Coisa julgada coletiva | Anotações informais acerca do novo processo civil | Nota n. 08

Share Embed


Descrição do Produto

Anotações informais acerca do novo processo  Nota 08

S U M Á R I O : 1. Considerações iniciais; 2. Apontamentos gerais acerca da coisa julgada; 3. A coisa julgada coletiva; 4. Coisa julgada coletiva nas ações que versam sobre direitos difusos ou coletivos stricto sensu; 5. Coisa julgada coletiva nas ações que versam sobre direitos individuais homogêneos; 6. Transporte in utilibus da coisa julgada; 7. Limites territoriais da coisa julgada; 8. Considerações finais.

1. A tutela coletiva no Brasil nasceu não só das contingências práticas, mas sobretudo de uma formulação teórica a respeito da necessidade de abandonar a perspectiva individualista de processo e, em consequência, fortalecer o tratamento molecular dos litígios. Não há, nessa senda, como negar o forte influxo do direito norte-americano sobre o direito pátrio, embora o legislador tenha se afastado daquele em certos pontos capitais, como, v. g., a legitimidade para agir (cf., às minúcias, CLARISSA GUEDES. Legitimidade ativa..., GZ, 2012, p. 47-73; cf., também, DINAMARCO. Fundamentos..., v.2, Malheiros, 2002, p. 726-61; BARBOSA MOREIRA. O processo civil..., Revista da EMERJ, v.4, n. 16, p. 11-22). Um jurista e um valor-fonte, em especial, marcaram a estruturação – ao menos a moderna – da tutela coletiva no Brasil: o jurista, o italiano MAURO CAPPELLETTI, cujos estudos do direito estadunidense ajudaram à colmatação de uma nova e atual concepção

COISA JULGADA COLETIVA do processo civil, em que cada vez mais se aproximam as famílias do common law e do civil law; o valor-fonte, o acesso substancial à justiça, vetor hermenêutico dado à democratização do direito enquanto substrato do devido processo legal substancial (cf. CLARISSA GUEDES. Legitimidade ativa..., GZ, 2012, p. 47). É certo que dentre os países de civil law, o Brasil foi pioneiro na criação e implementação dos processos coletivos (GRINOVER). Desde a reforma da Lei da Ação Popular, em 1977, os direitos difusos ligados ao patrimônio ambiental, em sentido amplo, já recebiam tutela jurisdicional. A Lei da Ação Civil Pública, de 1985, veio para ratificar definitivamente o cenário. No plano teórico, porém, parecia – e até hoje parece – ainda reinar um certo favorecimento ao tratamento atomizado de litígios, calcado em dogmas individualistas que preferiam a fragmentação dos conflitos (art. 6.º do CPC/1973). De fato, parece que o tratamento molecular do litígio, tal qual hoje se apregoa com tanta liberdade, só foi possível no Brasil em razão das aptidões culturais e do contexto histórico emergente do Estado Democrático Constitucional de 1988, consolidado na Carta Cidadã (cf. DIDIER JR-ZENETI JR.Curso..., v.4, JusPODIVM, 2013, p.31). Esta breve colocação do tema tem por desiderato, a uma, evidenciar ao leitor as dificuldades que percorrem todo o tema da tutela coletiva; a duas, demonstrar a necessidade de se adotar um norte no estudo da tutela coletiva: o acesso substancial à justiça; a três, deixar hialino o fato de que o processamento e julgamento de demandas coletivas impõem uma revisitação de vários institutos, para adaptá-los aos princípios, às finalidades e às características da proteção metaindividual (cf. CASTRO MENDES. Ações..., RT, 2009, p. 273). 2. A coisa julgada, na precisa pena de NERY JR., “é elemento de existência do estado democrático de direito”. Isso, pois, a

« 2»

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 segurança jurídica trazida por ela deve ser considerada manifestação do estado democrático de direito, na medida em que “[e]ntre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (justo possível), que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material” (NERY JR. Princípios..., RT, 2010, p. 52). Assim, de antemão, cumpre tecer algumas considerações gerais acerca da coisa julgada, sem a devida especificação dos seus contornos no processo coletivo – o que se fará posteriormente –, a fim de fornecer aparato mínimo à compreensão do tema desenvolvido nos parágrafos seguintes. Acerca da natureza e conceituação da coisa julgada, a rigor, nunca se teve uniformidade doutrinária. Porém, não é este o espaço propício para discorrer sobre o tema e suas complexidades; mas, ao mesmo tempo, é mister urdir um conceito-chave acerca do instituto, não o deixando no vazio. Assim, mesmo ciente da larga adoção do conceito de LIEBMAN na doutrina pátria, bem como da importância no cotejo – sobretudo crítico – da elucubração chiovendiana do tema, preferiu-se endossar a tese de BARBOSA MOREIRA, limitando a exposição a esta. Assim, para este último jurista, do fato jurídico do trânsito em julgado de uma decisão judicial de mérito a lei faz nascer uma nova situação jurídica que se caracteriza pela imutabilidade do conteúdo da decisão final, isto é, do comando da decisão de mérito. Essa nova situação jurídica é a coisa julgada (cf. Eficácia...., Temas..., 3.º Série, Saraiva, 1984, p. 99-100). É comum, outrossim, a divisão da coisa julgada em material e formal. A coisa julgada material “é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou extraor-

« 3 »

COISA JULGADA COLETIVA dinário” (cf. BARBOSA MOREIRA. Eficácia...., Temas..., 3.º Série, Saraiva, 1984, p. 107). Ela produz efeitos endo e extraprocessuais, tendo em vista que a imutabilidade opera efeitos dentro e fora do processo findo (cf. art. 502 do CPC/2015). Já a coisa julgada formal revela-se como o primeiro passo para a formação da coisa julgada material; surge no trânsito em julgado uma decisão final, seja ela de mérito ou não, operando sua imutabilidade interna ao processo (considerada a preclusão máxima ocorrida no âmbito de um processo). Como evidente, a coisa julgada formal produz tão somente efeitos endoprocessuais (cf. art. 507 e 508 do CPC/2015). No que tange aos seus limites subjetivos, a coisa julgada (é de se ajustar que o uso da expressão “coisa julgada”, sem a inclusão do adjetivo “formal”, quer significar “coisa julgada material”) atingirá, em regra, as partes que participaram do contraditório (cf. art. 506 do CPC/2015), sendo dita inter partes. No processo coletivo, como se verá, a coisa julgada poderá atingir terceiros, assumindo feição ultra partes (art. 103, II, do CDC) ou erga omnes (art. 103, I e II, do CDC). Quanto aos limites objetivos, a coisa julgada recairá sobre o dispositivo, não alcançando os motivos ou a verdade dos fatos (cf. art. 504 do CPC/2015). O CPC/2015, aliás, suprimiu a proibição de que a coisa julgada atingisse as questões prejudiciais, não reproduzindo a norma contida no art. 469, III, do CPC/1973. Na verdade, o novo diploma expressamente permite a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais, desde que cumpridos certos requisitos (cf. art. 503 do CPC/2015). Quanto aos modos de produção da coisa julgada, a doutrina costuma separá-los em três: o primeiro, é o denominado pro et contra, adotado tradicionalmente no processo civil individual, no qual a coisa julgada se opera com a simples resolução de mérito, in-

« 4»

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 dependentemente do resultado no caso concreto; o segundo, é o chamado secundum eventum litis, pelo qual a coisa julgada se forma independentemente da sorte do processo, mas somente será estendida para os interessados individuais quando o resultado lhes for favorável; e o terceiro, é o designado secundum eventum probationis, em que a coisa julgada só se forma em caso de esgotamento das provas: se a demanda for julgada procedente, que é sempre com esgotamento de prova, ou improcedente com suficiência de provas (cf. ZUFELATO. Coisa julgada coletiva, Saraiva, 2011, p. 275-6). Encerrando a análise geral da coisa julgada, tem-se o cotejo dos efeitos do estudado instituto. São três os efeitos: (i) negativo, que impede que o objeto litigioso atingido pela coisa julgada seja rediscutido; (ii) positivo, que determina, em caso de a questão litigiosa retornar ao judiciário como questão prejudicial, que ela seja enfrentada nos mesmos moldes com que ficou atingida pela coisa julgada; e (iii) substitutivo, pelo qual a vontade das partes é definitivamente substituída pela decisão do Estado-juiz. 3. A coisa julgada tem regime próprio no processo coletivo (GRINOVER). A singularidade do instituto é tamanha que alguns doutrinadores o elevam a marco característico do processo coletivo (cf. GIDI. Coisa julgada..., Saraiva, 1995, p. 16) e outros estampam-no como princípio específico do ramo (cf. DIDIER JR.-ZANETI JR. Curso..., v.4, JusPODIVM, 2013, p. 118-9). Enquanto a coisa julgada, sob o prisma tradicional, está umbilicalmente relacionada à condição de parte no processo (art. 337, §2.º e 4.º, do CPC/2015), no processo coletivo o mesmo não acontece. Com efeito, na medida em que se conferiu legitimidade (representatividade adequada) para que determinadas pessoas ou órgãos efetuassem em juízo a defesa de interesses alheios, não se poderia cogitar de um esquema para coisa julgada coletiva análogo ao

« 5 »

COISA JULGADA COLETIVA empregado no modelo tradicional (cf. CASTRO MENDES. Ações coletivas..., RT, 2009, p. 273). Do mesmo modo, a própria indivisibilidade do objeto do processo coletivo determinaria, no caso de interesses essencialmente coletivos (direito difusos e coletivos stricto sensu), imperiosamente, o tratamento coletivo para o conflito, na medida em que impende a solução uniforme (cf. CASTRO MENDES. Ações coletivas..., RT, 2009, p. 273). Não haveria, ainda, sentido em se falar de proteção coletiva, no desiderato de ampliar o acesso à justiça e produzir real efetividade processual, se as coisas permanecessem como antes, ou seja, com decisões que vinculassem apenas as partes formais (cf. CASTRO MENDES. Ações coletivas..., RT, 2009, p. 273-4). De toda forma, a coisa julgada continua aqui como um ponto central à conformação do devido processo legal, e nesta medida apresenta dois aspectos que suscitam grandes discussões: de um lado, o risco de interferência injusta nas garantias do indivíduo titular do direito subjetivo, que poderia ficar sujeito à “imutabilidade” de uma decisão da qual não participou; de outro, o risco de exposição indefinida do réu ao Judiciário (“no person should be twice vexed by same claim” – FRIEDENTHAL-KANE-MILLE. Civil procedure, West Pub., 1985, p. 228) e a necessária estabilidade jurídica para o Estado (cf. DIDIER JR.-ZANETI JR. Curso..., v.4, JusPODIVM, 2013, p. 387). 4. O microssistema de processo coletivo optou por estabelecer o regime da coisa julgada secundum eventum probationis em relação aos direitos difusos e coletivos (art. 103, I e II, do CDC; art. 16 da LACP; art. 18 da LAP). Assim, apenas diante o exaurimento do conteúdo probatório é que se formará a coisa julgada. Aliter, insuficientes as provas, a improcedência do pedido não leva à imutabilidade do comando da decisão, podendo esta ser renovada.

« 6»

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 Embora exista quem sopese pela inconstitucionalidade dessa espécie diferenciada de coisa julgada (cf. BOTELHO DE MESQUITA. Na ação..., Revista do Advogado, n.33, 1990, p. 81 e ss.; CRUZ E TUCCI-TUCCI. Devido..., p. 120-121), a doutrina majoritária advoga o contrário. O argumento destes últimos pauta-se no fato de que a ausência de participação efetiva dos titulares do direito material no processo, de quem o contraditório foi solapado por uma escolha aprioristicamente realizada de legitimados extraordinários (ope legis), constitui fundamento suficiente para defender essa espécie de coisa julgada (cf. NERY JR.-NERY, Código..., RT, p. 1.348; MANCUSO. Ação..., RT, 2002, p. 276; MARINONI-ARENHART. Manual..., RT, 2006, p. 781). Não formada a coisa julgada pela improcedência calcada na insuficiência de provas, qualquer legitimado, inclusive o que propôs anteriormente a demanda, pode retornar a juízo com a mesma demanda, lastreada em prova nova e suficiente para um novo juízo de direito acerca da questão de fundo (cf. BARBOSA MOREIRA. Ação..., Temas..., 2.ª Série, Saraiva, 1977, p. 123). No que tange à abrangência da coisa julgada, dada a indivisibilidade do objeto do processo, a res judicata acobertará toda a coletividade, no caso dos direitos difusos (por isso, diz-se erga omnes); e todo grupo, categoria ou classe, no caso de direitos coletivos (razão pela qual, chama-se ultra partes). Note-se, em relação a estes últimos, que a proteção fornecida pelo microssistema não limitou a abrangência da coisa julgada aos associados ou filiados, mas a todo o grupo, categoria ou classe (cf. CASTRO MENDES. Ações..., RT, 2009, p. 278). Por fim, ressalte-se que a vinculação aos efeitos deriva, igualmente, da legitimidade extraordinária, haja vista que os interesses alheios estão sendo defendidos por outra pessoa mediante autorização da lei. É consequência natural, portanto, que os titulares

« 7 »

COISA JULGADA COLETIVA dos direitos invocados sejam atingidos (cf. CASTRO MENDES. Ações..., RT, 2009, p. 278). 5. Diferentemente do que acontece nos direitos essencialmente coletivos, nos direitos individuais homogêneos (apelidados de “acidentalmente coletivos”) não há qualquer reserva: somente a procedência do pedido espraia efeitos às partes. O julgamento improcedente ser pautado na suficiência ou não das provas, a rigor, pouco interessa. É o que se chama de coisa julgada é secundum eventum litis (cf. art. 103, III, do CDC). A previsão desperta fortes críticas doutrinárias. Parcela da doutrina, diante a redação lacunosa do art. 103, III, do CDC, advoga que a regra da coisa julgada secundum eventum probationis também se aplicaria aos direitos individuais homogêneos. A justificativa utilizada é talhada com propriedade: o vetor hermenêutico deve ser buscado no microssistema coletivo, e dele ressai a coisa julgada secundum eventum probationis; do contrário, o processo coletivo se tornaria instrumento unilateral em benefício de uma das partes (cf. CASTRO MENDES. Ações..., RT, 2009, p. 279; DIDIER JR.-ZANETI JR. Curso..., v.4, JusPODIVM, 2013, p. 391). No entanto, a doutrina majoritária, um pouco cética da natureza coletiva dos direitos individuais homogêneos, tende a encabeçar o posicionamento da coisa julgada secundum eventum litis (cf. GRINOVER. Código..., v.2, Forense Universitária, 2011, p. 203). Ademais, alerta ZUFELATO, o modelo legislativo brasileiro da coisa julgada secundum eventum é dotado de um traço peculiar: “no âmbito dos direitos essencialmente coletivos – difusos e coletivos em sentido estrito –, a formação da coisa julgada ocorrerá de acordo com o resultado do processo combinado com a suficiência ou não de elementos probatórios, ao passo que a sua projeção do plano coletivo para o individual ocorrerá somente segundo o resultado; no

« 8»

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 âmbito dos direitos acidentalmente coletivos – individuais homogêneos – a formação da coisa julgada não dependerá do resultado do processo, ou seja, formar-se-á sempre, mas será estendida para os lesados individuais somente quando o resultado lhes for favorável” (Coisa julgada coletiva, Saraiva, 2011, p. 275-276; cf., também, GRINOVER. Código..., v.2, Forense Universitária, 2011, p. 203). Se a coisa julgada coletiva não prejudica os direitos ou interesses individuais, também não pode ser esquecido que o julgado coletivo funciona como um precedente. Nesse sentido, obtempera GRINOVER, “[a] decisão desfavorável proferida na ação coletiva constituirá um simples precedente, mais ou menos robusto conforme o caso, mas não será o fenômeno da coisa julgada que impedirá o ajuizamento de ações individuais” (Código..., v.2, Forense Universitária, 2011, p. 203). No que tange à abrangência subjetiva da coisa julgada, nos termos do art. 103, III, do CDC, será ela erga omnes, alcançando toda e qualquer pessoa cujos direitos sejam homogêneos, de mesma origem e plasmados na coletividade inerente que marcou o julgamento-paradigma. 6. Como a lei escolhe, de forma apriorística, os representantes adequados à tutela dos direitos coletivos lato sensu, sendo estes imbuídos da defesa dos direitos pertencentes aos legitimados ordinários, o microssistema teve de oferecer um meio de fruição direta do resultado útil (individual) pelos reais interessados: o transporte da coisa julgada in utilibus. Por isso, se for julgada procedente a demanda coletiva ajuizada pela entidade legitimada, os interessados poderão se valer da decisão condenatória para pleitear a liquidação e a execução dos danos individuais sofridos (cf. art. 97 e s. do CDC). O transporte in utilibus, porém, possui um importante requisito: a suspensão da demanda individual litispendente (no caso de mandado de segurança coletivo não se tratará de suspensão, mas,

« 9 »

COISA JULGADA COLETIVA sim, desistência do writ individual). Caso o interessado tenha ajuizado demanda individual correspondente à coletiva, deverá ele requerer, em 30 (trinta) dias, contados da efetiva comunicação da existência da demanda coletiva (fair notice), a suspensão (ou desistência) de sua demanda individual (cf. art. 104 do CDC). Não tomada a aludida providência, tem-se a exclusão do demandante dos efeitos favoráveis advindos da demanda coletiva (opt out), submetendo-se exclusivamente à sorte de seu pleito individual. É mister destacar que caso o réu da ação coletiva e da individual (em regra, a mesma pessoa) não comunique, nos autos da demanda individual, a existência da demanda coletiva, o autor do pleito individual não se verá prejudicado pela vedação do transporte in utilibus da coisa julgada coletiva, uma vez que não lhe foi dado o direito de optar por suspender a sua demanda (opt in). É de bom alvitre alertar que, a despeito de a matéria em debate encontrar-se regulamentada pelo art. 104 do CDC, que não prevê a possibilidade de suspensão automática de demandas individuais em razão da existência de demandas coletiva conexa, o STJ tem precedente em contrário, no qual a Corte admite suspensão das demandas individuais conexas à coletiva ex officio. O entendimento pauta-se no fato de que a demanda coletiva comporia uma “macrolide” hábil a suspender as demandas individuais, aplicando-se, à época do julgamento, o regime dos Recursos Especiais repetitivos para a regulamentação do iter procedimental (STJ, 2.ª S., REsp 1.110.549/RS, Rel. Min. SIDNEI BENETI, j. em 28/10/2009 – Inf. 413). A partir da opção do autor da demanda individual ou da decisão judicial que ordenar a suspensão (suspensão facultativa ou judicial), bem como do resultado da demanda coletiva de objeto correspondente, diversos quadros podem ser imaginados: (i) caso haja suspensão da demanda individual e a demanda coletiva correspon-

« 10 »

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 dente venha a ser acolhida, haverá manifesta perda do objeto da demanda individual, de modo que esta será convertida em liquidação ou execução de sentença coletiva; (ii) caso haja suspensão da demanda individual e a demanda coletiva correspondente venha a ser desacolhida, nada impede que o indivíduo que não participou da demanda coletiva como assistente litisconsorcial (cf. art. 94 do CDC) requeira o prosseguimento da sua pretensão individual; (iii) caso o interessado, entretanto, opte por não suspender a sua demanda individual na pendência do processo coletivo (right to opt out), conforme lhe faculta o art. 104 do CDC (e o Judiciário não determine tal suspensão oficiosamente), não haverá a mínima possibilidade de se beneficiar do que nele ficar decidido, uma vez que o sistema preferiu a coisa julgada individual à coletiva. 7. O epicentro dos problemas que envolvem a coisa julgada coletiva reside no art. 16 da LACP e no art. 2.ª-A da Lei n. 9.494/1997. Esses dispositivos estabelecem uma injustificável restrição territorial à coisa julgada coletiva: ficaria ela restrita ao âmbito da jurisdição do órgão prolator da decisão. Contudo, jamais a competência (termo utilizado pelo legislador) foi parâmetro para determinar a extensão da coisa julgada. A malsinada disposição legislativa mistura alho com bugalho: uma coisa é a competência; outra, em absoluto diferente, é a coisa julgada. Na dogmática processual, os institutos nunca se misturaram. Seria, a toda a evidência, pouco crível dizer que uma mulher é divorciada no âmbito de competência territorial do juízo que prolatou a sentença de divórcio, mas casada nas demais partes do país. É essa a razão da revolta da doutrina quanto ao instituto. Conforme leciona ZUFELATO, “é evidente que essa limitação, segundo critérios de competência, afronta um princípio básico do processo coletivo, qual seja, o da indivisibilidade do objeto do

« 11 »

COISA JULGADA COLETIVA processo. Para que haja respeito a esse princípio, o julgamento deverá ser idêntico para todos os interessados sob aquela situação jurídica decidida. A necessidade de mais de uma ação coletiva para tutela de um mesmo direito causaria, certamente, divergência entre os julgamentos, e a violação ao princípio norteador do processo coletivo. Isto porque os interessados ao direito transindividual frequentemente não se localizam na mesma comarca, tendo em vista que o dano, em razão da amplitude, pode abarcar mais de uma comarca, por vezes até atingindo dimensões de âmbito nacional” (Coisa julgada coletiva, Saraiva, 2011, p. 468-469). Com efeito, os dispositivos são inconstitucionais, ineficazes e desprovidos de lógica. Inconstitucionais porque quebram o postulado da proporcionalidade, e, ao assim fazer, violam o princípio do devido processo constitucional na sua faceta material, violando o acesso à justiça e a igualdade material (art. 5º, caput, XXXV e LIV, da CRFB/88). Ineficazes, pois, não se acautelou o legislador em reformar, também, a regra do art. 103 e incisos do CDC, parte fulcral do núcleo microssistema processual coletivo, e de aplicação imprescindível ante a insuficiência do art. 16 da LACP e 2.º-A da Lei n. 9.494/1997. Ilógicas porque o legislador misturou, em absoluta falta de técnica, os conceitos de coisa julgada, de competência e de jurisdição. Ora, os efeitos emanados da decisão e imutabilizados pela coisa julgada não são contidos pela competência (capacidade de aplicar o direito ao caso concreto) do órgão jurisdicional. A sentença proferida por um juiz de direito da menor Comarca do país tem efeitos em todo o território nacional e, em determinados casos, até fora do país (cf., por todos, CASTRO MENDES. Ações..., RT, 2009, p. 27981; DIDIER JR.-ZANETI JR. Curso..., v.4, JusPODIVM, 2013, p. 149-57). A jurisprudência, especialmente do STJ, tem inúmeros precedentes que enfrentam a problemática. A evolução do entendimento da Corte é condizente com o melhor Direito: se, no passado,

« 12 »

ANOTAÇÕES INFORMAIS ACERCA DO NOVO PROCESSO CIVIL | Nota 08 a Corte Especial do STJ tinha precedente consolidado no sentido da eficácia do art. 16 da LACP (EResp 293.407/SP, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO NORONHA, DJ 1º.8.2006); hoje, é de certo modo remansoso o entendimento de que o art. 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos, sendo patente a inaplicabilidade da limitação territorial disposta no artigo (cf. STJ, Corte Especial, REsp 1.243.887/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, j. em 19.10.2011; sobre o art. 2.º-A da Lei n. 9.494/1997: STJ, 3.ª T., Resp 411.529/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. em 24.6.2008). Com este entendimento, o STJ corrige os rumos do processo coletivo brasileiro e resolve, de quebra, um problema prático que, até então, não tinha solução aparente. 8. Com o exposto, pretendeu-se deixar clara a dificuldade de tratamento do tema, dados os contornos próprios que o instituto ostenta no processo coletivo. Não era desiderato deste escrito a propositura de novas soluções a respeito da coisa julgada coletiva, mas, sim, uma explanação crítica do estado da arte do instituto no Brasil. De igual forma, não se objetivou – até pelo propósito simplista do escrito – uma análise minudenciada de cada ponto-crítico do tema, senão uma abordagem crítica geral, com apontamentos doutrinários e jurisprudenciais. Espera-se, assim, que o objetivo de melhor delinear as linhas mestras sobre a coisa julgada coletiva tenha sido alcançado. LUCAS DE OLIVEIRA Juiz de Fora, Minas Gerais, 15 de março de 2015.

« 13 »

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.