legislador tutelar os fins que parece ter querido tutelar, e ter-se-ia limitado a estabelecer exclusivamente como regra sem excepção um segredo de justiça externo durante o inquérito, e como excepção, verificados certos pressupostos, o segredo de justiça externo durante a instrução.



Ademais, a tutela dos direitos de defesa que a publicidade garante era suficientemente atingida pela publicidade do julgamento. Tanto mais que nenhum direito à defesa pode ser levado a um extremo tal que impeça material e objectivamente a realização das investigações criminais em segredo de justiça na fase embrionária.



Com efeito, a nosso ver os direitos de defesa do Arguido, os direitos do Assistente e o fim da boa realização da justiça criminal seriam muito melhor tutelados e de modo muito mais equilibrado, após a prolação da jurisprudência constitucional atrás referida, se se garantisse um inquérito secreto (totalmente, i.e., interna e externamente), com a única excepção das informações a prestar ao Arguido nos limites jurisprudencialmente fixados.

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Apenas assim se garantiria a prossecução de um outro fim tão digno e tão constitucionalmente protegido como o direito de defesa, i.e., o da boa administração da justiça (garantir que o sistema tem meios efectivos de combate à criminalidade e de defesa do todo social). Se é certo que todos os arguidos se presumem inocentes, não menos certo é que só há condenados que tenham sido arguidos, o que bem mostra que a tutela dos princípios não pode ser cega à realidade e ao fim último que todo o Direito visa assegurar: a defesa da sociedade.



Todavia, caso assim se não entendesse, e se se quisesse desproteger a investigação criminal a bem dos direitos de defesa, então consagrar-se-ia um segredo de justiça externo como regra durante o inquérito (com as excepções anteriormente existentes no CPP). E aí menores teriam sido os danos causados pelo legislador ao processo penal português e, em geral, à defesa da vida em sociedade.



Com tudo isto, como é patente, será muitíssimo danoso o impacto que a 15ª alteração ao CPP terá na perseguição, detecção, investigação e julgamento de alguma criminalidade económica, posto que a regra da publicidade do inquérito esvaziará de conteúdo muitas investigações, tornando aliás impossível uma verdadeira investigação a partir do momento em que os agentes se apercebam da existência e conteúdo das investigações.



Por outro lado, a validação por um Juiz de Instrução Criminal do segredo de justiça excepcionalmente decretado pelo Ministério Público traz ainda outro problema: o de que passa a ser o JIC, um terceiro imparcial que deveria funcionar exclusivamente como um Juiz das Garantias do Arguido, a poder conformar radical e profundamente a própria investigação e respectivo sucesso. O JIC passa a ter um papel determinante nas opções estratégicas que no nosso sistema não podem deixar de caber ao dominus do inquérito. Passa assim o JIC a intervir demasiadamente na estratégia investigatória, e até a participar do sucesso ou insucesso respectivo, de alguma forma podendo até limitar o exercício pelo M.ºP.º das suas competências constitucionalmente consagradas.



Mas não só! Se por um lado a 15ª alteração do CPP extinguiu o segredo de justiça, nos termos vistos, numa lógica de publicidade dificilmente compreensível nas fases liminares do processo, tecendo laudas a uma filosofia de sentido oposto, veio a consagrar um novo e inaudito, e injustificável diga-se, segredo de justiça que atravessa o inquérito, a instrução e o julgamento, permanecendo mesmo para além do trânsito em julgado da decisão condenatória.



Por outras palavras, incompreensivelmente, as escutas nunca poderão ser difundidas / publicitadas na comunicação social13 Pergunta-se: porquê só as escutas (conversações ou comunicações)? Intercepção de imagens também? Porquê é que a proibição de publicação não se restringe, como as demais do n.º 2 e do n.º 3, ao momento anterior à sentença de 1ª instância? Porquê é que é o único caso em que se exige o consentimento dos intervenientes para a publicação?... A ser boa esta solução, que não é, outros meios de prova não deveriam ter o mesmo regime? (v.g., simples documentos

13 Esta a alteração à Lei que não constava do projecto da unidade de missão e que ninguém agora confessa tê-la introduzido! Página 11 de 17

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escritos… manuscritos por alguém ou subscritos por alguém, como um diário íntimo…).



Ou seja, manter-se-ão em segredo de justiça as ditas escutas telefónicas não só durante o próprio julgamento, mas mesmo após a extinção do processo…



Qual a lógica deste super segredo de justiça numa fase processual que sempre tinha sido pública sob pena de nulidade é algo que se desconhece (aliás, o carácter público dos julgamentos penais é mesmo considerado um reduto último das garantias de defesa dos arguidos e a pedra de toque da democraticidade dos regimes políticos).



A motivação parece só poder uma: garantir que o que constar dos autos a título de escutas nunca seja do conhecimento de ninguém fora do processo, protegendo todos aqueles que foram escutados, fossem o próprio Arguido, ou terceiros.



Porém, como é bom de ver, uma decisão penal, condenatória ou absolutória, é, sob pena de nulidade, obrigatoriamente fundamentada. E fundamentação pressupõe uma valoração de todos os meios de prova, incluindo escutas telefónicas. Ora, a valoração pressupõe uma discussão crítica do julgador consigo mesmo sobre os meios de prova, e assim também sobre o teor das escutas telefónicas. Pergunta-se: como pode um acórdão ser publicado, se na fundamentação os Juízes discutem na fundamentação da decisão, v.g., o teor de escutas telefónicas? Riscar-se-á para publicação as partes transcritas? E então como será a decisão perceptível pela comunidade?



Claramente que o legislador nunca equacionou todas questões, consagrando um regime legal que, além de totalmente infundado (seja porque razões forem), é totalmente inoperativo, sendo inclusivamente violador de uma das regras sacrossantas de qualquer processo penal justo, a saber: a da insofismável e completa fundamentação das decisões penais.



Como escrevemos noutro lugar14: “Daí a afirmação de que toda a decisão do poder tem de ser fundamentada, i.e., justificada e esclarecida, sob pena de o órgão do Estado, ou o respectivo titular (o que na perspectiva do destinatário da decisão será o mesmo), estar a exorbitar o próprio mandato que recebeu do Soberano. Razão pela qual também as decisões jurisdicionais o deverão ser (terão de ser), e, dentro destas, e por maioria de razão, as decisões que têm por consequência a violação ou compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos15. Dito de outro modo, filiamos inequivocamente o dever de fundamentação das decisões jus-penais no núcleo essencial dos direitos fundamentais, mais precisamente dos chamados direitos, liberdades e garantias16. Nos Estados de Direito é a própria Constituição que exige, portanto, a fundamentação / motivação das

14 Paulo Saragoça da Matta, A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação das sentenças, in Jornadas de Direito Processual Penal – FDUL – 5 de Novembro de 2003, Almedina, Coimbra, 2004, pp. … . 15 Aliás, nesse sentido se orienta o entendimento, tendencialmente uniforme, do Tribunal Supremo espanhol. 16 Atendendo aos Direitos, Liberdades e Garantias comprimidos ou limitados com a decisão, e isto relacionado com o disposto no art.º 18 CRP. Página 12 de 17

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decisões jurisdicionais, maxime, das decisões penais – diga-o ou não o texto formalizado daquela. Com a doutrina tradicional podemos concluir, aliás no sentido do que já no capítulo anterior ficou escrito, que a finalidade da fundamentação das decisões é tríplice: “lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos”17.” –

E mais: “A Lei ordinária portuguesa expressamente consagra o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art.º 374 n.º 2 –, outrotanto erigindo a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art.º 365 n.º 2 –, e na escolha e determinação da pedida da sanção a aplicar ao arguido – art.º 375 n.º 118. Fá-lo, aliás, na sequência do texto do art.º 205 n.º 1 da CRP19. Questão diversa é determinar em quê que a motivação das sentenças se consubstancia. Quanto a nós, pensamos que a fundamentação das sentenças consistirá: (a) num elenco das provas carreadas para o processo; (b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras; (c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e, (d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.”



“Diga-se, com rigor absoluto, que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica,

17 G. Marques da Silva, op. cit., p. 112. Segue o citado Autor: “A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias. O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova. Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade” (p. 113). 18 No art.º 374 n.º 2, dispõe o legislador: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”. Já o art.º 365 n.º 3 estatui: “Cada juiz e cada jurado enunciam as razões da sua opinião, indicando, sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, e votam sobre cada uma das questões, independentemente do sentido de voto que tenham expresso sobre outras. Não é admissível a abstenção”. Por último, e quanto à escolha e medida da sanção, rege o art.º 375 n.º 1: “A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social”. Quanto à sentença absolutória a mesma está isenta, por vontade do legislador, de qualquer fundamentação, como decorre do cotejo entre a citada disposição do art.º 375 n.º 1 e o regime constante dos n.ºs 1 e 3 do art.º 376. A tal respeito, em especial sobre a influência que na questão tem o princípio da presunção de inocência, confira-se a Declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma, anexa ao Acórdão n.º 55/97 (processo n.º 330/94). Em sentido não coincidente, a Declaração de voto do Conselheiro Bravo Serra. 19 Art.º 205 n.º 1 CRP – “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Página 13 de 17

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perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer). Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido.





Ora, fundamentação alguma realmente existirá se um meio de prova devidamente ponderado na sentença não puder ser conhecido pela colectividade, como motivadora da decisão, completamente analisado e escalpelizado. E não será difícil imaginar casos em que o grosso da prova subjacente à condenação, pelo menos a prova mais clara e determinante dos demais juízos de inferência probatória, sejam escutas telefónicas, maxime neste tipo de criminalidade económica… as quais por graça do legislador de 2007 passaram a ter de ser escondidas perpetuamente, sob a capa do segredo de justiça imposto.



Acresce ainda que, conforme dispõe o art.º 187º, Escutas telefónicas só serão admissíveis durante o inquérito… não as pode haver nas fases subsequentes à acusação… e ainda assim apenas contra suspeito, arguido, intermediário ou vítima (este último com consentimento expresso ou presumido).

A redução do alcance da prisão preventiva –

Estabelecia o art.º 202º que poderia ser determinada a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva quando, para além de outros requisitos, o processo criminal tivesse por objecto “crime doloso punível com pena de prisão de máxima superior a três anos”.



Após esta alteração ao CPP, tal requisito passou a referir “crime doloso punível com pena de prisão de máxima superior a 5 anos”, admitindo-se, contudo, que se a criminalidade for “altamente organizada” basta “crime doloso (…) punível com pena de prisão de máxima superior a 3 anos”.



Da Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro (infracções anti-económicas e contra a saúde pública), deixam de admitir prisão preventiva: • art.º 36º: fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, excepto nos casos “particularmente graves” (n.º 2); • art.º 38º: fraude na obtenção de crédito • Os crimes de corrupção dos art.ºs 41º-B e 41º-C já não admitiam anteriormente mercê da moldura penal



Do Código Penal deixam de admitir prisão preventiva: • art.º 205º: abuso de confiança, salvo para quantias consideravelmente elevadas; • art.º 218º n.º 1: a burla qualificada (apenas a hiper-qualificada mantém) Página 14 de 17

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art.º 219º n.º 1: a burla relativa a seguros qualificada (apenas a hiper-qualificada mantém) art.º 221º: a burla informática e nas comunicações qualificada (apenas a hiper-qualificada mantém) art.º 222º: a burla relativa a trabalho ou emprego (apenas a qualificada mantém) art.º 223º: a extorsão (excepto a do n.º 3) art.º 224º: a infidelidade já não admitia e assim se manteve art.º 225º: o abuso de cartão de garantia ou crédito (excepto a do n.º 5, al. b) art.º 226º: a usura deixou de admitir em qualquer modalidade art.º 227º: a insolvência dolosa; art.º 231º: a receptação; • Em suma, todos os crimes contra direitos patrimoniais do CP – 227º a 233º são crimes que não admitem prisão preventiva • Os crimes contra o sector público ou cooperativo 234º e 235º também não admitirão por regra prisão preventiva art.º 256º: falsificação ou contrafacção de documento; art.º 257º: falsificação praticada por funcionário público; art.º 269º: contrafacção de selos, cunhos, marcas ou chancelas; art.º 272º: incêndios, explosões ou outras condutas especialmente perigosas praticadas por negligência art.º 374º: corrupção activa; art.º 377º: participação económica em negócio.

De referir ainda que o sistema legal anterior previa que: • Os danos contra a natureza, a poluição, a poluição com perigo comum, o perigo relativo a animais ou vegetais, a recusa de médico, o atentado à segurança de transporte rodoviário, todos os crimes eleitorais, a falsidade de depoimento ou declaração, de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, o suborno, o favorecimento pessoal, o favorecimento pessoal praticado por funcionário, a corrupção passiva para acto lícito, o peculato de uso, a concussão, etc., tudo são crimes que não admitem prisão preventiva; • O crime de associação criminosa praticado por quem promover ou fundar grupo ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes também parece não admitir prisão preventiva (299º CP – apenas as chefias ou direcções desses grupos poderão, nos termos do n.º 3, ser presos preventivamente)… mas há o 202º, n.º 1 al. b) CPP (!!!).



A dificuldade de constituir Arguido –

Art.º 58º – a constituição de Arguido, que era automática por qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (sendo esforço da doutrina que tal constituição acontecesse o mais cedo possível para proteger os visados), passou a estar dependente de validação judiciária (MP ou JIC).



i.e., se a Polícia constituir alguém como arguido, comunica em 10 dias ao MP ou ao JIC, e passa a ser exigível uma intervenção deste Página 15 de 17

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MP ou JIC, em 10 dias, para validar ou não tal constituição como arguido; –

Pressupõe-se, assim, que se o MP ou JIC nada disserem (o que será a maior parte dos casos, porque objectivamente não há tempo para estes formalismos todos), se aplica a sanção do n.º 5: omissão das formalidades leva a que as declarações dessa pessoa não possam ser usadas como prova…



Estipula-se, assim, a sanção máxima para uma violação de formalidade, que, sinceramente, não parece ter qualquer utilidade nem fundamento…



Com efeito, não esqueçamos que o conceito e estatuto jurídico de arguido não é negativo, é protector, pelo que é incompreensível que o argumento social ou mediático de que ser arguido “é mau” leve o legislador a alterar incongruentemente o sistema.



Atente-se no seguinte: todos estes formalismos (que considero completamente infundados e desnecessários), entorpecem muito mais o processo do que aquilo que tradicionalmente costuma apontar-se como sendo causa dos atrasos dos processos (v.g., recursos, outras medidas processuais consideradas garantísticas, etc.).



Por seu turno, no art.º 58º.º 1 al. d) estabelece-se a obrigatoriedade de constituição de arguido quando for levantado “auto de notícia” que “dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada” (!)… não compreendo;



Ora, lançando mão do 243º constata-se que autos de notícia são documento que apenas é levantado se e quando “uma autoridade judiciárias, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória”…



Pergunta-se: sendo a entidade que levanta ou manda levantar um auto de notícia uma entidade dotada de especiais conhecimentos sobre processo penal, e se se está em face de um crime de denúncia obrigatória (que para alguma doutrina, que não acompanhamos, considera tratarse apenas de crimes públicos), em que caso poderia a notícia ser manifestamente infundada? Em casos de total inabilidade ou incompetência dessa mesma autoridade?



Mais: como se conjuga isto tudo com a constituição a pedido do visado? Pode ser-lhe recusada a constituição porque o MP acha que é infundada a notícia, apesar de o visado dar importância e credibilidade a tal notícia? Como pode o visado defender-se disso?

O que estranhamente se não fez –

A – A fase da instrução encontra-se regulada nos art.ºs 286º a 310º CPP. No que concerne ao conteúdo da instrução são de particular importância os art.ºs 289º e 291º



A experiência dos últimos 20 anos (i.e., desde a entrada em vigor do CPP), permite concluir que a instrução é, na grande maioria dos casos, uma fase totalmente inútil, porque desprovida de conteúdo

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efectivo… estamos em face de uma fase quase que exclusivamente de papel, que de conteúdo instrutório propriamente dito pouco tem. –

Ora, permitir que a instrução tenha conteúdo útil, deixando de ser uma fase formal totalmente inútil na maior parte dos casos, dados os poderes verdadeiramente arbitrários do JIC no que respeita à apreciação da prova e à necessidade da prova, impunha-se quando se afirma que se pretende reformar o processo penal num sentido garantístico e de maior aproximação entre o processo e as necessidades de investigação…



Nada se fez neste aspecto, nomeadamente no sentido de limitar os poderes totalmente arbitrários conferidos ao JIC nos identificados normativos.



B – O estatuto do Assistente – Igualmente não foi garantido nesta alteração ao CPP o alargamento do estatuto de Assistente, profundamente debatido na doutrina, garantindo maior democraticidade do processo penal e maior possibilidade de fiscalização por parte dos cidadãos em relação à investigação, seu curso e sucesso (v.g. violação de segredo de justiça ou de processo para-penal)



C – Alteração substancial de factos – 1º n.º 1 al. f), 303º, 358º e 359º - No regime da alteração substancial de factos não só se consagrou uma posição doutrinal que nem por sombras era homogeneamente aceite na doutrina, como por outro lado se esqueceu o legislador de uniformizar as soluções previstas em sede de julgamento e em sede de decisão instrutória… se houve energia reformista para uma parte da questão, como é que ela faleceu quanto à outra parte da questão é situação totalmente incompreensível.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2008 Paulo Saragoça da Matta

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