Com vocês... a ilustríssima Marquesa de Rabicó

June 28, 2017 | Autor: Camila Doval | Categoria: Literatura Infantil, Crítica literária, Crítica literaria feminista
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Com vocês... a ilustríssima Marquesa de Rabicó

Camila Doval

— Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.
— Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos — viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca.
O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto. Emília riu-se.
— Está vendo como é filosófica a minha ideia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
— E depois que morre? — perguntou o Visconde.
—Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve de concordar que era.
(trecho de Memórias de Emília, Monteiro Lobato, 1936)

Uma boneca de pano que explica a existência humana melhor do que qualquer filósofo, aquele "bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando". Essa é Emília, a ilustríssima Marquesa de Rabicó, que nunca se cansa de colocar boas pulgas atrás das orelhas dos leitores com sua personalidade questionadora e inventiva. Consagrada em nosso imaginário com os cabelos coloridos que ganhou na transposição para a série televisiva, a espevitada boneca foi um presente da Tia Nastácia para Narizinho, feita do retalho de uma saia velha, recheada de macela cheirosa e com olhos de retrós preto, "feia que nem uma bruxa", como ela mesma descreve em suas memórias. Ao engolir a pílula falante receitada pelo famoso doutor Caramujo, Emília desandou a falar por três horas sem parar, e Narizinho logo concluiu que a boneca "era de gênio teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu". A menina do nariz arrebitado estava certa: a boneca reinou absoluta no Sítio do Picapau Amarelo e em todos os outros universos por onde passou, reescrevendo os limites entre o real e a fantasia e conquistando o cargo de rainha do faz de conta brasileiro.
Personagem lobatiana por excelência, como bem definiu Marisa Lajolo, Emília foi uma espécie de alter ego de Lobato e compartilhou com ele a falta de papas na língua para expressar opiniões. Por conta disso, muitas controvérsias foram parar na boca da boneca — é dela a maior parte das falas consideradas racistas a respeito da Tia Nastácia, as quais há pouco tempo suscitaram uma grande discussão a respeito da aquisição, pelo governo federal, de exemplares de Caçadas de Pedrinho para serem distribuídos às escolas públicas do país. O debate é necessário e saudável para todos, afinal nem mesmo a literatura consagrada é para ser engolida como a pílula mágica da verdade (verdade que a própria boneca definiu como "uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia"...). Por outro lado, através de Emília o criador do não menos polêmico Jeca Tatu distribuiu pílulas falantes numa época em que as meninas eram educadas para a submissão. E a danada fez escola: quando a jornalista, escritora e feminista Rosiska Darcy de Oliveira ingressou na Academia Brasileira de Letras, em 2013, homenageou em seu discurso de posse as personagens da ficção que transformaram sua vida, e lá estava Emília no topo da lista. "Emília ensinou às meninas da minha geração o sagrado direito à malcriação, à afirmação da vontade e à defesa de ideias próprias", registrou a nova acadêmica diante da plateia de imortais. Vale lembrar que a partir de preceitos como esses, disseminados pela boneca de pano ainda nas décadas de 30 e 40 do século passado, um grupo de mulheres daria início, no Brasil censurado de trinta anos depois, a um movimento que revolucionaria a sociedade. Mas essa é outra história.
A maior revolução de Emília, a irresistível transgressora, foi nas nossas letras: a boneca foi ao céu, ao País da Gramática, desligou a chave do tamanho, reformou a natureza, escavou um poço de petróleo, ajudou Hércules a cumprir seus doze trabalhos, conheceu Hans Staden, Peter Pan, Dom Quixote, batizou um rinoceronte de Quindim e foi dormir só depois dos serões da Dona Benta. A inteligência aguda e o jeitinho petulante fizeram dela a mentora de uma trupe determinada a dar asas — ou pó de pirlimpimpim — à imaginação das nossas crianças, e não por acaso o projeto lobatiano de fazer livros "onde as nossas crianças possam morar" rompeu a tradicional função didática da escrita destinada a esse público. Depois do Sítio do Picapau Amarelo, a chamada "literatura infantil" brasileira se reinventou e hoje é herdeira de uma linguagem que persegue os limites do lúdico sem abrir mão da literariedade, transbordando qualquer tentativa de categorização. Deve ser por conta de tamanho feito que a atrevida andou se comparando a um dos maiores personagens da literatura universal: "Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçado paninho louco, paninho aqui da pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Aguento qualquer discussão. A mim ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado — bonequinha de circo. Dona Quixotinha..."


Publicado no "Caderno de Sábado" do jornal Correio do povo (Porto Alegre, 10 de outubro de 2015).
Doutoranda em Teoria da Literatura, bolsista CNPq, autora de Mãos de Amanda.

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