Coélet e a Idolatria ao Dinheiro - Um estudo do livro do Eclesiastes

May 29, 2017 | Autor: José Ademar Kaefer | Categoria: Dinheiro, Helenismo, Qohelet, Eclesiastes, Qohelth and money, Kohelet und das Geld
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José Ademar Kaefer

&2K/(7($,'2/$75,$$2',1+(,52 Um estudo do livro do Eclesiastes (Ecl 5,7-19)

São Paulo, 2016

1

AGRADECIMENTOS

- À Congregação dos Missionários do Verbo Divino pelo incentivo - Às comunidades Eclesiais de base que colocaram sabor no processo desta pesquisa

- Aos meus alunos da graduação e pós-graduação - Ao Centro Bíblico Verbo - Ao professor Milton Schwantes (in memoriam) que, além de mestre, foi pastor na condução deste estudo

- Aos meus pais (in memoriam)

2

Ao povo da Nicarágua, com quem aprendi que a “solidariedade é a ternura dos povos”. ¡Que la flor no se marchite!

3

Especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; essa nulidade caiu na armadilha de julgar que atingiu um nível de desenvolvimento jamais sonhado antes pela espécie humana (Max Weber).

4

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................08

CAPÍTULO I 1. O caminho já andado..........................................................................12 1.1 Primeira etapa...............................................................................14 1.2 Segunda etapa..............................................................................15 1.3 Terceira etapa...............................................................................17 1.4 Quarta etapa.................................................................................23 1.5 Conclusão.....................................................................................29 CAPÍTULO II Introdução...............................................................................................31 1. Quem é o autor ou a autora do livro de Coélet?.................................31 2. Estrutura do livro.................................................................................34 2.1 Um breve olha sobre o conjunto da obra..........................................37 3. Gênero literário....................................................................................41 4. Quando foi escrito o livro de Coélet?..................................................42 CAPÍTULO III 1. Enfoques sobre o helenismo...............................................................46 1.1 Introdução.....................................................................................46 1.2 Período helenístico........................................................................48 5

1.2.1 A conquista de Alexandre o Grande.....................................49 1.2.2 Alexandre, o faraó.................................................................51 1.2.3 “Todos cingiram o diadema após a sua morte”(1Mc 1,9).....56 1.2.4 A helenização........................................................................61 1.2.4.1 O poderio militar da conquista de Alexandre..................61 1.2.4.2 A economia da polis........................................................64 1.2.4.3 O escravismo..................................................................67 1.2.4.4 A filosofia grega...............................................................70 1.2.4.5 O confronto cultural.........................................................71 1.2.4.5.1 A reação do povo judaíta..........................................73 1.2.4.5.1.1 Os judaítas da diáspora.........................................74 1.2.4.5.1.2 Os judaítas de Judá...............................................75 1.2.4.5.1.3 Os tobíadas...........................................................77 1.2.4.5.1.4 A resistência.........................................................78 1.2.4.5.1.5 O poder nas mãos dos sacerdotes.......................80 1.2.4.5.1.5.1 Os grupos responsáveis pelo culto....................81 1.3 Conclusão.........................................................................................85 CAPÍTULO IV 1. Análise literária de Eclesiastes 5,7-19................................................88 1.1 Tradução literal..............................................................................88 1.2 Delimitação....................................................................................90 1.2.1 Relação com a unidade anterior.............................................91 1.2.2 Relação com a unidade posterior............................................92 6

1.3 Estrutura e coesão........................................................................93 1.3.1 Subdivisões.............................................................................93 1.3.2 Coesão entre as subdivisões..................................................96 1.4 Estilo..............................................................................................99 1.5 Gênero literário de Ecl 5,7-19.....................................................104 2. Análise do conteúdo..........................................................................106 2.1 Um projeto opressor (v.7-8)........................................................106 2.2 “Dinheiro” se come? (v.9-11)......................................................115 2.3 Há uma doença debaixo do sol (v.12-16)...................................129 2.4 O que vem de Deus (v.17-19)....................................................141 3. Relendo o texto................................................................................150 3.1 A sociedade que transparece em Ecl 5,7-19..............................151 3.1.1 O poder religioso...................................................................155 3.1.2 Uma organização social em busca do “lucro”.......................157 3.1.3 O conflito entre dois sistemas...............................................162 3.1.4 O cotidiano do “oprimido”......................................................163 4. Atualizando Coélet............................................................................168 CONCLUSÃO..................................................................................................171 BIBLIOGRAFIA................................................................................................177

7

INTRODUÇÃO1

Nunca na história a humanidade atingiu um nível tecnológico tão elevado como no último e início desse século. E nunca na história as guerras, os impérios e a fome mataram tanto. Jamais se registrou um acúmulo de riquezas tão grande e jamais faltou tanto alimento. “A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas ao mesmo tempo em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades”2. Este é o real quadro que vivemos no limiar do terceiro milênio da era cristã. Juntar bens a qualquer custo tornou-se a razão do existir. Esta prática é resultante da inversão de valores da qual a humanidade está sendo vítima. Ao inverter os horizontes, o fim último passa a ser o meio e este passa a ser o fim. A inversão de valores explica a passividade diante do quadro estabelecido, pois a injustiça social faz parte da competição pelos bens. Portanto, é normal que exista. No entanto, “a descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas é que a economia do ser humano, como regra, está submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse dos bens materiais; ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos”3. O amor humano aos bens não é uma questão inata ao ser humano. Ele é fruto de valores ou antivalores criados e introjetados pelo meio social. Por isso, a acumulação de bens passa a ser uma questão de 1

Este estudo tem como base a dissertação de mestrado escrita em 1999 na UMESP. Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade, Editora Schwarcz, São Paulo, 1997, p.21. 3 Karl Polanyi, A grande transformação - As origens da nossa época, Editora Campus, Rio de Janeiro , 1980, p.61. 8 2

sobrevivência.

Essa

cobiça

e

supervalorização

tem

conseqüências

catastróficas. Ela ameaça a substância humana e natural da sociedade, como da própria existência humana. Cremos que esta breve e densa focalização sinaliza as razões de tanta injustiça social e falta de horizontes utópicos na nossa América Latina. Nos momentos difíceis e obscuros é comum entre os cristãos a busca por luzes e inspirações na Palavra de Deus. Por isso, dentro do atual contexto, estamos plenamente convencidos de que a Bíblia pode trazer-nos estas luzes. O livro que focalizamos é o Eclesiastes ou Coélet. Por que o Eclesiastes? Sabemos do polêmico que é esta obra. “Só uma singular vaidade ou uma rara inconsciência pode levar alguém a escrever sobre o Eclesiastes”, afirma Jacques Ellul4 na introdução de seu estudo. Há muitas opiniões pessimistas sobre Coélet. Relacionamos algumas para mostrar o terreno no qual estamos nos aventurando. Zapletal em 1911 dizia que “não há nenhum livro do Antigo Testamento no qual se acredita encontrar tantos erros filosóficos e teológicos como o de Coélet”5 . “O livro do Eclesiastes poderia ser chamado a ovelha negra da Bíblia”6. O mesmo pergunta: “em base a que você defenderia a inclusão do Eclesiastes no Cânon”? “É um livro estranho”, diz Haroldo de Campos: “parece um fragmento insurrecto, imbricado anacronicamente no ‘cânon bíblico’”7. “Um livro confuso contesta Castellino8. E, para fechar, mencionamos a frase conhecida como a maldição de F. Delitzsch: “todas as tentativas para mostrar na totalidade da obra não somente a unidade de inspiração, mas uma progressão genética, um

4 Jacques Ellul, La razón de ser – Meditación sobre el Eclesiastés, Editorial Herder, Barcelona, 1989, p.17. 5 Citado por José Vílchez, Eclesiastés o Qohelet, Editora Verbo Divino, Estella, 1994, p.33. 6 J. Stafford Wright, “The Interpretation of Ecclesiastes”, in: Reflecting with Salomon - Selected Studies on the Book of Ecclesiastes, Roy B. Zuck (editor), Baker Books, Michigan, 1994, p.17. 7 Haroldo de Campos, Qohelet / o – que - sabe, Editora Perspectiva, São Paulo, 1990, p.17. 8 George R. Castellino, “Qohelet and his Wisdom”, in: Reflecting, op. cit. p.31. 9

plano de conjunto e uma estrutura orgânica fracassaram até o presente e fracassarão para o futuro”9. O livro de Coélet é de fato um livro pouco entendido na história do estudo bíblico. Não é citado no Novo Testamento e somente é lido uma vez no anuário litúrgico católico. Porém, nos últimos anos esta imagem está mudando. Coélet vem ocupando um espaço que sempre lhe foi negado. Novas leituras vão resgatando a sua importância. Este resgate está ligado à realidade vigente já no final, mas mais fortemente, no início do novo milênio. Lido a partir do contexto latino-americano, Coélet é compreendido. De “velho pessimista” passa a denunciante de injustiças, incitante à vida e utópico. Passa a profeta dos tempos modernos. Este despertar é resultante da sintonia que existe entre a realidade que hoje vivemos, em particular na América Latina, e o contexto em que a obra de Coélet nasceu. Estamos no III século a.C., durante o domínio grecoptolomaico. Este império implantou um novo sistema de conquista que alcançou até as aldeias mais remotas do povo de Coélet. A importância de sua obra, portanto, está particularmente na encruzilhada histórica de sua situação. Consideradas a distância e a enorme diferença que separa os dois mundos, acreditamos que as reflexões de Coélet podem trazer luzes que possibilitem avistar o horizonte da longa travessia e manter acesa a esperança, a utopia e a paixão. Nossa pretensão é partir de um texto: Eclesiastes 5,7-19. As razões que nos levam a tomar esse texto como plataforma de lançamento é o seu conteúdo. Pensamos que o motor que locomovia os interesses do novo

9 Citado por Étienne Glasser, O processo da felicidade por Coelet, Edições Paulinas, São Paulo, 1975, p.8. 10

sistema imperial greco-ptolomaico era a economia. Esse é também o tema central que permeia o texto escolhido. Para o estudo dessa perícope pretendemos seguir os seguintes passo: de início queremos nos aproximar ao que foi escrito nos últimos anos na América Latina sobre o livro de Coélet. O objetivo nesse particular é conhecer as tendências desses escritos e sua contribuição para o nosso estudo. Em seguida faremos a contextualização. Aqui o interesse é conhecer as relações de forças existentes no tempo de Coélet, que forjaram o surgimento da obra. Ou seja, o propósito aqui é conhecer o terreno em que estamos pisando. E, finalmente, virá o estudo de Eclesiastes 5,7-19 propriamente dito. Nesta terceira parte a atenção se concentrará na análise literária e no conteúdo. Ainda, neste capítulo, após o término do estudo exegético, pretendemos fazer uma breve releitura de todo o estudo feito. Em toda a trajetória do nosso estudo teremos como ambiente de fundo a convivência dos vários anos junto ao povo da Nicarágua e junto aos movimentos populares do Brasil. Ainda que não se pretenda em nenhum momento fazer menção explícita dessa vivência, ela estará dando o contorno e a meta.

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CAPÍTULO I

1. O caminho já andado

A maneira de estudar a Bíblia na América Latina é começar olhando ao nosso redor, onde e com quem vivemos e convivemos. É conhecer o chão que pisamos. Sujar os pés, acariciar, caminhar junto, entrar na cozinha, sentar no chão. É nesse meio humilde e necessitado, cheio de calor humano, de cercania, de fé, que temos descoberto e sentido a força da Palavra de Deus. É pela ótica dos que hoje vivem a mesma experiência do povo de ontem que temos aprendido a ler a Bíblia. A história da Valdice, uma das coordenadoras de uma comunidade do Jardim Míriam, São Paulo, pode ilustrar e ajudar a entender melhor o que estamos tentando dizer. Num certo dia estudávamos com um grupo de lideranças a história de Sara no livro do Gênesis. No momento da partilha Valdice falou: “eu sei muito bem o que a Sara sentiu quando descobriu que era estéril. Quando eu e meu marido nos casamos, sonhávamos em ter filhos. Mas, alguns meses depois do casamento, descobri que eu não podia ter filhos. Isso foi o fim do mundo para mim. Eu não sabia o que fazer. Perdi completamente o controle sobre mim mesma. Quando eu via uma mulher com um filho no colo eu ficava agressiva e não podia me controlar. Um certo dia eu estava procurando emprego e passei por uma Igreja, então resolvi entrar. No altar da Igreja eu vi a imagem de São José com o menino Jesus. Eu não conseguia orar porque tinha a impressão de que aquela imagem olhava para mim e dizia: ‘eu tenho um filho e você não tem’”. 12

Por mais que se estude a Palavra, se ela não é filtrada no cotidiano do povo empobrecido, não a compreenderemos. Talvez possa parecer segmentarismo, que só estudamos a Sagrada Escritura do ponto de vista dos empobrecidos e das empobrecidas. O fato é que já existem muitos que o fazem a partir de outros pontos de vista. De maneira que, sentimos que é missão nossa contribuir com uma leitura que resgate e celebre os pequenos de Javé. Aliás, quanto mais mergulhamos no interior da Palavra de Deus, maior sintonia encontramos entre ela e eles. Nessa tarefa é importante conhecer aqueles e aquelas que já trilharam uma grande extensão desse caminho que estamos iniciando. Conhecendo as sendas sabemos dos seus obstáculos, subidas e descidas. Assim, será mais fácil mover um pouco mais para frente a locomotiva do Reino de Deus. Afinal, nosso estudo não é um trabalho isolado, ele está ancorado e inserido em um grande mutirão bíblico onde participam muitas mãos, pés, cabeças e corações. Conhecer de perto as produções literárias sobre Coélet na América Latina é fundamental para iniciar nosso estudo. Essa é, portanto, a nossa primeira empreitada.10 É um tanto constrangedor fazer uma análise crítica daquilo que outros escreveram. Principalmente quando estes são companheiros e companheiras de jornada. De forma que, a última coisa que queremos aqui é ser pretensiosos. Estamos conscientes de que somos anões sobre os ombros de gigantes, portanto, deveríamos ter o dever de enxergar mais longe. Para uma apresentação breve pensamos que convém fazer a abordagem por etapas. Assim, poderemos classificar as obras por afinidade, bem como, mostrar a evolução que houve no estudo sobre Coélet nos últimos anos na América Latina. 10 Pretendemos apresentar aqui apenas um panorama geral dos artigos e livros escritos na América Latina sobre Coélet. Uma análise mais ampla se encontra em nossa dissertação de mestrado. 13

1.1 Primeira etapa

Na primeira etapa destacamos a obra de Aroldo de Campos: Coélet/Oque-sabe11. No que se refere ao estudo do livro do Eclesiastes, a obra de Haroldo de Campos é certamente uma das mais importantes já escritas na América Latina. Sua grande contribuição e mérito estão na tradução do texto hebraico. Neste particular, para as palavras mais polêmicas, Aroldo de Campos apresenta sempre um amplo leque de diferentes traduções e interpretações possíveis. Esse fato possibilita ao iniciante no estudo de Coélet uma boa panorâmica das opiniões de diversos estudiosos deste livro. O objetivo de Campos, como ele próprio afirma, “supõe, tão-somente, o projeto operacional de resgatar o texto, quanto possível, em sua poeticidade” (p.33). “É um encontro do poeta com a Bíblia” (p.11). Quanto ao conteúdo, em termos hermenêuticos, notamos uma grande distância da realidade e da leitura bíblica latino-americana, da qual, aliás, o autor aparenta total desconhecimento. Sua abordagem é demasiadamente personalista. Isso leva o autor a estranhar o livro, como ele diz claramente no início de sua reflexão: “Coélet (o Eclesiastes) é um livro estranho” (p.17). Para Haroldo de Campos, Coélet é um personagem que vive um conflito interior, expresso numa busca incessante (p.165). Para ele, o livro é entendido como um conjunto de provérbios soltos sem grande ligação entre si. Neste aspecto, seu estudo carece de uma abordagem conjunta da óbra, com suas estruturas e subdivisões. Além do mais, toda a sua análise gira sempre em torno dos mesmos temas: a teoria da retribuição, criticada por Coélet, a indiferença e distância de Elohim, o incognocível, os caminhos insondáveis de Deus, o eterno retorno, o cumprimento dos mandamentos e o temor a Deus como única 11

Haroldo de Campos, Coélet/O-que-sabe, Editora Perspectiva, São Paulo, 1990, 247p. 14

tarefa realmente válida para o homem. Isto é, existe uma enorme limitação quanto a um olhar criativo e livre, no intuito de sair desse redemoinho que o faz girar sempre sobre os mesmos temas. Em síntese, o mérito do trabalho de Haroldo de Campos está na tradução do texto hebraico, especialmente os versículos mais polêmicos, a partir porta da poesia. Por isso, ela é de grande valia para um estudo sério do livro de Coélet. Somente para mencionar, neste mesmo período também foi publicado um livro de Carlos Gattioni12. Infelizmente, apesar de volumosa, esta obra oferece pouca contribuição para o estudo de Coélet. Gattione é da opinião de que querer averiguar a intenção do autor é violar um princípio elementar da interpretação bíblica (p.90). Por isso, ele apenas pinça alguns temas e os faz assunto apartado do livro.

1.2 Segunda etapa

Na etapa seguinte acontece um salto qualitativo no que se refere ao estudo do livro em questão. É o despertar da América Latina para a leitura de Coélet. Acreditamos que a causa disso são as transformações sociais políticas e econômicas que marcaram o nosso continente na última década do milênio passado. Diante da falta de alternativas, da desesperança e da impotência, Coélet surge como uma luz na noite escura. Aquele livro incompreensível, pessimista, sem razão de ser, começa a centrar a atenção.

12

Carlos Gattinoni, El sentido de la vida - Reflexiones sobre el Eclesiastés, Ediciones La Aurora, Buenos Aires, 1990, 146p. 15

Um livro e dois artigos marcam essa etapa: o livro de Ivo Storniolo e Euclides Balancin13 e os artigos de Víctor Fernández14 e Stephan de Jong15. A obra de Storniolo e Balancin e o artigo de Fernández têm grande proximidade. Vamos nos centrar mais no primeiro que é de maior envergadura. Este sintético e bem elaborado estudo sobre o livro do Eclesiastes de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin está dividido em cinco partes e uma introdução. Nesta última os autores fazem uma rápida abordagem da situação sócio-político-econômico do tempo de Coélet. Na primeira parte é apresentada uma lista de realidades que mostram onde a felicidade não está presente, porque são fugazes ou porque o povo não tem acesso. Como por exemplo: adquirir a maior quantidade possível de conhecimento ou trabalhar para enriquecer. Na segunda parte, que nos parece ser central neste estudo, os autores apresentam uma contraproposta de Coélet para o povo encontrar a felicidade: “usufruir o produto do próprio trabalho”. Na terceira parte são mostrados alguns mecanismos do sistema político-econômico e da ideologia dominante que impedem o povo de usufruir do seu trabalho e ser feliz. Na quarta parte são abordados alguns meios para que o povo possa reconquistar a felicidade. Para isso, o passo mais importante é a formação da consciência de classe e o resgate da solidariedade. E, a partir dessa conscientização, oporse ao sistema explorador. Na Quinta e última parte é feita uma amostra de como as propostas de Coélet estão profundamente enraizadas na fé em um Deus libertador. Como podemos perceber esta leitura do livro de Coélet está ancorada no cotidiano do povo vitimado da América Latina. O resultado é um sabor distinto do experimentado anteriormente.

13

Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin, O livro do Eclesiastes - Trabalho e felicidade, Edições Paulinas, São Paulo, 1990, 46p. Víctor Fernández, “El valor de la vida presente en Qohelet”, in: Revista Bíblica, v.52, n.38, Asociación Cultural Estevan, Buenos Aires, 1990, p.99-113. 15 Stephan de Jong, “El sabio con el martillo - Presentación del libro del Eclesiastés”, in: Biblito, n.39, Santiago, Chile, 1991, p.3-39. 16 14

O artigo de Stephan de Jong, que também classificamos nesta etapa, ainda persiste nas ideias dos estudiosos do primeiro mundo. Esta hermenêutica vê Coélet como professor dos filhos das famílias ricas: “Eclesiastes não pertenceu aos pobres do seu tempo. Ao contrário, foi parte dos setores ricos... Eclesiastes foi um sábio, um professor que ensinava aos filhos dos ricos do país. Foi um intelectual envolvido na formação de diplomáticos e funcionários da corte” (p.4). Esta ideia básica é que distingue os pensadores do primeiro mundo dos da América Latina em torno da leitura de Coélet. Uma de caráter personalista e outra de cunho sociológico.

1.3 Terceira etapa

Na terceira etapa o bonde de Coélet recebeu contribuições valiosas. Talvez seja a jornada em que a tarefa tenha rendido mais. Comecemos com a produção de Irene Sthepanus16.

Escrito em 1993, esse artigo é fruto da

dissertação de mestrado da autora, apresentado em 1991. 17

A proposta de Irene é mostrar uma estrutura diferente do livro de Coélet. É o primeiro estudo desse feitio na América Latina. Ela parte da teoria de Addison Wright18, que encontra na palavra hebel (vazio) um padrão numérico que percorre todo o livro. Desta hipótese, Stephanus busca uma subdivisão para cada hebel e encontra em 11,2 “reparte com sete e mesmo com oito, pois não sabes que desgraça pode vir sobre a terra”, os números 7 e 8 como padrões para as unidades menores. A partir desse padrão numérico, organizando o texto de modo simétrico, a autora determina dois centros do livro: 4,1-16 e 8,17-9,15. O primeiro com um “centro-eixo de oposição” formado 16

Irene Stephanus, “Coélet”, in: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.15, Editora Vozes, Petrópolis, 1993, p.60-67. Irene Stephanus “Eclesiastés o Qohelet y una propuesta de hermenéutica para la ciudad a partir del rock nacional”, ISEDET, Buenos Aires, 1991, 200p. 18 Addison Wright, “The Riddle of Sphinx: The Structure of the Book of Qoheleth”, in: Catholic Biblical Quarterly, v.30, 1968, p.313-334; e “The Riddle of the Sphinx Revisited. Numerical Patterns in the Book of Qoheleth”, in: Catholic Biblical Quarterly, v.42, 1980, p.38-51. 17 17

por 4,8-9 e o segundo, de modo concêntrico, com um centro formado por 9,7-8. Em ambos os centros se encontra a partilha: no primeiro, a partilha dos bens e no segundo, a partilha da vida com a mulher amada. Estruturando o texto dessa maneira, Irene Stephanus quer mostrar que o livro de Coélet é um texto de resistência, que denuncia a opressão e que propõe a partilha em oposição à avareza e ao egoísmo. Neste período foram escritos também dois ensaios muito pertinentes. Um é o de Sandro Gallazzy e Ana Maria Rizzante Gallazzy,19 e o outro é o de Elsa Tamez20. Iremos nos estender um pouco sobre estes dois ensaios, pois eles merecem essa atenção. O primeiro faz uma interessante leitura de Coélet a partir da casa. Incialmente os autores apresentam o olhar crítico e contestatório de Coélet sobre o sistema judaíta-helenista vigente em sua época. Debaixo do sol, dizem os Gallazzy, símbolo do império ptolomaico, do império greco-egípcio, que a partir Alexandria governava Jerusalém, existe o mercado escravagista, a exploração do trabalhador e o mercado livre. Esse sol imperial se apresenta como a grande novidade: uma nova cultura, um novo modo de produção, uma nova antropologia fundamentada na lógica dos gregos, um novo saber, um novo culto, um novo Deus, ou deuses, distante, transcendental. Coélet, entretanto, contesta tudo isso afirmando que “nada há de novo debaixo do sol”. Num segundo momento do seu artigo, Ana Maria e Sandro assumem uma posição polêmica. A imagem que os estudiosos sempre nos apresentam de Coélet é a de um velho sábio, que estuda debruçado sobre livros, em busca da verdade. Para os autores do presente artigo, esta figura é produto do primeiro (1,1) e dos seis últimos (12,9-14) versículos. “Se tiramos esta ‘casca’ claramente redacional, o que sobra é alguém que ‘fala’. Nada mais” (p.55). 19 Ana Maria Rizzante Gallazzi e Sandro Gallazzi, “O teste dos olhos, o teste da casa, o teste do túmulo uma chave de leitura do livro de Qohelet”, in: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 14, Editora Vozes/Editora Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, 1993, p.50-72. 20 Elsa Tamez “La razón utópica de Qohélet”, in: Pasos, n.52, Departamento Ecuménico de Investigaciones, San José, 1994, p.9-23. 18

“Qohelet é o particípio presente feminino do verbo qahal, na forma normal” (p.55). Apesar de que nas seis vezes em que é usada, sua regência ser sempre masculina, com exceção de 7,27, “parece-nos correto e gostamos de pensar em Coélet como uma mulher, uma mulher na sinagoga judaica. Não é o pregador, não tem tarefas na reunião. Uma mulher que deveria ficar calada. Uma ‘Qohelet ninguém’, mas que um dia cria coragem e fala” (p.55). Esta Coélet nos interpela, segundo os autores, a um tríplice teste da sociedade de seu tempo. O primeiro teste é o teste dos olhos: “mas eu vi”! A Coélet com os seus olhos aguçados vê opressão, o mal que está no lugar do direito e da justiça (3,16). Ela vê as lágrimas dos oprimidos, sem ninguém que os console, a violência na mão do opressor e ninguém consola as vítimas (4,1). Ela vê a exploração do trabalhador e o engano que representa o saber de muitas palavras greco-judaíta. Ela vê também a ideologia que representa a teologia retribuicionista. Um deus e um templo mantidos pelos sacrifícios e oferendas, “o sacrifício dos tolos” (4,17) e alimentação dos sadocitas. O segundo teste é o teste do túmulo. Segundo os autores, a antropologia helenista introduziu no mundo judaíta o dualismo alma-corpo que justificava as divisões sociais. A essa filosofia, conforme o artigo em questão, a Coélet aplica o teste do túmulo. No túmulo todas as ilusões e enganos são desmascarados. “No xeol para onde tu vais, não tem obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (9,10). Depois da morte não tem mais nada, tudo deve acontecer agora. “O teste do túmulo ridiculariza o orgulho antropocêntrico dos gregos, igualando homens e animais” (3,19-21) (p.63). O último teste é o teste da casa, “única realidade que a Coélet ainda consegue controlar” (p.64). Seria a partir da casa, mais especificamente da cozinha, que a Coélet se oporia ao projeto helenista/judaíta propondo um projeto alternativo. Para Ana Maria e Sandro Gallazzi, esse projeto está expresso nas sete repetições que, feito refrão, perpassam o livro da Coélet: o bom é comer, beber e alegrar-se dos frutos do trabalho. “Só é bom o que

19

enche o prato do povo” (p.65). Aí estaria o projeto da Coélet, nas pequenas coisas do dia-a-dia vividas com autenticidade e comida na panela. O segundo ensaio, o de Elsa Tamez, parte da necessidade de reconstruir a utopia na América Latina, já que o capitalismo tem trabalhado sistematicamente para criar uma anticultura da desesperança.21 Ela encontra em Coélet uma ferramenta importante para esta reconstrução. A autora faz, num primeiro momento, uma abordagem do mundo visto e narrado por Coélet. De tudo o que Coélet vê debaixo do sol nada é novo. Todo o tempo, presente, passado e futuro é fútil e vazio. “O presente é frustração total, o futuro não se vislumbra e do passado não há memória” (p.10). “Os horizontes estão fechados” (p.11). Este sentimento de vazio é oriundo das experiências do cotidiano. Uma delas é o trabalho fatigante escravizante do qual não se tira proveito. Em seguida, Elsa aborda o mundo que Coélet não narra. A ênfase é a novidade helenística. Se para Coélet não existe novidade debaixo do sol, para o helenismo tudo é novidade: as técnicas militares, o exercício do poder, a administração, a cunhagem de moedas, a produção agrícola, o comércio, a filosofia, a matemática etc. A maior ênfase, segundo Tamez, está no campo econômico. Toda esta situação nova era muito vantajosa para os gregos. Para os servos e escravos, no entanto, a situação era oposta. A função dos bárbaros era a de servir como força de trabalho. Nas províncias se permitia a liberdade religiosa e cultural, mas não a econômica e política. Com isso se ganhavam as autoridades locais.

21 Elsa se ampara nos estudos de Franz Hinkelammert, que escreve que “ter esperança em um futuro distinto e melhor é uma ameaça para a estabilidade do sistema capitalista atual, que acredita que sua realização vai já rumo direto à sociedade perfeita” (Franz Hinkelammert, “La lógica de la exclusión del mercado capitalista mundial y el proyecto de liberación”, in: América Latina: resistir por la vida, 1994). Veja também Franz Hinkelammert, “el cautiverio de la utopía: las utopías conservadores del capitalismo actual , el neoliberlismo y la dialéctica de las alternativas, in: Pasos, n. 50, Departamento Ecuménico de Investigaciones, San José, 1993. 20

Para a autora, portanto, existem três visões de mundo opostas: uma, que é a dos que se fascinam pelo sistema e eficácia dos gregos; outra, que é a dos que seguirão repetindo os esquemas tradicionais teológicos em concomitância com a lei da purificação. E a terceira que é a de Coélet, que rechaça as duas anteriores. Seu problema, não obstante, é que Coélet, pelo menos aparentemente, não oferece uma possibilidade utópica, “não há saída macro-estrutural factível” (p.16). A partir disso, Elsa coloca uma questão pertinente: a dos dois sujeitos do livro do Eclesiastes. Um é Coélet, o personagem, que faz parte do mundo narrado e que é apresentado como o rei. O outro é o autor, o que produziu o texto, aquele que faz parte do mundo não narrado, e que normalmente é identificado como alguém pertencente à classe aristocrática de Jerusalém. Um sábio que ensinava os filhos dos judaítas ricos. Colocada esta questão, a autora retoma a controvérsia: “o fato de que o autor não seja capaz de configurar explicitamente uma utopia” (p.16). Em sua busca e observação constante, Coélet descobre, finalmente, no comer e beber com alegria em meio ao trabalho escravizante o desfrutar da vida. Nesta afirmação, Tamez, deduz que Coélet não é um não utópico. Ela apresenta três ângulos para entender a utopia de Coélet. Primeiro, partir da negatividade: se tudo é “imundice” (hebel)22, o que pode ser a não “imundice”? Este é o nível dos desejos implícitos. Uma das frustrações de Coélet seria a incapacidade de conhecer o futuro e a complexidade do presente. O não saber do porquê da existência da “imundice”, novidade grega, faz Coélet transladar-se ao domínio de Deus e diz que tudo tem seu tempo. Esta confiança de que tudo tem seu tempo seria uma das utopias de Coélet. Outra frustração seria que “no lugar do direito encontra-se o delito” (3,16). Esta frustração mostra o desejo de justiça e liberdade de Coélet para os pobres e oprimidos. “Esta é sua utopia” (p.18). E, por último, o desejo 22

A autora traduz hebel por “porqueria”. 21

de transcender a morte. A frustração de Coélet seria também que tanto o justo como o ímpio morram. Captando sua utopia, para Coélet, o mau deve morrer, não assim o justo. Segundo, no nível explícito, a afirmação da vida presente no âmbito do cotidiano. Já que não vale à pena viver recordando os tempos passados e nem com a ilusão de um futuro melhor, Coélet propõe viver o agora, comer pão e beber vinho com alegria com a pessoa amada, “não há coisa melhor que comer e beber com alegria desfrutando do fruto do trabalho”. Terceiro, no nível da fé, a confiança explícita em Deus. Diante da falta de alternativas a solução para Coélet é projetar a sua impotência em Elohim. Aqui entra a dimensão do temor de Deus que significa reconhecer a Deus como Deus. Elsa Tamez conclui seu interessante estudo com duas considerações para uma futura discussão. A primeira é se esta maneira de Coélet de acolher o presente é suficiente para a realização humana no nosso continente hoje? A segunda é uma contraposição da visão aristocrática com a visão apocalíptica popular. Ambas negam o presente. A visão de Coélet tem dificuldade de apostar no futuro, mas encontra uma maneira de viver no presente. A visão apocalíptica tem dificuldade para sobreviver no presente, mas tem uma grande esperança no futuro. Com isso, a autora conclui que, para construir horizontes utópicos libertadores, é importante considerar ambos os gêneros literários (sapiencial e apocalíptico). Mencionamos ainda, nesta terceira etapa, um breve artigo de Paulo Ferreira Varlério.23 O autor apresenta num primeiro momento o papel do conselheiro na literatura sapiencial, só então ele aborda o livro do Eclesiastes. Paulo Ferreira situa o texto no ambiente pós-exílico (século III a.C.), num período de confronto entre ideias helenistas e da cultura sapiencial onde 23

Paulo Ferreira Valério “O papel do conselheiro na literatura sapiencial. Um sábio pessimista? O livro do Eclesiastes” in: Estudos Bíblicos, n.37, Editora Vozes, Petrópolis, 1993, p.18-24. 22

“certezas tradicionais são abaladas, e nada de seguro é colocado no lugar; a reflexão de Coélet desponta neste entre-tempo, quando a noite se está despedindo, quando a barra ainda esconde o sol” (p.22).24 E, Ferreira conclui: “vivendo numa época de verdadeira transição na história judaica e circunvizinha, o autor ensina como remédio a fé e o bom senso, a razão e a religião, procurando manter vivo entre seus irmãos o senso perene da moral e do dever” (p.23).

1.4 Quarta etapa

Nesta última etapa o carretão de Coélet vem carregado até o cimo. Temos várias e boas contribuições. O primeiro é um breve artigo de Ildo Bohn Gass.25 O autor situa o livro no terceiro século a.C., durante a dominação ptolomaica. Dependente do Egito, Judá é vítima da exploração através dos altos impostos que são recolhidos para a capital Alexandria. Internamente havia os que colaboravam com o poder estrangeiro. Coélet, como “intelectual orgânico”, estaria entre os dois pólos, dominadores e dominados, a serviço dos últimos: “a comunidade do Eclesiastes busca a verdade e a honestidade para derrubar as falsas estruturas” (p.23). Uma das maneiras para derrubar essas falsas estruturas é desmascarar a “ilusão” sobre a qual está construído o sistema opressor. A primeira “ilusão” é a ideologia do sistema. Internamente é a “teologia da retribuição” e externamente, o saber grego.

24 Podemos perceber aqui que a reflexão de Paulo Ferreira Valério se encaminha na direção do estudo de Norbert Lohfink, Kohelet, Echter Verlag, Stuttgart, 1980. 25 Ildo Bohn Gass, “O trabalho como ideal: o projeto de Eclesiastes”, in: Estudos Bíblicos, n.49, Editora Vozes, Petrópolis, 1996, p.22-27. 23

A segunda “ilusão” está na dimensão econômica. A regra do sistema econômico ptolomaico é o acúmulo, cuja “prática leva simultaneamente ao maior empobrecimento do povo e ao fortalecimento da economia opressora” (p.24). A terceira “ilusão” está na dimensão social. O poder opressor se constrói a partir de um sistema hierárquico que “estimula a competição, a inveja e a falta de solidariedade” (p.25). A quarta e última “ilusão” está na dimensão política. Aqui Coélet desmistifica o poder da autoridade: “qual é a glória dos que dominam” (p.25)? Por último, Ildo apresenta o valor do trabalho para Coélet. Dentro do sistema o trabalho não passa de fadiga, competição, inutilidade, cujo fim é a acumulação. Conforme o autor, para Coélet, o seu projeto é que o trabalhador possa gozar do fruto do seu trabalho: “poder desfrutar do produto é dom de Deus” (p.26). Percebe-se que a reflexão de Ildo está em sintonia com o estudo de Ivo Storniolo e Euclides Balancin26 e se destaca pelo cunho sociológico de sua leitura. Em seguida temos a contribuição de Jorge Luis Rodríguez Gutiérrez com três artigos. O primeiro27 e o segundo28 estão bastante próximos. Sua ênfase está na definição de termos exclusivos do livro do Eclesiastes. Vivendo num mundo onde o “vazio” está presente, o autor evoca o realismo de Coélet comparando sua filosofia de vida “às estratégias de sobrevivência das camadas populares” (p.37). Ciente da impotência diante do poder invasor, Coélet procurava viver o momento. Para Jorge Luis, Coélet não é um utópico. 26

Veja o artigo de Ivo Storniolo e Euclides Martin Balancin, op. cit. Jorge Luis Rodríguez Gutiérrez, “A lei, a fadiga e o vazio no livro de Eclesiastes”, in: Estudos Bíblicos, n.51, Editora Vozes, Petrópolis, 1996, p.32-43. 28 Jorge Luis Rodríguez Gutiérrez, “Que proveito tem Adam de todo seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol?, in: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.30, Editora Vozes Petrópolis, 1998,p.39-46. 24 27

E, conclui comparando-o com Sísifo29: “do mesmo modo que Albert Camus imaginou Sísifo – com sua eterna pedra – feliz, eu também imagino o Qohélet – com o seu eterno ‘amal’ e seu ‘hebel’ – feliz” (p.42). No terceiro artigo,30 Gutiérrez aborda as diferenças básicas entre a profecia clássica de Israel e Coélet. Os profetas “sentiam-se porta-vozes de Deus... Qohélet, em nenhum momento afirma que é portador da mensagem ou palavra de Elohim (p.54). Os profetas anunciavam o fim da aliança de Israel com Javé. “No Qohélet não há oráculos... sua preocupação principal não é o contexto sociopolítico imediato, mas os grandes temas da humanidade” (p.55). Outra diferença básica seria referente ao “resto de Israel”. Esta teologia do “resto” está presente principalmente nos profetas. O resto são os sobreviventes de Israel, após grandes tragédias, como aqueles que voltaram do exílio. Eles são os justos, os portadores da esperança, aqueles que reconstruiriam a nação. “Qohélet faz sarcasmo da teologia do resto” (p.58). Ele, como descendente dos antigos sobreviventes, não estaria vendo nenhuma dessas promessas cumpridas. Ao contrário, “o resto estava submetido a um pesado tributo e à escravidão” (p.58). Por isso, Qohélet não menciona os grandes temas da história, como a promessa e a aliança. Tudo isso estaria sendo desmentido pela realidade. “Foi nesse contexto que ele tentou ser feliz” (p.60), com esse conselho: “vai, come teu pão com alegria e bebe teu vinho de bom coração...” (2,12). Como se pode perceber, Jorge Luis apresenta aqui uma ótica distinta da dos demais estudiosos. Sua atenção está voltada ao estudo semântico, bem como, ao caráter filosófico e personalista de Coélet.

29

Sísifio é um personagem da mitologia grega que foi castigado pelos deuses a carregar por toda eternidade uma pedra montanha acima. Jorge Luis Rodríguez Gutiérrez “Toda palavra é tediosa (Ecl 1,8): Para o resto só restou o silêncio”, in: Estudos Bíblicos, n.62, Editora Vozes, Petrópolis, 1999, p.54-61. 25

30

Em seguida temos mais duas contribuições de Ana Maria Rizzante Gallazzy e Sandro Gallazzy. Na primeira,31 a autora apresenta uma interessante leitura de Coélet, como mulher, questionando a sabedoria helenista e judaíta. Ela parte dos primeiros capítulos do Gênesis, onde, após a expulsão, ’adam muda o nome de ’ishá. ’Ishá agora é Eva. Mas, ’adam continua sendo ’adam. Para uma visão dualista da pessoa, o jardim não precisa ser reconquistado, pois este o receberemos amanhã quando o espírito será liberto do pó. “Aí Eva já não serve mais. Ela só dá vida ao ‘pó’” (p.13). “Por ela entrou o pecado no mundo”. Os homens do templo e da sabedoria trocam, como ’adam, o nome da ’ishá: de Eva para morte. É contra esta sabedoria helenista e judaíta que a Coélet se faz ouvir: “no Xeol, para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria” (Ecl 9,10)! Se não existe reflexão e nem conhecimento depois da morte, então para que serve a alma? Coélet questiona esta sabedoria e rompe com o esquema dualista que vinha impondo-se através do mercado e da filosofia grega (Ecl 9,2-5). Portanto, conclui Ana Maria com a Coélet: “o nosso Deus não é aquele que se preocupa com nossa alma e ignora o que acontece com o nosso corpo” (p.14). “Anda, pois, e come teu pão com alegria” (Ecl 9,7-9). A segunda contribuição32 é uma continuação da anterior. Aqui Ana Maria e Sandro Gallazzy objetivam refletir sobre a polêmica afirmação de Ecl 7,26: “Eu encontrei que a mulher é mais amarga do que a morte”! Esse texto é normalmente interpretado como reflexo da amarga experiência que o sábio teve com as mulheres. Os autores, porém, não pensam assim. Para eles, o texto “tem que ser lido no conjunto da literatura da época” (p.17) para perceber nele o conflito que o produziu. Para essa 31 Ana Maria Rizzante Gallazzi, “No xeol não existe sabedoria”, in: Estudos Bíblicos, n.56, Editora Vozes, Petrópolis, 1998, p.11-15. 32 Ana Maria Rizzante Galazzi e Sandro Gallazzi, “A mulher é mais amarga do que a morte” (?), in: Estudos bíblicos”, n.56, editora Vozes, Petrópolis, 1998, p.16-25. 26

compreensão, eles comparam o texto de Sb 2,1-9 com algumas passagens de Coélet e mostram a grande semelhança entre ambos os lados. “Há, porém, uma grande diferença: em Coélet, elas resumem o sonho do pobre, na Sabedoria elas são pronunciadas pelos ricos e opressores” (p.17). Para um, a sabedoria é encontrada para quem a busca com afinco, para outro, a sabedoria é uma “fadiga”. É o primeiro tipo de sabedoria que culmina em afirmações como a do Eclesiástico 25,24: “Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos”. Morte e mulher, uma associação típica dessa sabedoria. Esse conflito já é percebido nos dias do livro dos Provérbios. Nessa literatura se encontram dois tipos de mulheres: uma graciosa, prudente, talentosa, temente a Javé, serviçal, calada. A outra, queixosa, cárie nos ossos, goteira sem fim, cova profunda. “Anjo ou demônio do lar do homem” (p.21). Ambas, porém, são incompatíveis com a sabedoria. O jovem deve decidir-se pela sabedoria, contra as seduções das mulheres. Feito esse preâmbulo, Ana Maria e Sandro retomam o texto em seu conjunto (Ecl 7,23-29) e concluem que os v.23-26 expressam o pensamento da sabedoria dominante, e os v.27-29 a resposta de Coélet. Na busca incessante da sabedoria, o sábio não sacia a sua “garganta” nefesh. A razão de não encontrar a sabedoria é a mulher. Ela, sua eterna distração, o desvia do caminho: “e encontrei eu a mulher amarga mais que a morte” (7,26). A Coélet reage com vigor, e pela primeira vez “abre sua boca” (p.23). O conteúdo de sua reação está expresso em 7,27-29. A relação ’adam e ’isha que ocorre aqui, só tem paralelo em Gn 2-3 e é para lá que os autores remetem esse texto. Lá o ’adam deve deixar a sua casa para unir-se a ’isha. E não “o bom diante de Deus escapará dela e o pecador 27

será capturado por ela” (7,26). O sábio que quer conhecer tudo inverteu a verdade do Gênesis. É por isso que não encontra a mulher que busca, pois busca um ideal de mulher inexistente. E por fim, desembocamos na maravilhosa obra de Elsa Támez33 que, sem dúvida, é uma das mais notáveis já escritas sobre Coélet na América Latina e Caribe. A primeira parte é uma reedição do seu ensaio já apresentado acima. A segunda parte é um comentário pormenorizado de todo o texto de Coélet. Mais que um comentário clássico, esta segunda parte é uma proposta de leitura para nossos tempos de desesperança. Nela, Elsa divide o livro de Coélet em três seções. A primeira, 1,1-2,26: “a frustração debaixo do sol”. Neste segmento o leitor é introduzido num mundo de frustração dor e desesperação. A segunda, 3,1-6,12: “afrontar o presente confiando na graça de Deus”. Frente ao contexto negativo apresentado pela seção anterior, Coélet convida o leitor a crer que tudo tem o seu tempo, que Deus conhece os rumos da história e que os seres humanos devem reconhecer os seus limites. A terceira, 7,1-12,7: “o discernimento na resistência e a alternativa em meio da frustração”. Não há como fugir da realidade, portanto, a melhor maneira é viver com sabedoria. Por isso, essa seção oferece conselhos práticos ou provérbios que ajudam a enfrentar a vida diária. Uma preocupação que permeia todo o comentário de Elsa Tamez é mostrar a semelhança entre os tempos do helenismo e os tempos de hoje. A maior semelhança seria a desesperança. No mundo de Coélet, Elsa não encontra muita esperança: o presente é frustrante e os horizontes estão fechados. Não há utopia. Esta mesma crise da esperança vivemos hoje, final e

33

Elsa Tamez, Cuando los horizontes se cierran, DEI, Costa Rica, 1998, 228p. 28

início de milênio. Ontem à causa da ideologia helenista, hoje, fruto do trabalho sistemático da ideologia capitalista (p.16-17). Para resistir a esta nossa realidade Coélet teria quatro conselhos. 1) Tudo tem o seu tempo. Por isso, em algum momento os horizontes terão que se abrir. 2) A afirmação da vida concreta no presente. 3) O temor de Deus 4) Discernimento e sabedoria para a vida cotidiana. Suficiente ou não, a proposta de Coélet merece ser discutida a fundo (p.219-220).

1.5 Conclusão

Este passeio em meio às produções latino-americanas foi muito útil, além de prazeiroso. Em primeiro lugar, trouxe-nos o conhecimento em que pé estão as investigações e reflexões. Em segundo lugar, propiciou uma introdução sobre os aspectos básicos do livro de Coélet. É claramente perceptível que na América Latina os estudos sobre Coélet se intensificaram a partir da década dos noventa. Estes estudos, de modo geral, se orientam a partir de duas esferas: uma personalista que vê em Coélet um conselheiro, e outra, que mostra Coélet preocupado com a transformação social. O tema de maior concentração é o trabalho. Percebemos ainda que houve uma evolução na qualidade dos estudos sobre Coélet. Como mostramos, na primeira etapa, apesar da respeitada obra de Aroldo de Campos, uma reflexão que carregue a marca latino-americana ainda é muito tímida. 29

Na segunda etapa acontece um salto qualitativo. Trabalhos como o de Ivo Storniolo e Euclides Balancin mostram que América Latina despertou para o estudo do livro de Coélet. Na terceira etapa já estamos a pleno vapor. Produções como as de Irene Stephanus, de Sandro e Ana Maria Gallazzy e de Elsa Tamez são provas do grande interesse por este livro, até a pouco tempo esquecido. E, finalmente, na quarta etapa, já temos o privilégio de estudos mais refinados, com concentração no estudo semântico ou a partir da ótica feminista, como é o caso dos artigos do casal Gallazzy. Sem deixar de mencionar mais uma produção, desta vez mais ampla, de Elsa Tamez. Este é o panorama latino-americano do estudo do livro de Coélet. É a partir desta rampa que tomaremos impulso para dar nosso aporte. É uma empreitada conjunta, que une esforços na senda que conduz à Pátria Grande. Nossa próxima parada será a apresentação do livro de Coélet.

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CAPÍTULO II

Introdução

Anteriormente já nos referimos às diversas e pessimistas opiniões que existem sobre o estudo do livro de Coélet, principalmente quando se trata de encontrar uma estrutura convincente da obra ou de estabelecer uma data segura de sua elaboração, ou ainda, quem foi o seu autor. Somos da opinião de que muitas vezes a complexidade é um ponto de vista. Isso nos faz lembrar de um seminário sobre Coélet. A certa altura, um estudioso da área, de renome internacional, desabafou: “Eu me convenço cada vez mais de que este livro só serve para ser lido num enterro”. Em contraposição, em um círculo bíblico da comunidade, refletindo sobre um texto de Coélet, uma senhora exclamou: “puxa, como esta leitura fala dos problemas que a gente vive hoje em dia. Era bem isso que eu queria ouvir." Considerando as dificuldades que sem dúvidas existem, queremos abordar esses temas de maneira modesta.

1. Quem é o autor ou a autora do livro de Coélet?

Descobrir quem são os autores dos livros bíblicos nem sempre é tarefa fácil. Às vezes impossível. Em muitos casos, o máximo que podemos alcançar são alguns traços que não permitem decifrar claramente a fisionomia de quem está por trás do texto sagrado. Mas, mesmo assim, esses vestígios, por mais 31

insignificantes que sejam, são importantes na busca pela compreensão da mensagem do outor ou autora. No caso do livro de Coélet, não é diferente. Ao contrário, ele é um exemplo clássico. A pergunta pela autoria do livro de Coélet tem sido motivo para muita pesquisa. Até o início do século XIX se acreditava piamente que o autor era o rei Salomão. No final desse mesmo século surge a teoria de que o livro fora escrito por vários autores. Até mesmo porque, esta obra sempre tem sido vista pela sua controvérsia. Como entender pareceres opostos numa mesma obra? Olhemos, por exemplo, a referência à sorte dos vivos e dos mortos debaixo do sol: “eu felicito os mortos que já morreram, mais que os vivos que ainda vivem. E mais feliz que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não vê a maldade que se comete debaixo do sol” (4,2-3). Nesta mesma ótica temos: “pois eu digo que um aborto é mais feliz do que ele. Ele chega na vaidade e se vai para as trevas, e as trevas sepultam seu nome. Não viu o sol e nem o conhece: há mais repouso para ele que para o outro” (6,4-5). Em contraposição está a seguinte passagem: “ainda há esperança para quem está entre os vivos. E um cão vivo vale mais do que um leão morto. Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo que se faz debaixo do sol” (9,4-6). Outra incógnita também é vista na referência ao rei jovem e o rei velho: “mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato” (4,13). Num outro momento ouvimos: “Ai de ti, país governado por um jovem” (10,16). A melhor solução para estas afirmações “contraditórias” era atribuir a obra a vários autores. Chegou-se a defender a tese de nove autores. Mais tarde a teoria dos vários autores foi reduzida a quatro: 1. Coélet, o autor principal; 2. o hasid “piedoso”; 3. O hakam “sábio”; e 4. o editor.34

34

Veja José Vílchez, op cit., p.48-54. 32

Atualmente a teoria que predomina é a de que Coélet foi um sábio judeu, em idade avançada, de preferência, com formação grega, que ensinava, com visão crítica, os filhos da aristocracia judaíta de Jerusalém. Assim, Coélet é comumente denominado de “pregador”.35 A identificação com o rei Salomão se deve principalmente a duas passagens: “palavras de Coélet, filho de Davi, rei em Jerusalém” (1,1) e “eu, Coélet, fui rei de Israel em Jerusalém” (1,12). A primeira é uma introdução ao livro feita bem posterior e com toda segurança por outro autor. A segunda é uma sátira à sabedoria grega e à sabedoria salomônica. Nenhuma das duas passagens condiz com a característica do autor que transparece no decorrer de todo o livro. A identificação com um velho sábio a serviço da aristocracia de Jerusalém se baseia fundamentalmente nas afirmações do próprio Coélet, como: “coloquei meu coração a investigar e em explorar com a sabedoria... examinei todas as obras que se fazem debaixo do sol” (1,3-4); “aqui estou com tanta sabedoria acumulada” (2,16); “Além de ter sido sábio, Coélet também ensinou o conhecimento ao povo” (12,9). A nosso ver, no entanto, isso não são argumentos decisisvos para afirmar que Coélet seja um velho sábio a serviço da elite de Jersualém. Inclusive, este saber que lhe é atribuído é constantemente criticado pelo próprio Coélet no desenvovler do livro. O cognome de “pregador” se deriva da raíz da própria palavra Coélet, qahal, em hebraico. Que significa “reunir, congregar”. Por ser um particípio, a palavra Coélet é melhor traduzida como “aquele ou aquela que reúne”. Os dicionários preferem traduzir por “aquele que fala na assembleia, o pregador”36. A palavra “assembleia” é transcrita no grego por ekklesia. Daí em português, “Eclesiastes”, como é conhecido o livro de Coélet. Como vemos, não é uma tradução muito apropriada.

35 36

Veja por exemplo Haroldo de Campos, op. cit., p.19. Entre outros, Luis Alonso Schökel, p.573. 33

O curioso nisso tudo é que a forma Coélet, em hebraico, é um particípio feminino singular. Isto é, sua terminação é feminina. Nunca é usada desta maneira no resto da Bíblia. Outra curiosidade é que, apesar da terminação da palavra Coélet ser feminina, todos os verbos ou pronomes que a regem são masculinos, com exeção de 7,27. Se fôssemos escolher a palavra “pregador” como a melhor maneira para referir-nos a Coélet, então tradução mais correta seria “o pregadora”. Somente em 7,27 que a tradução certa seria “a pregadora”. Daí que Ana Maria Rizzante Gallazzi e Sandro Gallazzi afirmarem que Coélet é uma mulher. Uma mulher que está presente, que vê, que escuta. Uma mulher que não é autoridade civil, nem militar, nem religiosa. “uma ‘qohelet ninguém’, mas que um dia cria coragem e fala”!37 Coélet de fato não mostra, pelo menos não de maneira visível, o seu rosto. Às vezes dá a impressão de que os seus rastos foram apagados intencionalmente. A única coisa segura que temos é o seu nome. Um nome enigmático. Pensamos que à medida que formos aprofundando o nosso estudo, teremos ideias mais claras sobre quem é Coélet. Além do mais, muitas vezes o nome da pessoa não importa muito. Nós a vamos conhecendo à medida que nós mesmos nos identificamos e à medida que vamos entrando em sintonia com ela. Portanto, ainda retornaremos a esse tema. Por enquanto, não vamos definir seu gênero, se é homem ou mulher. Vamos seguir mencionando apenas o que temos: Coélet.

2. Estrutura do livro

Encontrar a estrutura lietrária de uma obra é fundamental para entender o melhor possível a intenção do autor ou da autora da mesma. Quanto melhor 37

Veja artigo acima. 34

compreendemos a maneira de organizar um texto, tanto mais nos aproximamos do conteúdo da mensagem. Através da estrutura do texto descobrimos o que é importante e o que é secundário para o autor. No entanto, isso nem sempre é fácil. Esse é o nosso caso. Paralelo ao enigma do autor caminha a ambiguidade da estrutura. Muito já se estudou e muitos propostas surgiram, nenhuma, porém, convincente ou que tenha alcançado certa unanimidade entre os estudiosos. Por enquanto a maldição de Delitzsch se mantém: “um plano de conjunto e uma estrutura orgânica fracassaram até o presente e fracassarão para o futuro”38. Atualmente, a teoria mais aceita, ainda assim, com poucos adeptos39, é a do estudioso alemão, N. Lohfink40. Ele apresenta a seguinte estrutura:

1,2s >

Marco (enquadramento)

1,4-11 >

Cosmologia

1,12-3,15 > Antropologia 3,16-4,16 > Crítica à sociedade I 4,17-5,6 > Crítica à religião 5,6,10 >

Crítica à sociedade II

6,11-9,6 > Crítica à ideologia 9,7-12,7 > Ética 12,8 >

Marco (enquadramento)

Os versículos 1,1 e 12,9-14 seriam acréscimos do editor. Como podemos ver, esta estrutura se identifica à forma quiásmica, tendo a crítica à religião (4,17-5,6) como centro. 38 39 40

Veja introdução. Entre eles, Robert Michaud Norbert Lohfink, Kohelet, Echter Verlag, Stuttgart, 1980, p.10. 35

A estrutura quiásmica de Lohfink, contudo, não se sustenta, pois, para uma estrutura ser concêntrica, o tema central precisa se repetir nas diversas unidades. Esse não é o caso da crítica à religião, que só acontence em 4,175,6. Há outros autores que simplesmente dividem a obra em três partes: a) 1,1-11: que compreende um pequeno prólogo e a introdução de alguns temas. b) 1,12-12-8: que representa o corpo do texto, com um longo monólogo de Coélet. c) 12,9-14: que comrpeende a conclusão, com um breve epílogo.41 Na América Latina, como já mostramos acima, quem se empenhou no estudo da estrutura do livro de Coélet foi Irene Stphanus. Ela mostra a estrutura a partir da palavra hebraica hebel. Como também já mencionado, um dos grandes problemas para se definir uma estrutura única são as contradições que existem nas reflexões de Coélet. Para solucionar estas contradições, ultimamente uma teoria, que nos parece convincente, vem ganhando forças. É a assim chamada: “teoria das citações”.42 Segundo esta teoria, as contradições ou tensões não seriam outra coisa que um método usado pelo autor. Coélet citaria uma opinião com a qual ele não concorda e a rejeita. Por exemplo, em 7,1a lemos: “mais vale um bom nome que um perfume fino”; mas em 9,8b encontramos: “não falte o perfume sobre a tua cabeça”; ou ainda, em 7,26a lemos: “mais amarga que a morte é a mulher”, porém, em 9,9a diz: “goza a vida com a mulher amada”. Para a teoria das citações, as afirmações de 7,1a e 7,26a seriam dos adversários de Coélet, e as afirmações de 9,8b e 9,9a seriam do próprio Coélet, contestando seus

41

Tremper Longman III, The Book of Ecclesiastes, Eerdmans, Michigan, 1989, p.21. Veja Ludger Schwienhorst-Schönberger, Das Buch Kohelet, em: E. Zenger (ed.), “Einleitung in das Alte Testament”, Stuttgart/Berlin/Köln, 5ª edição, 2001, p.337-341. 36

42

oponentes. Neste mesmo plano pode ser comparado 4,2-3 e 6,4-5 com 9,4-6, e ainda outras contradições já referidas anteriormente. Particularmente, consideramos que é importante mencionar que a obra de Coélet está claramente dividida em duas grandes partes: uma que vai dos capítulos 1-6 e outra que vai dos capítulos 7-12. A primeira parte (1-6) aponta, principalmente, para o cotidiano vivido “debaixo do sol”. Aqui encontramos as observações de Coélet que mostram os problemas sociais, econômicos, políticos e ideológicos existentes nos dias de Coélet. Os temas centrais são o trabalho, a riqueza, a opressão, o dinheiro, a sabedoria e a autoridade. Tanto é que o verbo ver (r’h), marca do estilo observador de Coélet, é usado em sua maioria na primeira parte. O mesmo ocorre com a palavra hebel, outra marca com a qual Coélet denomina toda a realidade observada “debaixo do sol”. Não se pode negar, no entanto, que não encontremos, nesta primeira parte, passagens que parecem destoar do conjunto. O exemplo maior é o belo hino sobre o tempo para fazer as coisas (3,1-8). Foram textos como esses que levaram alguns estudiosos a especularem sobre as diversas e possíveis influências que Coélet teria recebido de outras culturas. Nesse particular, G. Ravasi faz uma vasta apresentação sobre o que ele chama de “os mil Coélets”43. A segunda parte (7-12) é de caráter mais sapiencial. Esta parte se resume em conselhos, refrães populares e críticas, estas predominantemente à sabedoria oficial. Parecera que, como na parte anterior, Coélet apresentou a realidade que viu debaixo do sol, agora a sua preocupação seria a de como sobreviver dentro dessa realidade opressora, vazia e cheia de contradições. Por isso a insistência nos provérbios práticos e na sabedoria popular. Vejamos!

2.1 Um breve olhar sobre o conjunto da obra 43

Gianfranco Ravasi, Coélet, Edições Paulinas, São Paulo, 1993, p.282-350. 37

Logo no princípio do livro (1,3), Coélet faz a grande pergunta que praticamente permeia toda a sua reflexão: “Que lucro tira o ǥƗdƗm de toda a sua trabalheira com que se cansa debaixo do sol?” Entender esta pergunta é chave para entender o teor crítico do livro de Coélet. Feita a pergunta, Coélet começa a sua argumentação para dar-lhe uma resposta convincente. Sua conclusão é a de que não há nada de novo debaixo do sol (1,9), pois as gerações continuam indo e vindo, o sol continua se levantando e se deitando, o vento continua dando suas voltas, todos os rios continuam correndo para o mar, e o olho continua não se fartando de ver e nem o ouvido de ouvir (1,4-8). Para aprofundar esta resposta, Coélet se coloca no lugar de um rei sábio e rico que se pôs a examinar tudo o que existe debaixo do céu44 (1,13). A conclusão de sua observação é a de que tudo o que se faz debaixo do sol é uma “canseira” ‘inyƗn; é um castigo de Deus, assim como em Gn 3,17-19; é um “vazio” hebel. Este mesmo rei, no intuito de experimentar a alegria e alcançar a felicidade, faz imensas obras: constrói palácios, planta vinhedos, faz jardins, constrói reservatórios de água para regar suas plantações, compra escravos, adquire rebanhos, acumula riquezas, ouro e prata, como ninguém havia feito até então (2,1-10). No final, novamente a mesma decepção: toda essa trabalheira não passou de um hebel “vazio”, um correr atrás do vento. Tudo debaixo do sol, expressão que só no capítulo 2 é usada seis vezes, é vazio, é hebel. Finalmente, depois de dedicar a vida inteira para encontrar a felicidade, com muita “trabalheira” ‘ƗmƗl e “canseira” ‘inyƗn, Coélet descobre que a receita para a felicidade está mais perto do que se imagina. A felicidade consiste em comer e beber, fruto do seu trabalho (2,24-25). Esta é a grande sabedoria que 44

Debaixo do céu e debaixo do sol são duas dimensões diferentes para Coélet. 38

Deus deu ao ’ƗdƗm. A tarefa de acumular, ao contrário, é um castigo de Deus (2,26). Como reforço para seu argumento, Coélet recorre a um belo hino (v.1-8), que provavelmente não é seu, pelo menos não na íntegra, onde ele busca mostrar que debaixo do céu cada coisa deve ser vivida no seu tempo. O hino do tempo e o estribilho de Coélet (2,24-25) se complementam. Concluído o hino do tempo, poderíamos tomar como finalizada a reflexão de Coélet, a qual começou com uma pergunta sobre o sentido da “trabalheira”, passou pelo relato da tentativa de um rei sábio e rico que realizou muitas obras na busca da felicidade, e finalizou com a descoberta de que a felicidade é simplesmente comer e beber, desfrutando do resultado do seu trabalho. Porém, a reflexão continua. Coélet retorna à pergunta inicial: “Qual é o lucro de tanta trabalheira”? (3,9). E novamente ele conclui que a felicidade é trabalhar o suficiente para comer e beber (3,12). Coélet, portanto, usa em sua reflexão um estilo tipicamente semita: a progressão em forma de espiral. A argumentação retoma o começo, mas acrescenta sempre algo novo, de maneira que não é mera repetição. Feita a pergunta e dada a resposta, Coélet volta ao seu posto de observação (3,16)45 e vê mais uma triste realidade: debaixo do sol, em vez do direito se encontra o delito, em vez da justiça, a injustiça. Porém, diz Coélet: Deus vai julgar o justo e o injusto, pois ninguém pode escapar da morte: “tudo vem do pó e tudo volta ao pó” (3,20). Por isso, mais uma vez ele repete: a felicidade para o ’ƗdƗm é alegrar-se com a porção das suas obras (3,22). Do seu posto de observação, Coélet amplia o raio de visão e percebe mais opressões debaixo do sol. Ele vê o sofrimento dos oprimidos e a força dos opressores (4,3); a competição entre pessoas (4,4), que alimenta o egoísmo a ponto de haver gente que prefere ficar sozinha, sem família, sem filhos, para 45

Um dos verbos prediletos de Coélet é o verbo r’h “ver”, usado nada menos que 47 vezes. 39

poder trabalhar mais e não precisar repartir os seus bens. Uma trabalheira sem fim, diz Coélet, pois, os olhos do ’ƗdƗm não se saciam de ver riquezas. Para que trabalhar tanto e se privar da felicidade, pergunta ele (4,7). Isso tudo não passa de hebel “vazio”. Mais vale dois que um, pois, se um cai o outro ajuda a levantar. Se fizer frio, um pode aquecer o outro, mas, se estiver sozinho, como vai aquecer-se (4,9-12)? Também sobre o templo Coélet tem algo a dizer. Apesar de ser aqui mais brando, Coélet não deixa de fazer suas críticas àqueles que vão à casa de Deus para oferecer seus sacrifícios (4,17-5,6). Coélet não é a favor das muitas palavras, nem das muitas promessas quando se vai à casa de Deus. Muito melhor do que o palavrório é o silêncio, a escuta. Acima de tudo, porém, está o temor a Deus (5,6). Terminada a crítica àqueles que vão ao templo, Coélet volta o seu olhar para o que se passa na província (5,7-19). A esta unidade, que consideramos o centro do livro de Coélet, dedicaremos uma análise mais detalhada. A ela voltaremos mais tarde. A partir do capítulo 7 acontece uma grande mudança. A atitude observadora de Coélet dá lugar aos conselhos. Aqui também são mais evidentes as famosas contradições que aparecem no livro. A ênfase sapiencial desta segunda parte do livro (7-12) leva à que um dos temas centrais seja a “sabedoria”. Tanto é que, só no capítulo 7, esta palavra se repete sete vezes. Também aqui se opõem dois conceitos: o da sabedoria oficial, instituída, e o da sabedoria popular. A partir de 8,9, Coélet retorna ao seu posto de observação e retoma a sua crítica acirrada contra tudo o que se comete debaixo do sol. A crítica aqui vai especialmente contra a competição (8,9) e contra a impunidade dos injustos (8,10-14). Isto também é hebel “vazio”, diz Coélet. E, mais uma vez, ele canta a sua música para o ’ƗdƗm: a alegria está em comer e beber, usufruindo do seu trabalho (8,15). Crítico ferrenho da teologia da retribuição, Coélet anuncia que 40

todos têm o mesmo destino. Todos, justo ou ímpio, vão para o Xeol (9,16.11).46 E, pela última vez, Coélet repete o seu refrão: come o teu pão com alegria, bebe teu vinho com gosto, vista a melhor roupa, perfuma a cabeça e desfruta a vida com a mulher amada (9,7-10). A partir de 9,13, volta à tona o tema da sabedoria “debaixo do sol”. O contraponto se dá entre o “sábio” hƗkƗm e o “insensato” kesîl. Coélet é contra o uso de muitas palavras (9,17; 10,12-14). Enquanto o autêntico sábio usa poucas palavras, o insensato multiplica o palavreado (10,14a).47 Dois exemplos ilustram a insensatez reinando no país: um é o da cidade salva por um sábio pobre, mas que não é lembrado (9,13-14); e o outro é o dos insensatos que ocupam altos postos no governo do país (10,5-6.16-19) e, em cujo meio, as relações são de desconfiança e de espreita (10,20). Com o capítulo 11 começam a baixar as cortinas da obra de Coélet. Antes do final, porém, Coélet ainda apresenta uma seção de conselhos, quase todos relacionados à prevenção (11,1-6). Em 11,7 se inicia a clausura com uma linda poesia. Usando muitas metáforas, Coélet quer lembrar mais uma vez ao ’ƗdƗm que a vida foi dada por ‘elǀhîm e a ele voltará (11,7-12,7). E o conselho que Coélet dá é que, antes que esta hora chegue, ele se alegre com todos os anos da sua vida (11,8).

3. Gênero literário

O conhecimento do gênero literário de uma obra também está associado à maior compreensão do seu conteúdo. Tendo claro esse aspecto podemos estabelecer com maior facilidade um paralelo com outras produções literárias cujo gênero literário é o mesmo. Isso aumenta as chances de percebção da mensagem. 46 47

Tudo indica que Coélet não é partidário da ressurreição. Veja 4,17-5,6. 41

Obviamente, assim como as discussões sobre um ou diversos autores atinge a estrutura, alcança também o gênero literário do livro. Várias tintas representam vários estilos. O estudo tradicional da crítica das formas concluiu que o gênero do livro de Coélet não pode ser definido exatamente.48 Para James Crenshaw49 o livro não tem só um gênero literário. José Vílchez50, após uma ampla apresentação dos inúmeros e possíveis gêneros literários, conclui: o que distingue este livro dos demais não é o seu gênero literário, mas sua capacidade de unir os diferentes gêneros literários, porém sapienciais. A introdução desse panorama não nos deve desanimar. Ao contrário, ele nos leva a concluir algumas verdades. Uma delas é a de que o gênero literário predominante no livro de Coélet é sapiencial. A outra é a de que, diante desse quadro da diversidade de gêneros literários, apesar da predominância sapiencial, o mais aconselhável é partir do gênero de cada perícope em particular. É como iremos proceder em nossa análise da unidade 5,7-19. Além disso, em sintonia com o gênero literário está o estilo de Coélet. E esse nos parece mais evidente. Coélet sempre parte da realidade para fazer suas reflexões críticas. Com um olhar atento analisa a realidade, avalia e conclui. O resultado é quase sempre apresentado em forma de poesia. Nela Coélet coloca refrães, recupera provérbios populares e cria os seus próprios. Tendo presente essas questões é possível realizar uma boa análise literária de qualquer texto dol ivro de Coélet.

4. Quando foi escrito o livro de Coélet?

48 49 50

Longman Tremper, op. cit., p.15. James Crenshaw, Ecclesiastes, p.28. José Vílchez, op. cit., p.67. 42

Para fazer um bom estudo bíblico é fundamental, diríamos que é quase imprescindível, que se saiba ou se descubra com A maior exatidão possível, quando esse texto a ser estudado foi escrito. Melhor ainda, que o estudo do texto revele o seu contexto. Infelizmente, em se tratando de Coélet, essa exatidão fica a desejar. No mesmo dilema em que se encontram o autor, a estrutura e o gênero literário, encontra-SE também o contexto histórico. Podemos apenas oferecer aproximações. Parece que Coélet apagou intencionalmente seus rastos. Por isso, é preciso ser bom rastreador para ler as marcas apagadas ou, o que é mais certo, tornar evidente o obscuro que já foi claro. Portanto, a busca continua. Vamos começar com o que temos de seguro. Há unamidade entre os pesquisadores em concentir de que Coélet é posterior a 539 a.C. O que nos dá essa certeza são os vocábulos persas empregados por Coélet em sua obra. Outra segurança que possuimos é a de que o texto é anterior a 150 a.C. Fragmentos em hebraico encontrados em Qumram, mostram que para essa data já havia uma cópia do livro em circulação51. A tese que vem se impondo nos últimos anos e que poucos têm fundamentos consistentes para refutá-la é a de que o livro de Coélet foi escrito no terceiro século a.C. O argumento decisivo para essa produção tardia na história de Israel é a linguagem usada. Palavras aramaicas e do hebraico tardio empregadas por Coélet apontam para essa época. Coélet usa também palavras novas, desconhecidas em épocas anteriores, mas que já se encontram na Mishná.52 A Mishná é uma coleção de opiniões conhecidas como o núcleo do Talmude e que foi escrita por volta do ano 200 a.C. Só que, um século é um período bastante longo para se precisar uma obra. Por isso, muitos estudiosos simplesmente apelam para o ano 250 a.C. 51

Ronald E. Murphy, “Eclesiastes (Qohelet), In: Comentário Bíbl...., p.507. Víctor Fernández, op.cit., p.103-108, apresenta uma boa síntese das palavras aramaicas, do hebraico tardio e da Mishná presentes no livro de Coélet. 43 52

Algumas passagens têm servido de pesquisa na tentativa de situar melhor Coélet na história. Uma delas é 4,13-16:

Mais vale um jovem pobre e sábio do que um rei velho e insensato que não aceita mais conselho. Mesmo que ele tenha saído da prisão para reinar e mesmo que tenha nascido mendigo no reino, vejo todos os viventes que se movem debaixo do sol ficar com o jovem que sucedeu ao outro, e ele permanece à frente de uma multidão sem fim.

Tem-se sugerido que o jovem seja Alexandre Magno substituindo seu pai Felipe II ou, o que seria mais provável, Alexandre Magno derrotando o rei persa, Dario III, isso por volta do ano 333 a.C. Nesta mesma direção se cogitou tratar-se do sistema grego suplantando o sistema persa. Outro texto que pode lançar luzes para uma possível datação do livro é 9,14-15:

Havia uma cidade pequena com poucos habitantes. Um grande rei veio contra ela, cercou-a e levantou contra ela obras de assédio. Nela encontrou um homem pobre e sábio, que salvou a cidade com sua sabedoria, mas ninguém se lembrou desse homem pobre.

44

É possível que a cidade a que o texto se refere seja a cidade marítima de Dora, situada ao sul do Monte Carmelo (1Mc 15). Ela foi cercada e assediada por muito tempo pelo rei Antíoco III em 218 a.C. Um terceiro texto que pode mostrar pistas é 10,16:

Ai de ti, país governado por um jovem e cujos príncipes comem desde o amanhecer.

Aqui se defendeu a teoria de que o jovem seria o rei Ptolomeu IV Filopator (222-205). Ptolomeu IV chegou ao poder com apenas dezessete anos. Considerado jovem demais para reinar, foi nomeado um ministro para assumir o governo. Esse foi um período de muita crise e o começo da decadência do império ptolomaico. A nosso ver, a obra de Coélet se situa no período histórico em que os Ptolomeus dominaram a Palestina. Estamos, portanto, em plena era helenística. Nossa tendência é puxar Coélet mais para o último período do terceiro século a.C. Gostamos da ideia da proximidade de Coélet com o movimento revolucionário macabaico.53 Como concluímos nos tópicos anteriores, entendemos que teremos maior clareza sobre o contexto histórico do livro de Coélet quando fizermos a exegese da perícope de nossa escolha: 5,7-19. De maneira que, mais adiante retornaremos a essa questão.

53

James Crenshaw, op. cit., p.50, Concorda com a opinião que situa o texto num período tardio do terceiro século, entre 250-225 a.C. 45

CAPÍTULO III

O HELENISMO

1. Enfoques sobre o helenismo

Como vimos acima, é quase unânime a opinião dos estudiosos em situar o livro de Coélet no terceiro século a.C. Apesar de não haver uma data precisa, há muito que a maioria dos pesquisadorse afirma que Coélet foi escrito na Palestina quando os Ptolomeus reinavam sobre aquela região. Ou seja, em pleno florescimento do helenismo. Se assumirmos isso, então é imprescindível uma abordagem do que foi o helenismo e o que ele significou para o povo de Israel. Só assim poderemos nos aproximar do mundo de Coélet e a partir dele alcançar entender o que ele escreveu.

1.1 Introdução

Foi o autor de 2Mc 4,13 quem primeiro usou o termo “helenismo”, como a manifestação da cultura e religião grega: “verificou-se, desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros, por causa da exorbitante pervesidade de Jasão, esse ímpio e de modo algum sumo 46

sacerdote”54. É também esse mesmo autor que emprega pela primeira vez o termo “judaísmo”, para denominar a religião judaica (2Mc 2,21). Nos tempos modernos, foi Johann Gustav Droysen (1808-1884) quem por primeiro caracterizou o helenismo como a fusão das culturas grega e oriental a partir das conquistas de Alexandre Magno.55 Sabemos, no entanto, que o conceito tem sido usado de diferentes modos, o que demonstra a sua complexidade.

Acreditamos

que

o fenômeno

não

pode

ser limitado

simplesmente a um aspecto cultural, político, sócio-econômico ou religoso, mas que inclui todos eles. Normalmente se considera o início da expansão do helenismo com as conquistas de Alexandre o Grande. Seu começo, no entanto, está situado muito antes. Seus primeiros agentes, comerciantes e mercenários gregos, já são encontrados durante o domínio persa (539-333) e talvez antes.56 Uma confirmação disso é o testemunho do orador Isócrates (436-338) no enaltecimento a Atenas, por ela “fazer com que o nome grego já não seja o de uma raça, mas o de um modo de pensar, e que se chame gregos não somente aos que têm a mesma origem que nós, mas a todos os que compartem nossa educação”57. Assim como precede a Alexandre, o helenismo também não termina com o domínio grego, mas sobrevive e até se fortalece no Estado hasmoneu e mesmo no reinado romano.

54 Salvo indicações contrárias, as citações bíblicas são tiradas da “Bíblia de Jerusalém”, Editora Paulus, São Paulo, 1994. 55 Martin Hengel, Judaism and Hellenism, v.1, SCM Press, London, 1974, p.2. 56 Arnaldo Momigliano, em sua famosa obra: Alien Wisdom – The Limits of Hellenization, Cambridge University Press, New York, 1998, p.74-77, acredita que esse contato já existira bem antes. Para ele, os mercenários empregados por Davi (2Sm 20, 23; 1Re 1,38) tenham sido de Creta, que presumivelmente falavam grego. Também, que a ascensão de Joás ao trono, por volta de 840 a.C., tenha ocorrido graças ao apoio dos mercenários e comerciantes de Creta. Na Samaria foi encontrada cerâmica grega que antecede a destruição da cidade por Sargon II em 722 a.C. Para Momigliano, haviam mercenários gregos no exército egípcio que assassinou Josias em Meguido, em 609 a.C. Acredita o autor, ainda, que, quando Jeremias fugiu para Táfnis, no Egito (Jer 43,7; 44,1), a cidade provavelmente era guarnecida por mercenários gregos. Portanto, imagina-se que Jeremias tenha sido recebido por soldados gregos em solo egípcio. A cerâmica encontrada na rota que vai de Jerusalém à Hebron são sinais de que o comércio grego com os remanescentes de Judá sobrevivera ao exílio. Esse contato, porém, não teria ido além de uma relação mercantil com comerciantes e mercenários. Ou seja, não teria sido uma relação de nação para nação. 57 Citado por Robert Michaud, Qohelet y el helenismo, Editora Verbo Divino, Estella, 1988, p.13. 47

Nossa atenção, no entanto, vai estar centrada na espansão do helenismo a partir da Grécia desde o final do século IV a.C, com a ação político-militar

de Alexandre, seguido da penetração econômico-cultural na

região de Judá, sob o governo dos ptolomeus e a reação do leste, principalmente na esfera econômica e religiosa, aceitando ou rejeitando este fenômeno. Esta é a etapa que comumente é conhecida como período helenístico. O seguinte gráfico cronológico poderá ajudar a situar esse período:

536-332 a.C. > período persa 332-167 a.C. > período helenístico 167-141 a.C. > revolução macabaica 141-63 a.C. > estado hasmoneu

1.2 Período helenístico

O período helenístico pode ser subdividio da seguinte forma:

a) 332-301 a.C. > as conquistas de Alexandre e as guerras dos diádocos b) 301-200 a.C.

>

os ptolomeus (Egito) governam

>

os selêucidas (Síria) governam

sobre Judá c) 200-167 a.C. sobre Judá

48

Para estudar esse período, queremos tomar como ponto de a partida um texto bíblico que ilustra e resume de forma brilhante o domínio grego no oriente:

Depois de ter derrotado Dario, rei dos persas e dos medos, Alexandre, filho de Filipe, macedônio oriundo da terra dos ketiim, tornou-se rei no seu lugar, primeiramente na Hélade. Empreendeu numerosas guerras, conquistou muitas cidades fortificadas e fez perecer os reis da região. Avançou até as extremidades do mundo e tomou os despojos de inúmeras nações. Calou-se a terra diante dele. Exaltou-se o seu coração e inchou-se de orgulho; reuniu um exército sobremaneira poderoso e subjugou províncias, nações e dinastas, que tiverm de lhe pagar tributo. Caiu doente, porém, e viu que estava à morte. Convocou os seus oficiais nobres, os que com ele haviam sido educados desde a sua juventude, e dividiu entre eles o seu reino antes de morrer. Estava Alexandre no duodécimo ano do seu reinado quando morreu. Os seus oficiais nobres assumiram o poder, cada qual no seu feudo. Todos cingiram o diadema após a sua morte, e depois deles os seus filhos, durante longos anos se multiplicaram os males por sobre a terra (1Mc 1,1-9).58

Em nosso estudo seguiremos os passos desse texto, começando com as conquistas de Alexandre, período que transcorre entre 333-323 a.C.

1.2.1 A conquista de Alexandre o Grande

58

Bíblia, Tradução Ecumênica, Edições Paulinas/Loyola, São Paulo, 1995. 49

Por volta de 350 a.C., pela primeira vez na história, o centro de gravitação começa a mudar do oriente para o ocidente. A hegemonia dos persas, que haviam reinado sobre o mundo desde a queda da Babilônia, começa a ser ameaçada por um rei que surge do norte da Grécia, Felipe II, rei da Macedônia. O grande oponente de Dario III, rei dos persas, estava sendo a união das cidades-estado gregas em torno de Filipe II. Esta unidade, no entanto, só chega a se concretizar plenamente com a subida ao poder do filho de Felipe, Alexandre o Grande. A forma monstruosa que se vai caracterizar o império deste novo monarca é descrita por Dn 7,7 nesses termos:

Após isso, eu via, nas visões da noite, e eis um quarto

animal,

assustador,

terrificante,

extremamente vigoroso; ele tinha monstruosos dentes de ferro; ele comia, rasgava e pisoteava o resto com os pés; ele diferia de todos os outros animais que o tinham precedido, e tinha dez chifres59.

Alexandre toma posse com apenas vinte anos de idade, após a morte de seu pai. Derrota definitivamente os persas e em menos de três anos conquista o mundo, chegando até os limites da cordilheira do Himalaia. Dez anos após sua posse, morre devido a uma doença na Babilônia. A espetacular visão de Dn 8,3-8 ilustra muito bem o confronto entre Dario e Alexandre. O profeta em sua visão vê um carneiro em pé (Dario III) com dois grandes chifres que dava marradas para o oeste, para o norte e para o sul e ninguém lhe podia impor resistência. Em seguida Daniel vê um bode (Alexandre), com um chifre grande, vindo do ocidente e percorrendo toda a terra. O bode investiu contra o carneiro e lhe quebrou os dois chifres. O bode crescia enormemente, mas quando estava em pleno vigor, o grande chifre foi 59

Bíblia, Tradução Ecumênica. 50

quebrado e no seu lugar se elevaram quatro chifres notáveis, aos quatro ventos do céu.

1.2.2 Alexandre, o faraó

O vigor e a audácia de Alexandre não lhe vêm simplesmente do seu posto de generalíssimo das tropas gregas. A mãe de Alexandre, Olímpia, filha de Neoptolemo I, monarca de Epiro, reino vizinho de Macedônia, era praticante das orgias e ritos esotéricos. Isso a conduziu para a ilha de Samostrácia,60 onde vivia sua consagração ao deus Amon-Rá (Jr 46,25; Na 3,8 e Ez 30,13-16) em companhia das serpentes sagradas, assim como as grandes sacerdotisas. Por volta de 358 a.C., Felipe II visitou a ilha de Samostrácia e se apaixonou pela beleza de Olímpia tomando-a por esposa. Conduzida à Pela, capital da Macedônia, Olímpia se preocupou em levar consigo uma das suas serpentes. Teve um filho e lhe deram o nome de Alexandre. Felipe pensava ser seu, não assim Olímpia. Para ela não havia dúvida, Alexandre era filho de Zeus-Amon, o deus greco-egípcio. Essa foi a educação que Alexandre recebeu de sua mãe. Ainda que fisicamente fosse considerado filho de Felipe, ele acreditava ser misteriosamente filho de Zeus-Amon, o grande deus-sol.61 O seu inesperado triunfo contra as forças do invencível Dario na batalha do rio Grânico,62 a primeira depois de haver cruzado o Helesponto63, confirma aos soldados, de que seu ambicioso general realmente teria dotes divinos. Alexandre segue seu destino “traçado pelos deuses”. Depois de cruzar o Helesponto, e da vitória na batalha do Grânico, o descendente de Amon-Rá conquista o litoral da Ásia Menor e alcança a lendária Górdio onde teria cortado

60

Ilha do norte do mar Egeu. Foi visitada por Paulo em uma de suas viagens (At 16,11). Robert Michaud, op. cit., p.44-45. Flávio Josefo, História dos hebreus, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, Rio de Janeiro, 1990, p.248-249. 63 Estreito de Dardanelos. 51 61 62

o famoso nó gordiano. Esta façanha lhe reconfirma a filiação divina e a promessa de Amon do domínio sobre a Ásia. No entanto, o desafio maior ainda estava por ser superado, a batalha decisiva contra todas as forças do rei Dario III. Fala-se de um milhão de homens mobilizados por Dario para o confronto com o intrépido inimigo. Certo da vitória, o monarca persa se fazia acompanhar de toda a corte real: princesas, rainhas, os filhos do rei e um incalculável tesouro real. O confronto se dá junto ao pequeno rio Pínaro, na planície de Issos. Surpreendentemente, Dario é derrotado. Um dos filhos morre na batalha, como os milhares de soldados, outro é preso, juntamente com sua mãe, sua esposa e suas duas filhas.64 Dario consegue fugir. Daí para frente, nada mais deterá a ambição do jovem conquistador macedônio. O próximo alvo será a inconquistável cidade-fortaleza de Tiro situada no meio do mar (Ez 26,1-28,19). O cerco durou sete meses. Ao final, é conquistada e Alexandre tem a oportunidade de demonstrar toda a sua tirania enforcando grande parte dos prisioneiros (cerca de dois mil). Os demais são levados e vendidos como escravos.65 Conquistada a cidade, Alexandre cumpriu seu voto oferecendo sacrifício a Hércules no templo de Melcart, pois teria visto em sonhos Hércules tomando-o da mão e introduzindo-o na cidade. Esses sonhos de predestinado pelos deuses parecem comúm para o imperador. Flávio Josefo, o historiador judeu, relata que depois da conquista de Tiro, Alexandre teria entrado em Jerusalém e num suposto encontro com o sumo sacerdote Jado, diante de quem teria adorado ao Deus dos hebreus, teria dito “... Ele me apareceu em sonho, não posso duvidar de que não tenha sido por ordem de Deus que empreendi esta guerra e assim vencerei, destruirei o império dos persas e todas as coisas suceder-me-ão segundo meus desejos”66.

64 65 66

Flávio Josefo, op. cit., p.249. Robert Michaud, op. cit.,p.52. Flávio Josefo, op. cit., p.249. 52

A epopeia do conquistador segue seu rumo. Zacarias 9,1-8

, que,

67

conforme entendemos, se refere às conquistas de Alexandre o Grande, apresenta uma síntese das cidades sitiadas: O conquistador vem de Hadrak, norte da Síria, ocupa Damasco, apelidada de “joia de Aram” (v.1); conquista Hamat, sitia Tiro, cidade fortificada no meio do mar e cumulada de riquezas, e Sidon (v.3-4); apodera-se de Ascalom, Gaza e Ecron (v.5); destrói Asdod e a repovoa de bastardos, numa menção à população mestiça que veio repovoar a cidade, ou talvez ao próprio Alexandre que se pretendia filho do deus Amon (v. 6). Tomadas essas importantes cidades, o insaciável conquistador segue sua rota rumo ao Egito. Esta expedição tem um sabor diferente. Egito é um país sagrado, onde prevalecem os templos, a mística e os homens imortais. É ali que está seu nascedouro e é para lá que ele se dirige para ratificar sua ambição de pretenso semideus. Egito não impõe resistência, Alexandre é recebido como libertador e exaltado como um dos grandes faraós. O filho de Olímpia e de Amon é introduzido na assembleia dos deuses imortais. Sua consagração definitiva, no entanto, se dá no templo do sol, Amon, no oásis de Siuah.68 De agora em diante o mundo é obrigado a se render ao ímpeto conquistador do novo faraó. Sobre a conquista de Jerusalém e da Samaria, não existem muitas informações. Segundo Flávio Josefo69, durante o sítio de Tiro, Alexandre teria pedido ajuda a Jado, então sumo sacerdote de Jerusalém. Este se teria recusado, afirmando que deve lealdade a Dario III. Alexandre se teria irritado muito e depois de haver conquistado Tiro se teria dirigido diretamente à Jerusalém para tomar satisfação do sumo sacerdote. Este, ao saber da ameaçadora visita, iluminado por Deus num sonho, teria aberto os portões da 67

Existe um grande consenso por parte dos estudiosos em localizar Zacarias 9,1-8 no final do IV século a.C. Veja por exemplo Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, v.2, Editora Sinodal/Editora Vozes, São Leopoldo/Petrópolis, p.490. 68 Robert Michaud, op. cit., p.60-63. 69 Flávio Josefo, op. cit., p.250. 53

cidade e recebido ao soberano com todas as honras. O imperador teria oferecido sacrifício ao Deus dos hebreus no templo e permitido ao povo viver conforme seus costumes. Talvez esse acontecimento possa ser mais verossímil na volta de Alexandre e de seu exército do Egito. Quanto à Samaria, ao contrário, já durante o cerco de Tiro, o governador Sanabalete da Samaria teria oferecido oito mil soldados para auxiliar os gregos no cerco à cidade, pedindo em troca a construção de um templo sobre o monte Garizim, na Samaria. Depois de sua glorificação, Alexandre com sua tropa, deixa o Egito, retorna à Tiro, atravessa o Eufrates e o Tigre e enfrenta novamente Dario III . Ali, na planície de Gaugamela, Alexandre Magno derrota definitivamente a Dario III. Após a vitória, seguem-se sucessivos saques às cidades: Babilônia, Susa, Persépolis etc. Apossando-se de riquezas incalculáveis, oriundas dos saques, Alexandre e seus generais seguem o caminho em direção ao extremo do mundo, às Índias. O território Hindu só é alcançado quatro anos mais tarde. Para a surpresa dos conquistadores, não encontram ali quase resistência. Sua maior dificuldade, acostumados a resolver suas desavenças por meio da força bruta, é entender o modo estranho daquele povo que regula a sua vida associando sabedodria e mística. Em uma ocasião um grupo de brâmanes teria sido feito prisioneiro por fomentar um motim. Alexandre, disposto a perdoarlhes a vida, desde que respondessem satisfatoriamente algumas inquirições, teria-lhes perguntado: qual seria a idade ideal para morrer? A que teriam respondido os sábios: “é a idade em que a pessoa chega a desejar a morte melhor que a vida”. Não satisfeito, interrogou-lhos novamente: o que há de pior sobre a face da terra? A que teriam respondido: “o autor de muitas mortes, Alexandre”.70 O retorno se deu mais rápido. Sua parada mais prolongada foi em Susa, cidade situada a 370 km a leste da Babilônia e que havia sido conquistada seis anos antes, por ocasião de sua jornada para as Índias. Susa era uma das 70

Robert Michaud, op. cit., p.73. 54

capitais de inverno dos reis persas. Foi ali que o ambicioso macedônio organizou os casamentos em massa de dez mil soldados gregos e macedônios com dez mil mulheres persas. Ele próprio casou-se com as filhas dos reis persas, Artajerjes III e Dario, mulheres que haviam sido feitas prisioneiras desde a derrota deste último. Esta prática era comum entre os conquistadores O matrimônio em massa sempre foi interpretado como uma nobre tentativa de Alexandre em fundir a cultura do Ocidente com a do Oriente. Conhecendo, no entanto, os nobres interesses do tirano, não é difícil concluir que o motivo do ato não era outro que o de selar a sua aventura conquistadora. O astuto ocidental percebeu em sua andança pelo Oriente que pela força jamais conquistaria aqueles povos em definitivo. Era preciso mais. Era preciso incutir-lhes costumes que os tornassem úteis ao império. De nada valeria ser dono do mundo se esse não produzisse benefícios. Era preciso fazer com que aquela gente entrasse na vida comercial grega. Enfim, era necessário helenizála. Além disso, durante os já quase dez anos que essa imensa tropa de soldados havia deixado a Macedônia e saído a conquistar o mundo de cidade em cidade, quantos filhos engendrados à força conquistadora não terá deixado pelos caminhos? O resultado desse matrimônio em massa não era nada diferente do que já vinha sucedendo. Após o casamento, a única alegria da população indefesa era ver os invasores partirem para continuar suas guerras. É também em Susa onde o pretenso filho de Zeus-Amon, que, por ser sucessor de Dario, já era reconhecido como divino pelos persas e como faraó pelos egípcios, ordena a todos os súditos gregos que o reconheçam como deus.71 De Susa, Alexandre parte com sua tropa em direção ao Ocidente que ainda não está de todo sob o seu poder. Passa por Opis e se detém em Ecbátana, onde atingiu o ápice de sua glória. No começo do ano seguinte partiu para Babilônia, sem aviso prévio dos deuses de que depois desta cidade 71

Tudo leva a crer que os gregos, com sua filosofia, teriam tido maior resistência para aceitar a filiação divina de Alexandre do que os outros povos. 55

ninguém mais precisaria temer o afamado guerreiro. Uma doença que o pretencioso deus não pôde enfrentar realizou aquilo que nenhum homem alcançara fazer. Alexandre morreu no dia 13 de junho de 323 a.C., aos trinta e três anos de idade.72 Só a morte pôde pôr fim à insaciável ambição do jovem conquistador. Alexandre Magno morreu no auge do seu reinado. “O bode crescia enormemente; mas enquanto ele estava em pleno vigor, o grande chifre foi quebrado, e no seu lugar se elevaram quatro chifres notáveis, aos quatro ventos do céu” (Dn 8,8). É desses quatro chifres que iremos tratar em seguida.

1.2.3 “Todos cingiram o diadema após a sua morte” (1Mc 1,9)

Quando Alexandre morreu seu império foi disputado entre os seus generais: Antígono ficou com a Ásia Menor; Seleuco com a Babilônia e as nações vizinhas; Lisímaco com o Helesponto; Cassandro com a Macedônia; e Ptolomeu, filho de Lago com o Egito. Como é fácil imaginar, essa disputa entre os diádocos73 não se deu sem “sangrentas e longas guerras, desolação em várias cidades e a morte de um número mui grande de pessoas”74. Depois de Alexandre haver saqueado todas as cidades conquistadas, cabia agora aos seus generais continuar explorando de forma organizada os territórios adquiridos por seu comandante. Como nossa atenção está voltada para a Palestina, é dela que nos ocuparemos.

72 Num estudo feito por cientistas da Escola de Medicina da Universidade de Maryland e publicado pelo jornal Folha de São Paulo, 11.06.1998, Alexandre, o Grande, não teria morrido de malária ou por envenenamento, mas fora vítima da febre tifóide. O argumento se baseia entre outros, no fato de que o corpo do imperador teria permanecido sem putrefação por vários dias após a morte. Segundo os pesquisadores, a febre tifóide pode causar paralisia no corpo e respiração fraca, o que pode confundir o portador da doença com um morto. 73 Palavra que significa “sucessor”, em referência aos generais de Alexandre. 74 Flávio Josefo, op. cit., p.251 56

A Palestina, juntamente com a Síria, a Fenícia e a Transjordânia conformavam uma unidade conhecida como Celessíria75 que era governada pelos ptolomeus do Egito. Não foi difícil para os ptolomeus continuarem a ideologia de seu antecessor. Para o Egito, os monarcas ptolomeus eram os sucessores dos faraós e herdeiros de suas prerrogativas divinas, filhos de Amon-Rá. Como tais, eram donos absolutos de todo o país e dos territórios conquistados, com os seus bens e seus habitantes.76 Ptolomeu I, que governou o Egito desde 323 a.C. e tomou o título de rei em 305/4, não deixou por menos. Assim fala Flávio Josefo, “a Síria sofreu esses males, sob o reinado de Ptolomeu... ao qual se dava o nome de Soter, isto é salvador, mas ele mostrou que não o tinha como justo título”77. Os gregos se sentiam senhores dos territórios conquistados apossandose das melhores terras. Quando Ptolomeu I Soter ocupou Jerusalém “governadores, soldados e comerciantes greco-macedônio foram viver na Palestina sob o direito da conquista”78. Como um grande proprietário os ptolomeus administravam o Egito subdividindo o país em departamentos e estes em toparquias. As toparquias eram formadas por diversas cidades e aldeias. Como braço direito, o rei tinha um ministro de finanças, seguido de um batalhão de subalternos distribuídos hierarquicamente nos postos mais importantes da administração. Uma política semelhante era aplicada às províncias. A Celessíria foi dividida em departamentos chamados hiparquías. Cada hiparquía tinha um ecônomo que vigiava a cobrança inescrupulosa dos impostos. Na Palestina esse papel estava a cargo da família dos tobíadas, da qual falaremos mais adiante. Para evitar revoltas, foi criado um aparelho delator e repressor. Assim, tudo o que se dizia ou fazia chegava aos ouvidos dos agentes do estado. 75

Seu significado, “região baixa”, está em função da topografia da região. Martin Hengel, op. cit., p.35. Flávio Josefo, op. cit. p.251. 78 Arnaldo Momigliano, op cit., p.83. 57 76 77

Depois de Ptolomeu Soter, subiu ao poder seu filho, Ptolomeu II, apelidado de Filadelfo.79 Conforme Flávio Josefo, Ptolomeu Filadelfo reinou trinta e nove anos (282-243). Fontes históricas afirmam, no entanto, que Ptolemu II morreu em 246 a.C.80 Este personagem é bastante conhecido graças aos papiros de Zenão,81 um administrador cabal dos negócios de Apolônio, ministro da fazenda de Ptolomeu Filadelfo. Segundo Flávio Josefo, foi no reinado de Filadelfo que foi traduzida a lei judaica. No intuito de enriquecer a biblioteca de Alexandria82 e responder às necessidades do grande número de judeus que viviam no Egito, o imperador escreveu a Eleazar, então sumo sacerdote de Jerusalém, para que escolhesse “em todas as tribos, pessoas, que pela idade e pela inteligência tenham adquirido um grande conhecimento das vossas leis e sejam capazes de traduzi-las com exata fidelidade”83. Eleazar teria escolhido setenta e duas pessoas, seis de cada tribo, e as enviado ao rei. Após morte, Ptolomeu II Filadelfo é substituído por seu filho Ptolomeu III Evergetes (Benfeitor, 246-222). Sua primeira ação foi recomeçar a guerra com os selêucidas para vingar a morte de sua irmã Berenice, casada com Antíoco II e envenenada pela primeira esposa deste. Este casamento, que havia posto fim à segunda guerra síria, é mencionado em Dn 11,6: “alguns anos mais tarde eles celebrarão uma aliança, e a filha do rei do sul virá para junto do rei do norte para se ratificarem os acordos”. Caracterizam-no também suas longas campanhas entre às terras da Mesopotâmia e Babilônia. É em uma destas campanhas que

o novo soberano resgata as estátuas dos deuses que

Cambises, rei persa, havia arrebatado dos egípcios séculos antes. Daí o 79 Filadelfo, “aquele que ama o irmão”. Esse apelido se deve ao fato de Ptolomeu II haver-se casado com sua irmã Arsinoé II. 80 Robert Michaud, op. cit. p.126. 81 Os papiros de Zenão foram encontrados no início desse século e constam os registros pessoais desse homem e seus negócios no mundo grego. Esses documentos são uma ideia abrangente do comércio existente durante o domínio ptolomaico. 82 Alexandria foi o grande centro de expansão do helenismo. Além da primeira grande Universidade, possuía a maior biblioteca do mundo conhecido. Para essa época a biblioteca de Alexandria contava com mais de 500.000 livros. 83 Flávio Josefo, op. cit. p.253. 58

apelido de Evergetes, benfeitor. É nesses termos que Dn 11,6-8 se refere a Ptolomeu III: “um broto de suas raízes surgirá no seu lugar, ele virá para o exército e entrará na fortaleza do rei do Norte; e ele agirá contra eles e vencerá. Até mesmo seus deuses, com suas imagens de metal fundido e seus objetos preciosos de prata e de ouro ele os levará cativo para o Egito”. Ptolomeu III morre no ano 222 a.C. e é sucedido por seu filho Ptolomeu IV Filopator (222-205), com apenas 17 anos de idade. Demasiado jovem para o governo, Ptolomeu IV Filopator84 entrega a administração do reino nas mãos do seu ministro Sosíbio. Com o reino do Egito debilitado, o selêucida Antíoco III começa a quarta guerra síria e o início da conquista da Palestina (Dn 11,8-11). A guerra se estende por vários anos com grandes perdas para ambos os lados. Ptolomeu IV Filopator é sucedido por Ptolomeu V Epífanes (204-180), que tinha somente cinco anos de idade. O Egito se encontrava dividido por revoltas internas. Com o Egito em decadência, Antíoco III retoma a guerra auxiliado por Filipe V da Macedônia. Essa seria a quinta guerra síria, que é mencionada em Dn 11,14-16. Pouco a pouco as cidades egípcias vão caindo em mãos de Antíoco III. Por volta do ano 200 a.C., na batalha de Paneion, a Palestina passa definitivamente ao controle do império selêucida. No início as relações dos selêucidas com as cidades conquistadas parecem terem sido boas. É o que se constata na estela encontrada em Hefzibah, na Galiléia, a qual relata as ordens de Antíoco a Ptolomaio para que as populações conquistadas sejam bem tratadas.85 Essa política, entretanto, muda com a ascensão de Roma. Dn 11,17 fala da tentativa de Antíoco III em selar um acordo com Ptolomeu V, dando-lhe a filha Cleópatra em casamento. Mas a manobra lhe resultou mal. Cleópatra se passou para o lado dos romanos, contra os selêucidas. Os romanos representavam a nova força que estava surgindo no cenário internacional. Em contrapartida, os seulêucidas aos

84 85

Filopator: “aquele que ama o pai”. Robert Michaud, op. cit.,p.137. 59

poucos foram perdendo espaço. Vários territórios europeus e da Ásia Menor foram paulatinamente sendo arrebatados pelos novos inimigos. Com a entronização de Selêuco IV (187-175), a situação continua se deteriorando. O reino dos selêucidas vai se endividando cada vez mais. A tudo isso se acrescenta uma luta interna pelo poder em Jerusalém. 2Mc 3,1-4 relata esse conflito entre a aristocracia sacerdotal de Jerusalém pelo controle do mercado da cidade. Dois grupos se encontram em disputa: um grupo ligado ao templo quer manter o mercado tradicional; outro grupo, identificado com o helenismo, defende o livre mercado da polis.Vence o segundo grupo. Com a helenização, Jerusalém passa por rápidas e grandes mudanças. As famílias aristocratas aderem quase que em sua totalidade ao helenismo. Um ginásio, ephebeion, é construído e é elaborada uma constituição helenística que despreza a Torá. Como se não bastasse, Selêuco IV, apelidado de Filopator, mandou saquear o templo de Jerusalém (2Mc 3), tentativa que fracassou. Estes fatos, entre outros, foram incrementando a resistência de vários grupos judaítas. A crise atingiu o seu ápice quando o “rebento ímpio Antíoco Epífanes, filho do rei Antíoco” (1Mc 1,10) usurpou o poder. O déspota reiniciou a guerra contra o Egito, a qual foi a sexta guerra síria. Endividado, com os cofres vazios e o poder em decadência, Antíoco IV Epífanes (175-164) desencadeou uma forte repressão sobre os habitantes de Jerusalém. Saqueou a cidade e apoderou-se dos utensílios e do tesouro do Templo (1Mc 1,20-24). Perseguiu aos judeus defensores da Torá e erigiu um altar a Zeus sobre o altar dos holocaustos do Templo. Esse foi o estopim que faltava para reunir todos os descontentes do país e soltarem o seu grito de indignação que há muito tempo estava preso no peito. Começa, então, um novo período conhecido como a revolução macabeia.

60

2.2.4 A helenização

Paralelo às conquistas de Alexandre e do reinado de seus generais, impunha-se o helenismo. O helenismo, enquanto processo de dominação, exploração e domesticação, pode ser dividido em três momentos: conquista militar, conquista econômica e conquista cultural. Ainda que seja difícil separar cronologicamente estas três etapas, por se tratar de um processo interativo, cremos que elas tiveram sua ênfase paulatinamente.

1.2.4.1 O poderio militar da conquista de Alexandre

Um dos primeiros grandes feitos de Alexandre, em continuidade com o iniciado por seu pai, Filipe, foi a unidade helênica. Parece certo de que desde sempre havia existido uma grande identidade entre os habitantes dos estados gregos: “desde os tempos de Homero todos os gregos se reconheciam provenientes de uma mesma origem, tinham os mesmos deuses, consultavam os mesmos oráculos: Delfos era seu santuário comum”86. Além disso, o sentimento pan-helênico já era preconizado pelos filósofos do século IV. Platão, um dos maiores filósofos gregos, defende uma política de alianças entre os estados gregos, dirigida contra os bárbaros, e acentua a fundamental diferença entre ambos. Isócrates recomenda a união dos helenos contra o grande rei dos persas como cura de todos os males internos dos estados. No entanto, é somente com Alexandre que a unidade helênica começa a tomar forma. Alexandre, depois que seu pai havia conquistado todos os estados gregos pela força militar, faz uso dessa ideologia do “somos iguais entre nós, 86 Julio Navarro Monzo, Helenismo y judaismo, Federación Sudamericana de Asociaciones Cristianas de Jóvenes, Montevideo, 1926, p.11. 61

mas diferentes e superiores aos outros”, para dar corpo, consciência e objetivo ao seu exército. Um elemento decisivo e estratégico para a união dos estados ou regiões é a língua. Os homens que vão nas hostes conquistadoras de Alexandre Magno começam a criar um idioma geral. Até então, os gregos se tinham servido de seus dialetos regionais: o ático e seu filho o jônico, o dórico e o broto deste, o eólico. Eram dialetos tão semelhantes como se queira, mas ao mesmo tempo tão diferentes. Com Alexandre e suas conquistas se forma um idioma total, uma língua nova o koiné. À base do ático o koiné faz então sua aparição. Pode-se dizer que o grego, no verdadeiro sentido da palavra nasce então.87 A partir de então, a nova língua se internacionaliza. Ela é imposta a todos os povos conquistados, sendo a ferramenta mais eficaz na helenização. O significado de Koiné (comum) traz em seu bojo todo interesse que havia no processo da conquista. Para que o comércio, base da helenização, fosse viável, era necessário que todos falassem a mesma língua. Só assim era possível tirar algum proveito de tantos e diferentes povos conquistados e só assim se impunha o modo grego de pensar. A língua koiné não foi imposta pela força. O grande mérito grego era a sua capacidade de lançar mão de métodos sutis, a tal ponto que a própria população subjugada vinha ela mesma, por interesse ou por questão de sobrevivência, helenizar-se. Qualquer

pessoa

que

aspirasse

a

uma

posição

cultural

ou

economicamente elevada era imprescindível que soubesse muito bem o koiné Saber a língua koiné chegou a ser tão valorizado que era a partir dela que se provava a pertença ou não ao mundo grego. Por isso, nas inscrições 87

Julio Navarro Monzo, op. cit. p.12-13. 62

para os jogos olímpicos, o requisito para provar a nacionalidade grega era saber falar grego. Ela é que era a carta de identidade. Os jogos olímpicos, por sua vez, instituídos em todas as partes do império, eram outro modo bastante persuasivo para difundir o helenismo. Bem como, os grandes festivais pan-helênicos que se realizavam seguidamente. Ali participavam pessoas de todo império e eram os grandes responsáveis pelo estímulo aos jovens na iniciação aos costumes gregos. Só para se ter uma ideia do tamanho destas festas e do número de pessoas que elas movimentavam, o estádio de Olímpia tinha capacidade para acolher 40 mil espectadores. Contudo, no primeiro período, depois da expedição de Alexandre, o encontro entre o judaísmo e a cilvilização helenística não se deu nesse nível das festas e da língua koiné. Nem muito menos na esfera, que normalmente se associa com o termo helenismo: literatura grega, arte, filosofia ou um contexto sincrético religioso. O espírito grego, primeiro revelou sua superioridade através da perfeita e superior técnica de guerra.88 Dn 7,7 proporciona uma imagem do conceito terrificante que o povo judeu tinha do poder militar grego: “ele tinha monstruosos dentes de ferro; ele comia, rasgava e pisoteava o resto com os pés: diferia de todos os outros animais que o tinham precedido”. Os judeus podiam falar com propriedade, pois, foram uma das principais vítimas das ações militares gregas. Ademais, muitos serviram em suas forças armadas como mercenários. No campo militar, a grande novidade da política grega foi a introdução da terrível e absoluta arma da falange, uma tática militar, também conhecida como infantaria, usada nas batalhas (1Mc 3,39). A falange era formada por dezesseis fileiras de soldados, todos bem armados. Cada soldado protegido por uma couraça e por um escudo. A inovação era o uso da sarissa, uma enorme lança que era empunhada de modo horizontal pelos soldados que avançavam em fileiras na direção dos inimigos (1 Mc 6,28-47). 88

Martin Hengel, op. cit., p.12. 63

À falange se somava o uso do elefante asiático que havia sido introduzido por Alexandre Magno após sua investida para as Índias. Era comum para os gregos o uso de centenas de elefantes nas batalhas. Para se ter uma ideia, em 301 a.C., na batalha de Ipsos, o rei Seleuco usou 380 elefantes. Imaginemos esta cena: cem mil soldados armados com lanças gigantes, 10 a 20 mil cavaleiros vestidos de couraça, com escudo e espada, centenas de elefantes, todos em marcha para o combate. A visão devia ser assustadora. 1Mc 6,41 relata o pavor que a falange causava: o exército numeroso, a gritaria dos soldados, o barulho da marcha e o retenir de suas armas. Para a época a falange era quase invencível. A tudo isso se somava a construção de máquinas de guerra cada vez mais poderosas. Enormes e potentes catapultas capazes de arremessar uma pedra de 80 kg a uma distância de 500 metros; torres de até 50 metros de alturas montadas sobre rodas, sofisticadas técnicas de assédio, grandes navios e fortes colossais. Enfim, o poderio militar é uma das grandes inovações que sustentam o sistema helenista. Para custeá-lo se necessita de muita produção.

1.2.4.2 A economia da polis

Por trás de todo esse arsenal militar, técnico e humano, está um novo sistema econômico. O grande motor do helenismo são as novas relações econômicas fomentadas pelos gregos e a partir delas o crescimento dos bens de produção e do capital. Essa intensificação econômica se dava graças ao livre comércio das cidades, poleis, gregas administradas pelos cidadãos livres, que, com relativa democracia resolviam seus problemas internos. Nesse

64

sentido, entendemos que a característica política mais importante do helenismo tenha sido a polis.89 Desde o início, cidades como Sidônia, Tiro e Gaza, assim que conquistadas por Alexandre, foram transformadas em grandes centros do helenismo. Alexandre também fundou cidades, como Alexandria, a grande capital no Egito, Alexandria Arion, Proftasia e Alexandria Aracosiorum. Pouco a pouco, mais e mais cidades passaram a ser dominadas pelo sistema helenista, como a Torre de Estraton, Biblos e Trípoli. Algumas mudaram de nome: Bethshean passou a se chamar Citópolis, e Rabath-Amon ficou conhecida como Filadélfia. Assim, em algum tempo, desde a costa do Mediterrâneo até a Transjordânia cidades foram helenizadas.90 O passo seguinte foi a criação de cidades-satélites no interior, principalmente por onde passavam as rotas comerciais. Os grandes centros da costa, no intuito de intensificar o comércio, foram apadrinhando outras cidades menores, a estilo de postos avançados, fazendo com que as regiões montanhosas de Judá e Samaria, tidas como rurais, ficassem rodeadas de cidades helenizadas repletas de gregos e semigregos. Neste meio rural ainda continuava vigorando a cobrança do tributo e do pedágio, como relata 1Mc 10,29-45. Portanto, podemos concluir sem erro, que o helenismo se caracteriza como tipicamente urbano. A cidade, a polis, é o seu habitat. Dessa maneira, ela desempenha um papel central na política grega. A importância da pólis se dá pelo fato de que ali é o local onde vive o maior aglomerado de pessoas, é ali que existe a maior necessidade de 89 Veja: Sandro Gallazzi, “Eu e meus filhos caminharemos na aliança dos nossos pais - O confronto entre o campesinado judaíta e o helenismo”, in: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.11, Editora Vozes/Editora Sinodal, Petrópolis/São Leopoldo, p.75-90. 90 “As cidades gregas se desenvolveram principalmente ao longo da costa do Mediterrâneo e perto do mar de Tiberíades. Algumas das cidades – como, Aco, Dor, Jafa, Ascalão, Gaza, Pela, Filadélfia, Citópolis, Samaria – eram antigas cidades que mudaram de estilo e ocasionalmente de nome. As cidades gregas eram fortalezas, mercados e centros intelectuais” (Arnaldo Moamigliano, op. cit. p.87). 65

consumo, enfim, ali é o melhor lugar para comprar e vender tudo o que se possa imaginar. A cidade é o melhor lugar para desenvolver o livre comércio. Assim como a polis, organizada pelos homens livres, em sua grande maioria comerciantes, é a grande novidade do sistema grego, o livre comércio é a grande novidade da nova economia. “A riqueza do mundo grego não vinha do produto em si, mas de seu valor comercial, de sua capacidade de virar mercadoria, de sua facilidade de ser comprado e vendido. A circulação da riqueza, mais do que o acúmulo da mesma nos tesouros palacianos, era o fator gerador de mais e mais riqueza, por sua vez sempre recolocada em circulação”91. Evidentemente que o uso da moeda como valor de compra tem um papel preponderante nesta nova economia. Ainda trataremos desse assunto mais detalhadamente. Concluindo, a diferença fundamental do império grego consiste no novo modo de exploração. O modo de produção tributário que era o meio de exploração dos impérios anteriores, centralizados no palácio do rei e no Templo, vai sendo substituído pelo livre comércio desenvolvido pela polis, mais sofisticado e mais refinado (veja 1Mac 10,25-45). Isso, no entanto, não significa o fim do tributo. Este, todavia, continua vigorando, principalmente no interior. Existe, porém, outro elemento, tão novo e tão importante quanto a polis: o escravismo. A estratégia do sistema helenista é envolver grupos locais, os comerciantes, na exploração. Eles vão fazer isso através da compra e venda do escravo. O camponês que antes tinha que pagar tributo da terra que cultivava, agora vira escravo. Portanto, os comerciantes são os maiores aliados gregos. O escravo é a nova força de trabalho introduzido amplamente pelo sistema grego. É desse tema que trataremos a seguir.

91

Sandro Gallazzi, op. cit., p.77. 66

1.2.4.3 O escravismo

Como vimos acima, o coração do novo sistema grego introduzido no mundo, conhecido como helenismo, era a economia gerada pelo livre comércio organizado pela polis. A grande novidade era a capacidade e a agilidade de transformar a mercadoria em riqueza e vice-versa. A possibilidade de enriquecer vai despertando cada vez mais a procura desesperada de bens para comercializar. Essa demanda, por sua vez, vai exigindo cada vez maior produção desses bens comerciáveis. Enfim, é necessário produzir mais e mais para abastecer o mercado. O modo de produção dos impérios anteriores já não responde à demanda do mercado do novo império. A Babilônia é o último império nos moldes antigos dedominação. Talvez por isso tenha durado tão pouco tempo. Os persas introduzem a liberdade religiosa, permitindo que cada povo conquistado se organize em torno da sua religião. Através desta organização religiosa local, o império cobrava os seus tributos. Os gregos se utilizam desse modo de organização local da liberdade religiosa para introduzir a liberdade de comércio. Tudo pode ser comercialzado, inclusive pessoas, desde que viagiado pelo poder imperial. Os grandes propagadores do escravismo são os comerciantes sem escrúpulos. Seu poder como classe vai crescendo dentro do estado, até criar um novo sistema de produção: o escravismo. 1Mc 3 e 2Mc 8 apresentam um panorama bastante nítido desse novo sistema de produção através do ávido comércio de escravos, mostrando por sua vez que os grandes comerciantes são os seus principais agentes. Com as sucessivas vitórias de Judas Macabeu, Antíoco IV enviou um poderoso exército comandado por Nicanor e Giórgias para derrotar de vez os rebeldes judeus. Além de acabar com a rebelião, Nicanor tinha em mente capturar muitos judeus para vendê-los ao mercado de escravos com o propósito de saldar a enorme dívida que a Síria havia 67

contraído com os romanos. Por isso, “enviou sem demora às cidades marítimas um convite para que fossem comprar escravos judeus, prometendo ceder-lhes noventa deles por um talento” (2Mc 8,11a). Os insaciáveis comerciantes da região, tendo se inteirado da notícia e seguros de que os selêucidas triunfariam, se apressaram para comprar a um bom preço os judeus prisioneiros de guerra. Assim relata 1Mc 3,41: “os comerciantes da região souberam-no de nomeada, muniram-se de ouro e prata em grande quantidade, bem como de peias, e vieram ao acampamento para levar como escravos os filhos

de

Israel”.92

Mas,

o

ganancioso

negócio

lhes

resultou

mal.

Inesperadamente os macabeus venceram a batalha e “tomaram o dinheiro dos que vieram para comprá-los como escravos” (2Mc 8,25). Como já visto, o sistema grego não se impôs da noite para o dia, nem começou com a conquista de Alexandre. Assim, também, o comércio de escravos não foi uma resultante da conquista dos macedônios. Por volta do ano 400 a.C., o comércio de escravos já era uma prática constante entre os comerciantes gregos. Essa afirmação é atestada pela denúncia do profeta Joel: “lançaram sorte sobre o meu povo; trocaram meninos por prostitutas; venderam meninas por vinho e beberam. Vós Tiro e Sidônia, e todos os distritos dos filisteus que vendestes os habitantes de Judá e de Jerusalém aos filhos de Javan”93 (Jl 4,3-6). Outra denúncia, mais remota ainda, desta nova prática do comércio de escravos encontra-se em Ne 5,1-5:

Levantou-se uma grande queixa entre os homens do povo e suas mulheres contra seus irmãos, os judeus. Uns diziam: “Somos obrigados a penhorar nossos filhos e nossas filhas para recebermos trigo, para podermos comer

e

empenhar

sobreviver.” nossos

Outros

campos,

diziam: vinhas

“Temos

que

casa

para

e

recebermos trigo durante a penúria.” Outros ainda diziam: 92 93

Veja também 2Mc 1,27; 5,24; 3Mc 2,28; Sir 7,2-21; Ecl 2,7; 10,17. Originariamente Iavan era a Jônia; por extensão, veio a designar a Grécia. 68

“Tivemos que tomar dinheiro emprestado penhorando nossos campos e vinhas para pagarmos o tributo do rei; ora, temos a mesma carne que nossos irmãos e nossos filhos são como os deles: no entanto, temos que entregar à escravidão nossos filhos e filhas; e há entre nossas filhas algumas que já são escravas! Não podemos fazer nada, porque nossos campos e nossa vinhas já pertencem a outros.”

Essa prática se intensificou enormemente no início do império grego. As cartas de Aristeas 12-27 alegam que Ptolomeu I (305-282 a.C.) deslocou 100,000 da terra dos judeus para o Egito, escravizando todos aqueles que não eram aptos para lutar no seu exército.94 Flávio Josefo confirma essa prática comentando sobre o grande número de judeus deportados para o Egito por Ptolomeu Soter: “esse príncipe tirou vários habitantes dos montes da Judeia, dos arredores de Jerusalém, da Samaria e do monte Gerizim, para mandá-los ao Egito”95. Segundo o mesmo historiador, quando Ptolomeu Filadelfo (282243) pediu aos judeus uma cópia dos livros da lei para traduzi-los, estes pensaram por bem aproveitar a oportunidade para pedir a liberdade dos escravos judeus. Aristeu, homem de confiança do rei e intercessor dos judeus, assim interpela: “V. M. conserva escravos em seu reino um tão grande número de pessoas dessa nação. Mas majestade, seria sem dúvida coisa digna de sua bondade e generosidade, libertar dessa miséria a todos eles”96. Supostamente, após consultar os seus, o rei decide em favor da libertação dos judeus: “nós queremos que todos os judeus, que os soldados do falecido rei, nosso pai, aprisionaram na Síria, na Fenícia e na Judeia e venderam no Egito, como também os que antes ou mesmo depois foram vendidos em nosso reino, sejam libertados da servidão”97.

94

John M. G. Barclay, op. cit., p.21. Flávio Josefo, op. cit., p.251. Veja também 1Mc 10,33. Flávio Josefo, op. cit., p.252. 97 Flávio Josefo, op. cit., p.252. 69 95 96

Em síntese, a introdução do escravismo é a grande novidade da política do estado grego. A partir dela é possível a produção em larga escala garantindo a intensificação do comércio, o enriquecimento cada vez maior dos comerciantes e a certeza de impostos abundantes para a realeza. A produção em larga escala de bens pelos escravos e sua comercialização nas poleis vai gerando um excedente que permite a formação de uma elite pensante, uma classe social que, graças ao trabalho escravo, pode sentar e estudar, produzir arte, filosofia, literatura, teatro e esportes. É dessa elite pensante que trataremos a seguir.

1.2.4.4 A filosofia grega

O livre mercado grego das poleis, assentado sobre a exploração do trabalho escravo, foi se desenvolvendo ao ponto de criar um excedente tal que possibilitou o surgimento dos maiores pensadores, estudiosos e escolas que o mundo já vira até então. Com o florescer do helenismo se desenvolve a filosofia grega e vice-versa. Um se alimenta da seiva do outro. É em Alexandria, com seu museu, sua célebre biblioteca, os milhares de estudantes, que surge o primeiro centro universitário. A filosofia emergente no mundo grego, já bem antes das conquistas de Alexandre, agora, porém, em pleno florescer, vai dar cada vez maior respaldo ideológico às novas políticas do estado. Não é por acaso que o próprio Alexandre o Grande fosse o mais nobre aluno do grande filósofo Aristóteles, e Ptolomeu Soter um seguidor fervoroso das ideias do renomado pensador. Também não é por acaso que no despertar do helenismo surgissem as maiores escolas gregas. Em 335 a.C. Aristóteles funda o Liceu. Em 315 a.C. Zenão de Cítion funda o Pórtico em Atenas. Em 306 a.C. Epicuro funda o Jardim.

70

Filosofias como o dualismo de Platão, cuja concepção divide e contrapõe o ser humano em corpo e alma, têm um campo fértil na nova mentalidade mercantilista. Paralelo ao platonismo estão o epicurismo, cujo soberano bem para a felicidade é fugir da dor e buscar o prazer, e o hedonismo, que nasce desse último e que prega a busca do prazer sem medida. Estas filosofias, ao mesmo tempo que se beneficiam do helenismo, vão lhe dando contorno. Junto à filosofia se desenvolve também a astrologia. Para a astrologia o mundo é regido por leis imutáveis e a humanidade fatalmente faz parte do jogo dos astros. O destino do ser humano já se encontra traçado desde o seu princípio. Essa fatalidade das novas crenças desenvolvidas a partir do progresso da astrologia e a partir de filosofias, como o dualismo platônico, dão lugar a que situações de injustiça social, a competição selvagem e, principalmente, o escravismo sejam vistos como coisas do destino de cada pessoa, marcado pelo jogo da sorte e do azar. Por sua vez, o conflito entre corpo e alma presente no pensamento grego é transportado para o dia-a-dia da sociedade: entre gregos e bárbaros, entre ricos e pobres, entre cidadãos livres e escravos, entre homens e mulheres, entre sábios e néscios. Em síntese, o helenismo gera duas grandes classes: os cidadãos livres, voltados ao comércio, à política, à arte e à filosofia; e os camponeses escravos, que eram os que produziam na base o excedente que mantinha àqueles. Para os primeiros, o helenismo era a grande novidade do século, para os últimos, o helenismo significava ser vendido como instrumento de trabalho.

1.2.4.5 O confronto cultural

Outra das características marcantes do helenismo, muitas vezes mal interpretado como sendo a única, foi a transformação cultural que o mundo 71

sofreu após o domínio grego. A prática helênica, que vinha se impondo no ocidente e nas cidades da costa do Mediterrâneo, encontrou sérios obstáculos no mundo oriental. Na aventura conquistadora da Macedônia até as Índias, Alexandre percebeu que, ainda que militarmente havia derrotado os povos do oriente, a conquista não se dera de fato. O domínio que aparentemente parecera ter sido fácil, considerando que depois da derrota de Dario a maioria dos povos se rendera sem opor resistência, se mostrava mais complexa do que se esperava. Em sua jornada, Alexandre percebeu o quão distinto e estranho eram aqueles povos. Jamais o modo de produção grego poderia ser introduzido naqueles países se não houvesse uma mudança radical em seus hábitos, em seu modo de vida, costumes e cultura. Somente assim os povos conquistados poderiam realmente ser aproveitados e explorados. Por isso, em toda a sua trajetória, Alexandre deixou rastos e lançou sementes helenísticas fundando cidades que levavam seu nome. O maior exemplo dessa convicção e de helenização foi o casamento em massa realizado em Susa. Nesse da helenização, uma das grandes ferramentas foi a paideia, a educação grega, cujo objetivo era educar os jovens para uma mesma formação. A instância que melhor caracteriza a educação grega é a efebia. Este termo faz referência à fase em que o adolescente atinge a puberdade, período propício para a educação. A efebia é o grande meio de doutrinação dos jovens. Por isso, em praticamente todas as cidades helenistas havia um ginásio onde funcionava a efebia. Nela o jovem recebia todo tipo de treinamento militar, praticava esportes, ginástica, jogos, recebia aulas de conduta moral e religiosa, de cidadania, de filosofia etc. Aí se ensinava ao jovem a desprezar sua cultura nativa e a adotar a cultura superior, a grega. Eram verdadeiros centros de formação ideológica. Em síntese, Alexandre e seus sucessores se convenceram de que a conquista do mundo não se daria de fato sem uma conquista cultural, sem que se impusesse o modo de pensar do mundo grego. Introjetar elementos culturais ocidentais naquele povo estranho era um pré-requisito para conquistá-lo e conseqüentemente aproveitá-lo em benefício do império. Fica claro, portanto, 72

que a helenização é nada mais que um projeto da conquista grega e não uma fusão harmoniosa entre as culturas ocidental e oriental, como muitas vezes se tem interpretado. No confronto cultural entre essas duas grandes culturas, a ocidental e a oriental, à Palestina, por sua posição geográfica, coube-lhe um papel enredado. A zona costeira da Palestina, pelo seu fácil acesso e pelas inúmeras cidades, se helenizou rapidamente. Não assim a zona montanhosa, que era mais rural, de difícil acesso e de menor interesse. Além do mais, a costa filisteia fazia fronteira com o mundo ocidental, enquanto que a Transjordânia fazia divisa com o mundo oriental. Desta maneira, a Palestina se encontrava no meio destes dois mundos como um tampão, hora sendo aberta pelas forças do oeste e ora sendo fechada pelas tradições do leste. Esse tema é objeto de nossa abordagem seguinte.

1.2.4.5.1 A reação do povo judaíta

Para muitos estudiosos, os séculos após o exílio foram anos perdidos na história judaica. Não havia grandes eventos ou calamidades para registrar. Talvez os judeus estivessem felizes. Eles parecem ter gostado dos persas como os melhores de seus governantes. Nunca se revoltaram contra eles98. Isso, porém, não é certo. Embora silenciosos, esses anos não foram perdidos. Muita literatura do Antigo Testamento foi produzida nesta época. A grande maioria, diríamos. Se há uma coisa segura a ser atribuído ao povo judeu é o seu interesse e capacidade em registrar sua história. Vista como sagrada, a história foi contada de pai para filho e registrada para não ser esquecida. Esta memória é que lhe dá identidade até hoje.

98

Paulo Johnson, op. cit., p. 96-97. 73

Durante o domínio grego não foi diferente. Muitos livros contidos na Septuaginta foram produzidos durante o período helenístico. Todos eles nos apresentam facetas das diferentes reações do povo judeu frente ao helenismo.

2.2.4.5.1.1 Os judaítas da diáspora

O livro de 2Mc em sua carta inicial está dirigida aos “irmãos judeus do Egito” com o fim de que estes celebrem os dias da purificação do templo (2Mc 2,16). Já desde o século VI a.C. havia colônias judaítas no Egito, como é o caso da colônia de Elefantina. No entanto, a dispersão maior dos judeus se deu durante o período helenístico. A presença de judeus na diáspora era sem dúvida muito grande. Desde o início do domínio grego, o número de residentes judeus no Egito igualava ou sobrepassava o dos residentes na Palestina. Muitos emigravam para fora do seu país de origem em busca de melhores condições de vida, outros eram obrigados a servir nas milícias gregas, outros eram deportados, e outros eram comercializados como escravos. Apesar da perseguição e da escravidão, muitos judeus tiveram um bom relacionamento com o mundo grego. Não tiveram grandes dificuldades para assimilar a cultura helenista e se servir do comércio para a sua subsistência. Aprenderam o grego para poder conduzir seus negócios. Muitos helenizaram seus nomes ou passaram a usar dois nomes: um helênico, para o comércio e outro hebraico, para os serviços religiosos e em casa. Os filhos de comerciantes mais ricos tinham permissão para freqüentar os ginásios. Nas cidades de Alexandria, Antioquia, Éfeso, Corinto, Tarso e Tessalônica, situadas nas rotas comerciais, viviam muitos judeus que se beneficiavam do comércio para enriquecer e esquecer dos seus irmãos de Judá. Durante a guerra macabaica se desconhece alguma ação solidária dos judeus da diáspora para com judeus em revolução.

74

Resumindo, o relacionamento entre o grande número de judeus na diáspora com os judeus de Judá deixava a desejar. Pouco a pouco, ainda que existisse uma forte preocupação em preservar as tradições, os costumes, a religião, os judeus no exterior foram assimilando o mundo helenístico e se afastando do seu povo de origem. A tradução da Torá para o grego acontece dentro desse contexto.

1.2.4.5.1.2 Os judaítas de Judá

A reação dos judeus da Palestina frente ao helenismo foi diversa. Açoitada primeiro pelos Ptolomeus da Alexandria e depois pelos selêucidas da Antioquia, Judá, especificamente Jerusalém, sofria uma pressão muito grande. Essa pressão vinha, sobretudo, das cidades gregas instaladas na costa do Mar Mediterrâneo e nas principais rotas comerciais. As ofertas do mundo grego eram tentadoras. A possibilidade de enriquecimento fácil chegava a corromper o mais obstinado dos judeus. Por isso começa uma angustiante corrida para a helenização de Jerusalém. A finalidade em helenizar a cidade não podia ser outro que a administração do seu mercado (2Mc 3,4). Se queria tornar Jerusalém uma cidade de livre comércio, uma polis, cidade grega. Ainda que a helenização vá se dando gradativamente a partir da atividade comercial das famílias abastadas, foi o sumo sacerdote Jasão, depois de usurpar o pontificado em conluio com o rei Antíoco, quem introduziu oficialmetne o helenismo como prática cultural em Jerusalém. Assim relata esse fato 2Mc 4,10-15: “Jasão, assim que se apossou do poder, induziu os seus irmãos de raça a trocarem o seu estilo de vida pelo dos gregos... Destruiu as instituições legítimas e 75

inaugurou costumes contrários à Lei. Comprazeu-se, com efeito em mandar construir um ginásio bem ao pé da Acrópole e conduziu os melhores entre os efebos ao uso do pétaso99. Graças à desmedida perversidade de Jasão, um ímpio e não um sumo sacerdote, o helenismo e a penetração estrangeira chegaram a tal ponto que os sacerdotes já não mostravam mais nenhum zelo pelo serviço do altar, e sim, desprezando o templo e negligenciando os sacrifícios, apressavamse a tomar parte na palestra das distribuições de óleo, proibidas pela Lei, assim que soava o chamado do gongo. Nenhum caso faziam das honras de sua pátria e tinham em sumo apreço às glórias helênicas.”100

Como podemos perceber, foi a elite sacerdotal e as famílias ricas de Jerusalém que mais se sentiram atraídas pelo helenismo, pois para eles, adquirir cultura grega era um passaporte para a cidadania de primeira classe. Outra passagem que mostra com nitidez a helenização dos judaítas de Jerusalém é 1Mc 1,11-15: “por esses dias surgiram em Israel indivíduos ignóbeis que seduziram a muitos dizendo-lhes: ‘Vamos! Aliemo-nos às nações que nos cercam, pois, depois que delas nos separamos, sobrevieram-nos muitos males...’ Construíram, pois, um ginásio em Jerusalém, refizeram o seu prepúcio, renegaram a aliança santa para se associarem aos pagãos e venderam-se para fazer o mal”101. Apesar de que Jerusalém só se tenha helenizado oficialmente com Jasão, o helenismo já estava vigente na cidade e arredores há muito tempo.

99

O uso do pédaso, chapéu do deus Hermes, era um dos sinais mais evidentes do culto aos deuses gregos. Bíblia Tradução Ecumênica, op. cit. Bíblia Tradução Ecumênica, op. cit. 76

100 101

1.2.4.5.1.3 Os tobíadas

A corrente helenófila tinha seus lucrativos interesses. Um exemplo é a poderosa família dos tobíadas, que desde a época persa vinha usufruindo de sua astúcia de servir aos interesses estrangeiros em detrimento aos interesses do povo judaíta. Ne 13,4-9 relata um grave conflito entre Nehemias e alguns sacerdotes do templo com Tobias, parente do sacedote Eliasib. O motivo do conflito era pelo espaço das salas do templo. Tobias queria uma sala para dali administrar seus negócios com o rei persa e Nehemias a queria para guardar os utensílios do templo e as oferendas. No tempo dos ptolomeus conhecemos a um tal José Tobias, sobrinho do sumo sacerdote Onias II e titular cobrador de impostos. José conseguiu o cobiçado posto após disputar com seus concorrentes fazendo o maior lance no leilão do cargo feito pelo rei. Tobias permaneceu nesta função por vinte anos.102 Em 1915 foram encontrados nas ruínas da colônia militar de Filadelfia, no oásis de el-Faium, ao sudeste do delta do Nilo, os documentos conhecidos como os papiros de Zenão.103 O escrito, cujo autor é o pai de José Tobias, um proeminente latifundiário da Transjordânia, é endereçado a Apolônio, ministro da fazenda do rei Ptolomeu Filadelfo . O texto começa da seguinte forma: “Tobias para Apolônio, saudações. Se você e todos os seus negócios estão florescendo, e tudo o mais está como você deseja, muitas graças aos deuses”104. Essa breve introdução oferece uma ideia bastante nítida da intrínseca relação existente entre a alta elite da Palestina com o primeiro ministro de Ptolomeu II, além da adoção das divindades gregas.

102

Martin Hengel, op. cit., p.269-270. Veja Victor Tcherikover, Hellenistic Civiliztion and the Jews, The Jewish Publication Society of America, Philadelphia, 1959, p.60-73. Veja também Martin Noth, Historia de Israel, Ediciones Garriga, S.A., Barcelona, 1966, p.311. 104 Victor Tcherikover, op. cit., p.71. 77 103

A inerente relação de José Tobias com Alexandria e sua particular paixão por uma dançarina local, indicam a total imersão dos comerciantes judaítas no sistema helenista usufruindo de todas as suas ofertas, mesmo que isso implique no abandono da própria cultura, do seu Deus e na dizimação do seu povo. Flávio Josefo fala da fidelidade dos judaítas aos antepassados do rei Antíoco III: “estou persuadido de que os judeus serão bons guardiães de nossos interesses por causa de sua piedade para com Deus e sei que meus antepassados conheceram a sua fidelidade e a sua pronta obediência às ordens recebidas... A eles prometemos que poderão viver de acordo com suas próprias leis”105. Um precursor dos saduceus, conhecido por Jesus Ben Sirac, é outro exemplo evidente dos que compactuavam com o poder estrangeiro. Representante do sacerdotismo, Ben Sirac deixou marcas em sua obra, conhecida como o Eclesiástico, do quanto a elite pensante judaíta assimilara os conceitos helenistas. Exemplos como, a primazia do trabalho intelectual sobre trabalho braçal (Eclo 38,24-39,11), a insignificância do pobre (Eclo 13), a inferioridade da mulher (Eclo 25,13-26,18), a defesa do escravismo (33,25-33), mostram claramente essa assimilação.

1.2.4.5.1.4 A resistência

Assim como havia os que aderiram massivamente ao helenismo, tinha também os que se opuseram ferrenhamente a ele. A oposição foi diversa. Havia os extremistas que se dirigiam para o deserto e que guardavam as tradições nazireia e recabita esperando o dia do juízo final. Para estes grupos apocalípticos, não havia mais salvação para Jerusalém. Muitos textos encontrados na comunidade de Qumran, datados por volta de 250 a.C., atestam esse fato. Mesmo em Jerusalém e dentro da classe sacerdotal havia 105

Flávio Josefo, op. cit., v.12, p.147-153. 78

muita resistência. Nem todas as famílias abastadas e nem toda a classe sacerdotal aderiram ao projeto grego. As reações como “amaldiçoado seja o homem que cria um porco e aqueles que ensinam a seus filhos a sabedoria grega”106 eram comuns. Tanto é que a revolução macabeia nasce exatamente no seio da classe sacerdotal.

Mesmo antes da revolta dos macabeus, sempre houve forte resistência ao modo grego de pensar e atuar. Aliás, os grupos de resistência, com suas diferenças, perpassam toda a história do povo de Israel. Nasce no profetismo, sobrevive ao exílio através de um Jeremias e de um Dêutero Isaías, ressurge num Trito Isaías, no grito das mulheres como Rute, como a Sulamita do Cântico dos Cânticos, passa pelas obras sapienciais, dos Salmos, de Coélet, desemboca nos movimentos apocalípticos, de Daniel,107 de 1Macabeus, e renasce no movimento de Jesus. A resistência normalmente se deu mais a partir do campo. O povo do campo era sempre o mais vitimado, o mais ligado às tradições e o mais fácil de ser organizado. Durante o sistema helenista não foi diferente. Se o judaísmo oficial convivia feliz com o helenismo, o mesmo não acontecia com os camponeses do interior de Judá. Fora das rotas comerciais, o povo que morava nas montanhas estava muito mais atrelado ao sistema tradicional tributário de exploração. Para o camponês do interior, o helenismo significava a perda da terra ou ser vendido como escravo. Para entender melhor como se deu essa resistência, tanto no campo quanto na cidade, pensamos por bem apresentar um panorama dos diversos grupos existentes em Judá: as disputas internas, a quem estavam vinculados, suas características, esperanças e como se organizavam.

106

Martin Hengel, op. cit., p.76. Veja José Ademar Kaefer, “Bem-aventurado aquele que perseverar” (Dn 12,12) - Uma introdução ao livro de Daniel. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – RIBLA – N. 52. Petrópolis: Vozes, 2005, p.160-168. 79 107

1.2.4.5.1.5 O poder nas mãos dos sacerdotes

Depois do exílio, os persas não permitem que os judaítas reorganizem a monarquia. Seu medo é que com um rei Judá pudesse organizar um estado forte e passasse a ser uma ameaça para o império. Por isso, Ciro, o rei persa, dá permissão apenas a que Judá reconstrua o Templo. Segundo Esd 6,1-12, Ciro teria, inclusive, dado uma soma em dinheiro para agilizar a reconstrução. Sua política é de ajudar a elite local a se organizar ao redor do templo e esta lhe auxilie na arrecadação de impostos para a realeza. Além do mais, a organização dos exilados era importante para servir de proteção na fronteira, evitando assim, o avanço do Egito, arqueinimigo do império persa. Aliás, a reconstrução da muralha (Ne 2-4) tem exatamente esta função: tornar Jerusalém uma fortaleza avançada para impedir o avanço das tropas egípcias. Esse apoio do rei Ciro, porém, parece ter raízes ainda mais profundas. Tudo indica que ele tenha encarado a libertação dos exilados e a reconstrução do templo como uma missão religiosa. Um cilindro achado no palácio da Babilônia aponta para essa interpretação. Nele constava o seguinte: “Eu sou Ciro, o rei do mundo... Marduc, o grande deus, rejubila-se com meus atos devotos... Eu reuni todo o povo dele e os levei de volta para onde habitavam... e os deuses... por ordem de Marduc, eu os fiz instalar em júbilo em seus santuários... Que todos os deuses que eu levei de volta a suas cidades (orem diariamente) pela extensão de meus dias”

108

. Encontamos uma passagem

semelhante no livro de Esdras. O autor põe na boca de Ciro as seguintes palavras: “O Senhor, o Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhes construir uma casa em Jerusalém, que está em Judá. Quem é dentre vós pertencente a seu povo? O seu Deus seja com ele. Vá para Jerusalém, que está na Judeia e edifique a Casa do Senhor Deus de Israel” (Esd 1,1-4). 108

Paul Johnson, História dos Judeus, Imago, Rio de Janeiro, 1989, p.95, nota 12. 80

Diferentemente dos babilônios, os persas têm outra maneira de organizar o seu governo. Os persas parecem não impor sua religião, seu deus, para unificar o império. Ao contrário, eles permitem que cada povo conquistado mantenha a sua religião e se organize em torno dela. A partir dessa organização local a Pérsia explora as colônias. Foi assim que ela permitiu ao povo da Babilônia e aos judeus manterem o seu Deus. Só não lhes permite reconstruir a realeza. A autoridade local máxima passa, então, a ser não mais o rei, mas o Sumo Sacerdote. Judá não mais será governada por uma monarquia, mas por uma teocracia. Daquele momento em diante quem manda em Jerusalém são os sacerdotes. Quando os gregos, com Alexandre Magno, derrotam o império persa, eles mantêm esse mesmo sistema. Ainda que a política administrativa mude completamente, o poder local continua nas mãos do Sumo Sacerdote. A teocracia ainda é o sistema vigente em Jerusalém nos dias de Coélet. Esse poder religioso em Judá, no entanto, não era um poder compacto. Tinha grupos em contínua discórdia disputando o poder ou questionando os abusos e arbitrariedades. Para conhecer a origem desses grupos, achamos por bem, fazer um breve recorrido sobre a sua história.

1.2.4.5.1.5.1 Os grupos responsáveis pelo culto

No período pré-exílico, na última fase da monarquia, podem ser identificados três grupos de sacerdotes. Um, que são os sadocitas, ligados ao Templo e defensores da monarquia. Nele se encontra centralizado o poder religioso. Outro, que são os levitas da cidade, considerados como o baixo clero 81

e que fazem oposição aos sadocitas. Esse grupo têm algumas funções no templo, mas seu espaço é bem reduzido. Ele ainda traz consigo alguma religiosidade remanescente das aldeias. O terceiro grupo são os levitas do interior, como é o caso do grupo de Anatot, do qual surge Jeremias (Jr 1,1).109 Durante o exílio na Babilônia, os sacerdotes e levitas também foram deportados. O grupo sadocita, que foi na primeira deportação (598 a.C.), sonhava em regressar e reconstruir Jerusalém. Ele se considerava a raça pura, eleita por Javé. O próprio Javé teria sido exilado com ele (Ez 1,28). Seu projeto é retornar para Jerusalém, reconstruir a cidade, o Templo, restituir a lei, o sacerdócio e principalmente a monarquia (Ez 37-48). Ou seja, este grupo sonha com a Jerusalém de outrora, quando estava no poder. Boa parte do livro de Ezequiel foi produzido por esse grupo. O segundo grupo de exilados, que foi deportado em 587 a.C., não tem espectativas de reconstruir a monarquia, pois dizia que a culpa do exílio fora dos reis. Ele sentiu na pele o longo cerco e a desolação em Jerusalém. É um grupo que se sente débil diante do poder cruel do império babilônico. Por isso, os membros desse grupo depositam sua esperança num Go’el, o defensor, aquele que resgata o pobre e a viúva (Is 41,14). Seu sonho é a vinda de um messias para libertá-los e conduzi-los de volta à Sião, que um dia esperam reconstruir. Quando Ciro, o imperador da Pérsia, invade a Babilônia e deixa os exilados livres (539 a.C.), esse grupo vê nele o libertador mandado por Javé. Foi também esse grupo que produziu boa parte do Dêutero Isaías (Is 40-55). Um terceiro grupo sobreviveu na periferia das ruínas de Jerusalém. É um grupo grande que presenciou toda a destruição. Semelhante ao segundo grupo, com a diferença de que não fora exilado, também não têm mais esperança. A depressão desse grupo é grande. Tudo está destruído: a

109 Para um estudo detalhado sobre os levitas veja José Ademar Kaefer. Un Pueblo libre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco. ABE/44. Estella: Editora Verbo Divino, 2006, p.95-106; 277-280. 82

cidade, o Templo, o rei, a terra e a família. Só resta confiar na misericórdia de Javé. Junto com esse grupo ficaram também alguns levitas. Eles é que produziram o livro das Lamentações. Há ainda um quarto grupo, que permanece no interior de Judá e que se dedica ao cultivo da terra (2Re 25,12.22-24; Jr 40,5-12). Esse grupo sempre foi explorado pela cidade. A ele não interessa a reconstrução da cidade, nem do Templo e nem da monarquia. Tudo isso significa imposto e exploração. Seu projeto está ancorado nas experiências do cotidiano da aldeia. Vozes desse grupo podem ser ouvidas no Trito Isaías (Is 56-66). Por último, é importante mencionar também o grupo dos samaritanos, que tinha o seu centro religioso no Monte Garizim, na Samaria. O que se sabe desse grupo, é de que é muito grande e resultante da mistura do povo nativo com os povos trazidos pelos assírios, a partir de 722 a.C., de várias partes do mundo (2Rs 17,24-41). Quando em 539 a.C., Ciro decreta a volta dos exilados (Esd 1), todos esses grupos têm uma reação distinta quanto à reconstrução de Jerusalém e do Templo. Ne 4,18 relata com que dificuldade as muralhas de Jerusalém foram construídas e como os moradores nativos tentavam impedir a reconstrução, “cada edificador trazia a sua espada à cinta e assim edificavam”. Os samaritanos são os primeiros a fazer oposição à construção do Templo. Eles eram considerados hereges e juntamente com outros nativos foilhes proibida a participação “nada tendes que ver conosco” (Esd 4,1ss.). Eles haviam construído um Templo no Monte Garizim (Mc 6,2) e não queriam outro centro de culto (Ne 3,33-37). Apesar de que, segundo relata Jr 41,5, mesmo durante o exílio, sempre houve grupos que continuaram celebrando o culto nos escombros do Templo. Outro grupo que se opôs radicalmente à construção do Templo foi o grupo liderado pelos levitas que produziram boa parte do Trito Isaías. Os 83

membros desse grupo queriam manter uma proposta de vida ao estilo da aldeia, sem Templo e sem rei. Nesse sentido, a volta dos exilados, principalmente da elite governante, não era uma boa notícia. Para eles, esse retorno significava a volta dos antigos donos das terras, que agora lhes pertenciam (Is 58,1-12; 59,1-8). Apesar de toda oposição e do envio apenas parcial do dinheiro prometido pelos persas (Esd 4,24; Ag 2,3), o Templo foi reconstruído. Impôs-se o poder religioso sadocita e a política do governo persa. De agora em diante, o cargo de Sumo Sacerdote sempre será exercido por um sadoquita. Conforme Ez 40,46 e 44,15ss., somente os descendentes de Sadoc são sacerdotes legítimos. Instaura-se o governo teocrático (Zc 6,11), tendo o Templo como centro, dirigido por leis, cultos, oferendas e impostos. De maneira geral, esse é o quadro que ainda persiste nos dias de Coélet. Entre os seus remanescentes podem ser distinguidos com clareza dois grupos em Jerusalém. Um, é o grupo sacerdotal descendente de Sadoc. É o grupo que inicialmente comunga com o império persa e mais tarde anda de mãos dadas com os gregos. Este grupo é que detém o poder local, centralizado no Templo, cuja instância é totalmente controlada por ele. Sempre está em conluio com o império de turno. A força desse grupo está no poder político. Sua presença é bem visível no livro do Eclesiástico. O segundo grupo claramente distinguível em Jerusalém nos dias de Coélet são os sacerdotes levitas. Esse grupo também tem seu interesse no Templo, mas seu poder é limitado, pois, não comunga com o domínio estrangeiro.110 Por isso é sempre colocado à margem do poder pelo império persa e depois pelo império grego. Esse grupo defende fortemente as tradições do culto, da lei e da raça pura. Seu desejo é limpar Jerusalém de todo e qualquer estrangeiro, principalmente dos dominadores que impõe o culto a outras divindades. A força desse grupo é o poder religioso e pode ser 110 Ez 44,10-31 mostra com bastantes detalhes a diferença e o conflito entre os sacerdotes sadocitas e os levitas. 84

claramente percebido no livro do profeta Malaquias, de quem é o provável autor.111 Um terceiro grupo, menos claro de se detectar, parece estar ligado às tradições do interior de Judá, na linha do Trito Isaías. São aqueles e aquelas que cultivam a terra. Entre eles há levitas, sacerdotes, sábios, profetas, mulheres, matriarcas etc., cuja atividade fica relegada às aldeias. Não estão muito ligados ao Templo de Jerusalém. Sua preocupação está mais centrada na sobrevivência do estilo de vida do campo e da família. Têm grande reconhecimento junto ao povo das aldeias e constantemente são seus portavozes diante das imposições e explorações vindas da cidade de Jerusalém e, através dela, do império persa e depois grego. Suspeitamos que Coélet pertence a esse grupo. No entanto, ainda é cedo para abordar esse assunto. Veremos isso quando tratarmos do estudo detalhado do texto de Ecl 5,7-19.

1.3 Conclusão

À maneira de conclusão, queremos focalizar alguns pontos que nos parecem centrais neste capítulo. Comecemos pelo grande impacto causado pelas conquistas de Alexandre Magno. Pela primeira vez o centro de gravitação muda do oriente para ocidente. A fúria conquistadora do jovem macedônio domina o mundo numa rapidez incrível. Para isso contribuiu a sua crença da filiação divina. Filho de Zeus-Amon, Alexandre é recebido no Egito como faraó e entronizado na assembleia dos deuses imortais. Paralelo à conquista militar, Alexandre 111

Veja Shigeyuki Nakanose, “Novos céus e nova terra (Is 65,17-66,4)”, in: Estudos Bíblicos, n. 65, Editora Vozes, Petrópolis, 2000, p.48-61. 85

objetiva a conquista econômica e cultural. Seu plano inclui a implantação do sistema comercial da polis e a imposição da cultura grega sobre todos os povos conquistados. Os

sucessores

do

conquistador

dão

continuidade

à

ideologia

alexandrina. Eles fazem uso das mesmas prerrogativas divinas. Ávidos de poder disputam entre si o domínio das províncias. As sangrentas e permanentes guerras requer um potencial humano cada vez maior. Esse contingente deve ser fornecido e mantido pelos povos conquistados, o que significa maior espoliação. Paralelo às guerras dos diádocos, o helenismo se encontra em plena expansão. O motor dessa difusão é fundamentalmente o enriquecimento dos assim chamados “cidadãos livres”. Esse florescimento econômico se dá essencialmente devido ao livre comércio impulsado pela polis. A novidade estava na capacidade de transformar as mercadorias em riqueza e vice-versa. O grande gerador desta nova economia era o novo modo de produção. Enquanto que a sustentação dos impérios anteriores se dava por meio do modo de produção tributário, o império greco-ptolomaico se organiza a partir do escravismo. Essa prática da exploração do trabalho escravo encontra seu respaldo ideológico na filosofia emergente. Jerusalém não ficou isenta da influência helenizante. A pressão vinha, sobretudo, das poleis situadas na costa do Mar Mediterrâneo. A elite sacerdotal sadocita de Jerusalém foi a que mais se sentiu atraída pelo comércio helenista e pelos benefícios da cultura grega. Textos bíblicos relatam com muita clareza o conflito entre grupos judaítas de Jerusalém: uns usufruindo plenamente das vantagens helenistas, como é o caso da família dos tobias, e outros opondo-se ferozmente à penetração estrangeira, em defesa da Torá e dos privilégios particulares. Ambos, com vistas à extorsão, principalmente do campesinato

86

judaíta.112 Outros se retiravam para o deserto na espera do dia da intervenção de Javé para purificar Jerusalém. Mencionamos ainda dois grupos situados no interior. Um, liderado por levitas, sem muita vinculação com o Templo de Jerusalém, participava da vida das aldeias. Ainda defendia um projeto ao estilo da organização tribal. O outro tinha forte representatividade das mulheres. Sua atenção estava voltada à defesa da casa e do direito e dignidade das mulheres. Por último demos destaque ao grupo emergente em Judá e em todo mundo grego, que denominamos comerciantes. Seu interesse era unicamente o econômico. Este grupo foi a grande novidade helenista. Durante o período ptolomaico, principalmente durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo (282-246 a.C.), Jerusalém atingiu um nível de produção de riqueza nunca alcançado antes. O custo humano, no entanto, só os escravos podem descrever. O livro de Coélet é fruto desse meio. Sobre toda essa panorâmica conjuntural, particularmente sobre o tema da riqueza, é que estão construídos os versículos que pretendemos estudar a seguir.

112

2Mc 4 relata de maneira brilhante o conflito entre esses dois grupos. 87

CAPÍTULO IV

Chegamos por fim ao miolo de nossa jornada. A proposta aqui é apresentar uma chave de leitura do livro de Coélet. Como não é possível fazer um estudo minucioso de todo livro, vamos nos limitar à análise de um texto. Esse texto vai nos indicar uma porta de entrada para o resto do livro. O texto que escolhemos é Eclesiastes 5,7-19. Vamos começar com a análise literária.

1. Análise literária de Eclesiastes 5,7-19

A análise literária serve de ferramenta para iluminar o texto e descobrir nele seu conteúdo. A exegese é um processo minucioso e lento. É preciso ter paciência e explorar à exaustão cada passo, sem queimar etapas. Inicialmente propomos a tradução dos versículos e sua delimitação. Em seguida veremos as possíveis subdivisões e a coesão do texto. E, finalmente, o estilo e o gênero literário.

1.1 Tradução literal

Para uma boa análise literária é essencial a tradução do texto hebraico ou grego. Ela proporcionará maior segurança e autonomia na hora de interpretar a mensagem do texto. Além disso, não será preciso recorrer a 88

outras traduções, que nem sempre têm a preocupação da rigorosidade. Para tanto, é importante uma tradução o mais literal possível, mesmo que isso faça parecer o texto um tanto estranho. 7

Se opressão de empobrecido e roubo de direito e justiça verás na província

não te assombrarás sobre o projeto. Eis que: superior de sobre superior vigiando e superiores sobre eles. 8

E lucro da terra na totalidade ele, rei para campo escravizado.

9

Amante de “dinheiro” não se saciará de “dinheiro”

e quem ama na abundância não produtos do campo. Em especial, isto vazio. 10

Em aumentar do bem aumentaram devoradores dela.

E que vantagem para senhores dela, eis que, senão visão dos olhos dele? 11

Gostoso sono do escravizado se pouco e se muito comerá.

E a saciedade para o rico não existência dele descanso para ele para dormir. 12

Existência de mal doentio vi debaixo do sol:

riqueza guardada para o senhores dela, para mal dele. 13

E perde a riqueza a esta em canseira má. E gera filho e não existência em

mão dele de nada. 14

Como que saiu a partir do ventre de mãe dele, nu voltará para ir como que

veio. E nada não levará em trabalheira dele que irá em mão dele. 15

E em especial, isto mal doentio. A totalidade, assim como que veio, assim

irá. E que lucro para ele que trabalhará para o vento? 16

Em especial, a totalidade dos dias dele na escuridão comerá. E irritará muito

e doença dele e fúria. 17

Eis que vi eu bom: que belo para comer e para beber e para ver dos bens em

totalidade trabalheira dele que trabalhará debaixo do sol do número dos dias da vida dele que deu para ele o Deus. Eis que isto porção dele.

18

Em especial, a

totalidade do ’adam que deu para ele o Deus riqueza e fortunas e poder dele para comer dele e para o levar a porção dele e para alegrar em trabalheira dele. Isto dádiva de Deus isto.

19

Eis que não muito recordará os dias da vida

dele. Eis que o Deus ocupado em alegria do coração dele.

89

1.2 Delimitação

A análise de um texto bíblico ou de uma perícope exige ter em conta o conjunto ou a unidade da qual ele faz parte. Ou seja, não convém para a exegese o estudo dos versículos soltos, como se eles não tivessem vínculo com o todo da unidade. Por isso, é importante delimitar o texto. Além de mostrar que não se pretende analisar todo o livro, a delimitação tem por finalidade provar que os versículos a serem estudados conformam uma perícope, um texto que tem início e fim. As opiniões dos estudiosos sobre a delimitação de Ecl 5,7-19, em relação a seu contexto literário, são muito divergentes. Muitos defendem a ideia de que 5,7-19 faz parte da seção que vai de 4,17 até 6,9. Neste sentido, Roland E. Murphy113, por exemplo, divide a seção da seguinte maneira:

Esta seção pode ser dividida em uma instrução referente à conduta cúltica, com especial ênfase no sacrifício, oração e votos (4,17-5,6), seguido por uma curta instrução concernente às autoridades (5,7-8) e uma reflexão sobre posses (5,9-6,9).114 Outros, por sua vez, não têm dúvida em separar 4,17-5,6 de 5,7-6,9. Exemplo é o estudo de Norbert Lohfink.115 Unicamente que, para Lohfink, a seção que começa em 5,7 termina em 6,10 e não em 6,9, como opta a

113 Roland E. Murphy, “Worship, Officials, Wealth and Its Uncertainties - Ecclesiastes 5,16,9”, in: Reflecting with Solomon – Selected Studies on the Book of Ecclesiastes, Roy B. Zuck (editor), Baker Books, Michigan, 1994, p.281. 114 Esta é também a delimitação que faz José Vílchez, op. cit., p.270. 115 Norbert Lohfink, Kohelet, Echter Verlag, Stuttgart, 1980, p.10 e p.41.

90

maioria116. Outros, ainda, separam as duas seções em 5,9. A primeira começaria em 4,17-5,8 e a segunda em 5,9-6,9a117. Esta divisão nos leva a entender que os v.7 e 8 do cap.5 representam um problema para a análise exegética, uns os jogam para trás e outros para frente. Tendo presente este panorama, queremos mostrar a seguir o motivo que nos levou a delimitar os versículos da maneira como o fizemos.

1.2.1 Relação com a unidade anterior

Inicialmente podemos perceber que no v.7, Coélet continua com o estilo direto na segunda pessoa da perícope anterior. Talvez este seja o argumento mais decisivo em favor da hipótese de que 4,17-6,9 forme uma única seção. Esse argumento, no entanto, não tem peso suficiente para determinar a unidade. Primeiramente, a ausência da conjunção “e” no início do v.7 é um elemento contrário à continuidade desses versículos. De outra parte, a temática, que é um fator determinante, muda por completo, do cúltico-religioso passa para o tema da opressão. Vemos, portanto, que a perícope imediatamente anterior, com ênfase na crítica à religião, 4,17-5,6, é totalmente adversa aos nossos versículos. Estes estão bem mais relacionados com a unidade anterior à religião, com 3,16-4,16. Ali a temática da opressão e da violação do direito e da justiça está fortemente presente, como, por exemplo, as opressões mencionadas em 4,1 ou a violação do direito e da justiça mencionados em 3,16. Pensamos que aquele texto e os versículos de nossa análise podem conformar uma perfeita seqüência. De modo que, 4,17-5,6 está colocado como uma cunha entre 3,16-4,16 e 5,7-5,19.

116

Veja Roland E. Murphy, “Eclesiastés (Qohelet)”, in: Comentario Bíblico San Jerónimo II – Antiguo Testamento, Raymond E. Brown e Joseph A. Fitzmyer (coordenadores), Ediciones Cristiandad, Madrid, 1971, p.507-523. 117 Veja por exemplo, T. A. Perry, Dialogues with Kohelet - The Book of Ecclesiastes, The Pennsylvania State University Press, Pennsylvania, 1993, p.101 e p.107. 91

Em resumo, para nós não há nenhuma dúvida que em 5,7 começa uma nova seção.

1.2.2 Relação com a unidade posterior

Como já mencionado, há uma forte tendência em terminar a seção em 6,9. Os versículos seguintes, 6,10-12, seria uma introdução para a seção posterior, que por sua vez marca o início da segunda parte do livro. Por que, então, optamos por secionar o nosso estudo em 5,19? Não é simplesmente por razões metodológicas. Não podemos discordar de que a unidade não se encerra aqui, pelo menos segue até 6,7, pois existe a continuidade do mesmo tema e da mesma linguagem. O início de 6,1: “existência de mal que vi debaixo do sol” é praticamente idêntico ao início de 5,12: “existência de mal doentio vi debaixo do sol”. Essa atitude observadora de Coélet perpassa como um fio condutor todos os versículos: começa em 5,7 e se repete em 5,12, em 5,17 e em 6,1. Da mesma forma, o tema da riqueza é quase exclusivo. No entanto, a continuidade do tema da riqueza a partir de 6,1 está em sintonia somente com 5,7-16 e não com 5,17-19. Isto é, existe um evidente corte em 5,17 e este vai até 5,19. O início desta mini-unidade (5,17-19) é marcado pela interjeição “eis que” do v.17. Esta interjeição inicia por sua vez uma proposta alternativa ou oposta à realidade apresentada nos v.7-16. Portanto, ainda que em 6,1 haja uma retomada da revelação de 5,7-16, encontra-se nos v.17-19 uma perfeita conclusão desta unidade.

92

É por isso que se costuma analisar 5,17-19 separado dos demais versículos, o que é uma prova evidente da interrupção. Whybray118, um dos poucos que encerra a seção como nós o fazemos, afirma que a presença em 5,17-19 do conhecido refrão de Coélet, prova a clausura da unidade. No entanto, o autor reconhece também que há uma conexão temática com o cap.6. Em todo caso, secionando a seção aqui ou em 6,9, não afeta significativamente a interpretação. Concluindo, com as devidas nuanças, acreditamos que as razões apresentadas acima são suficientes para sustentar a delimitação que vai de 5,7 até 5,19. Ou seja, que Ecl 5,7-19 conforma uma perícope, com um início e fim. A seguir queremos investigar se esta perícope compõe um todo harmonioso ou se apresenta subdivisões.

1.3 Estrutura e coesão

Numa primeira vista os versículos aparentam seguir uma estrada plana e sem lombadas. Mas, observando com maior atenção se descobrirá um caminho com alguns acidentes, ou seja, com interrupçõs maiores e menores. Começaremos apontando essas interrupções.

1.3.1 Subdivisões

118 Veja Tremper Longman III, The Book of Ecclesiastes, Eerdmans, Michigan, 1989, p.159, n.66.

93

A primeira subdivisão se encontra logo no início, v.7-8. O tema central desta pequena unidade é a opressão do “empobrecido”. Ela é introduzida pelo advérbio condicional “se” que indica uma possível situação. Este advérbio é seguido por uma sucessão de termos com um sentido muito próximo: “opressão de empobrecido e roubo de direito e da justiça” v.7a. Estes termos estão interligados pela conjunção “e”, bem como por fonemas e rimas. Outro fator determinante de ligação do início deste bloco é o modo direto na segunda pessoa do masculino singular: “verás” e “não te assombrarás”. Em seguida, ainda nos versículos 7 e 8, há uma breve interrupção marcada pela preposição demonstrativa “eis que”, cuja função introdutória se assemelha ao condicional “se” do início do bloco. Também aqui segue uma alternância de palavras: “alto” ou “superior” (três vezes) e “sobre” (duas vezes). Esta sobreposição piramidal é completada pela figura do rei do v.8. A ligação com o v.8 é ainda feita naturalmente pela conjunção “e”. Prosseguindo com a leitura encontramos, após o v.8, uma repentina interrupção. Da opressão, tema do bloco anterior, a atenção se volta para a riqueza. Temos então uma nova mini-unidade (v.9-11). Esta unidade começa mostrando que a paixão pelo “dinheiro” requer sempre mais dinheiro, v.9. O dinheiro por sua vez atrai os “ladrões” v.10. A preocupação com os ladrões não deixa dormir (v.11). Cada um desses passos é marcado por certa independência. O primeiro e segundo estão separados pela expressão: “em especial isto vazio” v.9c. O segundo e o terceiro estão separados pela expressão demonstrativa “eis que senão visão dos olhos dele” v.10c. O fio que costura esta segunda unidade (9-11) são os verbos de insaciabilidade e de acumulação: “saciar-se” v.9a, e 11b; “amar na abundância” v.9b; “aumentar”, duas vezes no v.10a; e “comer” v.10a e v.11a. Os verbos “saciar-se” e “comer” são correlativos e armam a estrutura do bloco. Eles abrem a porta (v.9a) e a fecham (v.11). 94

Depois do v.11 uma nova interrupção ocorre. A marca dessa interrupção é a presença da atitude observadora de Coélet: “vi” v.12. Com isso começa um novo bloco que vai até o v.16. Este parágrafo continua refletindo sobre os efeitos do amor ao “dinheiro”. Esse amor ao “dinheiro” é denominado agora de mal doentio que está debaixo do sol: “existência de mal doentio vi debaixo do sol” v.12. No final do v.13 há uma pequena interrupção com a expressão: “e não existência em mão dele de nada”. Esta breve interrupção, que inclui os v.14 e 15, mostra que do acúmulo de riquezas nada se poderá reter. No início do v.15 há outra breve parada marcada pela expressão enfática “e em especial isto mal doentio”, semelhante à do início do bloco, v.12a. Este final, que vai do v.15b até o v.16, repete as ideias anteriores reafirmando que a doença causada pelo amor às riquezas consiste em cansaço, irritação e fúria. Um dos elementos que constroi a harmonia dessa terceira unidade (1216), como já vimos, é a expressão “mal doentio”. Ela abre a unidade, v.12a, reaparece no v.15a e encerra a unidade no v.16. Outra marca que costura este bloco são as formas verbais e os pronomes pessoais. Somente nos quatro versículos estas formas aparecem 22 vezes na terceira pessoa do masculino singular. Temos ainda um elo de ligação que é a conjunção “e”, bem como os verbos de movimento: “sair”, “voltar”, “ir”, “vir”, “levar”. Chegando perto do final desse recorrido, localizamos outra grande parada. O sinal revelador desta parada, que ao mesmo tempo indica o começo de um novo parágrafo, é a interjeição demonstrativa “eis que” e outra vez a observação de Coélet “eu vi” v.17a. Seguindo o parágrafo topamos com uma suave quebra no final do v.17, “eis que isto porção dele” e início do v.18 “em especial”. Este mesma detenção ocorre no final do v.18 e início do v.19 “isto dádiva de Deus esta” e “eis que”. Estas pequenas paradas, porém, não expressam novas subdivisões, o que determina que estes três versículos (1719) conformam um único bloco. O assunto desse bloco é uma proposta para o bem viver. Essa proposta consiste em comer, beber e ver (v.17).

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O que constrói a unidade deste bloco, e que ao mesmo tempo o diferencia dos demais, é o novo campo semântico introduzido aqui: “bom”, “belo”, “comer”, “beber”, “alegria”. Temos também a expressão, assim denominada, “dádiva divina”, que se repete várias vezes: “que deu para ele o Deus” v.17c, “porção dele”v.17c, “que deu para ele o Deus” v.18a, “a porção dele” v.18a, “dádiva de Deus” v. 18b. A própria palavra “Deus”, que não apareceu em todo o texto e que aqui aparece quatro vezes, é outro pilar. E ainda, a expressão “eis que” a qual aparece três vezes nesta unidade é também um elemento de ligação. Finalizando este tópico das subdivisões, concluímos que o nosso texto está estruturado em quatro partes ou subdivisões. A primeira, que vai dos versículos 7-8, trata da opressão do pobre. A segunda, que vai dos versículos 9-11, mostra a paixão pelo “dinheiro”. A terceira, que vai dos versículos12-16, revela existência de uma grave doença. A quarta e última, que vai dos versículos 17-19, traz, em forma de conclusão, uma proposta de vida. Essas subdivisões, ainda que cada uma tenha um movimento próprio, não são textos independentes. Ao contrário, cada uma delas faz parte de um todo. É como uma casa, por fora parece uma coisa só, mas, quando entramos nela, encontramos várias divisões: a cozinha, a sala, os quartos, o banheiro. Todas elas estão interligadas. Descobrir essas interligações vai ser a nossa próxima tarefa. Antes de entrar no próximo assunto, queremos enfatizar mais uma vez o quanto é importante desvendar a estrutura de um texto. Estas mini-unidades que encontramos mostram a construção do texto, sua arte e sua beleza. Tudo isso facilita o seu estudo. É uma forma do pesquisador se apropriar do texto.

1.3.2 Coesão entre as subdivisões

96

Para descobrir as relações entre os blocos vamos ficar atento às palavras que se repetem ou que possuem um significado semelhante entre si. Costumamos chamar isso de “mesmo campo semântico”. Às vezes são pequenos detalhes, mas que na redação têm uma função importante. Entre o primeiro (7-8) e segundo (9-11) bloco observamos muitas palavras e ideias repetidas. Por exemplo: encontramos o advérbio condicional “se” no v.7a e no v.11a. A conjunção demonstrativa “eis que” está no v.7c e no v.10b. O substantivo “lucro”, v.8a, tem um significado semelhante ao substantivo “vantagem” v.10b. Estas duas palavras, lucro e vantagem, são palavras que só encontramos em Coélet. Elas são muito próximas no seu significado. Muitos dicionários lhe dão a mesma tradução. Podemos perceber ainda que o adjetivo “superior” v.7c, está relacionado com “devoradores dela” v.10a , com “senhor dela” 10b e com “rico” v.11b. E, finalmente, a expressão “produtos do campo” v.9b, remete ao campo escravizado do rei (v.8b). Portanto, como podemos ver, temos muitas palavras repetidas ou com um significado semelhante. Apesar da falta da conjunção “e” para ligar os dois blocos, não temos dúvida de que existe uma forte relação entre o primeiro (1-8) e o segundo (9-11) bloco. Esta presença do mesmo campo semântico, mostra por sua vez que os temas tratados nos dois blocos são comuns. Como vimos na apresentação das subdivisões, o primeiro bloco trata da opressão do oprimido. A causa dessa opressão é a hierarquia no poder, da qual o rei é a cabeça. O segundo bloco traz o tema do amor ao “dinheiro”. Esses dois temas estão em profunda sintonia. O amor ao dinheiro, aos produtos do campo e à abundância (v.9) andam de mãos dadas com o lucro da terra e do campo escravizado (v.8). Por sua vez, o amor ao dinheiro (v.9) e o interesse pelo lucro (v.8) explicam o motivo da opressão do pobre (v.7). 97

Em síntese, no primeiro bloco (7-8) Coélet mostra a realidade social e no segundo (9-11) a causa dessa realidade. A conexão do segundo (9-11) com o terceiro (12-16) bloco é mais evidente. Em primeiro lugar segue o tema da riqueza. A abertura do bloco é feita com o mesmo verbo “ver” do v.7a. A expressão “em especial isto mal doentio” (v.15a) nos remete ao v.9c: “em especial isto vazio”. Da mesma forma o substantivo “lucro” v.15c, conecta com “vantagem” do v.10b e com o “lucro” do rei no v.8a. E, por fim, as formas verbais na terceira pessoa do masculino singular continuam e até se intensificam neste bloco. O quarto bloco retoma as principais ideias dos blocos anteriores e introduz um novo tema. Ele começa com a observação de Coélet, semelhante a do início do primeiro e do terceiro bloco: “vi” (v.7a e 12ª). Outras repetições que se destacam são: a expressão “totalidade” (v.17b e 18ª), que se encontra também nos v.8ª,15b e 16. A expressão “que se cansará debaixo do sol” (v.17a) é idêntica à “que se cansará para o vento” (v.15c). No mesmo campo semântico está a forma “canseira dele” (v.17a, 18a e 14b). A ligação com os blocos anteriores também é percebida através da conjunção demonstrativa “eis que” (v.17b, 19b, 7b, 10c), e pela conjunção enfática “em especial” (v.18a, 9c e 16). E, por último, um elemento que define a unidade dos blocos é o pronome pessoal na terceira pessoa do masculino singular que se encontra em todos os blocos. Queremos chamar a atenção, ainda, ao jogo de palavras opostas que ocorre nesta unidade. Por exemplo, o termo “bom” 17 a, tem um sentido positivo, enquanto que no v.10a ele tem um sentido negativo. Da mesma forma que “comer”, que aqui é positivo (v.17b, 18a ), em 10a e 16 é negativo. Esse particular nos leva concluir que o último bloco é uma proposta alternativa à realidade mostrada pelas unidades anteriores. Vemos, portanto, que existe uma harmonia entre os blocos que proporciona uma coesão dos mesmos. O primeiro bloco (v.7-8), que trata da 98

opressão do pobre, serve de contextualização geral. O segundo (9-11) e terceiro (12-16) bloco, que tratam da riqueza, revelam o mau causador daquela situação. E por último, o quarto bloco (17-19), aponta para uma saída. Concluindo o todo: os versículos 7-19 estão delimitados, apresentam quatro subunidades e estas têm coesão. Eis, pois, uma bela perícope. O passo seguinte será o de estudar o estilo literário dessa perícope.

1.4 Estilo119

O estilo próprio de Coélet, sua marca inconfundível, é observar a realidade e comentar sobre ela. No início da primeira unidade (7-8), o texto apresenta uma realidade: “opressão de empobrecido e roubo de direito e justiça”. Essa realidade Coélet chama de “projeto”. Quem arquiteta esse “projeto” é uma estrutura hierárquica: “superior de sobre superior”. No topo dessa estrutura está o “rei”. Na segunda unidade, ocorre uma pequena mudança no estilo. Coélet já mostrou a realidade e já definiu que a causa dessa situação é o sistema estrutural onde um vigia o outro. Agora Coélet vai mostrar o que move essa estrutura. Para isso, faz-se valer de um provérbio popular: “quem ama dinheiro nunca se sacia de dinheiro”. Usando esse provérbio, Coélet mostra a raiz do problema e conclui com um provérbio próprio: “e quem ama na abundância, não produtos do campo”. Vemos, portanto, aqui um estilo proverbial que Coélet introduz. Um provérbio popular que expressa muito bem a causa da opressão:

119

Para uma abordagem da multiplicidade dos recursos literários empregados no livro de Coélet sugerimos a leitura de José Vílches, op. cit., p.67-72. 99

o amor ao dinheiro. E um provérbio próprio: o amor aos produtos do campo. Tudo isso, diz Coélet, é vazio. E assim, Coélet continua com o seu estilo analítico. Existe uma opressão, a causa dessa opressão é o sistema hierárquico. Este existe por causa do amor ao dinheiro. E tem mais, o amor ao dinheiro faz o amante querer os produtos do campo. Tudo isso é um tremendo vazio. Por que é vazio? A resposta vem na frase seguinte. É vazio porque “no aumentar dos bens aumentam os devoradores”. Quando os ladrões, “devoradores”, chegam, a única vantagem para o senhor dos bens é “a visão dos olhos”, ou seja, ficar olhando. Mostrada essa realidade, Coélet fecha a primeira e a segunda unidade comparando “o sono do escravizado” com o sono do rico. O escravizado, que é vítima do projeto opressor, tem um sono gostoso. Mesmo “se muito ou se pouco come”. Enquanto que a saciedade do rico não o deixa dormir. Retomando, a primeira unidade apresenta o contexto. A segunda unidade começa mostrando as razões mais profundas que geram esse contexto e conclui apresentando a desvantagem daquele que se deixa levar por essas razões. Como podemos ver, o peso maior está na primeira frase do versículo 7, as demais se encontram ancoradas nela. Na terceira unidade (13-16) o estilo observador volta a aparecer. O que Coélet vê agora é que “existe um mal doentio debaixo do sol”. Que mal é esse? O mal é “a riqueza guardada pelo seu dono”. Como se percebe, na volta ao seu posto de observação, o que Coélet vê continua relacionado com o amor ao dinheiro, da unidade anterior. O amor é tanto que o rico, o insaciável, vai guardar cuidadosamente toda a sua riqueza. Coélet descobre que isso é um “mal doentio”.

100

O que mais vê Coélet? Ele vê que depois de passar a vida inteira guardando riqueza, o rico, por algum motivo, “perde a riqueza”. E o pior, “o filho que ele gerou ficou sem nada”. Em síntese, encontramos nas quatro frases destes dois versículos (12 e 13) da terceira unidade, o estilo das frases do bloco anterior. A primeira frase (12a) introduz o sujeito, a segunda (12b) identifica o sujeito, a terceira (13a) e a quarta (13b) explicam a identidade do sujeito. O curioso é que estas quatro frases formam um pequeno quiasmo. A primeira frase (12a) introduz a existência de um mal, a segunda frase (12b) mostra a riqueza guardada, na terceira frase (13a) a riqueza se perdeu, e na quarta frase (13b) não existe mais nada. E, então, após ter visto esta realidade, Coélet conclui: “como que saiu a partir do ventre da mãe dele nu voltará para ir como que veio”. Esta frase, 14a, tem sua estrutura nos quatro verbos: sair e voltar, ir e vir. Ela mostra o início e o fim do amante do dinheiro. Nada levará da sua riqueza guardada. Sua vida, repete Coélet, é um “mal doentio”. E continua com a sua crítica severa: “o seu lucro foi trabalhar para o vento”. Todos os seus dias passou comendo na escuridão, irritado, doente e furioso. Concluindo o estudo do estilo deste terceiro bloco, podemos afirmar que as duas primeiras frases introduzem o problema, “mal doentio”, e o identificam, “riqueza guardada”. As demais frases refletem sobre esse problema descrevendo-o com uma constante repetição das ideias. Todas as frases convergem para a primeira e segunda frase girando em torno de um campo semântico que hora é sinonímico e hora antonímico: “existência” (v.12a), “não existência” (v.13b), “riqueza guardada” (v.12b), “riqueza perdida” (v.13a), “mal doentio” (v.12a), “mal dele” (v.12b), “canseira má” (v.13a), “sair” (v.14a), “voltar” (v.14b), “ir” (v.14b, 14c,15b), “vir” (v.14b, 15b). A última unidade (17-19) apresenta de início uma dificuldade: a divisão das frases. É difícil saber onde termina uma e onde começa a outra. Os tradutores têm sua divergência. Diante disso, fizemos nossa própria opção. 101

Novamente Coélet começa a unidade com o seu já conhecido estilo: observar e depois refletir sobre o observado (7a,12a,17a). É assim que inicia a primeira frase, 17a “eis que vi o que é bom e belo”. Subentende-se que o que tem sido observado até agora não é bom. Vamos ver o que é bom e belo: “comer, beber e ver dos bens”. Ou seja, dos bens, o que é bom e belo, é aquilo que se pode comer, beber e ver. Aqui o alvo da crítica continua sendo o dinheiro, que não se pode comer, nem beber e nem ver. Não se pode ver porque está escondido ou foi roubado. As quatro frases do v.17 se assemelham por seu estilo às frases do bloco anterior. A frase 17a fala de algo bom que foi visto; a frase 12a do bloco anterior fala de algo mau que foi visto. A frase 17b deste bloco mostra o que é bom: comer e beber e ver; a frase 12b do bloco anterior mostra o que é mau: riqueza guardada. A frase 17c deste bloco retoma várias situações e mostra porque comer e beber e ver é bom; as frases 13a, 13b, 14a, 14b do bloco anterior mostram porque a riqueza guardada é um mal. E, finalmente, a frase 17d deste bloco conclui que isto é a porção dele; a frase 15a do bloco anterior conclui que isto é um mal. As frases seguintes, desta quarta unidade, complementam as anteriores. De toda a trabalheira debaixo do sol a porção que Deus deu para o rico é aquilo que ele pode comer, beber e ver. De toda riqueza e fortuna do ’adam, o que é dádiva divina é aquilo que ele pode comer. Quem assim proceder, Deus ocupará o seu coração em alegria durante os dias de sua vida. Subentende-se de que ter o coração ocupado em alegria por Deus é a meta última que alguém pode almejar. Em síntese, esta unidade apresenta um estilo semelhante ao das unidades anteriores. Inicialmente é apresentado algo observado (v.17a e 17b), e, em seguida Coélet faz a sua apreciação sobre o objeto visto (v.17c, 17d, 18 e 19), com um constante retomar das ideias das unidades precedentes.

102

Concluindo esta seção, encontramos que no texto estudado o estilo de Coélet é muito simples e prático. Em cada unidade pode-se perceber que Coélet parte sempre de uma afirmação geral. Essa afirmação pode ser uma ideia principal, como é o caso do v.9 da segunda unidade. Pode também ser uma realidade observada, como mostram os versículos 7, 12 e 17 das outras unidades. Uma vez introduzido o objeto central, as demais frases e ideias flutuam em seu entorno. Essa convergência acontece por meio de uma constante repetição de conceitos. No decorrer desse estudo, aparentemente árduo, criamos um gosto muito especial pelo texto. Ele tem uma beleza interior muito grande. O modo como está articulado, o ponto de partida, as voltas que dá e o ponto de chegada formam um movimento muito harmonioso. Para poder mostrar com maior profundidade este jeito de ser do texto, nos sentimos no dever de buscar conhecer o seu gênero. Antes, porém, vamos reapresentar o texto, agora com suas subdivisões e com uma linguagem mais acessível. 7

Se a opressão do empobrecido e o roubo do direito e da justiça vês na

província, não te assombres sobre esse projeto. Eis que: um superior está sobre outro superior vigiando e estes têm outros superiores sobre eles. 8

E o lucro da terra na totalidade é para ele. Para o rei é o campo escravizado.

9

Quem ama o dinheiro não se sacia de dinheiro. E quem ama a abundância

não se sacia dos produtos do campo. Em especial, isto é vazio. 10

Ao aumentar os bens aumentam os seus devoradores. E que vantagem para

os seus senhores, senão ver com os olhos? 11

Gostoso é o sono do escravizado, se pouco ou se muito come. Mas para a

saciedade do rico não existe descanso para ele dormir. 12

Existe um mal doentio que vi debaixo do sol: riqueza guardada para os seus

senhores para o mal deles. 103

13

E ele perdeu esta riqueza em canseira má. Gerou um filho e não existe nada

em sua mão. 14

Como saiu do ventre da sua mãe, nu voltará, para ir como veio. E nada

levará de sua trabalheira em sua mão. 15

E em especial, isto é um mal doentio. A totalidade, como veio, assim irá. E

que lucro para ele que trabalhará para o vento? 16

Em especial, a totalidade dos seus dias come na escuridão em meio a muita

irritação, doença e fúria. 17

Eis que eu vi o que é bom e belo: comer beber e ver. A totalidade dos bens

da sua trabalheira que trabalhou debaixo do sol, do número dos dias da sua vida que Deus lhe deu, eis que isto é a sua porção. 18

Em especial, a totalidade do ’adam, que Deus deu para ele riqueza, fortunas

e poder, é para deles comer, e levar sua porção e se alegrar em sua trabalheira. Isto é dádiva de Deus. 19

Eis que não recordará muito os dias da sua vida. Eis que Deus ocupa em

alegria o seu coração.

1.5 Gênero literário de Ecl 5,7-19

Não é preciso argumentar a respeito da importância desta seção. Identificar o gênero literário de um texto influencia largamente a interpretação do leitor. Já sabemos que o livro de Coélet não contém apenas um único gênero. Por isso, vamos aqui, centrar nossa atenção exclusivamente no texto em questão. O estudo do estilo literário nos mostrou que Coélet parte sempre de uma experiência vivida para, a partir dela, fazer suas reflexões críticas. É o que 104

vemos no início do primeiro bloco (v.7), do terceiro bloco (v.12) e do quarto bloco (v.17). Ou seja, aquilo que Coélet fala está firmemente enraizado na sua experiência pessoal, é dali que nascem suas conclusões. Esse aspecto, juntamente com o tom narrativo que Coélet muitas vezes dá ao texto, fazem alguns estudiosos definir o gênero da nossa perícope como uma “narrativa autobiográfica” 120. Essa opinião nos ajuda, porém, não nos satisfaz. No nosso entender, não se trata aqui de uma narrativa. Olhando, por exemplo, para o segundo bloco (v.9-11), descobrimos uma estrutura bastante harmoniosa. As frases estão de modo geral divididas em partes. E nessa divisão, a primeira frase se caracteriza pelo seu sentido completo e independente, e a segunda pelo seu sentido reflexivo, complementar e conclusivo. Esse fato lhe dá a algumas frases um tom proverbial. Esse é o caso, por exemplo, do v.9: “quem ama o dinheiro não se sacia de dinheiro” (9ª), se identifica com um provérbio, e “quem ama a abundância não se sacia dos produtos do campo” (v.9b), com uma reflexão própria a partir do provérbio. Essa forma proverbial, porém, não quer dizer que os ditos estejam separados e sem correlação. Ao contrário, encontramos no nosso texto um contínuo repetir de ideias, um constante desdobrar-se sobre si mesmo. É um ir e vir, um incessante vai e vem. Esse estilo repetitivo de frases e ideias é característico da poesia hebraica. Enquanto que a poesia ocidental se identifica pelo seu desenvolver linear progressivo, a poesia hebraica se identifica pelo seu desenrolar cíclico. Ela pode ser comparada ao revoar de andorinhas. Enquanto que o modo ocidental de pensar, mais retilíneo, é comparável ao ato de varrer uma longa escada. Tudo segue numa mesma direção, sempre para frente. Não se pode pular um degrau senão a sujeira fica. Isso não quer dizer que o modo semita de pensar e agir não seja progressivo. A diferença está em que, para seguir em frente é preciso olhar para trás, para o passado e, a partir dele, avançar. É por isso que nas 120

Veja Longman Tremper III, op. cit., p.20. 105

narrativas bíblicas a história, a memória e os antepassados estão sempre presentes. Pela linguagem se identifica a identidade, o modo de pensar e agir de um povo. Compreendendo a maneira de escrever do povo hebreu conhecemos o seu jeito de ser e de pensar. Portanto, considerando esse estilo de apresentar as reflexões a partir de experiências vividas e de provérbios populares, com um constante repetir de ideias e frases, definir o gênero da nossa perícope como um poema sapiencial reflexivo é o mais acertado. Uma vez definido a perícope, visto as subdivisões e sua coesão, precisado o estilo e o gênero, cremos que estamos em condições para entrar no miolo desse capítulo que é o conteúdo do texto.

2. Análise do conteúdo

Para estudar o conteúdo vamos abordar as frases dentro dos blocos, conforme foi mostrado no estudo do estilo. Aqui nossa atenção vai estar voltada especialmente à crítica textual e à análise semântica.

2.1 Um projeto opressor (v.7-8)

106

7

Se a opressão do empobrecido e o roubo do direito e da justiça vês na

província, não te assombres sobre esse projeto. Eis que: um superior está sobre outro superior vigiando e estes têm outros superiores sobre eles. 8

E o lucro de toda a terra é

para ele. Para o rei

é o campo

escravizado.

O conteúdo deste primeiro bloco gira em torno do problema da opressão. É o que se vê logo na introdução do v.7: “Se a opressão do empobrecido e o roubo do direito e da justiça vês na província, não te assombres sobre esse projeto” (v.7ª). Note-se o parentesco entre os termos usados na primeira parte da frase: opressão, empobrecido, roubo, direito e justiça. Vamos para o significado desses termos. O substantivo “opressão” é usado por Coélet duas vezes nesta forma (5,7 e 7,7) e duas vezes mais na forma verbal (4,1). Aqui, como em 4,1, o seu sentido se caracteriza pela violência da ação: “pressionar sobre”, “arrebatar com violência”, “extorquir”, “defraudar”. Situações semelhantes se encontram em Ex 3,9; Dt 26,7; 2Re 13,4; Sl 62,11; Os 12,7; Am 3,9; Ez 22,29. Coélet, portanto, está aqui denunciando uma extorsão violenta. A ação é contra o “empobrecido” (rax). Este particípio Coélet utiliza aqui e em 4,14. Um conceito próximo criando por Coélet é o adjetivo misken “pobre” (4,13; 9,15; 9,16), que só se encontra em seu livro. Há ainda outra categoria mencionada por Coélet, é o ‘obed (5,11), um particípio que traduzimos por “escravizado”. E, por último, Coélet usa ainda o adjetivo ‘any “oprimido” ou “aflito” (6,8). Como se pode ver, vários conceitos, cuja definição exata é muito difícil, mas que revelam a existência de um processo de pauperização: “pobres”, “oprimidos” e “escravizados”. 107

É esse processo de empobrecimento que o termo “roubo” denuncia. O rax é uma categoria que tem “direito”, o qual está sendo roubado. É um pobre que está sendo extorquido, à caminho de se tornar um ‘ebed “escravo”, sem “direito”. O rax “empobrecido” está sendo roubado no seu “direito” e na sua “justiça”. O uso destes dois termos é freqüente em Coélet (3,16; 5,7; 8,5.6; 11,9; 12,14 e 3,16; 5,7; 7,15). Na Bíblia “direito e a justiça” são palavras companheiras, muitas vezes aparecem juntos (Sl 33,5; 37,6; 89,14; 94,15; Is 1,27; 5,7; 9,7; 16,5; 28,7): “aquele que é justo está no direito”. A origem mais remota do “direito” e da “justiça” a encontramos nos primórdios de Israel como povo. É essência da lei dada por Deus Libertador ao seu povo (Dt 4,8). Buscar a justiça e o direito é buscar a Javé (Is 51,1; Sf 2,3). Por isso, são, pois, a bandeira dos profetas quando os governantes se desviam dos caminhos de Deus (Os 12,6; Am 5,7.24; Jer 22,13; Is 28,17; 32,16; 56,1). De maneira que, Coélet faz aqui memória, no estilo profético, de uma luta que está na raiz do seu povo em defesa da vida do rax “empobrecido”. Quem é esse rax? Ainda não temos elementos suficientes para essa pergunta, mas pensamos tratar-se do camponês que está perdendo a terra. Acreditamos que esse texto é um clamor das vítimas da nova política agrária implantada por Ptolomeu I, e que atingiu seu auge sob os seus sucessores. Quando a Palestina cai nas mãos dos ptolomeus, grandes proprietários helenistas chegam de todas as partes e se sentem no direito de tomar posse das terras conquistadas pelo império. Os antigos camponeses passam, então, ao serviço desses grandes proprietários. Era muito comum que o imperador distribuísse terras aos servidores do estado, especialmente a soldados veteranos, como reconhecimento pelos serviços prestados ao exército. Foi assim, por exemplo, que José Tobias conseguiu o controle de uma imensa propriedade. Além disso, havia ainda as melhores terras que eram exploradas somente pelo rei. Estas terras eram conhecidas como “as terras reais”. 108

Esse tema voltará com maior clareza nos blocos seguintes. Interessanos dizer aqui, sobretudo, que “o direito e a justiça”, essenciais enquanto povo de

Israel,

estão

sendo

“roubados”.

Estamos,

pois,

num

ambiente

intrinsecamente israelita. Esse cenário muda completamente com último termo da frase: medinah “província”. Esta não é uma palavra típica israelita. Ela é utilizada somente duas vezes por Coélet (2,8 e 5,7). Na Bíblia ela é usada 56 vezes, das quais, 26 vezes no livro de Ester. Sua origem é persa e reflete a política administrativa daquele império. Ela era usada para designar a região que compreendia Judá e arredores. Estamos, portanto, noutro âmbito daquele revelado pela primeira parte da frase. Nesta mesma esfera temos o substantivo hepez “projeto”. Ela é uma palavra importante para Coélet, que a usa sete vezes. Coélet lhe dá dois sentidos diferentes. Em determinado contexto ela significa “prazer ou desejo” (5,3; 12,10), mas em outros ela significa “projeto” (3,17; 5,7; 8,6). Alguns estudiosos utilizam somente o primeiro conceito, outros simplesmente ignoram, e outros ainda traduzem essa palavra por “fato”, “assunto” ou “atividade”. Dentro da situação abordada até aqui: “a opressão do pobre e o roubo do direito e da justiça na província”, dizer que isto é uma “atividade”, seria simplificar e tirar o peso da denúncia de Coélet. Mais que um “fato”, “assunto” ou “atividade”, hepez é um “projeto”, um projeto opressor. Portanto, enquanto que a linguagem da primeira parte da frase 7a está ligada à essência de Israel, a segunda mostra uma linguagem nova relacionada à dominação estrangeira. Esse pequeno início já deixa transparecer o conflito que irá permear todo o texto.

109

Em síntese, Coélet faz uma releitura do “direito e da justiça”, espinha dorsal da lei dada ao povo de Israel por Deus, dentro do seu meio, agora denominado de “província”, oprimido por um projeto estrangeiro. Esse “projeto” começa a ser elucidado na frase que segue: “Um superior tem outro superior vigiando e estes têm outros superiores sobre eles” (v.7b). Percebamos que esta frase está composta basicamente por três palavras: “superior”, “sobre” e “vigiar”. Essa sucessão e repetição de termos afins denota a estrutura hierárquica imbuída nesta frase. Aqui temos duas palavras que são sinônimas: “superior” e “sobre”. O adjetivo “superior” (gaboah) faz a vez de substantivo, refere-se a alguém que está acima na hierarquia militar, de rango superior, um alto oficial. Coélet o usa porque ele tem uma conotação negativa, também pode significar ‘arrogante’ (1Sm 2,3; Sl 10,4). O segundo termo “sobre” (‘al) não é apenas uma preposição. O seu significado é muito vasto: acima, sobre, alto, superior, altivo, criativo. Ele deve ser entendido em relação à situação manifesta na frase anterior: “oprimir”, “extorquir”, “agredir fisicamente”, “pressionar de cima para baixo”, pressionar “sobre”. O “superior” que pressiona “sobre” aquele que está embaixo, o “empobrecido”. Ou seja, o “empobrecido” tem um enorme peso sobre ele. Esses dois conceitos ficam mais evidentes com a análise do verbo “vigiar” (xmr). Usado onze vezes por Coélet, este verbo expressa também a ação de “guardar” ou “acumular” (5,15). No livro do Cântico dos Cânticos ele é traduzido pelo substantivo “guarda”, “sentinela” (Ct 3,3 e 5,7). A referência melhor é a do “oficial-observador”.

110

Em todo caso, verbo ou substantivo, um ou outro, o que se mostra aqui é

uma

estrutura

política

oficialmente

organizada,

hierarquizada

e

institucionalizada, que é causa da opressão vigente na “província”. Uma organização onde um vigia o outro numa proteção mútua. Ali um corvo não come os olhos de outro corvo. Essa cumplicidade institucionalizada se estende dos escalões mais baixos, onde o pobre é “roubado” e onde a “vigilância” não permite qualquer resistência organizada, até os mais altos, onde se encontra o “rei”. O rei é quem está no ápice desta estrutura vigilante e opressora e é para ele que se canaliza o produto “roubado”. Isso se vê na frase do v.8: “E o lucro da terra na totalidade é para ele. Para o rei é o campo escravizado” (v.8). Se o conteúdo desta frase nos parece claro, não assim a sua estrutura gramatical. Literalmente a tradução do v.8 é: “E lucro da terra na totalidade ele, rei para campo escravizado”. Os estudiosos têm rompido a cabeça tentando encontrar a tradução correta. “É uma cruz insuperável”121; “a crítica textual não tem solução para o problema deste versículo”122; “frase inexplicável e talvez tão danificada ou obscura que se torna intraduzível, sendo certamente a mais difícil do livro”123. A partir disso encontramos as mais diferentes traduções para esse versículo. A mais comum é: “mas tudo é proveitoso para um país em que o rei está ao serviço do campo”124. Uma coisa todas as traduções têm em comum: buscam salvaguardar a figura do rei. Todas dão uma conotação positiva à frase. Lohfink, por exemplo, analisando o conflito sócio-econômico da época, vê neste versículo a manifestação de Coélet por um novo sistema agrário menos opressivo, baseado no cultivo de um “feudo” (gê basiliké, Königsland, 121

Robert Gordis, op. cit., p.250. Longman Tremper III, op. cit., p.158. 123 Gianfranco Ravasi, op. cit., p.155. 124 La Santa Biblia Reina-Valera, Casa Bautista de Publicaciones, 1989. 122

111

“terra do rei”). Coélet estaria por um sistema onde as terras estivessem na mão do rei e fossem arrendadas aos camponeses livres, “aos lavradores do rei” (georgoí basilikoí)125. Nós não concordamos com essa tradução. Definitivamente, a nosso entender, não é isso que a frase diz. Para compreender o sentido desta frase devemos analisá-la no conjunto do livro e dentro do seu contexto literário. Já que ela apresenta dificuldade na sua elaboração gramatical, não pode ser interpretada isoladamente. O rei aqui não está isento da crítica de Coélet. Não se pode esquecer que o v.8 está em continuidade com o v.7. É por isso que existe a conjunção “e”. Ela faz a ligação entre os dois versículos. Se lermos a frase em continuidade com o contexto das frases anteriores, seu significado fica claro. No topo da hierarquia mostrada no início do nosso texto está o rei vigiando. É por isso que na tradução colocamos o pronome “ele” e “rei” no centro. Aqui é preciso considerar a interação das duas partes do versículo a partir das extremidades para o centro: “e o lucro de toda a terra (é para)

ele. Para o rei

(é) o campo escravizado”.

A poesia, assim como repete os termos, também os omite, de forma que ficam subentendidos. Veremos outro exemplo disso no v.9. Para justificar melhor nossa posição, vamos estudar com cuidado as palavras importantes da frase do v.8. A primeira palavra é o substantivo “lucro” (yitron). Somente Coélet usa essa palavra. Ela é totalmente desconhecida nos outros livros da Bíblia, o que indica que é um termo tardio. Ela é importante, pois Coélet a usa dez vezes (1,3; 2,11; 2,13; 2,13; 3,9; 5,8; 5,15; 7,12; 10,10; 10,11). O seu uso está quase sempre ligado ao trabalho: “que lucro o trabalhador tira de sua canseira?” (3,9). 125

Norbert Lohfink, op. cit., p.138. 112

Seu campo semântico revela uma conotação econômica. Portanto, o fato de ser um termo tardio, exclusivo de Coélet e de caráter econômico, nos faz crer que yitron seja um conceito introduzido pela nova mentalidade comercial reinante na província de Judá nos dias de Coélet. Provavelmente era uma palavra muito comum nas transações comerciais. O yitron era o espírito que movia todo o novo e explosivo interesse comercial impulsado em todas as cidades gregas a partir das conquistas de Alexandre Magno. Coélet questiona essa ideologia afirmando que o “lucro” de fato vai é para o rei. É ele o maior interessado e privilegiado de toda a corrida febril atrás do lucro. Outra palavra é o pronome “ele” (hu’) que normalmente é traduzido por “isto” ou, então, é ignorado. Optamos pela tradução pronominal porque “ele” se refere à figura do “rei”, substantivo que vem logo a seguir. Esta figura “rei” é encontrada doze vezes no livro e sempre tem conotação negativa. Com exceção das passagens onde o próprio Coélet se identifica como rei de Israel (cap.1-2), quiçás também até ali, encontramos sempre um rei autoritário e onipotente: “obedece à ordem do rei, não te apresses em deixar a presença dele, nem te coloques em má situação, porque ele faz o que lhe agrada e quem lhe diria: ‘que estás fazendo’?” (8,2-4); “nem em pensamento amaldiçoes o rei” (10,20). Esta visão negativa do rei, presente no livro, não pode aqui ser mudada. Ela é fundamental para compreender corretamente o sentido do versículo 8. Em toda a sua obra, Coélet não poupa a figura do rei, pois sabe que na estrutura social vigente, a qual critica tão duramente, o rei era o mais favorecido. As terras em última instância eram todas do rei e ele as arrendava para os seus ministros ou funcionários. O reinado dos reis ptolomeus no Egito pode ser visto como uma continuação do reinado dos antigos faraós. O poder centralizado e absoluto era sua principal característica. O culto divino prestado aos faraós era também amplamente prestado aos reis ptolomeus. De maneira que o poder social e econômico do rei era extremamente grande e 113

centralizado. Como os faraós, a terra era considerada toda ela propriedade do rei, incluindo os camponeses que nela trabalhavam. Estes trabalhavam sob a estrita supervisão dos oficiais do rei. Portanto, a crítica de Coélet ao denunciar a opressão, envolve todo o sistema vigente, desde os oficiais de mais baixo escalão até o rei. As últimas palavras do v.8 complementam esta visão: “terra” e “campo escravizado”. O “campo” (sadeh), enquanto meio de exploração, está em relação à “terra” (’eres). Só que “terra” expressa a exploração do país como um todo, semelhante a medinah “província” (v.7a), enquanto que “campo” expressa a exploração particular da agricultura. Parece-nos que é especificamente ali, onde Coélet está olhando quando fala da opressão do empobrecido, do roubo do direito e da justiça (v.7). Pr 13,23 ajuda a enxergar melhor esta situação: “a terra cultivada do pobre produz muita comida, mas ela é tomada por falta de justiça”. Aqui “campo” se refere à pequena propriedade, ao sítio, do camponês. Com a intensificação do comércio helenista, as terras agricultáveis adquirem cada vez valor maior. Apesar das cidades, conhecidas como polis ou poleis (plural), ganharem importância, o campo ainda é o grande meio de produção da época. É o campo que produz a matéria prima, os cereais, as especiarias, os perfumes, o azeite, as frutas, a carne, o leite, o vinho etc. É também no campo onde estão os pobres, os escravos que trabalham a terra, mão de obra barata para ser adquirida. Tudo o que se produzia era escoado para fora do campo e principalmente para fora da “província”, para as mãos do rei. O “campo”, que antes produzia os frutos para alimentar o povo que nela vivia, agora é escravizado e serve apenas para produzir o “lucro” (yitron). À maneira de síntese, as frases deste primeiro bloco (v.7-8) revelam a existência no cotidiano de Coélet de uma estrutura política administrativa, cujo “projeto” consiste em “oprimir”, “roubar”, “vigiar” e ter “lucro”. Esta estrutura se encontra hierarquicamente organizada com o fim de canalizar todo o “lucro” (yitron) para fora da “província” até às mãos do “rei”. Ela também tinha a 114

colaboração e participação de quadros e grupos dentro do país, que também usufruíam boa parte do “lucro”. Ao encerrar a análise do bloco dos v.7-8, queremos revelar a conclusão a que o estudo semântico nos conduziu até aqui. A preocupação de Coélet não é com problemas existenciais, filosóficos ou teológicos de sua época. O seu alvo tampouco se reduz a criticar o comportamento corrupto, desonesto e interesseiro de alguns quadros no poder, religioso ou político. O que está em questão aqui é o julgamento do sistema monárquico helenista. Coélet desnuda a exploração da realeza, a desvela dos pés à cabeça, do rei até o menor dos funcionários. Terá Coélet uma contraproposta? Aguardemos. O

primeiro

bloco

se

caracterizou

pela

estrutura

administrativa

internacional vigente no mundo de Coélet. O próximo bloco (v.9-11) vai se limitar a abordar a prática econômico-comercial de grupos internos.

2.2 “Dinheiro” se come? (v.9-11)

9

Quem ama o dinheiro não se sacia de dinheiro.

E quem ama a abundância não se sacia dos produtos do campo. Em especial, isto é vazio. 10 Ao

aumentar os bens, aumentam os seus devoradores.

E que vantagem para os seus senhores, senão ver com os olhos? 11Gostoso

é o sono do escravizado, se pouco ou se muito come. Mas,

para a saciedade do rico não existe descanso para ele dormir.

115

O conteúdo do segundo bloco move-se em torno do “dinheiro” e da riqueza, é o que vemos já na primeira frase: “Quem ama o dinheiro não se sacia de dinheiro” (v.9ª). Na Bíblia hebraica, o verbo ’ahab “amar” é principalmente aplicado na relação entre pessoas, pai e filho (Gn 22,2; Pr 13, 24), e entre Deus e o seu povo (Dt 11,13.22; 19,9; Jr 2,2). A última é a forma mais exigente de amor. Outra aplicação, bem menos freqüente, é em relação a coisas: comida predileta (Gn 27,9), sonho (Is 56,10), sabedoria (Pr 29,3). É nessa relação que se situa o presente caso. A tendência da Septuaginta ao traduzir ’ahab, vinculada a pessoas ou a Deus, é empregar o verbo agapao, e para traduzir o amor de uma pessoa por alguma coisa é empregar o verbo filéo”126. O curioso é que em 5,9, que trata do amor ao “dinheiro”, o verbo que a Septuaginta emprega é agapao e não filéo, que seria o normal. Em síntese, percebemos que o “amar” que a frase do v.9 expressa é um sentimento que acontece entre pessoas ou entre estas e Deus. Porém, o amado aqui não é Deus e nem pessoa, mas um objeto, o “dinheiro”. Portanto, temos aqui uma peculiaridade: um objeto que é amado como pessoa ou Deus. Essa peculiaridade nos convida a um estudo detalhado do “dinheiro”. O substantivo kesep “dinheiro” é comumente traduzido na Bíblia hebraica por “prata”. Kesep pode, no entanto, ter vários e diferentes significados: “riquezas”, “preço”, “siclo”, “metal precioso”, “troféus de guerra”, “porção”, “salário”, “utensílios”, “moedas”, “dinheiro”. Como se vê, um termo com um conceito muito amplo. O que significará kesep para Coélet?

126 Gerard Wallis, ’ahab, in: Diccionario teológico del Antiguo Testamento (editado por Johannes Botterweeck e Helmer Ringgreen), v.1, Ediciones Cristandad, Madrid, 1973, p.110112.

116

Coélet utiliza a expressão kesep seis vezes (2,8; 5,9a; 7,12a; 10,19; 12,6). Vistos em seu conjunto, todos os textos expressam uma atitude negativa de Coélet frente ao kesep, diferente do que se vê, por exemplo, no livro dos Provérbios, onde kesep, enquanto riqueza, é geralmente visto como um prêmio de Deus (Pr 3,9-10,16; 8,18; 13,21; 14,24; 15,6; 19,4; 21,21; 24,3-4). O que nos leva a suspeitar de que aqui kesep não significa prata, enquanto riqueza de modo geral. Aliás, no decorrer do nosso texto, quando Coélet quer referir-se às riquezas e aos bens, ele emprega outros termos: “abundância” (v.9b), “bens” (v.10a), “riqueza” (v.12a), “fortunas” (v.18a). Vemos também que kesep, na frase 9a, tem uma ênfase maior, mais forte, correspondendo à força do verbo “amar”. Essa força da palavra é denotada também por sua repetição na frase. Por isso, queremos acreditar que em 5,9, kesep se refira ao “dinheiro” enquanto moeda de prata. Em síntese, em Ecl 5,7-19 e possivelmente em todo o livro de Coélet, o substantivo kesep tem um significado novo, referindo-se unicamente à moeda enquanto valor monetário de troca, em vigor ascendente durante o período helenístico. Estamos, pois, lidando com uma semântica que delata a existência de um ambiente voltado exclusivamente à pecúnia. Para verificar a viabilidade dessa hipótese e para entender melhor o tipo de relação existente entre “amar” e “dinheiro” é necessário estudar a última palavra da frase: “saciar”. O verbo “saciar” está relacionado na Bíblia com fartar-se, encher, satisfazer o apetite, saciar-se de comida. Primordialmente está relacionado com a satisfação da fome com diversos alimentos: pão, grãos, vinho, azeite, mel etc. No livro de Coélet ao contrário, nas cinco vezes (1,8; 4,8; 5,9; 5,11; 6,3) em que é empregado, o verbo (uma vez substantivo, 5,11) sempre indica, com exceção de 1,8, o apetite sem limites pela riqueza daquele que ama o “dinheiro”.

Detectamos,

portanto,

uma 117

anomalia:

o

verbo

“saciar-se”,

empregado normalmente em relação aos alimentos, é aqui usado em relação ao “dinheiro”. Estará o “dinheiro” tomando a vez dos alimentos? O problema está em que, ao fazer essa inversão entre “dinheiro” e alimento, não acontece a saciedade. Isto é, o ’adam não se farta, não se enche, nunca fica repleto. Daí que, “quem ama o dinheiro não se sacia de dinheiro”. Encontramos um exemplo dessa voracidade que não enche em Pr 30,15-16: “A sanguessuga tem duas filhas: ‘traz, traz!’ Três coisas são insaciáveis, e uma quarta jamais diz ‘basta!’ O xeol, o ventre estéril, a terra que não se farta de água, e o fogo que não diz: ‘basta!’” Coélet apresenta mais uma, a fome de “dinheiro”. Ao término desta frase, concluímos que os três termos analisados têm a sua peculiaridade. “Amar”, que normalmente é usado na relação entre pessoas ou estas com Deus, é aqui usado em relação a um objeto. Há, portanto, uma personificação desse objeto. Esse objeto que normalmente é traduzido por “prata”, significa aqui “dinheiro-moeda”. E por último, “saciar-se”, que geralmente se refere aos alimentos, refere-se aqui ao “dinheiro”. A frase que analisamos constrói o alicerce para a frase 9b. Uma vez visto aquela podemos entender melhor esta: “E quem ama a abundância não (se sacia dos) produtos do campo. Em especial isto é vazio” (v.9b). A seqüência com a frase anterior é óbvia. São dois provérbios que se complementam. Lá se omitia a preposição “quem” e aqui se omite o verbo “saciar”. Uma exige que se emprestem vocábulos da outra para que ambas fiquem claras. O verbo “amar” e a partícula de negação “não” são repetidos e o substantivo “abundância” faz a vez de “dinheiro”. A novidade é a expressão “produtos do campo”.

118

O substantivo “abundância” (hamon) tem dado algum trabalho à crítica textual. Sua tradução literal é “na abundância”. O problema é o prefixo “na” que é um caso inédito. Esse prefixo junto com o verbo “amar” é o único caso em toda a Bíblia hebraica. Por isso muitas vezes admitido como uma ditografia127. O que traduzimos por “abundância” pode ser traduzido por “grandes riquezas”, “tesouros” ou “abundância de gado” (Sl 37,16; Is 60,5; Jr 49,32) Esta definição coloca “abundância” (hamon) em sintonia com o “dinheiro” (kesep). A “insaciedade” de “dinheiro” vai em busca da “abundância”, dos tesouros das nações. A “abundância” vai conduzir-nos ao termo que vem logo a seguir (tebuah), o qual traduzimos por “produtos do campo”. A raiz dessa palavra tem um significado muito amplo: “entrar”, “vir”, “introduzir”, “penetrar”. Porém, em muitas passagens ela também significa “colheita”, “frutos da terra”. Vejamos alguns exemplos: “das colheitas (tebuah) deveis dar um quinto ao faraó” (Gn 47,24); “durante seis anos semearás a tua terra e recolherás seus frutos (tebuah)” (Ex 23,10); “plantam vinhas que produzem colheitas de frutos (tebuah)” (Sl 107,37); “Ele enviará chuva à sementeira que semeaste em teu solo, e o pão, produto do solo (tebuah), será rico e nutritivo” (Is 30,23). Os exemplos indicam de que esta palavra (tebuah) está relacionado à agricultura. Com “produtos do campo”, portanto, Coélet se refere a todas as colheitas, grãos, azeite, vinho etc, que vêm do campo e que costumavam entrar na cozinha, mas que agora vão para os celeiros para serem transformados em kesep “dinheiro-moeda”. Como se pode ver, depois de açambarcar as riquezas das nações, “o amante do dinheiro” com sua “insaciedade” vai finalmente atrás dos “produtos do campo” para também transformá-los em riquezas. Deste modo, os “produtos

127

Negligência do escriba ao repetir a última letra da palavra precedente. 119

do campo”, que têm por fim saciar a fome natural, são transformados em “dinheiro” para saciar uma fome insaciável. Outra reflexão que é preciso fazer a respeito do uso do substantivo tebuah por Coélet é o seu conteúdo teológico. Conforme a fé do povo de Israel, quem faz frutificar (tebuah) a terra é Javé. Inclusive no ano sabático e no ano jubilar (Lv 25,3-4), é Deus que concede a colheita (tebuah) para alimentar o povo (Dt 33,14; Sl 107,37). A bênção de Deus é dada em forma de frutos da terra (tebuah) (Dt 16,15; Is 30,23). As primícias destes frutos (tebuah) devem ser designadas a Javé (Dt 14,22; Pr 3,9). E, por último, depois de cada três anos o dízimo dos produtos do campo (tebuah) era entregue para a sustentação dos levitas, dos órfãos e das viúvas (Dt 14,28 e 26,12). Portanto, tebuah é carregado de conteúdo sagrado. Interferir no seu sentido e finalidade é quebrar a vida dos que dele dependem: os órfãos e as viúvas. Tendo analisado as duas frases da segunda unidade, concluímos que existe uma anomalia na relação entre os termos: “amar” está em sintonia com “saciar”, assim como “dinheiro” com “abundância”. Porém, quando o amor está para o “dinheiro” ou para “abundância”, a saciedade não acontece. Se ao invés disso, o amor estivesse para os “produtos do campo”, a sacieade aconteceria. De forma que, existe aqui um conflito entre “dinheiro” e “produtos do campo”, entre comer “dinheiro” e comer os “produtos do campo”. Até aqui, Coélet apresentou uma situação. O que ele pensa de tudo isso está na frase seguinte: “em especial isto é vazio”. Este refrão é peculiar para Coélet, pois o usa nada menos que 16 vezes. A conjunção “em especial” (gam), usado quatro vezes em nosso texto (v.9, v.15, v.16, v.18), relacionado sempre ao amor à riqueza ou à doença que este amor causa, é normalmente traduzido por “também” ou “além disso”. Consideramos que esse conceito é limitado para definir o que gam expressa 120

aqui. Sua função é dar ênfase, dar destaque à palavra seguinte. Por isso optamos pela tradução “em especial” para enfatizar o pronome demonstrtivo “isto”, que vem logo a seguir. “Isto” se refere à realidade que foi apresentada até aqui, a qual Coélet define como “vazio” (hebel). Hebel é a palavra por excelência de Coélet. Ele a usa 38 vezes em sua obra. É curioso que muitos conhecem Coélet por esta expressão: “o livro das vaidades”. Nenhum outro livro do texto masorético emprega este termo tantas vezes como Coélet. E ninguém lhe dá o sentido que Coélet lhe dá. É, portanto, um termo complexo e por isso fundamental para a compreensão do texto. O sentido de hebel na Bíblia hebraica é o de algo transitório e sem consistência: “somente um sopro (hebel) são os filhos de Adão, apenas mentira os filhos do Adão: se subissem na balança juntos seriam menos que um sopro (hebel)” (Sl 62,10); “um homem pronuncia palavras de vento (hebel)” (Jó 16,3); “os falsos profetas são vento (hebel)” (Jr 5,13); “o homem é meramente um sopro (hebel) que passa e não volta” (Sl 78,39); “uma vida vazia é um sopro (hebel)” (Jó 7,7). Na carta de Tiago encontramos “não passais de vapor (hebel) que se vê por alguns instantes e depois se desfaz” (Tg 4,14). A Septuaginta traduz hebel por “vacuidade”. A Bíblia de Jerusalém traduz por “vaidade” (do latim vanitate). Não fosse o sentido ambíbuo com que a tradição cristã sobrecarregou esse conceito, seguramente “vaidade” seria a tradução mais apropriada. Visto como Coélet usa esse conceito nas suas 38 vezes entendemos hebel como algo muito transitório, que passa e desaparece, sem consistência, sem vida, sem passado, sem futuro, sem história e sem memória. O termo designa algo muito passageiro, algo que nasce para morrer, apenas um expiro, um sopro de vento. Hebel é da mesma raiz de Abel, que foi morto por Caim: “hebel, como Abel, o filho de Eva e de Adão cujo nome não é explicado, que

121

não chega a completar sua vida porque encontra no caminho o Caim que o mata”128. Considerando essa abordagem, mas partindo principalmente daquilo que o nosso texto tem mostrado até aqui, optamos por traduzir hebel por “vazio”, em oposição a “saciar”, “encher”, denunciando a contradição em que vive aquele que ama o “dinheiro”. Além do amor ao “dinheiro”, muito mais coisa ruim existe e que Coélet designa de “vazio”. Vamos em frente. A ânsia pelo dinheiro e pelos produtos do campo faz crescer o acúmulo e este faz surgir a competição. É isso que tenta mostrar a frase 10ª: “Ao aumentar os bens aumentam os seus devoradores” (v.10ª). A ênfase aqui está no “aumentar”, tanto dos “bens” (tobah) quanto de pessoas que deles querem tirar proveito, os “seus devoradores” (’okleyah). A sintonia dos termos é evidente: “aumentar” com “aumentaram” e “bens” com “devoradores”. O “aumentar” sintoniza também com “abundância” e com “dinheiro”, e “devoradores” retoma o verbo “saciar”. Percebamos, pois, que Coélet, ao mesmo tempo que retoma o vocabulário e as ideias anteriores, desenvolve seu pensamento num sentido ascendente em forma de espiral. Não há dúvida de que os termos se afinam com a ideia de aumento, que por sua vez se inclina para um fim específico: yitron “lucro” (v.8). A palavra “bens” (tobah) é usada sete vezes (4,8; 5,10.17; 6,3.6; 7,14; 9,18) e sempre da mesma forma. Ela faz parte do campo semântico do “dinheiro”. O que seriam esses “bens”? 128 Ana Maria Rizzante Gallazzi e Sandro Gallazzi, “O teste dos olhos, o teste da casa, o teste do túmulo – uma chave de leitura de Qohelet”, op. cit. p.52.

122

Pelo texto estudado até aqui, além dos “produtos do campo”, da “abundância”, do “dinheiro”, do “campo escravizado do rei” e do “lucro”, “bens” refere-se também às grandes propriedades, como as terras para a agricultura, cuja posse passa a ser motivo de disputa. Essa disputa é revelada pelo substantivo “devoradores”. Esta expressão aparece quinze vezes no livro de Coélet. Junto com “saciar”, “devoradores” arma a estrutura do nosso texto. A frase mostra a relação entre os “bens” e entre os “devoradores”. Um chama o outro. Provérbios 14,20 e 19,4.6 fala que “a riqueza multiplica os amigos” enquanto o pobre é odiado. Aqui, a riqueza não parece ser garantia de amigos, pois a palavra “devoradores” revela que os amigos daquele que tem “bens” são na verdade uma ameaça para a preservação destes. Eles de fato são parasitas e também são insaciáveis. Observamos também aqui, como nos versículos anteriores, o constante uso dos verbos na terceira pessoa do singular ou do plural e sem nunca definir quem é o sujeito. De quem Coélet está falando ou denunciando? Enfim, o texto nos revela que aqui existe uma disputa pela posse dos bens. A expressão ’okleyah “seus devoradores”, um particípio do verbo “comer/devorar”, com sufixo plural, pinta o retrato cruel das relações humanas oriundas do valor monetário. Uma relação onde um come o outro. A frase que segue dá seqüência a esta reflexão: “E que vantagem para os seus senhores, senão ver com os olhos” (10b). O centro da frase é a categoria “senhores”. Todos os vocábulos se orientam para este grupo. Não há vantagem para os “senhores” em aumentar os seus bens porque outros os comerão. O que lhe resta é ver acontecer. Há, portanto, uma nítida relação entre o “comer” das frases anteriores e o “ver” 123

desta frase. Se o objetivo é aumentar os bens, o dono não pode comê-los senão eles desaparecem. Se ele não comer outros comerão. Resta-lhe somente ver e vigiar. O objetivo dos “senhores” é a busca do kixron “vantagem”. Kixron é mais uma palavra cunhada por Coélet e seu entorno. Ela só aparece em sua obra e apenas três vezes (2,21; 4,4 e 5,10). Seu campo semântico está sempre relacionado ao trabalho incansável, doloroso e competitivo para acumular mais bens, os quais seu dono não poderá aproveitar. “Vantagem” tem forte conotação comercial. Isso conecta kixron com yitron “lucro” do v.8. Quanto à relação próxima entre esses dois conceitos não resta a maior dúvida, inclusive foneticamente. Em 7,25 encontramos um terceiro termo que é irmão de yitron e kixron. Denomina-se hexbon “cálculo”, “soma”. Essa terceira palavra é de cunho fiscal. Chama à atenção a aliteração desse trio. Enfim, kixron enriquece a já conotação econômica do nosso texto. De fato, é impressionante a grande presença de conceitos técnicos comerciais no texto até aqui analisado. Conforme James Kugel129, no livro de Coélet são encontrados vinte e nove diferentes conceitos comerciais. Vejamos quem são os “senhores” que estão em busca de “vantagem”. A palavra “senhor” vem da raiz ba‘al, usada sete vezes por Coélet, destas, duas em nosso texto: aqui e no v.12. O sentido que Coélet lhe dá é a de um ba‘al proprietário de riquezas ou de sabedoria. Riqueza e sabedoria, para Coélet, estão muito ligadas: “o abrigo da sabedoria é como o abrigo do ‘dinheiro’” (7,11). Ela também pode ser traduzida por “seus donos”, mas “senhores” traduz melhor a relação de escravo e amo existente entre o “dinheiro” e seu senhor, bem como do escravismo social vigente no mundo de Coélet.

129 James L. Kugel, “Qohelet and Money”, in: Catholic Biblical Quarterly, Catholic Biblical Association, v.51, Washington DC, 1989, p.32.

124

Se olharmos para trás podemos colocar esses ba‘alim junto com os “devoradores de bens” (v.10a), com o amante da “abundância” e do “dinheiro” (v.9), com o “rei” (v.8b) e com a “hierarquia administrativa” (v.7c), enfim, com os que são a causa da opressão e do roubo da justiça e do direito (v.7a). A única “vantagem” desses “senhores” é a “visão dos olhos”. Na literatura hebraica, “visão” e “olhos” são dois conceitos que se complementam. O olho não é apenas dotado de visão, mas também é orgulhoso (Is 5,15), tem desejos (Ez 24,16) e é cobiçoso: “aos olhos do ávido a sua porção não o sacia” (Eclo 14,9a). O olhar revela a atitude, a personalidade e a intenção da pessoa: “o olho é a lâmpada do corpo” (Mt 6,22). Essa redundante expressão é usada nove vezes por Coélet e sempre da mesma forma: “o olho não se sacia de ver” (1,8); “tudo o que os olhos me pediam eu não recusei” (2,10); “seus olhos não se saciam de riqueza” (4,8); “os olhos do ’adam não vêem repouso nem de dia e nem de noite” (8,16). Portanto, há uma íntima relação entre “a visão dos olhos” e o desejo insaciável dos “senhores” dos “bens”. Para Coélet, os olhos do amante do “dinheiro” também comem. Não cansar de ver é não cansar de “comer” os “bens”. Os olhos não têm descanso, passam o tempo todo vigiando. Este vigiar por causa da insaciedade lembra a vigilância (xomer), que existe entre a hierarquia opressora do v.7c. Este vigiar vai ser também o motivo da insônia do rico que veremos nas duas frases seguintes. Para entender o sentido das duas frases do v.11, elas devem, num primeiro

momento,

ser

analisadas

conjuntamente

pelo

quiasmo

que

conformam: V.11a “gostoso é o sono do escravizado come”

125

se pouco ou se muito

V.11b “mas para a saciedade do rico

não existe descanso para ele

dormir”. Além dos morfemas que estas duas frases mostram em relação às ideias do bloco, vemos que elas compõem um paralelo perfeito. Esse paralelo se dá entre os dois personagens que têm sono e que comem. Os personagens são diferentes: um é escravizado e outro é rico. O sono também é diferente: um é gostoso e o outro não existe (não pode dormir). O comer de ambos também é diferente: um às vezes come muito e às vezes come pouco; e o outro aparentemente sempre come muito, pois tem “saciedade”. Esses dois modos de comer carecem de um estudo mais detalhado, por isso terão especial atenção a seguir. Antes, porém, nos ocuparemos com os vocábulos preliminares. “Gostoso é o sono do escravizado”. Percebamos a ênfase no fato do “escravizado” (‘obed) ter sono e este ser agradável. A raiz desse particípio é usada seis vezes por Coélet. Essa referência explícita aos escravos deixa claro uma coisa: estamos numa sociedade escravagista. Infelizmente não temos maiores referências de Coélet sobre a vida diária do “escravizado”. Sabemos apenas que ele é vendido como mercadoria: “adquiri escravos e escravas, tinha criadagem e possuía muitos rebanhos de vacas e ovelhas” (2,7). Mas, a que escravo estará Coélet se referindo? A referência ao campo escravizado (v.8b) e aos produtos do campo (v.9b) aponta para o escravo da terra. Este “escravizado” parece ser distinto do “pobre” (rax) do v.7a. Aquele tem direito que lhe é roubado, o escravo não. O escravo era juridicamente um bem sem direitos humanos. O escravismo é resultante da voracidade do amante de “dinheiro” e de “bens” mostrada pelos v.7-10. A fome de “dinheiro” desemboca no escravismo. O complemento da frase 11a volta a abordar o comer. Só que agora é o comer do escravizado: “se pouco ou se muito come”. Aqui a indiferença entre o 126

“pouco” e o “muito” destoa neste texto marcado pela abundância e pelo aumentar. Há aqui duas formas de comer: uma, a do “escravizado”, que pode comer pouco ou muito, e que se sacia; outra, que é a do amante do “dinheiro”, ou dos “senhores de bens”, e por que não de escravos, que sempre come muito mas que não se sacia. Essas duas formas nos remetem ao comer “dinheiro” e ao comer “produtos do campo” do v.9. É esse comer do “escravizado” que Coélet toma como referencial para formar uma contra proposta na conclusão da perícope (v.17-19). Do comer do “escravizado” vamos para “a saciedade do rico”. A novidade aqui é o “rico” (‘axir), termo usado por Coélet três vezes, uma vez como substantivo (5,11) e duas vezes como adjetivo (10,6.20). Apesar de ser novo no nosso texto, não é difícil situar este personagem. Não há dúvida de que o “rico”, o proprietário (v.10a) e o amante do “dinheiro” e da “abundância” (v.9a e 9b) pertencem à mesma categoria. É interessante como Coélet usa a sinonímia para se referir a essa categoria, que se encontra no ápice da pirâmide social. Aqui, o amante, conhecido agora como “rico”, parece estar totalmente dominado pela fome de “dinheiro”. Já não lhe é mais permitido nem o descanso. Em 6,7 Coélet expressa bem o que quer mostrar aqui: “todo trabalho do ’adam é para a sua garganta e, no entanto, seu apetite nunca se sacia". Esse estado de insaciedade vai contra aquilo que Deus pede ao seu povo antes de entrar na terra prometida: “comerás e ficarás saciado, e bendirás a Iahweh teu Deus na terra que ele te dará” (Dt 8,10). As desvantagens do “dinheiro” é que ele não sacia (9a), atrai os “devoradores” (v.10a), só serve para a “visão dos olhos” (v.10b) e não deixa dormir (v.11b). Por isso é vazio (v.9c). Por vigiar os seus “bens” contra os “devoradores” o “rico” não tem repouso: “não existe para ele descanso para dormir”. A não existência de 127

descanso contrasta com o sono gostoso do “escravizado”. Essa não existência parece revelar a ausência total de descanso e uma dedicação integral ao “dinheiro”. O “repouso” é de procedência divina (Gn 2,2; Ex 31,15; Lv 25; Sl 4,9), é uma promessa feita ao povo de Israel quando alcançasse a terra prometida (Dt 3,20). É também um direito que Javé dá ao cansado (Is 28,12); o repouso é para quem caminha na senda de Javé (Jr 6,16). O rico, ao amar exclusivamente o “dinheiro”, exclui-se da benevolência divina do descanso. Para o “rico” o “dinheiro” não lhe dá direito ao descanso. Nas sete vezes que Coélet emprega o verbo descansar, sempre o relaciona à liberdade. Esse fato inverte a situação entre os dois personagens: o ‘obed, na sua condição de “escravizado”, é livre, enquanto que o “rico” ‘axir, por ser amante do “dinheiro”, é escravo. Ao término do estudo desse bloco (v.9-11), resumimos seu conteúdo em duas ideias básicas: A primeira é a que não sacia: o centro é o “dinheiro”; seus protagonistas são o amante do “dinheiro”, os senhores dos bens e o rico; e só tem desvantagens: não alimenta, não deixa dormir e é vazio. A segunda é a que sacia: o centro são os “produtos do campo”; seu protagonista é o escravo; e só tem vantagens: alimenta e permite um sono agradável. A inexistência de descanso para dormir, mostrada no v.11, expõe o rico às enfermidades. As vigílias do rico acabam com sua saúde, pois vão consumindo sua carne até se tornar um enfermo (Eclo 31,1-3). Essa prédisposição do rico às enfermidades introduz o conteúdo do próximo bloco.

128

2.3 Há uma doença debaixo do sol (v.12-16)

12

Existe um mal doentio que vi debaixo do sol: riqueza guardada para os

seus senhores para o mal deles. 13

E ele perdeu esta riqueza em canseira má. Gerou um filho e não existe

nada em sua mão. 14

Como saiu do ventre da sua mãe, nu voltará, para ir como veio. E nada

levará de sua trabalheira em sua mão. 15

E em especial, isto é um mal doentio. A totalidade, como veio, assim irá.

E que lucro para ele, que trabalhará para o vento? 16

Em especial, a totalidade dos seus dias come na escuridão em meio a

muita irritação, doença e fúria.

Coélet começa a terceira unidade com uma nova observação. A realidade observada continua ligada aos males causados pelo amor ao “dinheiro” denominado agora de “mal doentio”: “Existe um mal doentio que vi debaixo do sol” (v.12ª). O centro de convergência desta frase é a expressão “mal doentio” (ra‘ah holah). Esse mal existe, foi visto e está localizado. A expressão tem sua complexidade. Ela não é conhecida pela literatura bíblica. As duas palavras só se encontram juntas no nosso texto: aqui e no v.15. O curioso é que o primeiro intuito seria traduzir essa expressão como “doença má”. No entanto, aqui a doença não é o substantivo e nem o mal o adjetivo. Ao contrário, a doença é o adjetivo e o mal um particípio. A ênfase está no sujeito que está doente, e não na doença que é má. Ou seja, além de mal, é doentio e por isso contagiante. Vamos ver onde esse “mal contagioso” se encontra: “debaixo do sol”. Encontramos aqui um dilema: se o “mal doentio” da frase anterior está debaixo do sol, então se refere tanto ao “escravizado” quanto ao “rico” ou amante do 129

“dinheiro”, ambos se encontram debaixo do sol. Pelo visto até aqui, o infectado não pode ser o “escravizado”, pois Coélet tem mostrado admiração por ele. Só resta o rico, que, aliás, responde ao retrato que dele foi pintado. Por que, então, “debaixo do sol”? A expressão “debaixo do sol” não ocorre em nenhum outro livro do cânon hebraico. No livro de Coélet, no entanto, ela se repete nada menos que 31 vezes. É sem dúvida estranho que uma expressão totalmente desconhecida na Bíblia hebraica seja usada tantas vezes por Coélet. O mínimo que podemos imaginar é que, por algum motivo, ela tenha sido uma expressão em voga na época da composição do texto e que expressava uma realidade ou situação conhecida de todos. Há os que atribuem essa expressão a uma influência da literatura extrabíblica . Por exemplo, a expressão é encontrada no famoso poema 130

mesopotâmico, a Epopéia de Gilgamesh: “somente os deuses (vivem) para sempre debaixo do sol”. Para outros, a expressão “debaixo do sol” não tem maior importância: “ele (Coélet) queria apenas circunscrever o âmbito dentro do qual se moveria a sua pesquisa”131. Nós, de fato, não pensamos assim. Não se pode negar de que a expressão “debaixo do sol” não fosse conhecida em alguns círculos judaítas, antes mesmo de Coélet. Isso, no entanto, não justifica de modo algum, o exclusivo e quase exagerado uso destas duas palavras por Coélet. De forma que, esse uso só procede se se referir a algo muito específico e amplamente conhecido pelos destinatários. Para essa compreensão talvez precisemos desfazer-nos do conceito apriori que temos desta expressão. Comumente entendemos por “debaixo do sol” o espaço geográfico onde todos vivemos. Só que, para se referir a essa esfera Coélet usa outras expressões como: “debaixo 130 131

Como é o caso de James L. Crenshaw, op. cit., p.60. Gianfranco Ravasi, op. cit. p.55. O mesmo repete Tremper Longman III, p.66. 130

dos céus” (1,13; 2,3 e 3,1), “sobre a terra” (5,1; 8,14.16 e 11,2-3) e “na província”( 91,13; 3,1; 5,7). “Debaixo do sol”, portanto, deve aludir a algo diferente e peculiar. Voltando

às

referências

extra-bíblicas,

o

sol

tinha

um

papel

preponderante na mitologia egípcia e grega. Esse fato influenciou o pensar e agir destes povos. Reportemo-nos à figura de Alexandre Magno, o pai do império grego e do helenismo, que se considerava filho de Amon-Rá, conhecido como o deus sol. Num templo do Egito antigo tem um bonito texto gravado onde diz que Amon-Rá separa o dia da noite ao abrir e fechar os olhos. Um dos primeiros feitos de Alexandre Magno ao iniciar a conquista do mundo foi visitar o santuário de seu pretenso pai, Amon-Rá, no Egito. Lá foi recebido como um grande faraó e introduzido na assembleia dos deuses imortais. Estas mesmas prerrogativas divinas foram assumidas pelos ptolomeus, sucessores de Alexandre. De forma que, não soava estranho identificar os monarcas ptolomeus, principalmente suas ideias e costumes, com o sol. Para Coélet, o sistema greco-egípcio, conhecido como helenismo, é o sistema do sol. O sol era o símbolo do império ptolomaico que desde Alexandria governava Judá. Esta definição nos faz entender o negativismo de Coélet quando se refere às coisas que existem e acontecem “debaixo do sol”. Entendemos porque debaixo do sol só existe yitron (lucro), kesep (dinhero-moeda), ra‘ah holah (mal doentio), ‘iniyan ra‘ (canseira má), ‘amal (trabalheira) etc. Entendemos principalmente porque só existe hebel (vazio) “debaixo do sol”. Mais que um espaço geográfico, “debaixo do sol” designa um conjunto de ideias, um modo de vida, um sistema político. Vamos procurar agora identificar esse “mal doentio” que existe “debaixo do sol”: 131

“Riqueza guardada para seus senhores para o mal deles” (v.12b). A força desta frase está na expressão “riqueza guardada”. O elo com as outras palavras é a preposição “para”, “em direção de”, tanto para os “seus senhores”, quanto para “o mal deles”. Esta frase identifica claramente em que consiste o “o mal doentio” da frase anterior. Se retornarmos ao início veremos que o texto mostra uma busca incessante do “lucro” (v.8), do “dinheiro” (v.9a), da “abundância” (v.9b) e do “aumentar dos bens” (v.10a). Aqui já estamos numa outra etapa onde tudo isso é denominado “riqueza” e está “guardado”. O “mal doentio” é a “riqueza guardada”. O substantivo “riqueza” (‘oxer) faz parte do mesmo campo semântico de kesep, hamon e tobah. Vemos também seu parentesco com o ‘axir “rico”, ambos têm a mesma raíz. A ênfase aqui, no entanto, parece estar mais no ato de “guardar” do que propriamente na “riqueza”. O verbo “guardar” vem da raiz xmr, que é usada 9 vezes por Coélet. Ele tem um sentido muito amplo, podendo significar: “cuidar” (tomar conta do jardim, Gn 2,15), cuidar dos cativos (Js 10,18), “guardar” a aliança (Ez 17,14); “vigiar” (Ec 5,7) “guardar”, armazenar comida (Gn 41,35). Este último se assemelha ao “guardar” do nosso texto. No entanto, em se tratando de riqueza e mais especificamente de “dinheiro”, o “guardar” aqui se identifica mais com o ato de esconder (Ex 22,6). Guardar não para usar no momento apropriado, mas “guardar” de outros, principalmente dos “devoradores” do v.10a. O “guardar” aqui nos remete também ao “vigiar” do v.7, mostrando que existe toda uma organização atrás do “guardar dinheiro”. O texto nos tem mostrado até aqui um intenso movimento de “riquezas”, “dinheiro”, “abundância’, “colheitas”, “bens”. Estamos, portanto, num ambiente de muita fluidez econômica. “Bens”, “produtos do campo”, propriedades, são convertidos em kesep, “moedas de prata”. Queremos acreditar que ao falar de “riqueza guardada” Coélet está falando de “dinheiro guardado”. Que, aliás, é a maneira mais prática e segura de “esconder” um bem. A interrogação que temos é: onde era guardado o “dinheiro”? Poderemos subentender que por trás 132

desta frase esteja expresso o esboço do que hoje se entende por banco? Estamos, talvez, aqui num momento histórico em que por primeira vez Jerusalém se viu às voltas com um banco. E por que não conceber um José Tobias como o primeiro banqueiro?132 Vejamos para quem a riqueza é guardada: “para os seus senhores”. Esta categoria já a conhecemos do v.10b. Lá se tratava do ba‘al “senhor” “dos bens” e proprietário de escravos. Aqui é o “senhor” da riqueza. Se na frase anterior víamos que o “mal doentio” era a “riqueza guardada”, aqui vemos que o doente é aquele que guarda a riqueza, “para o seu mal”. A ênfase não está na riqueza em si, mas no ato de “guardar-esconder”, pois, o “dinheiro” guardado significa “produtos do campo” estocados, sem proveito. Portanto, “guardar-esconder dinheiro” é tanto um mal para o seu senhor quanto para os que precisam do “produto do campo” para se alimentar. Na seqüência teremos mais elementos para entender por que a riqueza “guardada-escondida” é um mal para o seu senhor: “E ele perdeu esta riqueza em canseira má” (v.13ª). O conteúdo aqui continua sendo a riqueza, só que em oposição com o da frase precedente. Lá a força estava na riqueza “guardada-escondida”, aqui a ênfase está na riqueza que se perde. A expressão “canseira má” é outra conexão com as frases anteriores: “mal deles”, 12b, e “mal doentio”, 12a. O verbo que traduzimos por “perder”, pode também ser traduzido por “desvanecer” o que equipara a riqueza guardada ao hebel do v. 9c. Esse “perder” está fora do campo semântico que vinha prevalecendo no texto: “abundância”, “aumentar dos bens”. Vendo o afã com que o rico se esmera no acúmulo de bens, a perda destes representa a infelicidade total. Como sucedeu isso? O v.10a falava dos “devoradores” de bens, queremos acreditar que seja uma referência a eles. Mas quem são os devoradores? A 132

Veja os tobíadas no cap. III. 133

expressão ‘inyan ra‘ “canseira má” talvez possa nos trazer alguma luz. Ela é mais uma expressão cunhada por Coélet. Nas oito vezes que Coélet a usa (1,13; 2,23.26; 3,10; 4,8; 5,2; 5,13; 8,16), ela está sempre ligada ao trabalho cansativo de ajuntar “dinheiro” sem repouso: “seus dias são dolorosos e sua ‘tarefa é penosa’ e mesmo

de noite ele não pode repousar” (2,23). É um

cansar-se inutilmente. Contudo, a força de ‘inyan ra‘ é o seu sentido econômico, muito próximo de yitron “lucro” (v.8) e kixron “vantagem” (v.10). Alguma atividade má determinou a perda do “dinheiro” guardado. Uma requisição do “dinheiro” ou assalto ao local onde o “dinheiro” estava guardado. Quem foram os agentes, os “devoradores”? Ainda ao sabemos. Em síntese, a frase 13a marca o início do fim de toda “canseira” na vida do rico por acumular “dinheiro”. A perda da riqueza mostra a base frágil sobre a qual está construída esta vida ilusória. A frase seguinte (13b) começa a apresentar as conseqüências dessa perda: “E gerou um filho e não existe nada em sua mão” (13b). Esta frase continua a insistir na perda do “dinheiro”, uma perda total (não existe nada). O efeito desse acidente se estende até o filho. A ação de gerar filhos tem forte ligação com o objetivo da “riqueza guardada” e vice-versa. O filho é um meio de o rico se perpetuar e perpetuar a sua riqueza. Mas, para Coélet, a riqueza não tem futuro. Pouco mais adiante, outro personagem teve, não só um, mas cem filhos e nem sequer teve sepultura (6,3). A expressão “não existe nada em sua mão” gera uma dúvida: na mão de quem? Do pai ou do filho? Não está claro. Em todo caso, o que parece evidente é a afinidade entre pai e filho na sua “canseira” pelo “dinheiro”.

134

Interessante é o uso do substantivo yad “mão” para se referir à posse do dinheiro. Em suas 13 ocorrências no livro de Coélet, “mão” está quase sempre ligado à “trabalheira”: “examinei todas as obras das minhas mãos e todo o trabalho que me custou realizá-las” (2,11). “Mão” é usado também no sentido de força, poder, opressão (4,1), bem como de controle, domínio, posse, como é o caso aqui. Opressão e posse são sinônimos para Coélet. A “mão” oprime e a “mão” retém. No texto hebraico pode-se perceber uma nítida repetição de termos que enfatizam a situação de miséria em que termina o rico. Essa situação não se resume apenas à perda do dinheiro, mas também à perda de toda a dignidade. O amante do dinheiro termina sem honra, sem memória (1,11), sem sepultura (6,3), sem futuro (8,10), sem nome (6,4) e morre como um animal (3,19). Não fica nada. E Coélet segue insistindo na privação: “Como saiu do ventre da mãe, nu voltará, para ir como veio” (v.14a). Aqui se consuma o “nada” anunciado pela frase anterior. Depois de toda a sua canseira na busca por acumular bens, riqueza e dinheiro, encontramos o rico completamente nu. A força desta frase, como já foi visto, está nos verbos sair, voltar, ir e vir. Esses verbos de movimento denotam um ativismo do rico, amante do dinheiro, desde o momento em que sai do “ventre da sua mãe” até que volta para ele. O substantivo “ventre” (beten) tem um significado amplo. No nosso caso, “ventre” tem também uma ressonância de além-vida (Jó 10,19; 31,15), no sentido de pertencer ao âmbito divino, de ser prerrogativa divina. Em 11,5, único momento em que esse termo se repete, Coélet relaciona o embrião no seio materno com a obra de Deus. Coélet insinua que o “ventre materno” é um espaço não contaminado pela doença do “dinheiro”. Ele é a instância de

135

purificação da contaminação do “dinheiro”, é a fronteira limítrofe de sua ação. Por isso, o amante do “dinheiro” só pode voltar para lá como saiu, nu. Nesta frase percebemos um parentesco muito grande entre o nosso texto (Ecl 5,7-19) e o Sl 49, bem como, com Jó 1,21: “nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá”. Vemos também a relação entre o seio da mãe com o seio da terra: “quando eu era feito em segredo, tecido na terra mais profunda” (Sl 139,15). Esta terra que foi comercializada pelo amante do “dinheiro” acabará sua sepultura. A segunda parte desta frase, que forma um quiasmo com a primeira através dos verbos “ir” e “vir”, ressalta a brevidade da vida daquele que ama o “dinheiro”. Jó 10,19 expressa bem essa transitoriedade: “ser como se não tivesse existido, levado do ventre para o sepulcro”. Temos aqui uma chave para entender melhor o significado de hebel (v.9c).

Pelo que nos apresenta Coélet nesta frase, o amante do “dinheiro” não

vive. Ele é como um bebê que nasce e morre. Melhor que ele é um aborto (6,3). Assim como veio irá, porque não há sabido viver, senão cansar-se para o vento (v.15b). Sua vida é apenas um sopro, um expirar para morrer. Assim como o “dinheiro” desvanece (v.13a), assim também o rico desvanece. O rico, aqui, assume a mesma condição do kesep “dinheiro”, ambos desaparecem, se tornam hebel, “vazio”. A frase 14b vai retomar o conteúdo das frases anteriores “E nada levará de sua trabalheira em sua mão” (v.14b). Coélet volta a insistir que “nada irá em sua mão”, mostrando que “guardar dinheiro” é um engano. Definitivamente a briga de Coélet é com aquele que guarda “dinheiro”. Ainda não conhecemos bem a identidade desse personagem. Só temos referências gerais na terceira pessoa do singular.

136

Coélet utiliza nesta frase um termo muito curioso ‘amal “trabalheira”. Esse substantivo é usado por Coélet nada menos que vinte e duas vezes, quase a metade do total usado na Bíblia hebraica. Sua tradução mais comum é “fadiga”133. Nas passagens onde ‘amal “trabalheira” é usado por Coélet, predomina o seguinte campo semântico: “lucro”, “canseira”, “porção”, “correr atrás do vento”, “trabalho”, “acumular”, “guardar”, “produto”, “competição”, “vantagem”, “opressão”, “saciar”. Vemos, em primeiro lugar, que temos aqui mais um conceito com sentido comercial, muito próximo de yitron “lucro” e kixron “vantagem”. Vemos também que ‘amal evoca um trabalho cansativo e contínuo, sem sossego e sem sentido, no nível de ‘inyan “canseira”. E, por último, um trabalho opressivo e escravizante (Dt 26,7). Não parece haver dúvida de que ‘amal tem um significado bem específico para Coélet, diferente do “trabalho” tradicional. “Trabalheira” reflete aqui o novo sentido que o trabalho adquiriu com a introdução do helenismo e principalmente com introdução do trabalho escravo na produção de bens comerciáveis. Com o escravismo, o trabalho deixou de ser um meio pelo qual o ser humano participa da criação, um meio para produzir o alimento do dia-a-dia. Com a mentalidade helenista, o trabalho passou a ser empregado para produzir kesep “dinheiro”, esvaziando (hebel) o seu sentido original. O trabalho passou a ser visto como “trabalheira”, como maldição. “Em especial, isto é um mal doentio. A totalidade, como veio, assim irá” (v.15ª). Esse gastar a vida em “trabalheira” e em “canseira”, com o único objetivo de acumular “dinheiro” sem usufruir dele e sem poder levar nada consigo, “em especial, isto é um mal doentio”. Essa expressão fez a abertura desse bloco (12a) e agora (15ª) faz a primeira conclusão.

133

Confere José Vílches, op. cit., p.148. 137

A segunda conclusão começa retomando a situação do amante de “dinheiro” em seu estágio final de vida: “a totalidade, como veio, assim irá”. Coélet volta a bater na mesma tecla do “nu veio e nu irá” (v.14ª). Essa ênfase no ir sem nada, em oposição ao guardar a riqueza (v.12a), tem o objetivo de cimentar bem o terreno para o bloco seguinte. Porém, Coélet ainda não terminou com a sua crítica e novamente assevera com suas conclusões: “E que lucro para ele que trabalhará para o vento?” (v.15 b). O sentido dessas palavras é muito próximo, sintamos a sua afinação: yitron (lucro), ‘amal (trabalheira), ruah (vento). Todas praticamente traduzem a mesma coisa. De modo que há uma intensidade muito forte nesta frase. O substantivo yitron “lucro” volta a aparecer. Já o conhecemos do v.8. Só que lá, Coélet fala que há “lucro” e que este vai para o rei. Aqui, o único “lucro” é a “canseira”. Isso nos leva a concluir que se trata de lucros e de personagens distintos. Tudo indica que no v.8 trata-se da categoria política administrativa, com vínculo estrangeiro, que leva o “lucro” para fora do país. Aqui Coélet parece dirigir-se a um setor comercial interno, judaítas que se lançaram de forma incontrolável e idolátrica ao comércio. Aqueles têm “lucro”, estes não. Essa pode ser uma pista para descobrir quem são os “devoradores” e os que fizeram perder o “dinheiro” guardado do rico. Se os v.7 e 8 tratam de uma categoria administrativa estrangeira que leva o “lucro” para o rei, e os v. 916 tratam dos comerciantes judaítas, que se aferram em guardar “dinheiro” o qual em um determinado momento desaparece, conclui-se que aqueles são os “devoradores do dinheiro” destes. Há que lembrar que o rei detinha o monopólio comercial de todas as províncias. Todos os modos de produção, todos os intercâmbios comerciais estavam nas mãos do estado e, portanto, nas mãos do rei. Reinar sobre a Palestina significava controlar o comércio, entre outras, sobre as duas principais 138

rotas: a que ia da Mesopotâmia para o Egito, conhecida como a via maris, e a que ia da Síria e da Mesopotâmia para o Golfo de Ácaba e a Arábia, conhecida como o caminho dos reis. Isso incluía também o controle sobre os pedágios e sobre a coleta de impostos. A confirmação desta dedução se encontra logo após o nosso texto: “Deus, porém, não lhe permite desfrutar estas coisas; é um estrangeiro que as desfruta” (6,3). É por isso, entre outras, que o amante de “dinheiro”, o comerciante judaíta, se cansa para o vento. Cansar-se para o vento repete a afirmação de 1,14, é “correr atrás do vento”. Esse cansar-se “para o vento” é equivalente ao hebel (v.9c). Capturar a riqueza é como querer capturar o vento, é como prender o vazio. Com isso, desembocamos na parte final da conclusão deste bloco, que retoma o dia-a-dia do comerciante amante de “dinheiro”: “Em especial, a totalidade dos seus dias come na escuridão em meio a muita irritação, doença e fúria” (v.16). Coélet faz questão de frisar a totalidade, como na frase anterior, para dizer que o rico está completamente tomado pela doença e não tem um momento de sossego. Essa doença tem vários sintomas. O primeiro sintoma é “comer na escuridão”. Essa situação lembra a insônia do v.11b, onde Coélet mostrava que o rico devido à sua insaciedade não tinha sossego para dormir e por isso passava desperto toda a noite. Aqui Coélet amplia esta situação. Com a perda do “dinheiro” o amante perde o rumo: “eis que no vazio entrou e na escuridão caminhará e na escuridão seu nome será sepultado” (6,4); “o insensato caminha nas trevas” (2,14). Comer na escuridão é estar perdido, é caminhar nas trevas (Is 9,1). E é mais que isso: trevas sugerem uma vida de sofrimento e de miséria. A expressão “dormir no 139

escuro” representa um estado de pobreza extrema. Para Coélet, o rico está totalmente despojado. O segundo sintoma é “muita irritação”. Além de andar na escuridão, sem rumo e na miséria, o rico vive com os nervos à flor da pele. Outras citações de Coélet expressam esse mesmo sentido: “todos os seus dias são dolorosos e sua tarefa é irritante, e mesmo de noite ele não pode repousar” (2,23); “a irritação mora no peito dos insensatos” (7,9). O terceiro sintoma é a doença acompanhada da fúria. A “fúria” está muito próxima da “irritação”. Ela, no entanto, denota atitudes já quase no nível do desespero (Sl 112,10). Em síntese, as duas últimas frases resumem a triste e dolorosa situação em que se encontra o rico durante o processo de acúmulo e no final de sua vida, quando já perdeu todo o “dinheiro” guardado. O verbo “comer”, grande pilar desta perícope, reaparece para amarrar os dois últimos blocos e para dizer que o amante do “dinheiro”, que era possuidor de uma fome sem limites acaba sendo devorado pelas trevas entre angústias e preocupações. Concluindo esta unidade, encontramos a história de um doente que passa a vida inteira guardando “dinheiro”. Em um determinado momento esse “dinheiro” lhe é tirado das mãos, provavelmente por estrangeiros. Nasce-lhe, então, um filho e ele não tem nada para pôr em suas mãos. Ambos, pai e filho, se encontram completamente nus. Além disso, estando às portas da morte, não tem como levar nada daquilo que acumulou em vida. Só ficou o retrato de alguém, possuidor de um grande apetite, que acabou sendo devorado pela trabalheira, cansaço, irritação e fúria. Só ficou a memória de um doente, um hebel em pessoa. Uma vez demonstrado com muita insistência que amar o “dinheiro” significa perder a vida num imenso “vazio”, Coélet apresenta um projeto alternativo para o “amante do dinheiro”. 140

2.4 O que vem de Deus (v.17-19)

17

Eis que eu vi o que é bom e belo: comer beber e ver. A totalidade dos

bens da sua trabalheira que trabalhou debaixo do sol, do número dos dias da sua vida que Deus lhe deu, eis que isto é a sua porção. 18

Em especial, a totalidade do ’adam, que Deus deu para ele riqueza,

fortuna e poder, é para deles comer, e levar sua porção e se alegrar em sua trabalheira. Isto é dádiva de Deus. 19

Eis que não recordará muito os dias da sua vida. Eis que Deus ocupa

em alegria o seu coração.

Novamente Coélet começa observando algo, analisa e depois comenta. Esse é o seu estilo. Só que agora o seu posto de observação mudou de local, e por isso vê algo novo. Depois de só ver opressões, rivalidades, cobiças, doenças, sofrimentos, Coélet começa a ver coisas boas: “Eis que eu vi o que é bom e belo: comer beber e ver” (v.17ª). Percebamos a ênfase na particularidade da observação. É como dizer: vejam! Achei algo novo! O “bom” e o “belo” era o “bem supremo” dos gregos (kalós kagathós). Isso nos leva a concluir que, para os gregos e seus aliados, ajuntar dinheiro incansavelmente era “bom” e “belo”, era o bem supremo. Para Coélet, isso é um “mal doentio”. O bem supremo é outra coisa. O “bom” e “belo” para Coélet é: “comer, beber e ver”. Esta frase é repetida sete vezes no livro de Coélet (2,24; 3,12-13; 3,22; 5,17; 8,15; 9,7-9; 11,9-12,1). É um refrão. São as sete bem-aventuranças de Coélet. Muito se 141

argumenta sobre a origem desse refrão. Hipóteses de influência egípcia, mesopotâmica, grega etc. Dos primitivos textos extra-bíblicos, o que mais se assemelha a esta máxima de Coélet é o da famosa Epopéia de Gilgamesh: “Gilgamesh, enche teu ventre de coisas boas; dia e noite, noite e dia, dança e regozija-te, banqueteia e alegra-te”134. Influenciado ou não, o que sabemos é que o verbo “comer” (’kl) é um dos fios condutores de nossa perícope. Víamos no segundo bloco a presença de duas formas de comer, uma, a do rico, amante do “dinheiro”, que não saciava, e a outra, a do escravizado, que saciava. Aqui, sem dúvida, não se trata do “comer dinheiro”, mas de um comer que sacia. Portanto, Coélet não está usando essa expressão por acaso, há toda uma construção em torno dela. Podemos perceber que Coélet mudou o seu observatório. Seu foco não está mais direcionado para o meio onde só existe comércio e competição. Lá Coélet não achou nada de bom. Seus pés estão agora numa outra realidade, onde se come sem grandes preocupações e onde se pode ser feliz. Em nosso texto, as referências que respondem a esta realidade é a do “escravizado” mencionado no v.11, o qual é senhor de um sono gostoso. É neste meio, onde também se acha o “empobrecido” do v.7, é que Coélet encontra o sentido da vida. Coélet tira a solução do bem viver para o amante de “dinheiro” do meio popular, tanto do campo, onde ainda resiste a experiência tribal, quanto da cidade, na casa e na cozinha, onde a escrava e o escravo fazem a comida. Há aqui, portanto, uma recusa ao modo de vida comercial, onde o “dinheiro” é o senhor das relações, e uma reafirmação ao modo comunitário de vida, onde o “comer” medeia as relações sociais. Há ainda uma outra coisa que chama a atenção nesta proposta de Coélet. O “bom” (tob) da frase de Coélet é o mesmo adjetivo usado no livro do Gênesis, quando Deus cria o mundo (Gn 1,1-2,4a). Ao término de cada obra, Deus viu que o que criara era “bom” (tob). Em 3,13, Coélet fala que comer e beber, desfrutando do produto do trabalho, é dom de Deus. Portanto, há 134

Gianfranco Ravasi, op. cit., p.285. 142

também algo de divino por trás desta proposta de Coélet, em oposição à trabalheira, ao cansaço e ao lucro, peculiares do amante do “dinheiro”. A proposta de Coélet está inspirada no projeto criacional do Gênesis. Depois de apresentar a simples e fácil solução para o bem viver, Coélet volta a lembrar a difícil e complicada canseira debaixo do sol, como para comparar as duas realidades: “A totalidade dos bens da sua trabalheira que trabalhou debaixo do sol, do número dos dias da sua vida que Deus lhe deu, eis que isto é a sua porção” (v.17b). A situação toda de sofrimento debaixo do sol, nós já a conhecemos bastante bem do bloco anterior. A reprodução do contexto literário desta frase com as frases dos v.12-16 é tal, que as palavras usadas são as mesmas, com exceção de três: “número”, “Deus” e “porção”. O substantivo “número” (mispar) é empregado duas vezes mais por Coélet (2,3 e 6,12). O seu sentido é sempre de um tempo curto, poucos dias. Esse é também o sentido aqui. De forma que, a intenção é mostrar que os dias do rico são breves. Esse conceito reaparece no v.19, quando será melhor abordado. Até aqui Coélet evitara falar de Deus, como para mostrar que no mundo onde predominam as relações comercias, Deus não tem lugar. Curiosamente, a menção a ’elohim “Deus” acorre 38 vezes no livro de Coélet (fora o epílogo, 12,12.14, que é acréscimo). É o mesmo número de vezes que a palavra hebel “vazio”. As duas realidades, porém, são totalmente antagônicas. Só neste bloco ’elohim está presente quatro vezes, enquanto que hebel, presente no blocos anteriores, desapareceu. Ou seja, hebel e ’elohim não combinam, são duas forças opostas, assim como as duas formas de comer. Outra coisa curiosa é que Coélet em nenhum momento faz menção a Javé.

143

O rosto de Deus que se mostra aqui é a de um Deus da cozinha, preocupado com o comer do dia-a-dia, um Deus alegre (v.19) e descomplicado. Após mostrar o que é bom e equiparar com a condição de vida do amante de “dinheiro”, Coélet conclui: “eis que isto é a sua porção”. Notemos que a conclusão retoma o início da frase 17b. O pronome “isto” se refere ao comer, beber e ver. De todos os bens, da trabalheira do rico “debaixo do sol”, o que é “bom” e que vem de Deus é o comer, beber e ver. O resto, a competição, a insônia, a insaciedade, a canseira, a trabalheira, a doença, irritação, a raiva, tudo isso não é “bom” e não vem de Deus. O substantivo “porção” (heleq), em suas oito ocorrências (2,10.21; 3,22; 5,17.18; 9,6.9; 11,2) retrata o fruto do trabalho, a alegria do trabalho e o sentido da vida. Identifica-se com um atributivo divino, como um presente de Deus. De modo resumido, a disposição do v.17 é a seguinte: uma vez visto o que é bom (17a), Coélet identifica esse bom (17b1), recorda os tristes dias do rico debaixo do sol (17b2) e apresenta a sua conclusão (17b3). Notemos o antagonismo entre as frases 17a e 17b2, e a correlação entre 17b1 e 17b3. Em síntese, o projeto de Coélet para o amante do “dinheiro” é de que ele coma, beba e aprecie daquilo que trabalhou. Isso é “bom” e isso é “porção” de Deus. Uma vez apresentada a sua proposta singela, Coélet retoma a mesma ideia para reforçar sua tese: “Em especial, a totalidade do ’adam, que Deus deu para ele riqueza, fortunas e poder, é para deles comer, e levar sua porção e se alegrar em sua trabalheira. Isto é dádiva de Deus” (v.18). Ao retomar o conteúdo de sua reflexão, Coélet repete também os termos empregados anteriormente. Mesmo assim, não deixa de introduzir novos 144

conceitos. Comecemos pelo substantivo ’adam”. É a primeira vez que esta expressão aparece em nosso texto. Na obra toda, porém, ’adam é empregado nada menos que 49 vezes, muito mais do que a palavra hebel, o termo por excelência de Coélet. O mínimo que podemos deduzir desse realce é de que ’adam deve ter um significado muito especial para Coélet, tanto quanto hebel, ou mais. Normalmente relacionamos o ’adam ao primeiro ser humano criado por Deus, indicando a totalidade da humanidade. Rastreando o termo em Coélet, nas suas 49 vezes, encontramos que o campo semântico de ’adam é conformado por palavras como “trabalheira”, “lucro”, “canseira”, “vazio”, “riquezas’, “vantagem” “obras”, “debaixo do sol”. Esse campo semântico predomina até o cap.6, dali em diante há uma variação maior. Outra característica do ’adam é que ele sempre carrega uma conotação negativa.

Está

sempre

correndo

atrás

do

vento,

numa

trabalheira

desgovernada. Em 3,18-19, Coélet chama o ’adam e os seus filhos de animais: “de fato, a sorte dos filhos de ’adam e a sorte do animal é uma mesma sorte. Tal é a morte deste, tal a morte daqueles, todos têm um mesmo sopro e a vantagem do ’adam sobre o animal é nada, pois tudo é hebel”. O ’adam é uma besta, um ser voraz que come sem nunca se encher, é insaciável. Sua “garganta” nepex, seu desejo, não tem limite (6,7). Para ele não existe memória (1,11), não tem sepultura, não conhece o amor (9,1) para ele o justo e o injusto são iguais (9,3). Em 1-2, o ’adam é identificado com o rei Salomão, que teve poder riqueza e mulheres, o protótipo do ’adam opressor. No nosso texto encontramos vários personagens: o empobrecido (v.7), a hierarquia administrativa (v.7), o rei (v.8), o rico, amante de “dinheiro” (v.9 e v.11), os devoradores de bens (v.10) e o escravizado (v.10). Ao falar do ’adam, Coélet não pode estar se referindo a todas estas categorias. Pelo menos não ao empobrecido e ao escravizado, pois, ambos sempre têm conotação positiva, nunca estão relacionados à trabalheira e ao vazio.

145

Quem de fato se encaixa perfeitamente neste modelo do ’adam mostrado acima é o amante do “dinheiro”, o rico. Aliás, em todo segundo, terceiro e parte do quarto bloco nos perguntávamos quem seria o sujeito indefinido de quem Coélet estava falando a todo o momento. Agora temos a resposta. O ’adam nada mais é que o rico, amante do kesep “dinheiro”. O ’adam é o comerciante, uma categoria comercial emergente alinhado com o setor opressor: proprietários, administradores e rei. Diz Coélet que a “riqueza”, “fortunas” e “poder” foram dados ao ’adam por Deus. Isso pode soar estranho, mas de fato, para a teologia de Coélet, toda a riqueza vem de Deus. Ela foi dada ao ’adam para o seu bem viver, para dela beber e comer. Ela é um meio benéfico para a vida do ’adam, mas não tem um fim em si. Isto é, a riqueza é um meio e não um fim. Ao guardar o “dinheiro”, através do trabalho escravo e da “trabalheira”, a riqueza perde a sua função primária e deixa de ser um bem para se tornar um “mal doentio”. Notemos os dois sinônimos “riqueza” e “fortunas” usados para designar a grande quantidade de bens do ’adam. Semelhante riqueza só é vista nas mãos do rei Salomão (2,1-10). O substantivo plural nekasim “fortunas” é uma palavra tardia de cunho aramaico. É muito pouco usada no cânon hebraico, cinco vezes ao todo, incluindo as duas de Coélet. O curioso é que ela só é usada no plural: tesouros, fortunas, riquezas. Portanto, mais um termo específico que Coélet nos apresenta para caracterizar o cunho comercial de nosso texto. Observemos a semelhança fonética entre kesep “dinheiro” e nekes “fortuna”. Outro termo desta frase, quase exclusivo de Coélet, é o verbo “poder” (xlt), que também é tardio e tem um colorido aramaico. Ele também é usado poucas vezes na Bíblia hebraica, quize vezes, das quais quatro no livro de Coélet (2,19; 5,18; 6,2; 8,9). Normalmente ele é traduzido por “dominar”, “ser senhor de”, “ter poder sobre”. Tudo indica que é um conceito que nasce dentro do ambiente de senhor-escravo. A Septuaginta traduz esse verbo no passivo 146

por “ser feito escravo”. Portanto, Coélet mostra aqui que Deus deu as riquezas ao ’adam para que exerça “poder” sobre elas e seja seu senhor. Quando as riquezas se tornam um fim em si, o processo se inverte, elas passam a ter poder sobre o ’adam e este se torna escravo. O poder que o ’adam deve ter sobre as riquezas é comer, beber e ver, “isto é dádiva de Deus”. Coélet retoma a “porção” de Deus com um sinônimo: “dádiva” (matat). Essa é mais uma palavra pouco conhecida, somente é usada seis vezes na Bíblia, das quais duas por Coélet (3,13; 5,18). “Dádiva” e “porção” são especialmente dados por Deus para trazer alegria. Ambos são do âmbito do tob “bom”.

Com esses pressupostos podemos retornar ao início, v.17a, para compreender melhor o significado de tob “bom”, pivô de toda a unidade. Tob é usado 45 vezes por Coélet, mas nem sempre tem o mesmo significado, às vezes funciona como substantivo e às vezes como adjetivo. Seu sentido varia conforme o contexto. No presente texto, tob funciona como um presente divino, algo que vem das mãos de Deus para o ’adam. Seu sentido está muito próximo do “bom” criado por Deus no princípio e entregue ao ’adam:

Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”, e assim se fez. Deus viu tudo que tinha feito: e era muito ‘bom’ (tob) (Gn 1,29-31).

147

Tob é um projeto divino criado para o ’adam, mas este erroneamente o distorce em “canseira”

e “trabalheira má”. Este projeto divino se opõe ao

“projeto” do v.7a que “oprime” o “empobrecido” e “rouba” o “direito” e a “justiça” e onde estão as “lágrimas dos oprimidos” (4,1). O curioso é que não é só o “bom” de Gênesis que Coélet emprega aqui. Se observarmos com atenção perceberemos que nas 33 vezes que o primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4a) se refere a Deus, sempre utiliza o nome em hebraico ’elohim. Nunca usa Javé. Da mesma forma no livro de Coélet, das 38 vezes que se refere a Deus, sempre utiliza o nome em hebraico ’elohim. Nenhuma vez Javé. De aí que suspeitamos que o referencial de Coélet para construir seu projeto de vida para o ’adam é o primeiro relato da criação no livro do Gênesis. Uma vez demonstrado ao ’adam o “bom” que vem de Deus, o qual ele deixa de experienciar por ocupar-se com coisas vazias, Coélet termina sua reflexão poética mostrando o porque o “comer”, “beber” e “ver” é “bom”: Eis que não recordará muito os dias da sua vida. Eis que Deus ocupa em alegria o seu coração (v.19). Primeiramente é apresentada a razão em relação à vida passada: “eis que não recordará muito os dias da sua vida”. O conjunto desta frase relacionase “aos dias da vida” do ’adam, abordados nos blocos anteriores, onde estava contaminado pela doença das preocupações, das competições, das insônias, das canseiras e das irritações. A chave desta frase está na forma verbal “recordará”. Em sua obra, além do verbo, Coélet usa também o substantivo “memória”. A forma verbal é normalmente usada no sentido negativo: lembrar-se dos dias da desgraça (12,1), dos dias da escuridão (11,8). O substantivo é mais utilizado no sentido positivo: memória do nome (2,16) e lembrança dos antepassados (1,11). Em ambos os casos, lembrar-se não significa apenas um trazer à mente 148

experiências do passado, mas, revivê-las, torná-las vivas (Gn 9,15.16; Ex 20,8.24). Portanto, “não recordar” significa que nos dias do “bom” de Deus, não existirão as árduas experiências vividas pelo ’adam enquanto rico. E é exatamente isso que mostra a última frase da perícope: “eis que Deus ocupa em alegria o seu coração”. Notemos que as duas últimas frases começam com um dos sinais característicos de Coélet nesta perícope, a conjunção “eis que”. Ela sempre se apresenta nos momentos conclusivos do texto. É uma forma para dar ênfase ao que foi dito ou chamar a atenção para o que vai ser dito. Como para dizer, atenção: Isso é importante! O particípio ma‘aneh “ocupado” representa ser o centro das atenções desta frase final. A raiz verbal também pode ser traduzida por revelar-se, de maneira que ela implica na própria concepção de Deus. A forma ma‘aneh revela um Deus que alegra o coração do ’adam. Contrário do kesep, que irrita, adoece e enfurece. O substantivo leb “coração” tem um sentido muito amplo. Coélet usa essa palavra nada menos que 41 vezes. Seu emprego está muito relacionado ao ato de refletir e meditar. Nesse aspecto, percebemos aqui um confronto entre a sabedoria e o pensar da filosofia grega, ligado ao exercício mental, com o refletir e o meditar semita, ligado ao coração: “Deus colocou a eternidade no coração” (3,11). Essas oposições ampliam as diferenças dos dois projetos de vida em jogo, já apontados em nosso texto. E, finalmente, a expressão “alegria do coração” mostra mais uma diferença em relação ao bloco anterior. Enquanto que aquele terminava em “irritação”, “doença” e “fúria”, este termina “na alegria do coração”. Concluímos que “comer e beber e ver das obras” é o “bom” que vem de Deus e que traz muita alegria no coração. Resumindo brevemente este capítulo, percebemos que o texto (5,7-19) apresenta quatro unidades coesas entre si. A primeira (v.7-8) mostra a 149

“opressão” existente na “província” à causa de um poder internacional hierarquicamente estruturado, cujo objetivo final é o “lucro”. A segunda (v.9-11), cujo raio de ação abrange o contexto interno, revela que o motor dessa opressão é o “amor ao dinheiro”. A terceira (v.12-16) mostra que esse “amor ao dinheiro” leva ao acúmulo de bens chamado por Coélet de “mal doentio”. Na quarta e última (v.17-19), Coélet introduz uma alternativa que vem de Deus, contrária a toda prática mostrada nas unidades anteriores. Em síntese, encontramos neste texto (5,7-19) duas realidades antepostas: uma criada e vivida pelo ’adam e a outra dada por Deus. Uma, complexa, cansativa, opressora, doentia e infeliz, e a outra, simples e alegre. Uma, vivenciada pelos estrangeiros, administradores, reis, e comerciantes, e a outra, pelo empobrecido e o escravizado. Uma, que não se sacia e não deixa dormir, e a outra, que sacia e que produz um sono é gostoso. Uma, que entra para o banco e sai do país, e a outra, que só entra na cozinha. Uma, que é “mal doentio” e a outra, que é “bom”. Uma, fomentada pelo kesep e a outra, por Deus. Terminada a análise exegética de Ecl 5,7-19, pretendemos a seguir fazer a releitura de todo o estudo partindo das conclusões, com especial atenção às categorias sociais.

3. Relendo o texto

O processo da releitura será feito por um caminho inverso daquele que vínhamos seguindo. Vamos olhar o texto a partir dos resultados alcançados pela exegese nos caps.III e IV, situá-lo dentro do contexto apresentado no cap.II e estabelecer um vínculo com os ensaios do cap.I.

150

3.1 A sociedade que transparece em Ecl 5,7-19

Na análise do conteúdo encontramos na primeira unidade (v.7-8) uma ênfase na estrutura social e administrativa existente nos dias de Coélet. Além dessa ênfase inicial, vimos também, no decorrer do texto, vários personagens que ajudam a vislumbrar melhor essa divisão social. Elencamos os seguintes: “empobrecido” (v.7), “superior” (v.7, 3x), “rei” (v.8, 2x), “amante do dinheiro e da abundância” (v.9), “devoradores” (v.10), “senhor” (v.10 e v.12), “escravizado” (v.11), “rico” (v.11), “filho” (v.13), “mãe” (v.14), ’adam (v.18). Distinguimos aqui, de maneira geral, três categorias sociais: Primeira categoria: o “empobrecido” e o “escravizado”; Segunda categoria: o “amante do dinheiro e da abundância”, o “senhor”, o “rico”, o “filho” e o ’adam; Terceira categoria: o “superior”, os “devoradores” e o “rei”. Na

primeira

categoria

podem

ser

distinguidos

dois

níveis,

o

“empobrecido”, que ainda tem direitos e talvez alguma posse, e o escravizado, sem direitos. Na segunda categoria, o personagem típico é o’adam, que Coélet identifica como comerciante. Podemos caracterizar essa categoria como grupo econômico. Na terceira categoria estão os administradores, a hierarquia do estado, com seus funcionários, e o próprio rei. As duas últimas categorias estão intrinsicamente ligadas e às vezes se confundem. Ambas buscam o “lucro” comercial e muitas vezes realizam as duas funções: são comerciantes e estão a serviço do rei.

151

Para compreender melhor como estava organizada esta estrutura social e administrativa propomos o seguinte esboço piramidal. Na base estavam os escravos: homens, mulheres e crianças (2,7; 5,11; 6,8). Como mencionamos anteriormente, o motor que colocava em movimento a máquina do sistema helenista era o escravismo. Mesmo durante o domínio persa, o escravismo já se intensificara, bem como o comércio de escravos (Ne 5,1-5). Neemias fala que 1/7 da população total de Jerusalém era escrava (Ne 7,67). Quando o império grego surge no horizonte o escravismo se impõe forçosamente como novo modo de produção. No início do império, mais da metade da população na Grécia era escrava. Por volta do ano 300 a.C. foram contados 400 mil escravos em Ática. Muito perto dos escravos estão os que Coélet chama de empobrecidos: “aí estão as lágrimas dos oprimidos, e não há quem os console” (4,1). Coélet sempre mostra um apreço por este grupo (4,13; 9,15.16). Como vimos em 5,7, o rax “pobre” faz parte desse grupo. Tudo indica que são os camponeses que viviam nas aldeias e que estão perdendo a terra para os grandes proprietários. Esse também ainda é um grupo grande, mas que pouco a pouco vai diminuindo e engrossando a fila dos escravos. Essa multidão, empobrecidos e escravos, é, portanto, a superfície sobre a qual se apoiam os demais grupos. Logo depois dos escravos e empobrecidos estão os comerciantes, uma nova categoria social emergente fomentada pelas ideias helenistas. São ávidos de “riquezas”, “amam o dinheiro e não se saciam de dinheiro” (5,9). São os que consomem os produtos do campo. Depois dos comerciantes, às vezes entre eles, vem a hierarquia administrativa do império. Essa hierarquia tinha em primeiro plano o rei, que se

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considerava filho do deus Amon-Rá.135 Ele era o proprietário das terras, de tudo o que elas produziam e até das pessoas.136 Em segundo plano estava o ministro das finanças (dioketes), que tinha o seu centro financeiro em Alexandria. No tempo de Ptolomeu II Filadelfo, o ministro das finanças era um tal Apolônio (2Mc 3,5). Esse ministro tinha um secretário das finanças chamado ecônomo (oikonomos). Sua principal função era coletar os impostos e canalizar todo o lucro que vinha do comércio dos produtos do campo e dos pedágios para o rei em Alexandria. Na província de Judá, essa função estava a cargo de um tal Zenão e da família dos tobíadas. No mesmo nível dos tobíadas estava o sumo sacerdote que governava o país. O administrador das finanças tinha ao seu lado um oficial militar (strategos) 137 e uma enorme quantidade de funcionários distribuídos nos diferentes níveis da hierarquia administrativa138. Entre todos esses níveis havia uma forte presença de vigias delatores do rei.139 Coélet denuncia essa ampla estrutura opressora e ávida de “lucro”. Sua crítica maior, porém, se dirige a um grupo que nós denominamos comerciantes e que Coélet chama de ’adam. Quem são esses comerciantes? Acreditamos não se tratar daqueles pequenos comerciantes que vinham na praça da cidade140, alguns até aos sábados, para trocar ou vender os “produtos do campo”, tirando daí a sua precária sobrevivência. O alvo de Coélet não são eles, mas, os abastados proprietários judaítas de Jerusalém e arredores que encontram no comércio um negócio propício para aumentar suas rendas em conluio com o poder ptolomaico. 2Mc 3-4 retrata bem a disputa existente em Jerusalém pelo controle do mercado. De um lado o grupo da aristocracia 135 “Obedece a ordem do rei porque ele faz o que lhe agrada. Porque a palavra do rei é soberana, e quem lhe diria: ‘que estás fazendo’?” (8,2-4). 136 “Mas, o lucro de toda a terra é para ele” (5,8). 137 “Ai de ti país governado por um jovem, e cujos oficiais comem desde o amanhecer” (10,16). 138 “Eis que: um superior tem outro superior vigiando e estes têm outros superiores sobre eles” (5,7). 139 “Cuida de teus passos quando vais à Casa de Deus” (4,17); “nem em pensamento amaldiçoes o rei, não amaldiçoes o rico, mesmo em teu quarto, pois um pássaro do céu poderia levar a voz, e um ser alado contaria o que disseste” (10,20). 140 O coração, o centro, da polis era o mercado, ou a ágora, em torno da qual estava organizada a cidade.

153

sacerdotal, que queria manter o estilo mais tradicional de troca, e por outro, o grupo que defendia a helenização da cidade.141 Na polis o direito da cobrança de impostos passou a ser arrendado a comerciantes particulares. Isso possibilitava aos nobres de participar da exploração econômica do seu povo. Já não eram mais os líderes locais que faziam essa cobrança, mas comerciantes inescrupulosos. Esse é o caso de José Tobias, que adquiriu o direito de cobrar impostos e enviá-los ao soberano, função esta que antes era do sumo sacerdote Onias. Onias foi exonerado do cargo por se recusar a pagar o tributo de 20 talentos. José Tobias ficou nesse rentável cargo por vinte e dois anos.142 Suas vítimas são os camponeses, que, se não eram escravos, estavam em vias de. Vendiam e compravam seus compatriotas, homens, mulheres e crianças. Não lhes importava a religião, a cultura ou valores. Eles estavam do lado onde havia dinheiro. Uma das cartas de Zenão ilustra muito bem esta realidade. As cartas de Zenão foram achadas no início do século XX, a oeste do Rio Nilo, perto de Alexandria. Zenão era secretário de finanças de Apolônio, ministro da economia de rei ptolomeu II Filadelfo (282-246). Em uma destas cartas, Zenão relata uma viagem de negócios à província da Síria e Fenícia em 259 a.C. Nesta viagem lhe acompanha uma comitiva de 77 pessoas. Destas, dozes levam nomes semíticos e as demais, nomes gregos. Todos são comerciantes e homens de negócios. A comitiva se dirige primeiro à casa do sumo sacerdote Onias II, sogro de Tobias, em Jerusalém, e depois para a casa de Tobias. Todo o relato gira em torno de negócios: rendimento da última 141

O conflito por causa do comércio na cidade tem raízes profundas. Já desde os tempos de Neemias, quando foi proibido o comércio aos sábados, esse conflito vem se arrastando (veja Ne 13,15-22).O estopim que mais tarde dá o início à revolta dos macabeus foi exatamente a disputa pelo comércio da cidade de Jerusalém. É o que relata 2Mc 3,4 “um certo Simão da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”.

142

José Ademar Kaefer. “Bem-aventurado aquele que perseverar” (Dn 12,12) - Uma introdução ao livro de Daniel. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – RIBLA – N. 52. Petrópolis: Vozes, 2005, p.168. 154

colheita, as próximas compras, o controle dos agentes fiscais e relações econômicas aconselháveis.

Durante a estadia na casa de Tobias, a carta

relata a compra de uma escrava por Zenão. A escrava se chamava Sfragis e tinha somente sete anos. Seu ex-dono se chamava Nicanor, um dos aliados de Tobias, que a vendeu por cinqüenta dracmas. O contrato especifica que a compra aconteceu na Birta de Amanítida, sede da família dos Tobias. Entre categorias sociais que apresentamos acima, havia também os grupos religiosos, que, em diferentes níveis, tinham sua parcela de poder. Na sociedade bíblica não é correto separar o poder religioso do poder político e econômico, pois, estes se encontravam entrelaçados, contudo, para a melhor compreensão desses grupos, vamos analisá-los em separado.

3.1.1 O poder religioso

Na apresentação do contexto histórico falávamos dos grupos religiosos existentes em Judá. Depois do exílio foi instituído em Jerusalém um governo teocrático. A autoridade máxima era o sumo sacerdote. O Templo passou, então, a ser o centro do poder religioso, político e econômico. A maioria das leis tratava do culto e das oferendas. Nos dias de Coélet distinguimo em Jerusalém dois grupos de sacerdotes. Um é o grupo sadocita, que logo após o exílio vivia mancomunado com o poder persa e depois com os gregos. Ele é quem controla o Templo. São os sacerdotes pertencentes a esse grupo que aderiram plenamente ao helenismo, mudaram de costumes, refizeram seu prepúcio, construíram um ginásio junto ao Templo de Jerusalém e já não mostravam nenhum zelo pelo serviço do altar (1Mc 1,11-15; 2Mc 4,7-20).

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O outro grupo de sacerdotes em Jerusalém, no tempo de Coélet, é contrário ao primeiro. É zeloso quanto às leis do culto, é contra os rituais gregos e um ferrenho defensor das tradições judaicas. Há ainda dois grupos religiosos que viviam fora de Jerusalém. Um é remanescente do segundo grupo de sacerdotes de Jerusalém, mas, é mais radical e acredita que Jerusalém não tem mais salvação. Seus membros se consideram a raça pura de Israel. Retiram-se da cidade e passam a viver em comunidades fechadas no deserto à espera do dia da intervenção divina, no qual combaterão como os eleitos do messias que virá. O outro é um grupo de sacerdotes levitas, sem muita ligação com o Templo de Jerusalém. Sua atividade religiosa está voltada às pessoas que vivem nas aldeias e se dedicam ao cultivo da terra. Esse grupo é possivelmente remanescente do grupo do Terceiro Isaías, que ainda traz em seu bojo valores do estilo de vida tribal. Perto desse grupo há outro que é composto de mulheres, que não têm nenhuma relação direta com o Templo de Jerusalém. Seu centro de ação é a casa e, a partir dela, influenciam na organização social, e inclusive, na composição literária da Bíblia. São mulheres clânicas.143 O estudo de Ecl 5,7-19 tem revelado que devemos procurar Coélet entre esses dois últimos grupos. Não é possível distinguir se é homem ou mulher. Não parece ser levita, ainda que essa hipótese não está descartada. Coélet não mostra muito apreço ao templo, em 4,17-5,6 aconselha os camponeses a tomar cuidado quando forem ao templo. Recomenda prudência: não falar muito, não fazer sacrifício, não fazer promessa. Basta o temor a Deus. A análise do texto mostrou ainda que Coélet parece ter sua origem no campo, nas aldeias do interior de Judá. Suas reflexões parecem ter a referência do dia a dia das comunidades, dos clãs da terra. Por isso, 143 Veja tese de Helder Blessa Kanashiro. A influêndcia das mulheres clânicas no pensamento profético do pós-exílio. Um estudo de Isaías 61,1-21. São Bernardo do Campo: UMESP, 2015. 156

acreditamos que, mais que uma mulher ou homem, Coélet retrata um grupo, uma comunidade que continuamente se reúne para refletir sobre os problemas do seu povo. Nesse sentido, o verbo “reunir” qhl, de cuja raiz vem o nome Coélet, não se refere “àquele que reúne a assembleia”, mas à própria assembleia ou comunidade. Coélet é o pseudônimo da comunidade, é a “reunida”.

3.1.2 Uma organização social em busca do “lucro”

Como já foi demonstrado no estudo sobre o conteúdo, o som que sobressai na orquestra da nossa poesia é o do instrumento econômico. Este som se ouve mais forte na segunda e terceira unidades do texto em questão (v.9-16). A linguagem que predomina é a ligada à riqueza. Vejamos: “lucro” (v.8 e v.15), “campo” (v.8), “dinheiro” (v.9, 2x), “abundância” (v.9), “produtos do campo” (v.9), “aumentar” (v.10, 2x), “bens” (v.10), “vantagem” (v.10), “riqueza” (v.12, v.13 e v.18), “canseira má” (v.13), “trabalheira” (v.14, v.15, v.17 2x e v.18), “fortuna” (v.18). Destas palavras, a que melhor resume as demais é a riqueza, preferencialmente “riqueza guardada” (v.12). E, como vimos na exegese, “riqueza guardada” significa “dinheiro guardado”. O texto nos revela que em torno desse centro “riqueza guardada” existe um conflito. Este conflito se traduz na busca do “lucro”, da “vantagem” e do “aumentar os bens”, e tem sua origem no amor ao kesep “dinheiro”. E é para lá que converge a crítica de Coélet. O que há por trás desse conflito? Por que essa denúncia do amor ao kesep e a conseqüente crítica de uma maneira tão severa? Quais as forças históricas que conduziram a isso?

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Existe uma forte tendência dos estudiosos em localizar o livro de Coélet entre o final do século IV e final do século III a.C. Esse é o período em que os ptolomeus, a partir do Egito, reinavam sobre Judá. Nesse período se impunha no mundo dominado um novo sistema de desenvolvimento, conhecido como helenismo. Judá, como parte do império ptlomaico, não ficou isenta das influências desse novo sistema. Ao contrário, grande parte da elite de Jerusalém recebeu de muito bom grado as ideias helenistas. O coração deste novo sistema era a sua economia impulsada pelo novo dinamismo comercial. O comércio por sua vez era agilizado pela intesificação do uso da “moedadinheiro”. O texto estudado de Ecl 5,7-19 revelou essa magnitude econômica. Por isso entendemos que temos elementos suficientes para precisar melhor a data da composição do livro de Coélet. O período que melhor corresponde é o reinado do rei Ptolomeu Filadelfo (282-246) ou de Ptolomeu III Evergetes (246222). Esse é o tempo em que os ptolomeus reiniciam a guerra com os selêucidas. A guerra exige mais divisas oriundas das províncias do império, bem como de terras para os soldados. Isso explica a opressão e a disputa pela terra (v.7-8). É também um período tardio em que as poleis “cidades” gregas já estão em pleno auge, inclusive Jerusalém, o que explica a cobiça pelo “dinheiro”, tema predominante em todo texto analisado. Visto desse ângulo, é mais seguro situar o livro de Coélet no reinado de Ptolomeu II Filadelfo (282246). Várias cartas dessa época revelam que a atividade comercial em Judá durante o reinado de Filadelfo, foi muito intensa. Além disso, esse período não distancia muito a obra de Coélet de Primeiro Macabeus. De modo que, vemos em Coélet um dos precursores do movimento macabaico. Já desde as conquistas de Alexandre Magno começa uma intensificação progressiva de cunhagem de moedas. Ela consistia em ouro, prata e bronze. Foram encontradas muitas moedas dessa época, como o tetradracma com a figura de Alexandre, de Ptolomeu I Soter, de Seleuco I Nicator, de Antíoco III o

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grande, de Antíoco IV Epífanes, cunhadas no Egito e na Síria144. As moedas de prata eram mais comuns e dominavam o comércio, principalmente porque seu valor era menor. O valor correspondente era de 20 moedas de prata por 1 de ouro145. No entanto, a maior quantidade de moedas achadas em várias escavações data do período de Ptolomeu Filadelfo (262-246 a.C.). Período esse em que situamos a nossa perícope, e consequetemente o livro de Coélet. As moedas cunhadas por Ptolomeu II Filadelfo excederam as do seu pai em quatro ou cinco vezes, e a pré-ptlomaica, ática, fenícia, árabe-filisteia e alexandrina em oito vezes146. De maneira que é possível afirmar que a cunhagem de moedas se instituiu de fato com Ptolomeu II Filadelfo. E foi ele quem finalmente introduziu o novo sistema monetário na Palestina, suplantando largamente a troca. Após Ptolomeu II Filadelfo acontece um grande declínio da cunhagem. A causa da queda pode ter sido o grande estoque cunhado por Filadelfo ou, então, a diminuição da atividade comercial. Estamos, portanto, no tempo dos ptolomeus, em plena economia helenista. Entendemos agora o porquê da crítica tão severa ao kesep “dinheiromoeda” Olhando a partir do contexto contemporâneo, onde as relações sociais, econômicas e políticas são mediadas pelo dinheiro e onde é impossível conceber as relações de troca sem dinheiro, pode parecer estranho esta reação de Coélet diante do kesep. Para isso é preciso remontar à sociedade primitiva, onde vigorava o sistema de troca, e onde, em um dado momento, nos dias de Coélet, o “dinheiro” surge em meio à elite de Jerusalém e se torna senhor das relações. É difícil imaginar os efeitos causados por esta inovação 144 Veja Frederic W. Madden, History of Jewish Conage, Pegasus Publishing, San Diego, 1967, p.22. 145 Hans G. Kippenberg, op. cit., p.47. 146 Martin Hengel, op. cit., p.43-44.

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na economia daquele povo. As coisas, os bens primários e as produções em geral, passam a ter valor diferenciado. Sua validade não está mais para utilidade, enquanto satisfação das necessidades, mas para um valor social, enquanto valia comercial. Ademais, as pessoas, comerciantes, efetivamente, começam a perceber que o “dinheiro” pode lhes fornecer um poder dantes imaginável, um poder incontrolável. A introdução do “dinheiro” na economia primitiva é desastrosa para a população pobre. Num sistema de troca, a própria natureza impõe limites naturais para as necessidades humanas. Porém, quando o dinheiro passa a ser o elemento intermediário do intercâmbio, os limites naturais para as necessidades físicas desaparecem. No lugar da necessidade surge então o desejo. Enquanto a necessidade tem os seus próprios freios naturais, o desejo é incontrolável, não tem limites. É por isso que o desejo do ’adam não se sacia nunca, come e come mas não enche: “Todo trabalho do ’adam é para a sua boca, no entanto, seu apetite nunca se sacia” (6,7) Outro elemento diferenciado é que, com a introdução da moeda como valor exclusivo de troca, começa uma transação entre indivíduos independente de qualquer relacionamento social. O outro passa a ser visto apenas por aquilo que possui, enquanto bem comercial. No sistema de trocas, o “dinheiro” não tinha qualquer sentido, era tolice, pois não podia ser comido e nem servia para a satisfação de qualquer necessidade básica da vida. Ali o que é bom é aquilo que se pode consumir. Com o comércio, movido pelo sistema helenista, surge um novo tipo de riqueza que não tem limites. No sistema de trocas, a riqueza que existia era a doméstica, aquilo que servia para a cozinha. Esta tem limites, a outra não. Praticamente podemos dizer que, no sentido em que o termo é entendido, a riqueza surgiu com o comércio. É dessa riqueza que trata Coélet.

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Com a introdução do “dinheiro” desaparecem os limites da riqueza e cresce a ambição humana a tal ponto que vira doença. Ou seja, o ’adam acaba cavando seu próprio túmulo. Serve como ilustração a conhecida lenda do ambicioso Midas, ao qual foi concebido um desejo e, como era um ganancioso insaciável, pediu que tudo ao seu redor se transformasse em ouro. Cumprido o desejo, morreu de fome. Com a introdução do “dinheiro” há, portanto, uma mudança muito grande na economia dos povos conquistados. Sua função, no entanto, não visa apenas uma relação comercial mais eficaz. O motivo primeiro da introdução de “dinheiro”, ainda durante o império persa, era de interesse do estado para aprimorar a cobrança dos tributos. No tempo dos Ptolomeus, essa prática se intensificou. Como Judá não tinha minas de prata era obrigado a vender seus produtos agrícolas para adquirir o “dinheiro” exigido. O problema maior era a fragilidade de sua economia, ela oscilava conforme soprava o vento da política comercial, e por isso as moedas nuca tinham um valor fixo. O “dinheiro”, de outra parte, ajudava também na defesa do próprio império, pois facilitava a manutenção de exércitos mercenários. Se antes a obtenção de alimentos para as tropas era requerido por meio do uso da força, criando sempre um grande descontentamento popular, agora essa ação acontece em forma de pagamento de moeda. Cada soldado passa a receber uma determinada quantia em “dinheiro” e ele mesmo busca o seu sustento. Se o comandante das tropas não tinha “dinheiro-moeda” ao seu dispor, ele próprio as cunhava com algum material inferior. Um texto de Aristóteles, citado por Yvon Garlan147, mostra essa manipulação monetária: “Na expedição conduzida por Timóteo contra Olinto em torno de 360 a.C., ‘desprovido de moedas de prata’, ele mandou cunhar uma moeda de bronze e a distribuiu aos soldados e lhes disse que os traficantes (que seguiam o exército) e os comerciantes 147

Yvon Garlan, Guerra e economia na Grécia antiga, Editora Papirus, São Paulo, 1991, p.5758. 161

do país lhes venderiam da mesma maneira todos as mercadorias. Por outro lado, anunciou aos traficantes, que, quem aceitasse essa moeda, poderia em seguida utilizá-la para comprar os gêneros alimentícios do país, bem como os produtos do butim. E que as moedas de bronze que lhes restassem, poderiam ser trazidas e trocadas pelas de prata”. Em forma de síntese, denota-se que o “dinheiro-moeda” se tornou a mediação para alcançar a posse de riquezas, de bens e de produtos do campo. Além disso, a introdução da cunhagem de moedas facilitou a remuneração do exército e sua manutenção. Por isso a corrida desenfreada à sua procura, a ponto de se tornar uma doença. Esta búsqueda febril se dá mediante uma organização social bem estruturada e mediante uma correlação de forças entre grupos, onde o “empobrecido” e o “escravizado” são apenas instrumentos de trabalho. Entende-se, portanto, as razões e a dimensão da crítica de Coélet.

3.1.3 O conflito entre dois sistemas

Ecl 5,7-19 retrata um claro confronto ideológico entre duas maneiras distintas de pensar e viver. Por trás destes dois modos de vida se esconde um grande conflito entre dois sistemas econômicos: um, da produção voltada para o consumo, do comer e beber; e outro, da produção voltada para o comércio, tendo no “dinheiro” a sua maior expressão. Este último dá origem a um novo grupo social, os comerciantes e ricos proprietários, intensifica o escravismo e o comércio, cria um novo conceito de trabalho, introduz o “lucro” e supervaloriza o kesep. Estes dois sistemas confrontam também duas culturas: a primeira, protagonizada pelo povo de Israel, cuja economia ainda guardava fortes traços do modo de vida tribal, que por sua vez tinha como eixo a produção do campo e a troca. A segunda, protagonizada pelo povo grego (filhos de Jefté), extranggeiros, cuja economia estava voltada ao comércio, ao “dinheiro” e ao acúmulo. 162

Nosso texto, por conseguinte, está localizado numa encruzilhada histórica e é fruto de um período muito turbulento. Nesse turbilhão, ideias e anseios vão se comprimindo até desencadear o inevitável.

3.1.4 O cotidiano do “oprimido”

Muito já temos visto sobre o estilo de vida do comerciante. Pouco, porém, sobre a vida do povo do campo. Coélet, infelizmente, não traz muitos dados sobre o dia a dia do camponês. Mesmo assim, é possível apresentar um breve esboço. O povo do campo, o camponês que ainda gozava de certa liberdade, vivia em pequenas aldeias ou vilarejos. Ali sobrevivia cultivando o solo e criando animais pequenos, como a ovelha e o cabrito. Produzia para si, para o dono da terra, para a estrutura do governo, com seu exército, e para o templo. A preocupação era basicamente com comida. Essa era a sua maior necessidade, quase a única. O cotidiano nas aldeias era rotineiro. Os afazeres eram quase sempre os mesmos. Todos se conheciam e quase todos tinham algum laço de parentesco. Isso contribuía para a partilha e a ajuda mútua nos momentos de carestia, de doença e de desastres naturais. Como a água era muito escassa, as povoações sempre ficavam perto de algum poço, que em não poucos casos era motivo de disputas. Todos se serviam da mesma fonte. O poço era, portanto, a maior riqueza da aldeia. A forma quase sempre circular de distribuir as casas na aldeia auxiliava na proteção contra os assaltos de bandos armados. Não lhes era possível, no entanto, resistir aos assaltos do exército, quando este, por exemplo, vinha requisitar os impostos. 163

A maior fonte de alimentação era o trigo, a cevada e o azeite de oliva. E, em algumas oportunidades, a carne. Todos comiam pão. O cultivo, porém, não era muito fácil. Havia total dependência das condições climáticas, que nem sempre eram favoráveis. O ataque de pássaros e de pragas, como gafanhotos e outros insetos, era constante. Às vezes faltava chuva, às vezes vinha em excesso, às vezes vinha o vento quente do deserto e as tempestades. Tudo isso prejudicava a agricultura. Sem falar da grande parcela da produção que era retida para pagar os tributos. Em alguns lugares havia possibilidade de fazer irrigação. A colheita do trigo ou cevada, como o plantio, muitas vezes era feito em comum. Uma vez ceifado, os feixes eram levados para a eira onde com o auxílio de um bordão eram debulhados. Depois de separar o grão da palha, o vento ajudava na retirada das impurezas. Terminado o processo da colheita o trigo era guardado em grandes potes de cerâmica e estocados no fundo da casa. Para conservar melhor o produto, se costumava enterrar os potes. O final do plantio e da colheita normalmente era acompanhado com uma grande festa celebrativa. A produção, comparada aos padrões modernos, era muito inferior. A média era de três a quatro por um. Desse total, uma parcela tinha que ser guardada para o plantio do ano seguinte, uma parcela para o dono da terra e para os impostos e a outra para o consumo. No chão, no centro de cada casa tinha um pequeno pilão de pedra usado para amassar o trigo. Junto ao pilão, se fazia o fogo. Este servia para aquecer a casa no inverno, para assar o pão e para fazer outras comidas. O pão era assado sobre uma pedra ou no chão aquecido pelo fogo. Também se comiam os grãos crus ou tostados. Outra grande fonte de alimentação era o óleo retirado da azeitona. Praticamente em todo território de Judá se plantavam oliveiras. A árvore é relativamente grande e se as condições climáticas forem favoráveis ela produz todo ano. 164

O processo de fabricação do azeite era muito simples. Uma vez recolhido, o fruto era colocado numa moenda, um recipiente de pedra que tinha o formato de uma bacia. Ali ele era amassado manualmente com um pequeno rolo de pedra. No fundo do recipiente havia um orifício por onde escorria o azeite. Depois, a polpa era separada da semente e comprimida num recipiente à parte até a retirada total do óleo. Esse processo podia ser feito na eira, quando quantidade era maior, e em conjunto com os demais membros da aldeia, ou em casa. O óleo de oliva era uma das maiores fontes de energia na dieta do povo das aldeias. Ele era a base de muitos alimentos e podia ser combinado com o pão. Além de servir como alimento, o azeite era usado também como remédio, pomadas, ungüentos, produto de beleza e como combustível para as lâmpadas. A colheita do trigo e das azeitonas acontecia em estações diferentes do ano. O trigo no final do inverno e a oliveira no final do verão. Isso contribuía para que houvesse maior rotação alimentar. O cultivo de uvas também fazia parte da cultura do campo, apesar de que em quantidade bem menor. O processo de extração do suco da uva era semelhante ao do fruto da oliveira. O vinho, por ser um produto nobre, era designado praticamente em sua totalidade para a paga dos tributos. O consumo de carne era ocasional. A carne mais comum era de animais de pequeno porte, como a ovelha e o cabrito. O boi e o jumento eram normalmente usados para arar a terra e como meio de transporte. A caça era muito rara.

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Um alimento muito comum era o leite de cabra, do qual se fazia coalhada e queijo. As frutas também eram comuns. Algumas eram cultivadas e outras silvestres. Entre as mais habituais estavam: figo, tâmara, romã, abricó, noz e amêndoa. A estação da colheita das frutas era o final do verão ou início do outono. Porém, era costume secar as frutas, como o figo e a tâmara, para guardá-las para o inverno, quando a alimentação era mais escassa. Podemos ainda destacar alguns outros alimentos tirados diretamente da natureza, como o mel, a vage, lentilhas, plantas silvestres, raízes etc. Toda família ou clã estava envolvido no processo de produção. Cada qual se encarregava de conseguir a porção para o seu sustento, bem como para o pago de tributos. Arar a terra era comumente o trabalho do homem. O plantio e a colheita normalmente envolvia todo o clã. As mulheres preparavam a comida, buscavam água, a lenha para o fogo, tostavam grãos, e assavam pão. Outro trabalho importante dos afazeres domésticos da mulher era a tecelagem (1Sm 2,19; Pr 31,13. 17.24). A tecelagem era feito da lã da ovelha e dos pelos da cabra. A lã era o material mais comum para o vestuário. Podia ser branca ou escura. Também podia ser tingida (Pr 31,22). O couro não era muito usado para fazer roupa, e sim para fabricar cintos, alças, cordas, sandálias etc. Seu manuseio exigia certa destreza. Por isso, nem todos sabiam fabricar peças de couro. Outro trabalho muito comum nas aldeias era a cerâmica. Fabricavam-se potes grandes para guardar cereais, potes menores para buscar água, para

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colocar leite e azeite, jarras para vinho, lâmpadas etc. Boa parte desses utensílios era requisitada pelo dono das terras e comercializada. Ainda que pareça o contrário, o trabalho na aldeia não era intensivo. Uma vez solucionado razoavelmente o problema da alimentação, o resto do tempo ficava ocioso para descanso, visitas, passeios, festas, jogos, caças etc. Não havia muita preocupação com o amanhã. Não era costume estocar muito cereal. Nem convinha, pois se houvesse estoque, o dono das terras, ou o exército o tomava. Por isso, antes da colheita, a comida era sempre muita escassa. Se acontecesse alguma intempérie, seca ou ataque de pragas, a aldeia passava fome. O ritmo era viver o dia a dia. Normalmente nas aldeias não havia pessoas com diferentes níveis econômicos. Todos eram pobres e a pobreza era partilhada. Quando havia comida todos comiam. Se havia pouco, todos comiam pouco, se muito, todos comiam muito. A amizade, o parentesco e o apadrinhamento ajudavam na divisão eqüitativa dos alimentos. Essa partilha garantia o equilíbrio social nas aldeias. Outro aspecto importante na vida do povo das aldeias do interior de Judá eram as festas religiosas. Normalmente se tinha muito tempo disponível para estas festas, que podiam durar vários dias. Pouca coisa era necessária para celebrar. De maneira que, as festas eram constantes e no seu transcorrer a vida do dia a dia não mudava muito. A proposta de Coélet, de que o bom é “comer, beber e ver”, tem suas raízes neste modo de vida apresentado acima. Evidentemente que este estilo de vida não é um paraíso, mas permite certa liberdade ao camponês. Essa liberdade é perdida quando se impõe o escravismo.

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4. Atualizando Coélet

Um senhor conhecido por “Tião”, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, do acampamento 5 de Itapeva, quando vem a São Paulo para as reuniões do movimento costuma se hospedar em nossa casa. Num de seus pernoites nos falou: “é incrível, a gente chega à cidade e encontra os supermercados abarrotados de alimentos, mas, se você não tem dinheiro, você morre de fome”. Chegando ao final desse estudo, queremos abrir a porta para lançar um olhar sobre a nossa realidade histórica. Que incidência tem a reflexão de Coélet sobre a nossa cultura do dinheiro? O projeto de Coélet ainda faz algum sentido hoje? Em 1997 o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento apresentou o seguinte panorama da situação em que população mundial se encontra:

“O número absoluto de pobres no mundo tripolicou em 50 anos e chega a 1,3 bilhão de pessoas, pouco superior à população da China e equivalente a 22,8% do total mundial (5,7 bilhões de pessoas). Em 1947, o total de pobres correspondia a cerca de 17,4% da população mundial. No mesmo período, as riquezas mundiais cresceram sete vezes, e o número de ricos dobrou, ampliando as desigualdades sociais. Os 20% mais pobres do mundo detêm só 1,1% das riquezas, e a subnutrição afeta 840 milhões”148.

148

Folha de São Paulo, 17 de outubro de 1997, caderno 1, p.1. 168

Do outro lado desse mundo da miséria extrema reina a riqueza. Conforme o relatório publicado recentemente pela ONG britânica Oxfam, a renda líquida que só as 100 pessoas mais ricas do mundo, entre elas dois brasileiros, alcançaram entre os anos de 2012 e 2013 foi de 240 bilhões de dólares. Esse total poderia acabar quatro vezes com a pobreza extrema do planeta. O total da fortuna desses cem homens subiu para o inacreditável patamar de 2.1 trilhões de dólares.149 Outro cenário tão ou mais absurdo que o acúmulo de riqueza frente à extrema pobreza de milhões de pessoas é a nefasta fabricação de armas. Cada ano são gastos cerca de 1.5 trilhões de dólares na produção de armas,150 cujo fim é matar vidas. Este dinheiro seria mais que o suficiente para garantir que todo ser humano tivesse condições dignas de sobrevivência, o que significa: moradia, alimentação, água potável, acesso ao cuidado da saúde, à eletricidade e à educação. Ou seja, seria mais que o suficiente para erradicar a pobreza do planeta. Sabe-se que o comércio de armas é uma das maiores fontes de renda do sistema de mercado atual. É esse mercado que elege presidentes e determina as guerras. Os maiores produtores de armas são: EUA, Rússia, China, Alemanha, Reino Unido e a França. Exceto a Alemanha, os outros são precisamente os países membros do Conselho de Segurança Permanente das Nações Unidas. São eles que têm direito de veto. Como diz a sigla, esses países são a “segurança permanente” das nações unidas. Seria correto corrigíla para: “Conselho de Segurança Permanente do Capital”.151 Esse é o triste quadro do início do milênio: o grande aumento da riqueza e ao mesmo tempo o grande aumento da pobreza. Mais do que nunca, o acúmulo de bens não deixa espaço para a partilha. 149

https://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/cost-of-inequality-oxfam-mb180113.pdf http://port.pravda.ru/busines/23-08-2013/35176-economia_armas-0/#sthash.1ETmsISt.dpuf José Ademar Kaefer, A Arqueologia e a Leitura Popular da Bíblia, In: Revista Caminhando, vol. 20, n. 2, São Bernardo do Campo, UMESP, p.115-126, 2015. 150 151

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Para muitos a alimentação deixou de ser a necessidade primária. Antes vêm os desejos estimulados pelo mercado. Estes desejos não têm limites, não enchem e nunca saciam. Cada dia surge novos desejos. Por isso, o acúmulo também não pode ter limites. Se os ricos não são capazes partilhar, os pobres são. Coélet diria que é desse chão, do cotidiano da família trabalhadora, da cozinha doméstica e da comunidade que se organiza, que se encontra a solução para o grande problema da falta de partilha do mundo atual. Faz um par de anos, juntamente com um colega, o Raimundo Leite, fomos morar por dois meses numa aldeia indígena Xerente, no norte de Goiás, às margens do rio Tocantins. Cientes das necessidades daquele povo, uma das nossas preocupações era com a sobrevivência durante aqueles meses. Por isso nos munimos de uma grande bolsa de mantimentos: arroz, feijão, farinha, café, azeite, açúcar, sal, macarrão etc., o suficiente para sobreviver por um bom período. Chegando à aldeia, com muita curiosidade de ambas as partes, fomos muito bem acolhidos na cabana de uma das famílias. Ali amarramos nossas redes. Quando a multidão se dissipou, dirigimo-nos ao casal da casa e lhe entregamos os alimentos, com o nobre objetivo de contribuir nas despesas. O homem agradeceu, tomou os alimentos e os distribuiu para toda a aldeia. Comemos somente uma vez daquilo que era para ser a provisão para dois meses. A proposta de Coélet, de que o bom é “comer, beber e ver”, pode muito bem ter nascido numa realidade aldeã, semelhante à da aldeia Xerente.

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CONCLUSÃO

Já a caminho do ocaso queremos apresentar algumas conclusões a que nos conduziu o presente estudo. A ênfase da nossa pesquisa se concentra na análise do conteúdo de Ecl 5,7-19, apresentada no terceiro capítulo. Os dois primeiros capítulos fazem a sondagem do terreno onde se localiza a perícope ontem e hoje. No primeiro capítulo vimos o grande interesse que tem despertado o livro de Coélet nos últimos anos na América Latina, provavelmente motivado pelo contexto políticoeconômico porque passam seus países. Essa abordagem serviu de rampa de lançamento para o estudo dos capítulos seguintes. O segundo capítulo nos levou a uma aproximação ao mundo de Coélet. Nesse particular, chamou-nos especial atenção os extremos do contexto helenista. De um lado o incremento da economia, da produção, do comércio, de novas tecnologias, do poderio militar, das ciências, da filosofia e da arte. Do outro, o funesto aumento da escravidão. Esses dois extremos representam a grande novidade do império greco-ptolomaico e selêucida. Coélet se localiza entre esses dois pólos. A abordagem dos dois primeiros capítulos nos permitiu adentrar com segurança na análise do texto bíblico, cujas conclusões exporemos a seguir. Para esse proceder seguiremos os mesmos passos apresentados pelo texto, os quais serviram de guia em nosso estudo. O chão que pisamos é de “opressão”: o “empobrecido” é roubado no seu “direito” e na sua “justiça”. Esta opressão é um processo em andamento: o pobre está em vias de se tornar mais pobre. Seu fim é ser “escravizado”. No estudo deduzimos que “empobrecido” se refere aos camponeses: mulher, homem e criança.

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Atrás desta situação existe um projeto meticulosamente estruturado. Este projeto é primeiramente estrangeiro, que vem de fora, e que em seguida tem a simpatia e a colaboração de grupos internos bem estabelecidos. Esta estrutura é hierárquica: “superior sobre superior”, e tem como topo a figura do “rei”. A relação dentro da hierarquia é de “vigilância”. O motor de toda esta estrutura e situação opressiva é o “lucro”, ele é que põe em movimento a máquina que assola o “empobrecido”. Ele é o resultado do suor, do sofrimento e do sangue transformados em kesep “dinheiro” e que é bombeado com muito sacrifício através dos canais do sistema até o cume da estrutura onde está o “rei”. E nesse movimento unicamente ascendente, boa parte do “lucro” vasa pelos tubos e escorre para as mãos de funcionários e prósperos comerciantes que garantem a perpetuidade do sistema. Este sistema de exploração, de maneira geral, já era vigente em épocas anteriores. No entanto, o atual apresenta várias novidades, algumas das quais são mostradas no nosso texto. Uma das novidades, já citada acima, é o incremento do escravismo. No capítulo II foi mostrado o grande aumento de escravos ocorrido no sistema helenista. O escravismo passa a ser uma das principais diferenças de sustentação do novo sistema. Outra novidade é a intensificação do comércio, que exige produções cada vez maiores e que por sua vez faz crescer o montante do “lucro”. Essa política econômica era impulsada e desenvolvida principalmente pela nova organização das cidades helênicas,

conhecidas

como

poleis.

Uma

terceira

novidade

é

a

descentralização do poder e a maior participação de famílias abastadas, ou particulares, nos “lucros” do estado. Este espaço é ocupado por muitos judaítas. Uma última novidade é a intensificação do uso do kesep “dinheiro” para agilizar e aumentar o comércio. Depois de denunciar a opressão e a estrutura montada em torno dela, Coélet volta-se exclusivamente para as duas últimas novidades: contra o kesep e contra os que buscam desmedidamente o “lucro”.

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Coélet percebe que a causa de toda situação vigente é o “amor ao kesep”, um amor a uma coisa como se esta fosse uma pessoa ou um Deus. Este amor visa o objeto amado acima de qualquer bem, o que Coélet chama de “fome que não se sacia”. Por isso, o amante do kesep dedica a vida inteira em aumentar e acumular o objeto amado. Isso faz com que o amante veja as coisas somente em função do kesep, principalmente aquilo que pode ser comprado ou vendido, como os “produtos do campo”. Estes já não existem para alimentar a fome natural, mas, para saciar a fome insaciável de kesep. Por isso, Coélet denomina esse amor incontrolável de hebel “vazio”. Um “vazio” em oposição ao “encher”, ao “aumentar”, um “vazio” inconsistente, passageiro, sem vida. Mostrado o “amor” do amante, Coélet alerta para as preocupações e os sofrimentos diários daquele que ama a “riqueza”. Ao conseguir acumular uma boa parte de kesep, aparecem outros famintos, “devoradores” de kesep, iniciando uma competição voraz entre eles. E aí o amante entra num triste dilema: ele não pode consumir o kesep, porque, senão, o objeto amado desaparece. Se ele não consumir, outros consumirão. Resta-lhe, então, somente vigiar. Uma vigilância sem sossego, sem descuido. Nesta vigilância “não há sossego nem para dormir”. O resultado final é: “não existência de vantagem”, o amante acaba sendo escravizado, mais do que aqueles que ele escravizou para adquirir o amado kesep. Coélet continua olhando para dentro do sistema e descobre, assim como viu a opressão no início, que o “amor ao kesep” é uma doença grave, um “mal doentio”. Traduzido em miúdos, isso significa um desequilíbrio mental e afetivo. Essa doença foi trazida pelos que estão “debaixo do sol”, ou seja, pelo império greco-egípcio. “Debaixo do sol” não é um espaço geográfico, mas um modo de pensar e agir, uma ideologia do império. Trazida pelos helenistas de Alexandria, essa doença está contagiando muita gente em Judá. E é aí que se localiza o conflito com Coélet, em relação a seus compatriotas que se deixam contagiar sem resistir. O sintoma mais comum dessa doença é “guardar kesep”. Como ele é o deus dos contagiados, é preciso que seja guardado e 173

vigiado. Em vez de o deus velar pelo súdito, ele é que tem que cuidar do seu deus. E isso é um mal, repete Coélet, tanto para ele quanto para os escravos, que precisam trabalhar para o acúmulo, vendo o produto do campo ser transformado em mero kesep. Como já foi mencionado, a riqueza atrai outros famintos. Depois de muito sofrimento e ‘inyan “canseira” para reunir uma grande, mas não suficiente, quantidade de kesep, eis que chega alguém, que Coélet chama de estrangeiro. Esse estrangeiro, que entendemos tratar-se dos funcionários do rei, com seu exército, toma o kesep e o leva para longe. O amante, então, encontra-se de mãos vazias. E o pior é que agora ele já gerou um “filho”, um ben, e sonhava ser este a extensão do seu existir, passando-lhe um dia a guarda da riqueza. Porém, não existe mais kesep para pôr “em sua mão”. Sem kesep esta “mão” não terá mais poder para continuar oprimindo. Agora ele se encontra numa nudez total. Está como no dia do nascimento. Depois de perder o kesep, o amante perdeu o rumo da vida. Já às portas da morte, olha para trás e vê que da sua vida de ‘amal “trabalheira” não ficou nada, nem nome, nem memória e nem sepultura. Na hora da morte “nada irá em sua mão”. O amante, contra a sua vontade, é obrigado a abrir as mãos e deixar o “dinheiro” cair delas. Só ficou “canseira”, “trabalheira” e as “mãos vazias”. Não viveu. Parece que nasceu, suspirou e morreu. Foi um hebel em pessoa. Por isso, Coélet reafirma: “isto é um mal doentio”. O amante, “assim como veio irá”. O seu precioso e tão buscado yitron “lucro” se resumiu em um “cansar-se para o vento”. E Coélet insiste em recordar o sofrimento do amante e conta que os seus últimos dias são de “miséria”, “irritação” e “fúria”, uma doença que o foi consumindo pouco a pouco. Ao morrer pobre, sucede aquilo que o amante mais temia: morrer sem kesep. Esta insistência de Coélet em mostrar o engodo que significa o amor ao kesep tem como fim abrir os olhos do rico comerciante, amante da riqueza. Seu objetivo é conduzir o amante a uma possível conversão. Por isso, depois de não deixar nenhuma saída, Coélet mostra uma alternativa bem simples, contrária ao acúmulo, de como evitar todo esse sofrimento. 174

A alternativa nasce das aldeias do interior de Judá. Como é impossível encontrar coisa boa “debaixo do sol”, Coélet se volta para o seu povo

e

encontra no meio dos “empobrecidos”, dos “escravizados”, a solução para curar a doença do “amante do kesep”. Como todo doente tem o seu organismo debilitado, necessita alimentar-se bem. É, portanto, da cozinha da mulher da aldeia que sai a receita para o bem viver: “comer e beber e ver, isto é bom”, diz Coélet. Trocado em miúdos, a nova proposta consiste em recuperar o fim original dos produtos do campo. Vistos “debaixo do sol” pelo seu valor comercial, onde são são transformados em kesep e “guardados”, estocados, para a satisfação do seu amante, Coélet diz que o “bom” dos “produtos do campo” é deles “comer e beber”. Só para isso tem sentido a “trabalheira”. Limitar-se a consumir o fruto do seu trabalho, isso é suficiente. O resto traz infelicidade. Repentinamente (v.18) Coélet dá um nome ao “amante do kesep”, chama-o de ’adam. Imediatamente nos vem à mente o ’adam criado por Deus no princípio (Gn 1,1-2,25). De fato, Coélet está com um olho no Gênesis, quando Javé-’elohim modelou o ’adam e o colocou no Éden para que fosse feliz. A situação que aqui encontramos é completamente diferente: o ’adam se perverteu, é infeliz e está doente. Aqui ele não passa de um comerciante, amante do kesep. A esse ’adam contagiado, Coélet diz que de toda a “riqueza” e “fortuna” que ele adquiriu, o que vem de ’elohim é aquilo que ele pode comer. Isso é “bom”. O resto é “doença” e é “mal”. O “bom” anunciado por Coélet também lembra o “bom” tov do Gênesis: tudo o que ’elohim criou é “bom”. O demais, o kesep, a “canseira”, a “trabalheira”, a “doença”, a “irritação”, a “fúria”, tudo isso não é “bom” e, portanto, não vem de ’elohim. O “bom” é uma oferta, uma dádiva de ’elohim para o ’adam, se ele entender isso, não haverá mais dias amargos em sua vida. Seu coração voltará a estar repleto de alegria. Vemos, portanto, que Coélet está preocupado em resgatar a vida do ’adam, do rico, amante do kesep, mostrando-lhe o que vem de Deus, e o que

175

não vem, o que é “bom” e o que não é. De forma que, Coélet assume aqui o papel de porta voz de Deus para salvar a vida do ’adam, para recriar o’adam. Finalizando, percebemos que a perícope 5,7-19 está construída à luz de um conflito entre dois modos de vida. O primeiro é o projeto greco-egípcio, denominado por Coélet de hepes e “mal doentio”. Esse projeto está traçado nas três primeiras unidades do nosso texto (v.7-16). É um projeto opressor, onde não há “direito” e nem “justiça” para o “empobrecido”; é um projeto piramidal, bem estruturado e cuja cabeça é o rei. O fim último desse projeto é o “lucro” e tem sua origem no império grecoegípcio. As pessoas que fazem parte desse projeto são amantes do kesep. Elas são portadoras de uma fome insaciável, não têm descanso e não conseguem dormir. São pessoas doentes que passam a vida inteira numa intensa “canseira” e “trabalheira” para guardar “riquezas” que não aproveitarão. Vivem seus dias “irritados” e “furiosos”, predispostos a doenças. Sua vida é um cansar-se para o vento, um completo “vazio”. O segundo é um projeto que Coélet denomina de “bom”. Ele compreende a última unidade do texto (v.17-19). É um projeto que nasce das aldeias do interior e se resume no “comer” e no “beber”. É um projeto dado ao ’adam por ’elohim, como uma “dádiva” de Deus, desde o princípio da criação. Ele é dado ao ’adam, que agora se transformou num comerciante judaítahelenista pervertido, que esqueceu o “bom” da vida para se dedicar esclusivamente ao kesep. Coélet, como porta voz de ’elohim, quer resgatá-lo para que o seu coração volte a ser preenchido de alegria. Uma vez eliminado o “amor ao kesep” e restaurado o “bom” da vida se extinguirá a “opressão do empobrecido e o roubo do direito e da justiça”.

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