Colagem de Citações

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COLAGEM DE CITAÇÕES Marco Antônio Machado*

Isso que vai se seguir pode parecer fragmentado, uma colcha de retalhos de difícil estruturação. De fato o é. Por meio da linguagem, temos o hábito de usar palavras bonitas, às vezes rebuscadas, para emitir juízos de valor. Em algum momento passamos a acreditar que dizer que gosto ou que não gosto seria algo não científico, portanto não válido. Nos últimos anos me chamou à atenção o uso das seguintes expressões: pós-moderno; não idiomático; relativismo; colcha de retalhos; sem profundidade; falta de unidade. Notemos que essa lista relaciona uma série de conceitos normalmente utilizados para emitir juízo de valor negativo diante da apreciação do objeto da obra de arte, sendo esses o foco da maior parte de minhas perscrutações. O que se seguirá é, de fato, uma colcha de retalhos. Espero, entretanto, que o leitor não considere a priori que se tratará de um texto ruim. Pressupor que algo é ruim só por se caracterizar como uma colcha de retalhos é o mesmo que pressupor que para ser bom basta ter unidade, estrutura, organização. Eu, sinceramente, estou cansado dos códigos de lei, das estruturas de poder e do dogma da unicidade ontológica do homem. Proponho-me, então, a escrever sobre colagem de citações produzindo uma colagem de citações.

*Marco Antônio Machado

(joseense de 1983), músico e compositor, experimentalista e desperdiçador.

8 ABATE Existe, de certa maneira, algo de místico pelo descontrolado na colagem surreal. Como aponta Knizak em entrevista a Bousseur (1992, p. 59), no título Le sonore et le visuale, a colagem possui algo de mágico. Essa dimensão mágica se dá na esfera da significação, visto que os sentidos abandonam o campo original e passam a outras ligações. Recortes reutilizados em novas montagens, inseridos em ambientes caóticos (visuais, sonoros, textuais), podem adquirir não apenas uma nova significação, mas muitas novas, que vão depender do ambiente, dos expectadores, das histórias, dos mitos. Eis um modelo de destruição que cria: Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma. (DELEUZE, 2009, p. 271)

Na história da música do século XX ,podemos estabelecer um paralelo enrte essa dicotomia apresentada por Deleuze e o dodecafonismo schoenbergiano e o cubismo stravinskyano. Em primeira análise, o projeto de Schoenberg soa como um projeto de destruição, quando, de fato, estabelece uma destruição para conservar: conserva as formas tradicionais, a escrita tradicional e, acima de tudo, a essência desenvolvimentista da música ocidental. No cubismo analítico de Stravinsky (MACHADO, 2014, p. 2), porém, enxergamos mais uma destruição dos modelos e das cópias, podendo de fato instaurar um caos que cria, saindo da lógica da conversão para alcançar a subversão e até mesmo a perversão. O desejo pode se apoderar de qualquer coisa através do agenciamento. Cada agenciamento do desejo gera uma territorialidade. Como afirmam Haesbaert e Bruce, para Deleuze e Guattari um território pode ser qualquer coisa (HAESBAERT; BRUCE, 2002, p. 6-7), podendo também o desejo extrair e transloucar territorialidades, promovendo desterritorializações e reterritorializações. No caso do colador musical, muitas vezes é o desejo acústico, o deleite sonoro que motivará as extrações. Abaixo, inserimos um comentário de Levi-Strauss no debate:

Colagem de Citações [...] entre todas as linguagens, ser esta (a música) a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível – faz do criador de música um ser igual aos deuses, e da própria música, o supremo mistério das ciências do homem [...] (LEVI-STRAUSS, 1991, p. 26)

Levi-Strauss dá à ciência musical o título de “supremo mistério” e justifica esse elogio pelo fato de ela comportar a contradição entre o inteligível e o intraduzível. De certo modo ,podemos olhar para o fluxo sonoro tomando-o como um texto ou tomando-o como uma imagem ou grupo de imagens. É, por um lado, uma escolha do ouvinte, mas que pode também ser motivada por características da própria obra. Uma sonata de Beethoven, por exemplo, apresenta diversas características que demandam uma escuta textual; já uma peça como Music for 18 musicians, de Reich, promove uma escuta imagética. É importante ressaltar que essas demandas se dão aos ouvidos treinados, podemos dizer aos “ouvidos de músicos”, mas que é essencial para a música a escuta do leigo, a escuta apaixonada. Um ouvido destreinado, que não conhece o sistema tonal, que não procura desenvolvimentos motívico-temáticos, pode ser incapaz de encontrar a trama textual em uma sonata clássica. Esse ouvido poderia gerar, contudo, uma escuta totalmente nova, o que, de certo modo, é essencial para a criação do novo. Também seria ingenuidade supormos que apenas se dividem os ouvidos humanos em treinados e não treinados. Há incontáveis níveis de treinamentos, e um ouvido muito treinado em ragas hindu pode não reconhecer uma cadência plagal. Cada ouvido vai criar um projeto de escuta, e para todos será inteligível e ao mesmo tempo intraduzível. Nesse campo de relações quase livres é que se estabelece o deleite musical. É “livre” no sentido em que o desejo demanda o fluxo de escolhas e é “quase” na medida em que a história, os costumes, a tradição, os “jeitos certos” impõem limites para esse fluxo do desejo. Deleuze elenca três fantasmas da cultura que estabelecem essas fronteiras para o fluxo do desejo, como comenta Ramacciotti:

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10 ABATE [...] tudo é permitido, pois o que conta somente é que o prazer seja o fluxo do próprio desejo, para tanto é preciso que a imanência ou plano de imanência composto na experiência com as múltiplas intensidades não seja interrompido por uma medida estabelecida pela “sombra dos três fantasmas postos pela cultura”: a falta interior, o transcendente superior, o exterior aparente. (RAMACCIOTTI, 2012, p. 120)

É claro que Deleuze pensou esses três fantasmas no âmbito geral da cultura, mas podemos, como exercício, pensá-los no campo musical. Falta interior: seria a ideia de incorporação abstrata da falta, também chamada “felicidade negativa”, como a fome saciada. É como se precisássemos alimentarmo-nos interiormente e esperássemos que o mundo nos fornecesse esse alimento; por esse motivo, nas mais diversas culturas sempre houve os paralelos às unções, oblações e bênçãos. O fantasma da falta interior aparece na apreciação musical sempre que esperamos da obra algo de sacrossanto que possa alimentar nossos anseios mais íntimos, inclusive implicando à obra de arte musical uma espécie de funcionalidade sagrada. Transcendente superior: é como a ideia hermética de “assim como é acima é abaixo”; ou seja, assim como há pais para filhos, reis para povos, deve haver um deus para os homens. Há, entretanto, o sistema de um deus centralizador e o sistema de vários deuses menores, que não se diferenciam no fato de serem sempre figuras de poder. Figuras de poder sempre “dizem” o que é certo e o que é errado (ou são usadas para dizêlo). Na música há também o transcendente superior, tais como a segunda escola de Viena, o gênio de Beethoven ou Brahms, a erudição e a tradição desenvolvimentista da música ocidental, sempre nos dizendo o que e como fazer. Exterior aparente: se refere às criações imagéticas e às relações entre elas. Cada indivíduo assume essas aparências em determinadas situações. O engenheiro, o pai de família, o corintiano... Há também essas figuras na práxis musical, como o músico clássico, o violinista, o maestro etc. Essas figuras estabelecem relações e expectativas, e limitam, desse modo, o fluxo do desejo. Em suma, os três fantasmas, também no campo musical, limitam o fluxo do desejo, o exercício do prazer. De fato, há sempre um conflito, um campo de batalha

Colagem de Citações entre os territórios estabelecidos e os exercícios nomádicos. Isso se assemelha à ideia de compositor como reinterpretador das obras, apresentada por Barbosa e Barrenechea. Eles defendem que cada compositor reinterpreta e reage de maneira particular perante as obras dos antepassados, tornando seus trabalhos em uma espécie de intertexto reflexivo, reinterpretativo (BARBOSA; BARRENECHEA, 2003, p. 125). Podemos colocar a história como um repositório coletivo das atividades humanas e cada compositor como uma singularidade que interpreta os dados à sua maneira, de acordo com suas experiências de vida e modos de pensar. Como cada vida humana é particular e possui muitas variantes, sempre haverá novos olhares (escutas) para a história. Mas também se pode afirmar que quanto maior o peso da tradição e da história, maior a limitação do fluxo do desejo da singularidade. Até por isso comentamos anteriormente a necessidade do ouvido leigo, do ouvido destreinado. Essas singularidades podem ressignificar e projetar escutas inovadoras, eis o caso de compositores autodidatas, oriundos das mais diversas músicas ditas populares ou folclóricas. “Criam-se novas modalidades de subjetivações do mesmo modo que o artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe” (GUATTARI apud BRITO, 2012, p. 9). Deleuze, à sua maneira, prefere não fazer uso do termo “reinterpretação”, já que grande parte de sua obra conclama uma saída da lógica da interpretação para a lógica da experimentação. Em vez disso, ele usa o termo “novas maquinações” como indústria de sentidos: É, pois, agradável que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito da superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria. (DELEUZE, 2009, p. 75)

As ideias de criação de novas subjetivações, de Guattarri, e de “novas maquinações”, de Deleuze dão um caráter absoluto1 à noção de “colagem de citações” apresentada aqui,

1 Semelhante ao conceito da desterritorialização absoluta apresentada na conclusão dos Mil Platôs.

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12 ABATE não sendo a tomada e reutilização de materiais musicais resultantes apenas uma técnica do compositor surrealista, mas de toda experiência de construção do sentido e de subjetivação na vida humana. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari propõem um exercício político de desrostificação. Na visão dos autores, a identidade humana passa pelo dogma do rosto que compõe o “eu”, e esse mesmo rosto é formado de muro branco e buracos negros, sendo o primeiro da ordem do significante, e os segundos, da subjetividade. A ideia seria tomar a vida como um objeto de um labor artístico, para, através de um exercício político, produzir novos modos de seres, novos modos de pensar. E ainda insistem: “Procurem seus buracos negros e seus muros brancos, conheçam-nos, conheçam seus rostos, de outro modo vocês não os desfarão, de outro modo não traçarão suas linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 64). A Esquizoanálise seria, assim, um projeto surrealista de viver. Anne Claire Gignoux apresenta, em seu artigo De l’intertextuallité à l’écriture, um breve levantamento histórico acerca da discussão sobre a intertextualidade. Ela aponta que a primeira aparição do termo ocorreu em 1967 e teve como pioneiros Bakhtine, Kristeva e Genette. Só em 1987, contudo, Marc Eigeldinger expande o conceito da intertextualidade para todos os campos da cultura, como, por exemplo, às belas artes e à música (GIGNOUX, 2006, p. 2-4). Esse levantamento mostra como essa reflexão é recente e, ao mesmo tempo, urgente. É justamente no fim dos anos sessenta que, normalmente, aloca-se a crise da pós-modernidade, momento em que passa a ser difícil posicionar artistas e pensadores em determinada escola ou estilo, o que é acentuado pela ausência de padrão de referência estética, de bom e mal, de certo e errado, de verdadeiro e falso. Afortunadamente, ideias como as de raça dominante, religião verdadeira, música universal e sexo forte começam a ser abandonadas, e é claro que no âmbito da produção artística, como produto da cultura, esse abandono exerceu uma influência proeminente. Passa a não existir mais decisão errada ou falsa na elaboração de uma obra, não existe mais um repertório adequado a se ouvir, um conjunto de técnicas ou processos superiores a outro, e essa sobreposição de interferências extrapolam os campos clássicos da arte (pintura-escultura-literatura-dramaturgia-música). Vemos Joyce na Sinfonia de Berio, as experiências cinemáticas de Kagel e até mesmo uma partida de futebol em Santos Football Music, de Gilberto Mendes. Também, por conta

Colagem de Citações disso, surge uma série de criações que ficam em territórios sem nome, não sendo possível dizer se aquilo é cênico ou instrumental, se é poesia ou arte plástica, se é cinema ou música. De certo modo, nos aproximamos de novo do ritual primitivo. Vivemos a época do audiovisual, do prog-metal-sinfônico, da engenharia florestal. O artista passa a poder se munir, se alimentar de tudo. Pode justapor e sobrepor tudo e todos. Sua consequência maior é a atitude expressionista elevando a criação e a construção ao grau de meio de expressão, sua instância operacional (KLEE, 2002, p. 10). Brincando com as terminologias poderíamos dizer que vivemos o supra-expressionismosurreal-intertextual. Danilo Marcondes, em seu tratado de Filosofia Analítica, separa a análise em duas grandes linhas de caráter. “A primeira como decomposição da proposição, reconstruindo-a em termos de uma concepção lógica de linguagem, produzindo-se, desse modo, uma elucidação”. Essa supõe um fundo ontológico que seria alicerce para todo conhecimento científico. E “a segunda como elucidação do significado de expressões linguísticas, através do exame de seu uso”, sem qualquer pressuposição ontológica direta (2004, p. 48). A segunda linha é como uma ferramenta para os artistas do hoje. Quando a unicidade do ser desapareceu, quando não mais procuramos investigar e encontrar o real, mas agora somos pluralidades singulares, inventores de realidades, passamos a coletar e agrupar os dados, reconfigurar, produzir novos sentidos. A análise nomádica, não ontológica, vem a ser uma máquina de guerra, um mecanismo de lançar mão a qualquer coisa que se deseje. Não há moral para o neoestóico, somos nômades e saqueadores. A práxis da análise musical também poderia ser entendida respeitando essas duas linhas proposta por Marcondes. As análises musicais da primeira linha seriam aquelas que visam explicar, elucidar, encontrar a real natureza da obra musical, enquanto as análises da segunda linha seriam as que buscam jogar, se apropriar, manufaturar materiais e relações. Seriam análises pró-criativas, mecanismos de uso. Pode parecer que a primeira linha é científica e, portanto, imparcial e que a segunda linha é subjetiva e parcial. Mas acreditamos que ambas são parciais e dirigidas por interesses singulares. Concordamos com a compositora Mariza Rezende quando afirma: “Estes dois autores (Charles Rosen

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14 ABATE e Leonard Meyer), pinçados dentre muitos outros, apenas reforçam minha sensação de quanto uma ferramenta ‘metodológica’ – a análise –, no caso, pode ser dirigida para esse ou aquele fim, e revelar um interesse específico de seus autores” (REZENDE, 2012, p. 254). O uso criativo do mecanismo é ressaltado, por outro lado, por Carlos Almada: “Os escritos teóricos de Schoenberg sobre forma (e, mais especificamente, sobre a construção temática), focalizados na obra dos grandes mestres e voltadas para suas estratégias didáticas, serviram também de base para sua própria prática composicional” (ALMADA, 2009, p. 41). E, é claro, nada precisa estar só de um lado ou só de outro. Ainda se referindo às duas possíveis linhas de análise, Schoenberg analisa processos históricos e propõe regras gerais que publica em sua obra teórica; de outra parte, os frutos das mesmas análises lhe nutrem criativamente e o produto de suas composições é inovador e criativo. Não acreditamos que deva haver uma hierarquização entre as duas linhas de análise. Mas há, nesse esquema, um posicionamento de uma ante a outra, e vamos, de uma maneira ou de outra, sempre puxar o cabo-de-força para o lado da análise criativa (maquinaria). De certa maneira, se partimos da noção de que a análise teórica (digamos assim) também é motivada pela subjetivação, mas que, em vez do uso, ela estabelece uma regra geral, um nomos, um entendimento – de modo que esse é o seu próprio uso –, é possível dizer que o interesse último do analista é marcar a posição de um fenômeno ou de uma coisa. Portanto, ao se criar um conceito, cria-se também uma determinada posição para um evento (de ordem natural ou artificial). E, como diz Bataille, “a posição é inteiramente efeito dessa vontade deformada. A posição é, em certo sentido, o oposto de uma coisa: aquilo que funda é sagrado, e a ordem geral das posições recebe o nome de hierarquia” (BATAILLE, 2013, p. 82). Ou seja, não é outra a intenção do analista teórico que não fazer uso de nomenclaturas tecnocráticas e virtuoses de categorização para participar do jogo de relações micropolíticas do entendimento. É um jogo de forças: ele quer posicionar a coisa, o objeto de estudo, mas o que ele cria é uma “não coisa”, o conceito da coisa. Diante do mistério que é a vida humana na Terra, por muito tempo ficamos satisfeitos com contos de Adão e Eva nas mais diversas cores e modalidades. Desde o século XIX, contudo, foram suplantados pelos conceitos darwinistas da evolução das espécies e da seleção

Colagem de Citações natural, que compõem, hoje em dia, o conto que mais nos agrada, que se posiciona sobre os demais hierarquicamente. O conceito de trabalho para Platão era de um modo, para Locke era de outro, para Smith, de outro, para Marx, ainda outro. Notemos como isso tem implicações em todas as esferas sociais, em todos os campos do entendimento, em toda comunicação humana. Se Bataille diz que a posição é efeito da vontade deformada, podemos dizer que a criação é efeito da vontade deformante. Então, a análise teórica cria um conceito e estabelece uma posição, enquanto a análise criativa é um novo uso, uma outra coisa. A imagem do anjo de Benjamin, com as asas abertas diante da ruína, vislumbrando a tempestade, pode nos oferecer outro modo de ver essa questão. O filósofo nos diz que, em vez de ver uma cadeia de eventos, o anjo vê uma catástrofe única que acumula ruína sobre ruína, e que um vento muito forte sopra do alto mantendo-o sempre com as asas abertas e o impelindo para o futuro. Há aqui a imagem de ruína representando o passado, em vez do passado como uma linha temporal de eventos. Há também uma tempestade representando o futuro, ou melhor, a força que move ao futuro, força que Benjamin chama de progresso (BENJAMIN, 2014, p. 246)2. A catástrofe única que acumula ruína sobre ruína é fruto da vontade deformada, da conceptualização dos eventos passados, dos campos de ciência, dos sensos comuns. E a tempestade é fruto da vontade deformante, do desejo, da máquina de guerra, da potência de agir. É interessante observar como toda abstração conceitual decorre de uma incorporação e uma metaforização espacial. Devido às nossa compleição material e nossa capacidade sensual, podemos experimentar o espaço apenas de maneira direta. Qualquer outro nível intelectivo é dependente de metáforas da experiência espacial. Isso está presente na linguagem o tempo todo, com expressões como “lá atrás, quando eu era uma criança” (não tem nada de fato “lá atrás”; o “antes”, do tempo, não é “atrás”, no espaço), ou “de repente a discussão ficou pesada e os humores se esquentaram” (a gravidade não afeta o teor das discussões e tampouco existe variação de temperatura em estados emocionais). De fato, é muito difícil falar de qualquer coisa que não seja espacial sem recorrer a metáforas da experiência espacial. Mesmo toda a base do termo e do conceito é alicerçada nessa metáfora.

2 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (IDEM)

Paul Klee (1879-1940). Angelus novus, 1920. Transferência em óleo e aquarela sobre papel. 31,8 × 24,2 cm. Museu de Israel.

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16 ABATE Para Kant tudo que é pensado é um continente e tem, por sua vez, um conteúdo (2012, p. 236), é um recipiente que tem seu interior repleto de substância. Dessa maneira, toda infraestrutura do pensamento é baseada na metáfora espacial e, desse modo, condicionada por nossos sentidos e corpos. A música é um campo onde se pode notar essa metaforização o tempo todo. Bosseur, em Le Sonore et le Visuale, dá exemplos de uma série de conexões entre as artes visuais e musicais, e de uma série de composições nas quais o projeto de escuta dos compositores foram motivados por experiências do espaço. Em especial, quando comenta a peça Volumina, de G. Ligeti, o autor diz: “tem como uma aspiração para uma fusão dos conceitos de tempo e espaço através de uma notação que nos leva a uma imagem ideal” (BOSSEUR, 1992, p. 11). A peça trabalha com densidade, volume, preenchimentos... Dentro dos Estudos para Piano de Ligeti há diversas experiências desse tipo, como subir na l’Escalier du Diable e em Coloana Infinita, ou a sensação de queda eminente em Vertige. Em alguns aspectos, a escuta musical sempre esteve ligada a uma imagem de justaposição e sobreposição de eventos; a própria partitura musical é um mapa-metáfora onde os signos dos objetos musicais são justapostos e sobrepostos em um campo espacial possível de se visualizar. A tradição da música ocidental, em especial, se alimentou da sobreposição de elementos de diversas maneiras, como a polifonia contrapontística, a composição dos blocos de acordes, o contraponto atonal livre, a heterofonia... E a metáfora da colagem musical foi um grande salto no século XX. A sobreposição ganhou evidência tendo como efeito a politonalidade, polirritmia, polimetria, politextura... Cope acredita que a collage emerge como uma técnica para o uso de superposições: Alguns compositores somaram o elemento da collage às técnicas politonais. Esse efeito combina politonalidade com distintas ideias. Os resultados normalmente contem polirritmias, polimétricas e politexturas pela superposição de diversos estilos musicais... Collage ainda provê uma técnica viável para estabelecer e clarificar a politonalidade. (COPE, 2001, p. 7. Tradução própria.)

Colagem de Citações É claramente uma técnica inventiva, uma que surge da linha de análise criativa, que devém da força da vontade deformante. O campo onde os recortes são colados é um campo metafórico-espacial, os próprios recortes decorrem do uso de “tesouras” espaciais metafóricas aplicadas em “tapetes” de música. Promove uma desterritorialização, e poderíamos dizer, uma desterritorialização pura, pois reterritorializa o recorte na própria desterritorialização, já que a nova música poli-tudo é o próprio discurso da itinerância que vai produzir sentidos diversos momentâneos em cada singularidade fazedora do entendimento. Se, por um lado, entendemos collage como um produto da arte plástica que foi importado para o uso musical, por sua vez outros tantos produtos do uso musical foram importados para as artes visuais, como exemplifica Cristiá: “A fuga pictórica como gênero [...] tem sido frequentada por Ciurlionis, Kandinsky, Kupka, Klee e Mardsen Hartley, entre outros” (2012, p. 2). A sobreposição, o recorte e a interlocução entre as diversas linguagens ou modos de fazer não deixam de ser formandores dos pontos de conexão em toda arte nova, ao menos desde a colagem surreal do começo do século XX, e cada vez mais evidente a partir dos anos cinquenta e nas atuais tendências do século XXI. Como afirma Deleuze, a sobreposição, a possibilidade de se contar “várias histórias” ao mesmo tempo, “é o caráter essencial da obra de arte moderna” (2009, p. 266). Quando falamos de Colagem de Citações, já no título temos a interlocução entre dois pontos da arte, entre dois pontos sensuais. “Colagem” pressupõe recorte e reutilização, nos conduz às artes visuais, e, evidentemente, a uma composição figural. Por outro lado, “citação” nos conduz às artes do texto, às textualidades, ao paradigma da referência e do sentido, da sintaxe e da semântica. As duas juntas nos levam, então, a uma composição teleológica de sentidos. Deleuze e Guattari nos falam da ideia de desterritorialização nos Mil Platôs, e evocam seu primeiro teorema nos seguintes termos: Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve ver a reterritorialização como o retorno a uma territorialidade

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18 ABATE primitiva ou mais antiga: ela aplica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade ao outro que também perdeu a sua. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 45)

Em nosso caso, é como se a semântica e a sintaxe do texto se desterritorializassem da linguagem comunicativa e, ao mesmo tempo, as espacialidades das artes visuais (ideias como justaposição, sobreposição, equilíbrio, mistura etc.) se desterritorializassem da comunicação visual. A música passa a ser produto das novas reterritorializações, os recortes passam a ser novos territórios para os textos e os sentidos novos territórios para recortes. Ora, a música sempre se apropriou das linguagens dos vizinhos. No platô intitulado Máquina de Guerra e Aparelho de Captura, os autores enfatizam de tal modo a potência da desterritorialização que colocam a própria estrutura do pensamento humano como a desterritorialização dos valores do Estado. Para Deleuze e Guattari, a estrutura do Estado não é produto do pensamento humano, mas, em grande medida, a estrutura do pensamento é que se constituiu de desterritorializações do Estado. Para os pensadores, há dois estatutos, ou duas cabeças do Estado, a do imperador-mágico e a do sacerdote-jurista. O imperador opera sua fundação e outorga, portanto, a realidade última do estado, enquanto que o sacerdote trabalha com os campos de compensação, justiça (distributiva ou retributiva). Esses dois estatutos passaram a compor todo ordenamento do pensamento humano: o imperador mágico opera a noção de verdade última, de transcendentalidade, de mundo ideal; o sacerdote jurista estrutura toda lógica causal, noção de causa e efeito, de evolução histórica, etc. Os dois estatutos na estrutura do pensamento acabam por enrijecer e fortalecer o próprio estado e suas instituições (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 45-46). A Música é todo um arcabouço, um emaranhado de desterritorializações e reterritorializações, produto de agenciamentos maquínicos do desejo. A Música se vale da linguagem textual nas canções, se vale das artes marciais e das expressões corporais na dança, da sintaxe textual na produção do discurso musical, da sintética kantiana no desenvolvimentismo vienense, assim como de valores místicos ou numerológicos em diversas tradições de

Colagem de Citações música de rito. No século XX, se valeu do processamento de dados para a elaboração dos algoritmos da eletroacústica, de técnicas de estúdio em fitas magnéticas para reescritura, além de uma série de procedimentos matemáticos, como interpolação, estocástica, serialização, particionalidade, teoria dos conjuntos... Todos esses campos citados são territórios que, por meio de um agenciamento, foram retirados de seu local de origem (desterritorializados) e passaram a servir como territórios para outras desterritorializações, e vice-versa. É importante frisar que toda desterritorialização é produzida por um agenciamento e que todo agenciamento é um “traço extraído do fluxo”, ou seja, compõe uma seleção, uma estratificação. Um agenciamento é, portanto, “uma verdadeira invenção” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 94). E o agenciamento não vem de outro local fora do desejo, ou como afirmam os filósofos: Os agenciamentos são passionais, são composições do desejo. O desejo nada tem a ver com a determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado. A racionalidade, o rendimento de um agenciamento não existe sem as paixões que ele coloca em jogo, os desejos que os constitui, tanto quanto ele os constitui. (IBIDEM, p. 83)

Todo argumento é uma composição do desejo, todo automóvel é uma composição do desejo, todo poema é uma composição do desejo, todo savoir faire é uma composição do desejo, cada arma de fogo é uma composição do desejo, cada corte de cabelo é uma composição do desejo, espécies de árvores, nomes de oceanos, sistemas solares... planetas, planeta-anão, gigante vermelha... A racionalidade é o rendimento de um agenciamento. Quanto mais rende um agenciamento, mais ele é racionalizado, mais adquire dimensões, sensos e contrassensos. Por isso, toda paixão que devém social acaba por se tornar um entendimento. E a totalidade dos coletivos das racionalizações vem a compor aquilo que Espinoza chamou de “ente da razão” ou “intelecto” (ESPINOZA, 2012, p. 67). Isso dito, é claro que cada sonata de Beethoven é uma composição do desejo, cada ópera de Wagner, cada raga hindu, cada “tom salmódico”, cada canção do Pink Floyd. E há

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20 ABATE racionalização de toda sorte – forma-sonata, leitmotiv, ostinados, análises schenkerianas, categorizações estilísticas. Por vezes, a paixão é tão intensa ou abrangente que devém social e, assim, forjam-se estilos, modos de fazer e pensar música, modos de se escutar. E aquilo tudo que chamamos Música é um emaranhado de desejos, agenciamentos e racionalizações que, aglutinados, formam um importante membro do ente da razão. Isso que se apresentou é um fragmento, uma colcha de retalhos, algo de difícil estruturação.

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