Combater vícios, ensinar virtudes: o ideal católico tridentino em Sermões de autos-de-fé da Inquisição Portuguesa

October 10, 2017 | Autor: Luís Fernando Costa | Categoria: Inquisição Portuguesa, Concilio De Trento, Reforma Católica, Sermão de auto-de-fé
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COMBATER VÍCIOS, ENSINAR VIRTUDES: O IDEAL CATÓLICO TRIDENTINO EM SERMÕES DE AUTO-DE-FÉ DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA (1563-1618)1 Luís Fernando Costa Cavalheiro2

Resumo: O Concílio de Trento (1545-1563) recomendava aos pregadores estimular seus fiéis para melhor se conhecerem enquanto católicos. O procedimento consistiria em saber quais eram as virtudes a serem seguidas e quais os vícios a serem combatidos. Naqueles anos, uma agravada crise causava preocupações com a recuperação da fé cristã. A difusão dos Evangelhos tornava-se uma urgência para que os católicos de Roma sentissem-se parte do rebanho de Deus. Cabia a quem subisse ao púlpito ser a voz de Cristo presente na Sagrada Escritura e torná-la próxima de seus ouvintes. O pregador, portanto, constituiu-se em um elemento basilar da Reforma Católica. É dessa conjuntura histórica que este artigo tratará. Em especifico, será abordada de qual forma a recomendação tridentina era pregada em Portugal, no início do século XVII. Para isso, serão utilizados dois sermões pregados pelo jesuíta Francisco de Mendoça, em autos de fé da Inquisição portuguesa, entre 1616 e 1618. Palavras-chave: Sermões de autos de fé, Inquisição Portuguesa, Concílio de Trento. Abstract: The Council of Trent (1545-1563) recommended to the preachers to stimulate the congregation to know themselves better as Catholics. The proceeding would to know what virtues were to be followed and what vices were to be rejected. In those years, a deep crisis created preoccupations about the recovery of Christian faith. The spread of the Gospel became urgency to the Catholics of Rome feel as part of God's flock. It was up to those who ascend at the pulpit to be the voice of Christ present in the Holy Scripture and make it closer to its listeners. The preacher, therefore, was a fundamental element of the Catholic Reformation. It is about this historical context that this article will attend. Specifically, will be addressed how the tridentine recommendation was preached in Portugal, in the early of the seventeenth century. For this, will be use two sermons preached by the Jesuit Francisco de Mendoça in autos de fé of the Portuguese Inquisition, between 1616 and 1618. Keywords: Autos da fé, Sermon, Portuguese Inquisition, Council of Trent. 1

Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.

Graduado em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR). Bolsista CNPq. 2

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Trento, 1563: após longos dezoito anos, chegava ao fim o Concílio Ecumênico que visava estabelecer bases para reformar a Igreja Católica Romana. Desde fins da Idade Média, críticas internas e externas e ameaças constantes de cisões desafiavam o rebanho católico. Pestes, guerras, corrupção pareciam demonstrar a ira divina lançando suas pragas e seus castigos (MULLETT, 1985, p. 17). Para piorar, protestantes fundavam novas igrejas e tomavam ovelhas católicas. As fragilidades da Igreja Romana estavam expostas; era preciso enfrentar tamanha desestruturação. Em 1545 o Papa Paulo III convocou os cardeais de seu clero para discutir as mudanças necessárias. Entretanto, a reunião não terminaria no seu pontificado, nem no de seu sucessor: quatro papas passariam pelo trono de São Pedro. Os dezoito anos foram longos não porque o assunto era delicado de ser tratado, mas porque até o contexto parecia impossibilitar qualquer ação. Nos quatro primeiros anos, poucos foram os avanços quando um surto de peste assolou a região e forçou uma súbita interrupção ao Concílio. Nos anos seguintes, as sessões seriam interrompidas em decorrência de guerras religiosas, sobretudo na França. Momentos de incerteza, de graves dúvidas e, principalmente, de crise. Parecia um castigo divino: um Deus vingador para um mundo envelhecido (DELUMEAU, 2009, pp. 335-344). Ou, talvez, uma provação, em proximidades do Juízo Final, para saber quem pertencia ao fiel rebanho do Senhor (DELUMEAU, 2009, pp. 325-334). Em todo caso, em 1562 os debates estavam quase todos finalizados, chegando aos últimos pontos no ano seguinte. Trento, no entanto, não se preocupou em dar uma resposta ao protestantismo. Buscou, muito mais, reafirmar o que era e como ser católico. Por isso, a necessidade de reafirmação dos sacramentos. A confissão, por exemplo, tornou-se emblemática com a criação do confessionário, um espaço para que o fiel pudesse dizer no mais íntimo do seu ser todas as suas falhas e assim ser remisso dos seus pecados e reconciliado com Deus. A Igreja procurou ficar mais próxima

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do seu rebanho, para que evitá-lo de deixar cair em heresia. Por outro lado, o católico deveria procurar meios de se afirmar como tal. Um dos alicerces dessa renovação católica centrou-se na importância da transmissão das Sagradas Escrituras. O segundo capítulo da quinta sessão dos decretos tridentinos, intitulado “Dos pregadores das palavras de Deus” enfatizava a preocupação: Porquanto não é menos necessária à República Cristã a pregação do Evangelho, do que a lição; (...) e todos os mais Prelados da Igreja estão obrigados a pregar por si mesmos o Evangelho de Jesus Cristo, não estando legitimamente impedidos. (...) E se algum desprezar o cumpri-lo, saiba que o espera um rigoroso castigo (O SACROSSANTO E ECUMÊNICO CONCÍLIO DE TRENTO, 1785, p. 85)

As propostas reformistas não se encerraram em 1563. Muito pelo contrário: foram elas a divulgação de novas preocupações para o catolicismo, que agora deveria ter maior inquietude com seu comportamento e com a expiação de seus pecados. Do contrário, os castigos de outrora poderiam voltar. Mas era preciso saber como não cair mais em erros. Aqui entra o objeto deste artigo: cabia ao pregador e à sua prédica apresentar com “palavras breves e claras os vícios de que se devem apartar e as virtudes que devem seguir” (O SACROSSANTO E ECUMÊNICO CONCÍLIO DE TRENTO, 1785, p. 87 ). Nas páginas que seguem, acompanharemos como os vícios e as virtudes eram pregadas em Portugal no início do século XVII. Assim teremos nas palavras do jesuíta Francisco de Mendoça, em sermões pregados em autos-de-fé da Inquisição portuguesa, um em 1616, na cidade de Évora e outro em 1618, em Coimbra. A escolha de dois sermões justifica-se para melhor apresentar convergências e divergências nos comportamentos viciosos e virtuosos. Esta proposta faz parte de uma dissertação de mestrado previamente intitulada “E Cristo é a única voz de todo o mundo: a defesa da Respublica Christiana nos Sermões de autos-de-fé da Inquisição Portuguesa” e o que se oferece aqui é uma primeira tentativa de estabelecer elementos para subsidiar a análise do corpo documental. Por isso, então, seguiremos uma trajetória iniciada nos autos-de-fé; conheceremos os possíveis espectadores, o púlpito e as palavras lá proferidas.

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O CORPO DE CRISTO: OS AUTOS DE FÉ Auto-de-fé significava, em sentido literal, ato da fé, uma recuperação da fé católica. Fazia parte, ainda, de um modelo literário muito importante para o momento: os autos teatrais – como, por exemplo, o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. A representação teatral era uma função fundamental naquelas circunstâncias, sobretudo pela sua inserção em uma sociedade em que gestos e vozes eram mais compreensíveis do que papéis e escritas. *** Coimbra, 25 de novembro de 1618: ainda na aurora, cento e vinte e seis réus – sessenta e um homens e sessenta e cinco mulheres – saíram pelas ruas em procissão. Ao longo do trajeto eram acompanhados de perto pelos familiares da Inquisição, aos quais cabia a tarefa de provocar o arrependimento dos culpados. Na igreja da matriz e das redondezas os sinos tocavam convidando os moradores a seguir o caminho. Logo em seguida, saíram o inquisidor D. Fernão Martins Mascarenhas e outras autoridades religiosas, dentre eles o jesuíta Francisco de Mendoça, responsável pela pregação naquele auto. O destino era a praça da cidade. Lá estava montado um cadafalso e ao seu redor uma estrutura para acomodar o público. Ao amanhecer o dia, a procissão chegou ao fim. Ao chegar ao local, iniciou-se uma missa entoada pelo tradicional hino de louvor Veni creator spiritus. Ao findar, Francisco de Mendoça subiu ao púlpito com um sermão cujo exórdio foi tirado do livro de Isaias. A prédica demonstrava preocupação com os pecados e os erros do antigo povo de Israel. Mendoça clarificou suas palavras dividindo-as em dois conjuntos: apresentar os pecados do povo judaico e, em seguida, anunciar os possíveis castigos que aquele povo sofreria. O pregador não se preocupou com o número de réus e fez uma pregação que provavelmente foi longa, pois quando passou pela imprensa contava com

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cerca de 60 folhas.3 Ao fim rezou-se um Pai Nosso. Em seguida, outro clérigo subiu à tribuna para a leitura do Édito da Fé, condenando e ameaçando de excomunhão quem não colaborasse como Santo Ofício. Logo depois passou-se à leitura dos crimes e das condenações dos culpados. Naquele dia ninguém foi relaxado ao braço secular, ninguém foi condenado à morte (MOREIRA, 1863, fls. 60v-63v).4 A sequência dos ritos mencionados foi uma constante nos autos. Era parte de um ritual minimamente cuidado, não deixando escapar nenhum detalhe. Toda aquela situação tinha que passar ao público a sensação de que ele, de alguma forma, triunfaria diante da heresia. O domingo da imolação do inimigo mais parecia com o Juízo Final, um artifício cuidadosamente encenado para evidenciar ao cristão que no julgamento divino ele seria o escolhido para o reino de Deus (BETHENCOURT, 2000, p. 277). Uma catarses e espalhava e “o povo sentia-se protegido e purificado com estas imolações que se desenrolavam segundo um cerimonial majestoso e santificador” (SARAIVA, 1985, p. 111). Mas quem eram essas pessoas que acompanhavam essas cerimônias? O que as motivavam em participar? O que elas procuravam? Para compreender as intenções dos pregadores será preciso conhecer os ouvintes de sua prédica. É o que faremos a seguir.

OS OUVIDOS DO REBANHO DE CRISTO Muitos daqueles que se dirigiam ao local do auto-de-fé tinham naquele dia uma festividade. A festa, aliás, tornava-se cada vez mais necessária após Trento. Ao adentrar o século XVII, os festejos caracterizavam uma forma de fugir das agonias causadas aos homens. (MARAVALL, 2009, p. 379). Tratava-se de “uma época trágica”, conforme afirmou José António Maravall (MARAVALL, 2009, p. 248). Por isso, então, cada vez mais se incorporava novos instrumentos musicais aos louvores. O Veni creator spiritus, inicialmente cantado em coro foi ganhando Quando o número de réus era muito elevado, o tempo do sermão era diminuído ou suprimido. Essa medida era importante para não estender o auto-de-fé para mais de um dia, pois quanto maior era o tempo dispensado, maiores eram, também, os gastos. cf. SARAIVA, 1985, p. 110. 4 Não foi encontrada nenhuma referência sobre a sequência dos ritos do auto-de-fé de Évora, em 1616. Nas Colleções de Listas impressas e manuscriptas dos autos-de-fé, de António Joaquim Moreira, não constava nenhuma informação sobre o referido auto. 3

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ritmos de trombetas e tambores. Quem lá estava precisava organizar uma grande festa para que se fizesse justiça aos culpados –caráter jurídico – e para que o Juízo Final não fosse marcado com o medo de condenação aos fiéis, mas como a garantia de uma bela entrada aos reinos dos céus – caráter religioso (MORENO MARTÍNEZ, 1997, p. 146). Pelo auto circulavam diversas pessoas. Desde importantes autoridades, como o inquisidor, até o fiel mais simples que morava aos arredores de onde se realizava o espetáculo (MORENO MARTÍNEZ, 1997, p. 145). A curiosidade de saber quem eram os culpados, quais os seus erros atraía uma multidão. Muito provavelmente, o simples fiel era a maioria. A maioria deles tinha pouca ou nenhuma instrução e encontrava na pregação a oportunidade de conhecer melhoras Sagradas Escrituras, para assim ficar mais próximo de Deus. Por outro lado, a exigida contribuição com a Inquisição fazia dos autos um momento de declarar-se católico e evitar a excomunhão. De qualquer forma, o auto-de-fé era um momento raro, afinal acontecia apenas uma vez por ano e, quando muito, duas. Isso reforçava a necessidade de participar e sentir-se parte daquele rebanho que triunfaria na fé. Nada parecia impedira participação do povo, nem mesmo a possibilidade de intempéries, conforme surpresa do Inquisidor de Lisboa, D. João de Melo, em uma carta enviada ao rei D. João III, narrando o auto-de-fé de1544: Senhor – hoje, terça-feira, quatorze deste mês [de junho], se fez nesta cidade [de Lisboa] o auto-de-fé e acabou-se, Nosso Senhor seja louvado, com muito sossego; e houve que por seu serviço fazer muito bom dia, sendo a noite e os dias passados de grandes tempestades, o que não causou pouco crédito no povo em ser negócio de serviço de nosso Senhor,e que o parecia favorecer. (D. João de Mello, apud AZEVEDO, 1921, p. 450)

Esse simples fiel era uma das grandes preocupações para a pregação do dia. Era a ele quem deviam dirigir-se as palavras a demonstrar os vícios e as virtudes. Cabia ao pregador a tarefa de provocar. Outra vez devemos compreender o ambiente em que estava inserido aquele homem, aquela mulher que ao amanhecer do domingo dirigia-se ao local do espetáculo: O homem, segundo se pensa no século XVII, é um indivíduo em luta, com toda a comitiva de males, que à luta acompanha, com os possíveis proveitos que também a dor traz consigo, mais ou

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menos ocultos. (...) encontra-se o indivíduo em combate interno consigo mesmo, fonte de tantas inquietações, cuidados e até violências que do seu interior brotam e se projetam com o mundo e com os demais homens. O homem é um ser agônico, em luta dentro de si (MARAVALL, 2009, p. 260-261).

Essa agonia causada por convulsões e crise no homem poderia encontrar uma saída nas pregações, na existência da Inquisição, na participação da missa, no acompanhamento do auto-de-fé. No revivescer da fé em Deus, portanto. Mas estes não eram os únicos ouvintes presentes. Havia um público marginal: era ele o réu que estava na condição de escolher uma possível remissão de seus pecados e, por conseguinte, a reconciliação ao seio cristão. A pregação para eles, provavelmente, era mais dificultosa, pois para além de persuadir era preciso admoestar. Muito do que era dito ao cristão para convencê-lo sobre a gravidade dos vícios era também uma forma de amedrontar os acusados, causando um abalo psicológico. O medo condicionaria o culpado a conhecer suas falhas, assumindo-as e levando-os ao arrependimento. E de qual forma, então, o pregador expunha os vícios e as virtudes para seu diversificado público? Como era possível estabelecer uma relação entre o público e o Santo Ofício? Quais eram seus objetivos? Conheceremos, agora, como a “voz de Cristo” se pronunciava.

A VOZ DE CRISTO: O PREGADOR E A PRÉDICA Uma das preocupações da Reforma Católica era em como as palavras atingiriam os ouvintes. Nenhuma limitação ou imposição de estilo ficou clara, mas de alguma forma a resolução do Concílio de Trento convidava o católico a melhor se conhecer. Michael Mullet demonstra que foi a partir dessa conjuntura que as sensibilidades foram tomadas como um importante elemento de doutrinação:

os católicos foram então encorajados, mais do que anteriormente, a sentir a sua religião: quando se festavam, por exemplo, eram estimulados a sentir um desgosto emocional pelos seus pecados e mesmo arrependimento por terem causado sofrimento a Cristo (MULLETT, 1985, p. 66; grifo meu). 302 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.

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Buscava-se, assim, uma fé mais emotiva do que intelectual, para “vincular a alma mais ao coração do que à inteligência” (MORÁN; ANDRÉS-GALLEGO, 1995, p. 119). Contudo, não era qualquer um que poderia ser pregador em um auto-defé. Geralmente, o episcopado apontava três possíveis nomes para, em seguida, apenas um ser escolhido. Quando eleito para assumir o púlpito, o pregador recebia uma lista com os nomes e as acusações levadas ao cadafalso no domingo. Francisco Mendoça ficou encarregado desta tarefa por duas vezes na segunda década do século XVII. 5 O pregador, então, seria a voz de Cristo, assim como se fazia nas parábolas. Da mesma forma que Jesus recomendava uma busca incansável por qualquer ovelha desgarrada do seu rebanho, a Igreja Reformada assumiu como uma de suas falhas o distanciamento entre o clero e o leigo e, assim, precisava reverter essa situação (MULLETT, 1985, p. 20). A partir de então, estabeleceram-se dois planos evangelizadores: a recuperação e a consolidação da fé, pautadas no fortalecimento da formação de seminários paroquiais. (MORÁN;ANDRÉS-GALLEGO, 1995, p. 118). Por conseguinte, “a noção do padre como orientador paternal e g u i a d o s l e i g o s i n v a d i u a C o n t r a R e f o r m a ” (MULLETT, 1985, p. 27). Conforme bem destacou Jean Delumeau, a Reforma Católica foi uma reconquista das massas, as potenciais ovelhas que poderiam fugir do rebanho (DELUMEAU, 1967, pp. 102107). Assim, os autos-de-fé foram perdendo o caráter de teatro sacro para tornarem-se espetáculos de massa (NAZÁRIO, 2002, pp. 91-109). No sermão pregado em 1618, o próprio Francisco de Mendoça apresentava-se como um representante de Deus no púlpito: “Já antigamente matastes e apedrejastes os Profetas de Deus (...) não mateis, não apedrejeis agora ao próprio Deus, que aqui vos prega”. (MENDOÇA, 1618, fls. 3-3v). M a s quem eram estes que outrora mataram e apedrejaram os profetas? Era o povo judaico, a grande preocupação de Mendoça. Nas duas vezes em que esteve com a palavra, Até o momento da pesquisa, estas foram as informações sobre o jesuíta Francisco de Mendoça. Na dissertação, a preocupação não será em mapear a trajetória dos pregadores, tendo em vista que serão muitos (algo em torno de 20 pregadores diferentes). A intenção será em fazer uma análise cultural e social da pregação na sociedade portuguesa do século XVII, tendo como espaço privilegiado o púlpito da Inquisição. 5

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Francisco de Mendoça foi enfático: os judeus eram os opositores dos católicos. Eram eles, então, os vícios a serem apartados. Em boa medida, ambas as pregações de Mendoça se repetem e confluem para uma só argumentação: os judeus fingiam sua fé. Assim ele demonstrou ao dividir o povo judaico em duas gerações: a primeira seria a dos pais, contemporâneos a Jesus Cristo; a segunda seria a dos filhos, coetâneos à prédica. A culpa dos pais foi ao recusar Cristo enquanto o Messias prometido pelas profecias. Pior do que isso, mataram-no e assim perderam tudo que tinham Depois que o povo Judaico matou e crucificou a seu verdadeiro Messias e pediu a Deus que o sangue deste inocentíssimo cordeiro viesse sobre ele e sobre todos seus filhos (...) depois que fez esta execração tão blasfema contra si, qualficou? (...) Ficou confiscado em todos os seus bens, assim temporais, como espirituais. E ficou relaxado do trono da misericórdia divina para o tribunal da justiça divina (MENDOÇA, 1618, fl. 13).

Desde então, os judeus ficaram desterrados pelo mundo. Assim aconteceu com as gerações seguintes, até chegar naquela da segunda década do século XVII. O pecado, agora, tinha uma proporção ainda maior, pois: o pecado de seus filhos, que sois vós, os que ainda hoje aprovais e ratificais, e pondes o selo ao que vossos pais fizeram, é pecado profundo. Porque é pecado por fingimento e por engano, e por hipocrisia e por falsidade, e com uma coisa na boca e outra no coração (MENDOÇA, 1616, fl. 3; grifos meus).

O fingimento não era uma simples designação do oponente, era uma constatação: “pois esta cegueira Judaica é uma peste, se andar por entre nós fingida, e encoberta e solapada: coitado de ti, Portugal!” (MENDOÇA, 1616, fl. 14). Por isso, então, expressões como cegos, duros, pertinazes, obstinados eram comuns para demonstrar os judeus. A exortação reforçava que os ritos judaicos não eram condizentes com os cristãos: “essas vossas cerimonias judaicas que guardais, de onde tirastes? Da Escritura? Bem parece que nunca a lestes e pelo menos que nunca a entendestes” (MENDOÇA, 1618, fl. 18v). Muito mais que um fingimento, uma repetição. Uma expressão, contudo, saltou aos olhos: no sermão de 1618, Mendoça categoricamente chamou os judeus de cepa: é o povo judaico uma vara cortada da cepa.(...) Enquanto a vara está na

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cepa com folha e fruto, não há coisa mais proveitosa; depois que se[é]cortada[a] cepa só para o fogo serve.Tal [é] o povo judaico, enquanto estava unido com Deus e com seu verdadeiro Messias, por fé, esperança e caridade não havia melhor povo. Depois que deixou a Deus e renunciou o Messias e perdeu a fé e fez naufrágio de todas as mais virtudes sobrenaturais, para que pode servir no mundo senão para o fogo? (MENDOÇA, 1618, fls. 28v-29; grifo meu)

Além de ser um perigo que deveria ser isolado por fazer mal à cristandade, os judeus perderam suas virtudes. Francisco Mendoça colocava aos olhos dos seus ouvintes a imagem do triunfo da fé católica: uma cepa sendo jogada ao fogo. Tratava-se de uma metáfora, um recurso retórico amplamente utilizado nas pregações para definir o outro. Segundo Marina Massimi, entre o final do século XVI e início do XVII, a metáfora era utilizada como forma de provocar a sensibilidade em quem ouvia, aguçando a imaginação e a memória. Por conseguinte, elas ensinavam: “as metáforas teatralizavam as virtudes (...). As palavras guiavam o olho da mente para que este observasse os conceitos abstratos, de tipo moral, associados a cada pormenor delas” (MASSIMI, 2005, p. 27). Mendoça, porém, não se preocupou só com condenações. O pregador também aconselhou aos judeus, certamente a maioria entre os réus, a entregaremse a Deus para não perder o pouco que ainda restava: “já que perdeis a terra, não percais o Céu; já que perdeis a vida transitória, não percais a eterna; já que perdeis os corpos, não percais as almas.” (MENDOÇA, 1616, fl. 16v). Em esmo tendo exposto que o maior pecado dos judeus fora a morte de Cristo, ao Senhor recorria para atingir o perdão pelas falhas judaicas: “Lembrai-vos, Senhor JESUS, que vós pusestes nessa Cruz e derramastes [o] vosso sangue e destes a vossa vida, não só pelo povo Cristão, senão também pelo povo Judaico.” (MENDOÇA, 1616, fl. 15). Se os judeus eram os vícios, cabia aos católicos serem virtuosos e praticarem a fé, a misericórdia, a piedade e o perdão.

CONSIDERAÇÕESFINAIS Lisboa, 1497: cerca de vinte mil judeus dirigiram-se ao porto na esperança de embarque para terras além de Portugal. Em dezembro do ano

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anterior, D. Manuel, rei português, assinara um contrato de núpcias com Isabel, filha dos Reis Católicos, Fernando e Isabel. Um dos pedidos das coroas hispânicas foi a expulsão dos judeus das terras lusas. D. Manuel atendeu e estabeleceu um prazo de dez meses para a saída; ao aproximar-se do fim uma multidão procurava os portos para zarpar. Contudo, a esperança tornou-se desespero. Temendo perder uma importante parcela econômica de seu reino, o soberano português autorizou uma conversão forçada aos judeus. Oficialmente, não existiriam mais comunidades judaicas, apenas cristãs, que seriam divididas entre cristãos velhos e cristãos novos. Os ecos da voz de Francisco Mendoça soa-nos um certo estranhamento, parecendo demonstrar contradição. Ao voltarmos às palavras do pregador, notamos veementes afirmações contra judeus e não contra cristãos-novos, mesmo passados mais de cem anos após a conversão. Mesmo chegando às linhas finais cabe-nos, ainda, uma pergunta: qual seria a intenção de Mendoça nessa constante repetição de uma existência judaica em Portugal no início do século XVII? Seria simplório acreditar que o problema era o judeu. Não, esta não era a questão a ser resolvida. O judeu, enquanto tal, era muito mais uma alegoria dos antepassados, um eco, quase uma metáfora. O problema era o comportamento judaico: sua falsidade, sua obstinação, sua repetição nos ritos ancestrais. O fingimento claramente era uma forma de demonstrar a falta de credibilidade na conversão judaica ao catolicismo: Cativai-os, Senhor, e espalhai-vos por todo mundo. (...) Para que com este cativeiro testemunharem por todo o mundo sua falsidade e nossa verdade. Mas ah miserável povo. (...) Espalhados e esquartejados por todas as quatro partes do mundo; mas nem por isso convertidos, nem arrependidos de suas culpas (MENDOÇA, 1618, fl. 21).

Este era o exemplo de vício a ser combatido. Um católico deveria assumir seus erros, arrepender-se, pedir perdão, conseguir remissão e ser reconciliado. Não era esse um dos sacramentos da reforma tridentina, a confissão? Além de estar próximo ao leigo, numa espécie de intermediário de Cristo, o pregador deveria, também, estimular o arrependimento, a exposição dos sentimentos, para que os comportamentos do fiel rebanho não fossem iguaisao do infiel. Mendoça,

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portanto, apresentou exemplos. Evangelizou em um momento de crise humana. Muito mais do que isso, reeducou. Afinal, esta era a função da prédica: reordenar o aprendizado que desde criança, como batismo, ao católico é apresentado. No autode-fé, essa função era ainda mais específica: sua finalidade comum era sempre pedagógica. De uma parte, estimular positivamente a participação e integração voluntária no sistema, ensinar a não transgredir a norma e marcar as pautas para o reto comportamento; de outra, inculcar à sociedade o ódio à heresia mostrando-lhe os meios para defender- se dela (GONZALES DE CALDAS, [s.d.], p. 241).

A intenção de Francisco de Mendoça e da Igreja Católica de fins do século XVI e início do XVII era muito mais que expiação de comportamentos e pecados. Era uma tentativa de reencontro com a proposta primitiva do catolicismo, de uma fé universal, atingida por todos e assim expressa. Mendoça demonstrou que isso era possível: até mesmo bárbaros de terras distantes, como da Noruega, converteram-se e deixaram de ter vozes de brutos para tomarem “umas línguas suavíssimas de Anjos, para louvarem a Cruz do Senhor.” (MENDOÇA, 1618, fl. 31). A exceção estava no fingimento, que, no entanto, era advertido para pertencer à voz de Cristo. E assim, finalmente Cristo seria a única voz de todo mundo. (MENDOÇA, 1618, fl. 31).

REFERÊNCIAS

Fontes:

“Carta do Inquisidor João de Mello a D. João III.” Apud. AZEVEDO, João Lucio. História dos Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1921. MOREIRA,António Joaquim. Colleção de listas impressas e manuscriptas dos autos-de-fé públicos e particulares celebrados pela Inquisição de Coimbra. Lisboa:[s.e.]1863. Disponível em: . Acesso em 16 de novembro de 2013.

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O Sacrossanto e ecumênico Concílio de Trento. Em latim e português. Dedicado e consagrados aos excelentíssimos e reverendíssimos senhores arcebispos e bispos da Igreja Lusitana. Lisboa, 1781, tomo I. Disponível em: Acesso em 16 de novembro de 2013. Sermam que pregou o muyto reverendo padre Francisco de Mendoça da Companhia de Jesus no auto publico da FEE que se celebrou na praça da cidade de Évora Domingo 8 de junho de 1616. Disponível em: Acesso em 16 de novembro de 2013. SERMÃO QVE FES O PADRE DOVTOR FRANCISCO DE MENDOÇA DA COMPANHIA DE IESV, no Auto da Fé, que se celebrou na praça da cidade de Coimbra a 25 de Nouembro do anno de 1618. Disponível em: Aacesso em 16 de novembro de 2013.

Referências bibliográficas: BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália – séculos XV XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. DELUMEAU, Jean. La Reforma. Barcelona: Editorial Labor, 1967, pp.102-107. GONZALES DE CALDAS, Maria Victoria.“Nuevas Imágenes del Santo Oficio en Sevilla: el auto de fe”. In:ALCALÁ, A. Inquisición Española y Mentalidad Inquisitorial. Barcelona: Ariel, [s.d], p.241 MARAVALL, José António. A Cultura do Barroco. Trad. Silvana Garcia. São Paulo: Edusp, 2009. MASSIMI, Marina. Palavras, almas e corpos no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 308 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.

Luís Fernando Costa Cavalheiro

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