CÓDIGOS DO BOM-TOM OU DE CIVILIDADE

June 3, 2017 | Autor: R. Charters-d'Aze... | Categoria: Protocols, Cortesia, Civilidad, Comportamentos, Codigos De Civilidade, Códigos De Bom-Tom
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CÓDIGOS DO BOM-TOM OU DE CIVILIDADE Ricardo Charters-d’Azevedo Engenheiro [email protected]

Resumo: Escritos de modo claro e didático, os guias de boa conduta, ou

manuais de bom-tom, tratados de saber-viver, ou regras de cortesia, dedicavam-se à "ciência da civilização" ou à civilidade e introduziam os seus leitores na vida de sociedade dita nobre, ou rica, que habitando em casas nobres ou em palácios, recebiam, organizavam bailes, reuniões, saraus e jantares. Palavras-chave: Bom-tom, normas de conduta, cortesia, etiqueta, civilidade, saber-viver

Abstract: Written in a clear and didactic way, the good conduct guide, or good manners manuals, treaties of savoir-vivre, or rules of courtesy, dedicated themselves to the "science of civilization" or the civility and allow readers to be introduced to society life or to the said noble society, or rich, that dwelling in noble houses or palaces, receiving, organizing dances, meetings, evening parties and dinners. Keywords: “Good-tone”, standards of conduct, courtesy, etiquette, civility, savoir-vivre

Introdução A discrepância entre as maneiras de apresentar a etiqueta é extensa. Se por um lado, os seus defensores no século XVII a apresentavam como um código de virtude, por outro, os historiadores do seculo XX analisam-na como um instrumento de propaganda e de autoridade. No entanto, ambos os pontos de vista compartem um certo entendimento. Tanto para uns como para outros, a etiqueta, utilizada devidamente, reforçava a hierarquia e imponha uma ordem. Conseguir impor a hierarquia e a ordem era o principal objetivo das culturas política e cortesã das primeiras elites dominantes modernas. Na Europa as normas de conduta foram sendo destiladas pelas elites e destinadas ao leitor desejoso em aumentar a sua aceitação na sociedade, pois aí estaria a chave para a sua promoção social. Estas normas começaram por ser pequenas trovas ou provérbios fáceis de memorizar. Os manuscritos medievais sobre boas maneiras transcreviam normalmente melodias simples e versos bem rimados, para serem facilmente memorizados.

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A palavra etiqueta1, a que correspondem regras comportamentais escritas e orais de que um grupo social se apropria, tem a sua utilização clara durante o seculo XVIII. A partir de finais desse século, e durante o século XIX, são utilizados os termos cortesia e civilidade. Estes termos foram igualmente utilizados com outros como saber-viver, boas maneiras, ou bom-tom. Escritos de modo claro e didático, os guias de boa conduta, ou manuais de bom-tom, tratados de saber-viver, ou regras de cortesia, dedicavam-se à "ciência da civilização" ou à civilidade e introduziam os seus leitores na vida de sociedade dita nobre, ou rica, que habitando em casas nobres ou em palácios, recebiam, organizavam bailes, reuniões, saraus e jantares. No entanto, não é fácil distinguir estes textos, que podemos considerar que tratam principalmente as interações sociais, dos outos textos que tratam a educação, a moral, a teologia, ou mesmo a política. Tal dificuldade justifica-se pois em muitos países europeus, e mesmo em determinadas épocas em Portugal, o comportamento social estava imbricado com considerações morais e religiosas. Além destes dois grandes grupos ou tipologias de textos há ainda quem aponte um terceiro (CÂMARA, 2004, p. 107) ligado à literatura de cordel2, onde incluem os folhetos avulsos vendidos na rua normalmente pendurados em cordéis, com um conteúdo nomeadamente sátiro, conseguido com a identificação das vaidades humanas, de janotas, peraltas, sécias, franças e casquilhos. (TAVARES, 2013, p. 215). A extraordinária riqueza do género literário dos dois primeiros grupos apontados, levaram a que Alain Montandon, coordenasse um projeto do Centre de Recherches sur des Literatures Modernes et Contemporaines da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Clemont-Ferrand, que os estudou. No quadro deste projeto, foram publicados mais de uma dezena de livros e entre eles uma bibliografia destes textos cobrindo uma dúzia de países europeus incluindo Portugal (LEAL. 1995, pp. 197). I – De Erasmo a Rodrigues Lobo É no palácio, ou na casa nobre, que se desenvolve toda uma teoria comportamental que vai sendo vertida em livros, avidamente lidos por quem aspira subir na hierarquia social. O poder advém do estatuto social, do comportamento e da educação, mesmo que o dinheiro não abunde. Assim, o indivíduo pretende conhecer as regras de civilidade, pois seguindo-as há a possibilidade de ser admitido na sociedade que frequenta o palácio. Consequentemente são muito requestados os livros que as transcrevem, levando a que alguns tivessem tido muitas edições. As regras de civilidade levaram sempre ao condicionamento do que é permitido fazer e ter sempre em atenção que se deve evitar o gesto natural. Reprimir o espirro, não coçar a cabeça e muito menos meter os dedos no nariz, não levar a mão à boca nem roer as unhas, nunca arrotar ou mostrar ventosidades intestinais e nem colocar os ossos da nossa comida no prato do vizinho, são simples recomendações que os manuais de bomtom ou de civilidade nos apresentam. Uma outra importante recomendação é que ninguém podia sequer pensar em sentar-se de costas para o retrato de alguém importante - assim se percebe porque é que se colocavam os retratos do rei por cima do fogão de sala. Além de nos recomendar o que não deve ser feito, os manuais indicam quais as atitudes e gestos que devem ser obrigatoriamente adotados. 1

Cerimonial da Corte na graduação das honras, serviços das pessoas que a compõem, no cerimoniar de atos públicos como recebimentos de príncipes estrangeiros, embaixadores, etc. (BLUTEAU, Rafael – Dicionário da Língua portuguesa composto por… - 1779, Tomo primeiro) 2 Na literatura de cordel encontramos as Narrativas Cavalheirescas, os Sermões, os Autos, as Sátiras, as Noticias Militares, os Casos Prodigiosos, as Folhinhas de Reza, etc.

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Erasmo, com a sua De civilitate morum puerilium - Da civilidade dos costumes das crianças, ou Da civilidade pueril -, publicada em Basileia em 1530, teve a oportunidade de prescrever regras e maneiras que deveriam ser seguidas pela sociedade da qual ele fazia parte. Além de formular a própria noção de civilidade, o seu curto tratado didático em latim lançou o género literário que durante séculos assegurará a pedagogia das boas maneiras. Contemporâneo de Erasmo, Baldassare Castiglione, publica em 1528, em Veneza, O cortesão, dois anos antes da A civilidade pueril de Erasmo. O livro pretende ser o divulgador de preceitos que no século XVI a aristocracia europeia procurava conhecer. Vai numa linha diferente da de Erasmo, e transforma-se rapidamente na gramática fundamental da corte, pois que as ideias aí expressas levam a crer que os bons comportamentos pertencem apenas às classes superiores na Corte. Os preceitos3 de Castiglione vingaram na Corte e nos palácios durante muitos anos, passando a olhar-se os cortesãos como os profissionais do convívio mundano. Faziam parte de uma micro sociedade que se apresentava com uma imagem de luxo, num verdadeiro jogo de representações. A mentira e a dissimulação faziam parte do dia-a-dia na Corte, ou nos palácios. Desenrolava-se como um jogo de sombras e de máscaras em que nada é o que parece: por detrás da cortina o sorriso enigmático, ou a reverência, que mostravam quando um lado estava a ganhar a contenda. Para as relações entre reis e súbditos, senhores e vassalos, entre superiores e inferiores, i. e., entre não iguais, inventaram-se as regras da etiqueta e do protocolo e não as da cortesia entendida como «boa educação»… Compreendemos que a cortesia venha, então a ser definida por Rodrigues Lobo em Corte da Aldeia, como a reverência e comedimento que se costuma entre iguais… . Na Corte na Aldeia faz-se alusão “à possível transformação do perfeito cortês em perfeito cortesão para quem os gestos…, o falar correta e elegantemente, o gosto de selar as cartas com as suas armas e tenções…, o correto comportamento à mesa, nas visitas e no passeio…, a compostura e discrição dos criados…, deveriam constituir modos ou maneiras de mostrar ou de sugerir a sua participação nesse «bellissimo ordine di servire» que desde os fins do século XV se aprofundava nas cortes europeias” (CARVALHO, 2003 p. 431). Contando as traduções para várias línguas da obra de Castiglione podemos concluir que tenha sido muito bem aceite, não apenas na Itália mas em toda a Europa. Burke (1997: apêndice I) localizou 156 edições do livro entre 1528 e 1850, sendo que 137 delas foram feitas nos séculos XVI e XVII. O mesmo autor observa ainda um declínio no sucesso do livro de Castiglione a partir do século XVIII, que podemos associar às críticas que surgem à sociedade de corte como sendo uma sociedade de aparências e frivolidades Efetivamente, o modelo de sociedade cortesã, defendido por Castiglione, não tem futuro, mesmo em Itália, e na segunda metade do século XVII é ultrapassado pelo modelo de socialidade regulamentada da Corte de Luís XIV, onde todos os passos dados pelos membros da corte são conhecidos e reconhecidos por todos, perdendo-se a intimidade naquela micro sociedade. Por outro lado, o cortesão é considerado perfeito porque está ali, na Corte, respeitando as suas normas e comportamentos. O grupo de cortesãos que cercavam o rei diferenciava-se pelo vestuário, pelas expressões e modo de falar, marcas exteriores que mostrariam distinção, prestígio e status.

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Para uma leitura atual do Castiglione, ver: WOODHOUSE.

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É a partir do inicio do século XVII que a subida na pirâmide das classes passa a ser possível, sem ser baseada no berço onde se nasceu. Surgem os abastados proprietários e financeiros, considerando-se aristocratas, possuidores de palácios e de boas residências, para onde se desloca a alta sociedade pavoneando-se, tecendo os fios da trama social, e decidindo a posição e prestígio de muita gente, nomeadamente de alguma que frequentava a Corte. Esta mantinha-se como centro da socialidade, de fonte de cultura, mas estas suas funções eram cada vez mais partilhadas com os círculos aristocratas. Podemos dar como exemplo o caso da família Sinel de Cordes, que proveniente (JANEIRO, 2015. p. 79) de uma família de mercadores se fixou em Lisboa, parece que em finais do século XVI, dedicando-se ao comércio, atividade considerada naquela época pouco digna para alguém da nobreza, mas que se integrou e teve uma ascensão social, demonstrando que a nobreza portuguesa do Antigo Regime era permeável, permitindo até inclusão de estrangeiros de origens mercantis. Os Sinel de Cordes percorreram um longo caminho na sociedade portuguesa, conseguindo, após enriquecerem através de negócios ultramarinos, alcançar a nobreza e tornarem-se secretários da Câmara Real, um dos cargos mais importantes da alta burocracia do Estado. Vivendo primeiro na rua Direita do Loreto em Lisboa, vem a construir, já em meados do século XVIII, um palácio no campo de Santa Clara em S. Vicente de Fora e detendo uma quinta em Barcarena com uma magnífica capela a S. João Baptista, datada de 1641 (JANEIRO, 2015, p. 79 e seguintes).

II - A vida no palácio O termo palácio que usamos vem de uma palavra que entra na língua latina com o significado de onde está sedeado o poder. O termo provém do nome que era dado ao local onde habitavam os césares na Roma antiga. Em Portugal aparece numa versão diminuída denominado paço, significando que era o local onde se encontrava o poder, real, episcopal, municipal, ou do senhor. A esses paços estava associada uma torre com carater defensivo. O termo palácio aparece em português somente no seculo XVI. No entanto, a designação de palácio (ou mesmo de paço) para as casas da nobreza, especialmente urbanas, tornou-se comum a partir do século XVIII em paralelo com o termo casa nobre. Esta significa uma boa casa em pedra com sobrados nos andares superiores. Os escritos sobre cortesia e etiqueta começaram por ser dirigidos a um público aristocrata, independentemente do local onde residiam. Essa intenção é clara pois eram sempre dedicados a um nobre ou aristocrata. O propósito desses textos era o de formar uma classe social, de bom nascimento, que deveria vir a desempenhar um papel na governânça do Estado, ajudando-os a que adquirissem maneiras, atitudes, e comportamentos (DANTAS, 1917), para desempenharem convenientemente aquele papel. Estranhamente aqueles textos não contemplavam o duelo (PICALUGA, 1911), que era a essência do código de honra da aristocracia (BANKS, 2010). Dinheiro, poder e prestígio encontravam-se nos militares que fizeram a guerra e que passaram a frequentar a Corte. Esta, como um dos maiores símbolos do Estado absolutista, vem a criar os incentivos políticos e morais que transformaram os antigos militares em aristocratas. Era para eles que os escritores dos manuais também escreviam, para que fossem conhecedores das políticas cortesãs: criava-se o cortesão a partir do guerreiro. A mesa do rei era um local para se ser visto, tanto por populares como por quem gravitava junto da Corte. Damião de Gois afirma que pelo menos na época do Natal era um hábito a realização de um banquete público, revestindo-se de grande aparato (BUESCU, 2011, p. 400).

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A mesa era, com as suas artes e cerimoniais, um espaço de afirmação onde se desenrolava uma cenografia, mostrando quem detinha o poder e quem estava perto dele. Ser-se convidado a servir o rei e a sua família era uma grande honra, mesmos desempenhando as tarefas mais corriqueiras como servir o vinho, trinchar carnes ou mesmo colocar as travessas na mesa. Por exemplo, de acordo com o protocolo adotado para o serviço de mesa de D. João IV, as travessas eram levadas da cozinha para a copa e de lá para a mesa pelo vedor da semana, guarda reposteiros, moços de camara, seguindose a atuação de outros como o manteeiro com a bacia de água para as mãos, o capelão que benzia os alimentos, o trinchante com os seus utensílios, o médico que assistia o rei e o vedor-mor que provava os alimentos. Tratava-se de um protocolo complicado cheio de gestos e mesuras no qual parte do serviço era feito de joelhos. No entanto, o luxo marcou a diferença entre D. João IV e D. João V, o primeiro aderiu a comidas públicas, o segundo veio a cancelá-las levando uma vida retirada da Corte. Durante o reinado de D. José houve várias fases, como a de antes e após o terremoto. Com D. Maria I voltaram os jantares em Queluz (CARDIM, 2011, p. 162). Consequentemente manuais como Opusculo da Infância e Puerícia dos Príncipes e Senhores (1644), de Francisco da Silva relembrava como os Aios dos príncipes devem ensinar estes comer, como os Apontamentos para a Educação de hum Menino Nobre (1784), de Martinho de Mendonça de Pina recomendava alimentos de fácil digestão fugindo de tudo o que for capaz de acender os espíritos.

III - As Cortes As Cortes configuram-se como um espaço social onde questões governamentais eram resolvidas pelo príncipe e por seus cortesãos. Elas não costumavam ter locais fixos, visto que os príncipes viajavam por toda a extensão de suas terras, com o intuito de controlá-las, e de serem vistos. A intenção dos cortesãos que frequentavam as Cortes era receber graças dos poderosos, de modo a conseguir riquezas e status. Desta forma, criase nestes locais, uma dinâmica que se torna cada vez mais rígida em relação ao controle social, que é feito tanto do príncipe para com os súditos como entre os cortesãos. Eram muito numerosos os indivíduos que participavam nas Cortes, podendo contar-se com centenas ou milhares de pessoas (BURKE, 1991, p. 103). Para distrair toda esta gente eram realizados jogos de azar, recitais de poesia, músicas, cortejo de damas, tudo isso favorecendo a transformação da corte em centro cultural (BURKE, 1991, p. 107). A vida na Corte era estritamente regulada pela etiqueta. A meticulosa e estrita etiqueta que Luís XIV estabeleceu (DELALEX, 2015, p. 93), era resumida nos elaborados procedimentos que acompanhavam o seu acordar pela manhã. “O rei precisava de despir a camisa de noite e de vestir a camisa de dia. Mas esse gesto indispensável fora revestido de significado social. O rei transformara-o num privilégio com que honrava os seus nobres (...) ” (NORBERT, 1995, p. 59). Como esta outras maneiras da corte francesa, foram rapidamente replicadas noutras Cortes da Europa, com naturais adaptações. A etiqueta tornou-se o meio de progresso social para a Corte. “Através da etiqueta, a sociedade de corte faz a sua autorrepresentação, as pessoas distinguem-se umas das outras e todas juntas distinguem-se das que são estanhas ao grupo, dando a todos e a cada um a prova do valor absoluto da sua existência” (NORBERT, 1995, p. 78). O cerimonial na corte espanhola, no século XVI, usava uma etiqueta extremamente rígida, ritualista, fria, podendo afirmar-se que seria degradante para com os cortesãos (NOEL, 2004, p. 142). Estariam regulados com grade detalhe todos os aspetos da vida na Corte, como receber, vestir, despir, receber visitas, dar presentes, organizar banquetes, etc. O cerimonial, combinado com a enorme riqueza, um generoso mecenato artístico, o 5

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uso assíduo da cortesia, ajudaram a criar uma Corte onde o rei tinha uma autoridade singular e era quase considerado divino (BOUZA, 2001). Por exemplo, Felipe IV advertiu que os cortesãos não devem permitir que ninguém toque nos cobertores e nas cortinas de sua cama a menos que fueran gentilhombres y ayudas de cámara con el fin de prepararla o para alguna otra cosa necesaria a su mantenimiento, y aun entonces debía de ser hecho con la mayor decencia y respeto. E assim era que a Lady Fanshawe (1625 – 1680), esposa de um diplomata inglês do século XVII e veterana cumpridora de la vida cortesã europeia, elogiava a la corte espanhola descrevendo-a como la mais ordenada no mundo cristão, claro que depois da inglesa (FANSHAWE, 1907, p. 166). No reinado de Luis XIV, Paris radiava cultura com a arquitetura, a escultura e a arte decorativa. Luís XIV patrocinava a Academia Real das Pinturas e Esculturas, onde as regras impunham que não se esculpisse, pintasse ou esboçasse trabalho maior que as representações do rei. O próprio Luís XIV interessava-se sempre que um dos membros da sua Corte construía uma casa, verificando que esta não lhe fazia sombra. A corte francesa, que estava acostumada a alimentar-se com as mãos, teve que se adaptar ao universo da etiqueta, dos novos tipos de comida, aos hábitos e postura a mesa, cuidando em não se sujar ou ser apresado ao comer. O comportamento à mesa passou a ser regulamentado, pelo fato de ser visto como um ritual complexo no qual estava em jogo a sociabilidade ou seja, comer em companhia dos outros. Os manuais de bom-tom ou de civilidade passaram a considerar essas novas formas de civilidade, relatando-as, pois aquilo que a elite fazia era o que passava a ser almejado por aqueles que pretendiam subir na sociedade. Com as boas maneiras foram-se desenvolvendo utensílios que melhoravam o comportamento, que podemos exemplificar com a invenção dos guardanapos. Durantes os banquetes reais da Idade Média os comensais serviam-se com as mãos, e automaticamente limpavam-se nas belas toalhas de tecidos adamascados, as quais após os banquetes ostentavam uma sujeira irreparável. Mais tarde, a sujidade das toalhas começou a incomodar, e para preservá-las passaram-se a utilizar a pelagem de coelhos e cachorros vivos amarrados nos pés das cadeiras, ou vestiam um criado para que sua roupa servisse como guardanapo. Com o passar do tempo e o desenvolvimento da higiene, os guardanapos começam a surgir. Mas, antes do guardanapo se tornar hábito, os nobres sentavam-se sobre eles, arremessavam-nos contra os outros, ou ainda utilizavam-nos como uma espécie de embrulho de comidas para colocar dentro do cano de suas botas e levarem para comerem mais tarde. Luís XIV será o primeiro a ter uma grande coleção de lenços e é no seu reinado que se difunde, finalmente, o uso desta peça tanto de vestuário como de higiene (RIBEIRO, 1998, p. 11).

V - Conclusão Podemos afirmar que o sistemático uso da cortesia era o meio de obrigar os súbditos à obediência ao rei. A genuflexões, o retirar o chapéu, o tom referencial do discurso, o baixar os olhos, a obediência e a garantia de obediência assim como a disponibilidade para prestar serviço, eram igualmente modos do rei verificar a obediência dos seus súbditos. Talvez que a mais importante das armas à disposição de rei era a sua decisão em aceitar ou recusar um cumprimento ou permitir que o súbdito falasse com ele. A cortesia usada no palácio derivava dos rituais que a igreja há muito usava. Por exemplo, a forma como se ajudava um bispo descer do seu cavalo e se segurava o freio do cavalo, eram mostras de respeito que eram igualmente dadas ao nobre ou ao príncipe e que ninguém recusava dar. Igualmente, quando uma procissão passava com o sacrário, todos, independentemente do seu nível social, eram obrigados colocar o joelho em terra, 6

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tal como se faria se o rei passasse. Não nos devemos esquecer que os reis eram vicários de Deus, a sua imagem viva, ou melhor a de deuses na terra, e consequentemente deveriam ser respeitados como coisas divinas e sacras: um insulto ao rei era um insulto a Deus. Por outro lado, muitos necessitavam de apreender as regras de civilidade de forma a poderem ter acesso á Corte. Por exemplo, quando a Corte portuguesa se fixou no Brasil na primeira metade do século XIX, os fazendeiros foram ler as regras e recomendações que constavam dos manuais de Bom-Tom ou de civilidade, de forma a poderem frequentar o palácio e a Corte sem sobressaltos. Tinham que encarnar um conjunto de normas e valores que se exigiam aos frequentadores dos salões (FRANCO, 2015, p. 198)

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