Cognição e línguas

May 24, 2017 | Autor: Francisco Soares | Categoria: Criatividade, Cognição, Plurilinguismo, Psicolinguistica, Ensino De Língua Portuguesa
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Cognição e línguas Comunicação apresentada ao XXIV Encontro AULP – Macau, 17-19 setembro 2014 Francisco Soares (Univ. Independente de Angola; Universidade de Évora)

RESUMO A experiência profissional com o ensino de língua portuguesa em contextos plurilingues e bilingues em Angola, bem como a experiência na orientação pedagógica e científica de professores de língua portuguesa – ambas ao nível universitário – suscitaram-me questões e inquietações que venho procurando confrontar com investigações recentes em diversas áreas científicas. Um dos aspetos fundamentais no ensino das línguas prende-se com a relação entre conceitos, imagens e palavras. Podemos situá-lo no âmbito da lexicologia e da semântica, ou tentar outro mais abrangente. O nosso ensaio parte de três pontos de referência: 1. um ‘estado da questão’ muito objetivo, realizado pela Prof.ª Sonia El Euch no Canadá, relacionando estes aspetos em contextos plurilingues e a partir dos estudos recentes em neurolinguística e psicolinguística; 2. o pressuposto, confirmado em várias investigações de neurocientistas e em particular nas de António Damásio, sobre o papel da formação de imagens na criatividade, na cognição e no planeamento; 3. o pressuposto, hoje aceite, papel fundamental da metáfora nos processos cognitivos e pedagógicos, em particular para o ensino de línguas. Relacionando estes pontos de referência com a necessidade de levar o aluno a saber comparar e traduzir conceitos e perceções entre pelo menos duas línguas, propõe-se uma estratégia a seguir em sala de aula para o ensino do português em contexto plurilingue no que diz respeito à lexicologia e à semântica da língua.

Francisco Soares, Luanda, 9-7-2014.

INTRODUÇÃO 3 I – TIPOLOGIAS 4 II - CONCREÇÕES 11

INTRODUÇÃO A minha experiência, enquanto professor de Língua Portuguesa no Ensino Superior em Angola, despertou-me para questões anteriormente vagas. A principal delas deixou-me perplexo: dentro das salas, nós não tínhamos nenhuma das situações tipicamente previstas. Havia alunos bilingues, monolingues e plurilingues misturados. Não podíamos, portanto, aplicar técnicas ensaiadas para o ‘português língua estrangeira’, nem para o ‘português língua segunda’, nem para o ‘português língua primeira’ ou ‘materna’, nem para o português em contexto plurilingue porque esse é o contexto mas não a realidade de cada aluno. Desde logo se percebia que qualquer dessas opções deixava de fora uma parte significativa da turma. Começando a refletir sobre o problema procurei ler sistematicamente toda a bibliografia disponível sobre o assunto. Reparei que havia detalhes ainda não considerados por mim: havia pessoas bilingues (e mesmo plurilingues) que o eram desde que começaram a falar e outras que não. Das primeiras, algumas falavam com mais frequência uma das línguas em casa e a outra fora de casa; as outras falavam as duas línguas tanto dentro como fora de casa, morando com parentes igualmente bilingues. O que tinha na minha frente era uma situação muito mais complexa do que a prevista nos textos que lia sobre o ensino do português. Para pôr em ordem o meu pensamento, comecei por procurar uma tipologia clara. Por uma questão de método – e também de inclinação pessoal – estabeleci um critério para a escolha da tipologia: a sua constituição a partir de relações entre cognição e aprendizagem da língua. Nada me pareceu mais envolvido na aprendizagem de uma língua do que o processo cognitivo – com todas as suas componentes, é claro.

I – TIPOLOGIAS Para clarificar a minha perceção do fenómeno foi fundamental, anos mais tarde, ler um texto de Sonia El Euch, professora tunisina da Universidade Québec à Trois-Rivières, especializada em psicolinguística e interinfluências linguísticas. Ela faz o ponto da situação (“de estudos neurolinguísticos e psicolinguísticos”) relativamente a uma tipologia estabelecida sobre os conceitos de “bilingualidade composta” e “coordenada” (Euch, 2010, p. 41). Cada tipo define uma relação própria entre linguagem e pensamento, que nos dá sinal da organização cognitiva nas pessoas bilingues. A bilingualidade composta ocorre quando um sujeito linguístico bilingue constrói uma estrutura conceitual unificada (“organização cognitiva composta de sentido (ou significado) (Euch, 2010, p. 2)”, que busca expressão (“é combinada com uma unidade de expressão (ou significante) (Euch, 2010, p. 2)”, conforme as situações, ora numa língua, ora em outra. Por exemplo, retenho o conceito de «mesa» e ora digo ‘table’ ora ‘mesa’, conforme a língua da(s) pessoa(s) com quem falo. Os dois significantes ficam agregados ao mesmo significado geral de «mesa». O tipo seria característico de crianças crescidas num meio em que as mesmas pessoas, nas mesmas situações, falam qualquer das duas línguas. Resumo o tipo no diagrama seguinte:

Em que, independentemente das relações ou interinfluências directas entre duas línguas, no âmbito da estrutura linguística do sujeito, há uma estrutura cognitiva comum que regula o sistema linguístico no que diz respeito à sua componente semântica.

Num segundo tipo, a bilingualidade coordenada, “cada unidade de sentido numa língua é combinada com uma unidade de expressão na mesma língua”. O tipo seria característico de crianças que adquirem cada uma das línguas em contextos diferentes, possivelmente em idades diferentes, tornando a correspondência entre as duas mais difícil. A dificuldade exigiria uma separação entre os sistemas semânticos das duas línguas. Logo, a criança não constrói uma estrutura conceitual única, mas duas atuando inseparáveis da respetiva língua. Resumo o tipo no diagrama seguinte:

Em que a relação entre duas línguas é mediada, regulada e viabilizada pela relação entre as duas estruturas cognitivas correspondentes. Aqui não haveria uma relação directa possível entre as duas línguas, no que diz respeito às relações semânticas. A tipologia fica enriquecida em dois momentos: primeiro com a inclusão do tipo “subordinado”, variação do tipo “coordenado”; depois com a conceção de um hibridismo dinâmico que se baseia no continuum composto-coordenado. O tipo subordinado é aquele em que a criança usa uma única estrutura conceitual, derivada da aprendizagem da língua primeira, e depois, a partir das palavras-conceitos da língua primeira, procura as palavras ou frases correspondentes na língua segunda. Por isso, tem necessariamente uma realização mais fraca na língua segunda. Resumo o tipo no diagrama seguinte:

Em que só existe uma estrutura cognitiva, funcionando necessariamente na órbita da língua primeira do falante e regulando as transferências semânticas dessa para outra(s) língua(s). A vitimização do escritor que não escreve na sua língua materna fica representada neste quadro, justificando assim o drama da expressão do colonizado. Como vemos pela tipologia completa, este quadro é muito redutor para nos expor o tipo de “bilingualidade” próprio do escritor colonizado – que não é passível de se reduzir a um tipo. Num rápido relance, apurando a partir de exemplos angolanos, veremos que eles cabem em todas as tipologias expostas por Sonia El Euch e até em situações em que os escritores só usam uma língua, a portuguesa, tendo das outras sinais fortes, contributos e assimilações, mas não conseguindo sequer usá-las, funcionando elas apenas como adstratos. Ou seja, o quadro da literatura angolana, no que a este aspeto concerne, é idêntico ao das nossas salas de aula e não tem semelhanças com o quadro evocado por muitos escritores negritudinistas francófonos e anglófonos e pela crítica seguidista que os repetiu sem pensar no que escrevia. Recomeçar aqui O quadro conceptual de Sonia El Euch completa-se com o tipo híbrido, próprio do plurilinguismo. Para o compreendermos convém dissociarmos a conotação entre bilingualidade composta e aprendizagem simultânea das duas línguas nos mesmos espaços. Paralelamente iremos também dissociar a conotação da bilingualidade coordenada e subordinada com uma aprendizagem das duas línguas em tempos e espaços separados. Um caso, entre muitos, pode ser citado aqui. Um nativo suíço alemão que, por causa de uma lesão cerebral, perdeu a sua capacidade linguística, recuperou primeiro o uso do francês (sua segunda língua) e só depois o uso do alto-alemão, sem no entanto conseguir reencontrar a

sua língua materna (o suíço-alemão). Citei este caso pela evidência que nos traz e que nos leva a separar as conotações anteriores. Se a aprendizagem de uma língua segunda estivesse na dependência da aprendizagem da língua primeira, não seria possível recuperar a capacidade linguística a partir da língua segunda. A aquisição da capacidade linguística nos mostra, portanto, que a aprendizagem de uma língua para um falante bilingue não se condiciona pelas variantes espaço e tempo. Mostra-nos também que a estrutura cognitiva do sujeito não fica dependente da língua primeira com a qual se formou inicialmente, pois a pessoa em causa não viu a sua estrutura cognitiva afectada. A separação entre as bilingualidades descritas e a variante espaço-tempo prende-se com mais estudos concretos, que revelam que essas variantes não determinam necessariamente o tipo de bilingualidade. Ele é também determinado pela função de cada língua na vida quotidiana, pelas tarefas a realizar, pelo tipo de material linguístico usado, pelo género do falante (feminino ou masculino, por causa da testosterona, segundo a psicofisiologia), pela sua situação social, pela sua capacidade ou competência linguísticas, até pela sua personalidade. A autonomia da estrutura cognitiva (que por isso é justamente considerada «estrutura») leva-nos a reexaminar as relações atrás diagramadas e, por tanto, a própria tipologia descrita. Outras questões nos alertam para isso: Coloquemo-nos perante um quadro ainda não abordado. Nas salas de aula em que ensinava, havia alunos e alunas que tinham adquirido uma terceira língua quando possuíam já uma bilingualidade coordenada. Seria de supor, então, que eles usariam uma estrutura conceptual anterior e se colocariam no tipo subordinado, buscando apenas novas palavras, numa nova língua, para conceitos antigos. Mas essa anterioridade ficaria alheia à língua segunda? A aprendizagem de uma língua terceira constituiria um sistema à parte relativamente ao anterior (de bilingualidade subordinada)? Ou veríamos uma fusão entre o sistema bilingue coordenado, anterior, e a nova tríade? Haveria fusão conceptual com a língua primeira e não com a segunda? Com a segunda e não com a primeira? Ou, finalmente, o sujeito plurilingue desenvolve “diferentes possibilidades de organização cognitiva” (Euch, 2010, p. 4)? O que talvez aconteça na vida real é um continuum alternando entre as várias situações até aqui imaginadas. Para concebermos este continuum precisamos de recorrer à noção de «multicompetência holística». Segundo essa noção, “a competência linguística – incluindo a competência lexical – em diferentes línguas forma um sistema unificado, diferente do sistema que rege a competência monolingue” (Euch, 2010, pp. 4-5). Há já “muitos estudos” suportados por investigação “de imagiologia cerebral que

confirmam”, no que diz respeito ao tratamento léxico-semântico, a hipótese da multicompetência holística. Eles apontam para que o indivíduo plurilingue religa as diversas línguas num único sistema, que resulta da interação constante entre elas. Assim, os tipos de bilingualidade anteriormente referidos passariam, pelo menos no sujeito plurilingue, a constituir possibilidades de relação linguístico-cognitiva, usadas em alternativa pelo mesmo indivíduo em diversas situações. É daí que vem a imagem de um continuum que levaria o plurilingue a construir um sistema conceptual e cognitivo dinâmico e híbrido (Euch, 2010, pp. 5-7). Esforcemo-nos agora por imaginar uma tradução para uma terceira língua realizada por um sujeito inicialmente bilingue. O que me interessa nessa imagem é o saltitar contínuo do seu raciocínio entre a estrutura cognitiva que ele associaria a cada uma das línguas anteriores e a estrutura cognitiva que ele foi construindo pela nova relação entre as três. Os conceitos que mantivessem identificação suficiente passariam para uma estrutura cognitiva do tipo composto, estrutura essa que iria integrando conceitos idênticos na terceira língua. Os outros ficavam associados a equipamentos conceptuais ligados a cada uma das línguas (dinamizados e transformados por essa tradução também) e contribuíam, quiçá, para a criação de um dispositivo complementar agregado a essa terceira língua. Mas o trânsito constante entre as bases de dados conceptuais e lexicais resulta num continuum dinâmico, híbrido, que vai aumentando conforme a tradução avança e constitui uma estrutura cognitiva englobante. É possível que o diagrama a seguir consiga representar o que exponho:

Exposta e reformulada essa tipologia, é possível que perguntem: e então, que é que isso interessa para o caso? Você continua a ter uma sala de aula em que uns alunos são bilingues, outros monolingues, outros plurilingues.

Usando o designação de Sónia El Euch, a diferença entre eles diminui no ponto que mais me interessa: a oposição entre monolingue e os outros dois (bilingue e plurilingue). Porque o nosso monolingue sofre a influência de um adstrato que, embora não domine, interfere na sua língua. De forma que temos alunos monolingues mas podemos dizer que há neles alguma bilingualidade, por essa interferência constante e poderosa do adstrato, que faz o falante alterar, por exemplo, o seu português ou o seu umbundu. Mas permaneço, de facto, perante uma turma heterogénea. Que me obriga desde já a questionar o professor. Quem ele é? Como deve agir perante alunos tão diversos? Que estratégias pode usar? O que precisa de saber? Conhece ele a estrutura das línguas bantu, por exemplo, que neste contexto é indispensável para ensinar português? Tem noção das muitas variantes do português actual para identificar ‘desvios’ que o são por influência dos adstratos ou, pelo contrário, que são tendências do próprio português também verificadas em outros contextos antropológicos e geográficos? É claro que este professor, no nosso contexto específico, precisa de conhecer as línguas em contacto. Não pode somente ser falante de português e especialista na língua portuguesa. Também claro é que este professor tem que ter um conhecimento alargado das variantes actuais do português e da história da língua portuguesa. Isto, só por si, já nos faculta uma boa parte das obrigatoriedades a que o currículo do curso que o vai formar deve obedecer. Além destas, ele precisa conhecer a literatura angolana escrita e as oralidades que circulam e se transmitem por Angola. Precisa de uma forte consciência e plasticidade para perceber o complexo contexto cultural em que a língua vai ser ensinada. Juntando estas exigências temos quase todo o currículo do seu curso feito. Sendo dado um professor ideal como este, o que deve fazer ele perante uma turma tão heterogénea como aquelas que eu tive? Ele tem de perceber, em primeiro lugar, que ele e a sua turma constituem uma totalidade. E que essa totalidade, se conseguir actuar em conjunto, por tudo o que acima disse deduz-se que actuará como um sujeito plurilingue. Com efeito, explicando o quadro traçado por Sonia El Euch para o meu problema específico, a sala de aula se me apresenta como um sujeito plurilingue, dinâmico e híbrido. Cada aluno, ou aluna, vai aprendendo o seu quinhão a partir de uma situação específica, mas ali, no conjunto, vamos produzindo um conhecimento e um léxico e uma rede conceptual que é nossa, da turma, daquele grupo ou totalidade interpessoal. Por consequência, eu não posso desenvolver uma estratégia para cada tipo de aluno mas, estando perante uma turma plurilingue, a situação de qualquer dos alunos ali tem em comum que eles terão de relacionar-se

com a língua que lhes ensino em função de uma organização conceptual, de uma rede semântica, sem dúvida vasta e de fronteiras imprecisas, que vou buscar à língua que lhes ensino e às línguas que podem ser faladas por aquele grupo. Cada aluno, ou aluna, passa portanto a raciocionar como um plurilingue e eu próprio, enquanto professor, actuo assim.

II - CONCREÇÕES II.1. Para que a turma funcione como um todo (como um falante plurilingue), o nosso professor terá de ver acrescentada ao seu currículo de graduação mais alguma exigência. Esta será garantida pelas artes dramáticas. Qual o contributo das artes dramáticas? Em primeiro lugar elas nos ensinam a expressão corporal, a colocação da voz, a representação através do corpo e a simulação de ritmos através do corpo também. Em segundo lugar elas nos trazem técnicas preciosas, aprendidas com as mais diversas tradições, nas quais a memorização de informações pertinentes e de percepções consequentes se realiza envolvendo o próprio corpo através da repetição de movimentos, de ritmos, de gestos. Mas o que torna mais urgente ainda o contributo das artes dramáticas prende-se com algo que a psicologia social também conhece, que são técnicas de dinamização de grupos e, em particular (uma vez que não há aprendizagem sem criatividade), técnicas apropriadas a criar dinâmicas de grupo em grupos criativos. A dinâmica de grupo tem de ser o princípio do curso e da disciplina. As primeiras horas de experiência do professor com a turma devem ser inteiramente dedicadas à criação de uma dinâmica de grupo que o faça funcionar holisticamente. II.2.Resolvido este passo, vou precisar agora de saber como lidar com grupos criativos uma vez postos eles a funcionar como um sujeito cognitivo e criativo. Eu preciso de procurar, então, estudos e ensaios sobre o ensino do português em contexto plurilingue. A questão é, cada vez mais, como ensinar português a uma pessoa que raciocina interligando mais do que duas línguas. Confesso que não encontrei, ainda, uma resposta cabal às minhas inquietações – é possível que nem exista. A maioria dos ensaios e conferências e livros que li sobre o assunto são muito pobres no que diz respeito a técnicas concretas para fazer funcionar a nossa turma como sujeito plurilingue. Nas aulas ia, por isso, experimentando várias artes e manhas, usando os mais variados truques, não só para reter e manter criativa a participação dos alunos, mas também para fazer-lhes compreender a língua portuguesa, principalmente como ela é praticada em Angola, a sua lógica, os seus recados, o seu lastro. Uma das estratégias que usei era baseada no conhecimento (incompleto, parco mesmo) que tinha do umbundo e de estruturas linguísticas banto. Sem que pedisse, alunos que falavam outras línguas que não umbundo e português, e mesmo falantes de umbundo e português, completavam o que eu dizia. A ‘mola’ principal era a comparação estrutural (para o caso

da morfologia e da sintaxe) ou a comparação por imagens (visuais), através da reprodução ou composição de metáforas e da comparação de expressões idiomáticas. Não era inocentemente que o fazia. Tinha lido muito sobre como trabalhar com grupos criativos para compreender o funcionamento da metáfora e das expressões idiomáticas (que nos facultam imagens estruturantes, imagens que se tornam conceptualmente um desafio quando as trazemos de uma língua para outra, ou seja, quando pretendemos traduzi-las). O que me interessava era o papel da imagem na cognição e na criatividade. Li também alguns textos sobre a importância das expressões idiomáticas para a tradução e, sobretudo, para o ensino de línguas em contexto plurilingue. Naturalmente, sabia também que as metáforas tinham uma função didáctica para além de funções cognitivas. Estas experimentações deram resultados satisfatórios, a par de outras. Não posso debruçar-me sobre todas elas aqui. Tenho de escolher alguma. Deixo aos leitores e leitoras o cuidado de realizarem pesquisas que venham a complementar e melhorar a minha. II.3. Neste momento, é sobre um tipo especial de metáfora que me debruço: a metáfora etimológica, nome que uso à falta de outro melhor no momento. Notei que, oferecendo à turma uma imagem visual deduzida e composta a partir de uma etimologia e de um estudo breve da história dos significados da palavra em português, isso lhes permitia compreender muito melhor, e fixar, um conceito, o respetivo campo semântico e o léxico correspondente. Muitas vezes, a partir daí, os alunos propunham outra metáfora, como se a tirassem de uma adivinha, ou de um provérbio sintetizando por analogia. Muitas vezes também, essa nova imagem resultava da interacção entre o que o aluno estava a aprender ali e outra língua por ele usada ou conhecida. Era isto mesmo que eu pretendia. Reparei depois que, se pudesse fazer algo idêntico relativamente ao campo semântico de um conceito próximo, também extraído a partir da etimologia e da história semântica do conceito (permitam-me falar assim por agora), a transposição entre duas línguas tornava-se imediata e a compreensão dos conceitos em causa, na semelhança e na diferença que apresentavam, era muito mais clara. É possível que a transmissão tradicional das culturas populares e rurais, muito alicerçada em metáforas, comparações, imagens veiculadas por adivinhas, provérbios e canções, esteja na base do sucesso. É possível também que o meu conhecimento dessas técnicas tradicionais para a instrução das crianças e adolescentes me tivesse ajudado a intuir a estratégia usada. Alguns dos meus alunos (e alunas), porém, não tinham nada de rurais. E com eles o procedimento resultava igualmente bem.

Comecei, portanto, a relacionar o sucesso do estratagema com a função das imagens na vida psíquica. Pensei que (já não era intuição, era consciencialização), se as imagens visuais e sonoras são rentabilizadas pelas tradições orais para transmissão e fixação de conceitos e preceitos, é porque a sua função na vida psicológica as torna veículo eficaz para isso. Já tinha estudado (e continuo a estudar) essa temática e condensei o que sobre isso penso na primeira parte de Teoria da literatura: criatividade e estrutura (Soares, 2009), onde refiro as funções didáctica e cognitivas da metáfora e das imagens. Foi estruturante para mim também a leitura de O erro de Descartes de António Damásio, na parte em que precisamente ele nos fala da função da imagem na vida psíquica e da formação das imagens e das redes disposicionais de imagens. Neste aspeto, é mais importante que qualquer dos outros livros seus, porque os outros se debruçam sobre como o sujeito forma uma imagem de si e como um sujeito social ou colectivo forma uma imagem de si, consequentemente sobre as funções que essas imagens têm ou podem ter. O que me interessa é, porém, como as imagens (não só visuais) se formam e funcionam na vida psíquica e até que ponto elas são estruturantes para a criatividade, o planeamento, a cognição. Esse funcionamento é fundamental, incontornável e sustenta igualmente a intuição. As redes disposicionais de que fala Damásio, que funcionam também como sistema de imagens, elas não só nos dão a base do nosso pensamento, já com uma sintaxe própria, da nossa intuição, da nossa criatividade. Elas testam igualmente, por via dos raciocínios e da linguagem que são o seu desenvolvimento, elas testam continuamente a nossa perceção do que nos acontece e do que estamos a ser a cada momento. É por isso que o trabalho com as imagens é sempre estruturante e é por isso também que, tanto nas pedagogias tradicionais quanto na pedagogia formal, as imagens visuais e sonoras (principalmente) são recursos estruturantes e indispensáveis. É por isso, ainda, que a aprendizagem artística e o estímulo da criatividade artística potenciam a cognição das crianças e dos adolescentes. Por um gosto antigo e por leituras várias (a tese de doutoramento do filósofo português José Enes sobre São Tomás de Aquino (Enes, À porta do Ser, 1990), a sua obra Linguagem e Ser (Enes, Linguagem e Ser, 1983), os contributos de pensadores do movimento da Filosofia Portuguesa, em particular de José Marinho), ainda enquanto estudante universitário me dediquei ao estudo das etimologias. O conhecimento das raízes da palavra, das suas significações e funções iniciais, enriquecido pelo estudo do seu percurso semântico e o levantamento do campo semântico na atualidade, facultavam-me uma metáfora poderosa e orientadora quanto ao seu uso. Ao lembrar-me disso apercebi-me de que essas metáforas eram precisamente o instrumento que me faltava para ensinar aos meus alunos o léxico e a semântica do português. Experimentei, primeiro, mesmo estando a ensinar-lhes morfologia ou sintaxe, associar de vez em

quando à exposição a metáfora etimológica de uma palavra-chave. Funcionava bem. Com o tempo fui introduzindo, sempre que as conhecia, metáforas etimológicas (devo dizer filológicas?) das línguas bantu, a par de algumas comparações entre estruturas sintáticas, locuções adverbiais e frases idiomáticas de ambos os lados. O resultado foi sempre positivo. II.4. – exemplo: a metáfora etimológica Posso dar um exemplo, embora complexo, de metáfora etimológica usada. Procuro reduzi-lo ao máximo, para não saturar a leitura. A palavra «Deus» é das mais comuns na língua portuguesa. Uma das palavras que podem designar Deus em línguas bantu de Angola é «Kalunga». Ao tornarmos equivalente «Kalunga» e «Deus», imediatamente um falante monolingue de umbundo recorrerá à estrutura cognitiva respetiva e fará a associação do conceito «Kalunga» com o significante «Deus». É possível que ainda o faça mais tarde, quando já bilingue. Chegando à Universidade, podemos examinar com ele esse processo de equivalência e tornar mais claras as diferenças e semelhanças. Imaginemos que, numa Introdução à Antropologia, a sala ouviu dizer que, na Índia, as vacas são sagradas, intocáveis, como se manifestações puras e diretas de Deus. É possível que a turma, conhecendo algumas das tradições orais angolanas, se lembre de Kalungangombe, o senhor da morte (ngombe, bovino), aquele que nos julga e nos destina na passagem para o outro lado. Em se tratando de um aluno com maior apetência pela intelectualização, recordar-se-á das associações entre a fertilidade, o alimento e a divindade. Não deixa de fazer sentido. Porém… …relatado o acontecimento numa aula de português, é de aproveitar para esclarecer. A palavra «Deus», na sua etimologia, está associada com a luz, o dia, o sol, o nascer do dia – e daí com o leite e a fertilidade. Por isso muitos filósofos e teólogos usando línguas indo-europeias associam Deus e luz, conotação que se tornou comum e surge também na América Central antes, bem antes, de Colombo. Segundo Sri Aurobindo e mais alguns filólogos hindus, a conotação entre a vaca e o sagrado prende-se com uma má interpretação dos Vedas, da língua antiga usada por eles. A mesma palavra designava luz, pureza, brancura e Deus. Provavelmente por extensão, ela passou a significar leite e vaca. Segundo Sri Aurobindo, a mesma palavra (go) significava luz e vaca. Daí que, em algumas passagens, se confundissem os referentes por homonímia dos significantes. Não se trata, nesse caso, de uma conotação direta entre a alimentação, a fertilidade e a divindade, como será o caso, talvez, de Kalungangombe em algumas das nossas tradições. Mas, desse nome composto, aproveitamos o de Kalunga. Se o Deus indo-europeu é associado à luz e a luz ao intelecto, Kalunga é associado à divindade mas também ao mar, à infinidade, à inteligência (ualunguka: esperto, inteligente) e à sabedoria. Por sua vez a sabedoria é indissociável da nobreza, sendo que Ilunga é denominação para pessoas sábias em várias línguas bantu (por exemplo entre os Zulus).

A sabedoria aparece também associada ao poder. Lembremo-nos de Kalala Ilunga, que assassina o seu tio e rei Kongolo na história do Império Luba. Lembremo-nos, também, mais próximo da nossa literatura, de Tchibinda Ilunga, filho mais novo de Kalala Ilunga e lendário fundador do império lunda junto com Lueji. A mesma raiz aparece, portanto, associada ao poder, à inteligência e à divindade, tal como no Latim. As etimologias latinas permitem associar Dia e Deus. Mas também nessa língua a palavra «nobre» e o adjetivo «conhecer» estão etimologicamente associados, mantendo portanto uma forte ligação entre poder e saber. Príncipe está relacionado, etimologicamente, com ‘captar’ e ‘captar’ com ‘cabeça’, reforçando a conotação entre poder e saber. Ao revisitarmos estas etimologias com os alunos facilitamos a constituição de uma estrutura cognitiva híbrida e de maior alcance, que lhes permitirá associar, não apenas «Deus» e «Kalunga», mas algumas palavras mais e, quiçá, algumas frases, alguns provérbios também. II.5. – exemplo: expressões idiomáticas Apesar de ter escolhido para exemplo a metáfora etimológica, não quero terminar sem realizar uma breve passagem pelas expressões idiomáticas, dada a importância que elas assumem na aprendizagem das línguas e no relacionamento entre aprendizagem e cognição. O que chamamos habitualmente frase idiomática sugere-nos também conceitos por imagens (em geral visuais), pelo que a sua consideração aqui não sai tanto quanto possa parecer fora da nossa escolha inicial. Eliane Roncolatto recorda que os linguistas em geral concluíram que “há fortes imagens mentais associadas a frases idiomáticas e estas imagens são determinadas por metáforas conceituais” (Roncolatto, 2001, p. 2). Estas imagens motivam um “significado figurado” das expressões idiomáticas e o mesmo “significado figurado” pode ser expresso em frases com imagens aparentemente muito diferentes em cada língua. A passagem de uma frase idiomática numa língua para outra em outra língua recorre aos processos cognitivos dinamizados e hibridizados pelo sujeito plurilingue. Além disso ela permite afiná-los e reforçar uma estrutura conceitual um nódulo acima, ou seja, que encontra expressão ora numa frase de uma língua, ora em outra de outra língua (uma estrutura conceitual de síntese). O mesmo tipo de operação se faz trocando com a sala provérbios e adivinhas expressos em língua portuguesa e em línguas banto, por exemplo. Até porque algumas frases idiomáticas derivam de provérbios, adivinhas – e também contos populares. II.6. – exemplo: frases comuns

Além de frases idiomáticas em sentido estrito, algumas expressões coloquiais comuns nos podem servir no sentido de reforçar no aluno uma estrutura cognitiva dinâmica, híbrida e funcional para várias línguas. Em umbundo, por exemplo, se diz frequentemente: otsho muene, ou osho muenle, conforme as pronúncias e as grafias. Equivale a “compreendi mesmo”, “percebi mesmo”, em português. Mas em português também se usa, no mesmo contexto, “claro” (e outras palavras: “sim”, “certo”, etc.). Em umbundo se pergunta: “otsho?” (“oco” segundo outra grafia) e a resposta é a já citada, otsho muenle. Em português pode-se perguntar: “percebeste?”, sendo a resposta “sim, claro”. Este “claro” faz sentido se levarmos em conta a história da palavra a par da história da cultura europeia, na qual um movimento intelectual muito importante foi o do Iluminismo. A clareza foi sempre uma virtude da razão, da escrita e do pensamento em português. Isso coincide com a já citada metáfora etimológica, que junta Deus e Dia, Deus e Luz, por extensão, intelecto e sol, intelecto e iluminação, razão e luz, etc.. No ‘facebook’ aparece uma página angolana que se chama Etu muenle. «Etu» é nós. “Etu muenle” significa nós próprios, nós mesmos. A palavra «muenle» serve portanto de reforço, mas de reforço com o sentido de “mesmo”, ou seja, de identificação absoluta, que não deixa lugar a dúvidas – e, por isso, é clara, de uma clareza inquestionável. O “muenle” e o “claro” destas expressões são equivalentes em cada uma das línguas neste aspecto, por assim dizer conceitual. Naturalmente que muitos exemplos mais podiam ser trazidos. Deixo isso à preocupação de quem pretenda experimentar estes recursos. Penso que, através do oferecimento à sala (por mim e pelos alunos) destas comparações, em particular das metáforas etimológicas e das metáforas idiomáticas, faculto-lhes instrumentos cognitivos preciosos que os levam (e a mim) a uma interligação mais forte entre as nossas estruturas cognitivas híbridas e as concepções ainda muito conotadas com cada uma das línguas em jogo. Neste sentido, ensinar uma língua em contexto plurilingue não só contribui para a sua expansão como também para o aumento do poder cognitivo dos alunos e dos professores. Mas implica, ainda, que o professor de uma dada língua em contexto multilingue, ou mesmo bilingue, conheça bem as outras ou a outra língua em jogo na sala de aula. A selecção e preparação de professores de português para Angola, por isso mesmo, devia ter como item obrigatório conhecimentos de linguística banto.

Francisco Soares, Jardins do Éden, Luanda, 13-7-2014; Macau, 19-9-2014.

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