Comentário à Sentença do Tribunal de Justiça proferida, em 25 de Fevereiro de 2010, no quadro do caso Car Trim: revisita ao artigo 5.o, número 1, do Regulamento «Bruxelas I»

July 5, 2017 | Autor: M. Matias Fernandes | Categoria: Private International Law
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Breves palavras prévias Seria mais adequado um texto de grande fôlego? Por certo seria. O despretensioso comentário que segue não está à altura do jurista e Professsor de excepção que foi Inocêncio Galvão Telles. Nem mesmo à altura da enorme admiração que suscitava entre os seus mais indiferenciados alunos. Ainda assim, ciente do privilégio de ter sido um deles, aqui o deixo como testemunho de profundos admiração e respeito.

Comentário à Sentença do Tribunal de Justiça proferida, em 25 de Fevereiro de 2010, no quadro do caso Car Trim: revisita ao artigo 5.º, número 1, do Regulamento «Bruxelas I»

§ 1. Introdução

Não é pela primeira vez que nas páginas desta Revista ensaiamos anotação a decisão judicial gravitando em torno do número 1 do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial («Bruxelas I»)1. Toma-se por objecto de análise, desta feita, um aresto, recente, do Tribunal de Justiça2. Por seu intermédio, o tribunal do Luxemburgo ofereceu resposta a um pedido de decisão prejudicial submetido pelo Bundesgerichtshof alemão3 e, Cf. “A Competência Judiciária para o Conhecimento de Litígio Emergente de Contrato de Concessão Internacional. A Propósito de Duas Decisões do STJ”, O Direito, Ano 141.º (2009) II, 461-497. 2 Decisão proferida, pela sua Quarta Secção, a 25 de Fevereiro de 2010, no caso Car Trim (C-381/08), publicada no JO C/100, de 17 de Abril de 2010 (p. 4). 3 Tendo dado entrada no Tribunal de Justiça em 22 de Agosto de 2008, o pedido do Bundesgerichtshof encontra-se publicado no Jornal Oficial da União Europeia C-301, de 22 de Novembro de 2008 (pp. 15-16). 1

fazendo-o, deu novo contributo para a interpretação e a aplicação uniformes daquela disposição do Regulamento. Considerar-se-ão, sucessivamente: os factos subjacentes ao processo principal e as questões submetidas, a título prejudicial, pelo tribunal germânico (§2); a relevância da distinção, e a posição firmada em relação a ela por parte do tribunal europeu, entre os contratos de compra e venda e os contratos de prestação de serviços (§3); o problema atinente à determinação do lugar do cumprimento no quadro de uma venda que implica o transporte de mercadorias4, sua equacionação e resolução pela instância comunitária (§4).

§ 2. Os Factos Subjacentes ao Processo Principal e as Questões Submetidas, a Título Prejudicial, ao Tribunal de Justiça das Comunidades

A Key Safety, uma sociedade estabelecida em Itália e que tem por objecto o fornecimento de sistemas de airbags a fabricantes de automóveis, celebrou com a Car Trim cinco contratos tendo em vista a aquisição de componentes que entram no fabrico desses sistemas. Reagindo à rescisão dos acordos por parte da Key Safety, a Car Trim demandou a sociedade transalpina sob a alegação de incumprimento contratual. Declinou conhecer do mérito da causa o Landgericht de Chemnitz, o qual invocou a incompetência internacional dos tribunais alemães. Vindo este entendimento a ser secundado pelo Oberlandsgericht, a Car Trim recorreu para o Bundesgerichtshof. Acabou por constituir decisão deste tribunal superior a suspensão da instância e a submissão ao Tribunal de Justiça das seguintes duas questões prejudiciais: 1ª) O artigo 5.º, n.º 1, alínea b), deve ser interpretado no sentido de que os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir devem ser qualificados como uma venda de bens (primeiro travessão) e não como uma prestação de serviços (segundo travessão), mesmo quando o cliente tenha formulado certas exigências a respeito da aquisição, da transformação e da entrega dos bens a fabricar, incluindo uma garantia da qualidade da produção, da fiabilidade dos fornecimentos e da boa gestão administrativa das encomendas? Quais são os critérios a que obedece esta delimitação?

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Cf., infra, nota 35.

2ª) Se se estiver perante uma venda de bens: no caso de vendas à distância5, o lugar onde, nos termos do contrato, os bens vendidos foram ou devem ser entregues deve ser determinado de acordo com o lugar da entrega material ao comprador ou de acordo com o lugar onde os bens são entregues ao primeiro transportador com vista à sua transmissão ao comprador?

§ 3. A diferenciação, no quadro do número 1 do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 («Bruxelas I»), entre os contratos de compra e venda e os contratos de prestação de serviços: a relevância da questão e tomada de posição, com relação a ela, por parte do Tribunal de Justiça

Concorrendo com o artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 20006, o qual fixa o domicílio do réu como nexo de competência geral, o artigo 5.º do mesmo instrumento consagra, em domínios materiais diversos, regras de competência especiais. Expressão da ideia de que o tribunal mais próximo dos factos relevantes para a decisão (também) deve deter competência (internacional directa)7, estas regras tornam possível que uma pessoa com domicílio num Estado-Membro seja demandada noutro Estado-Membro8. Pontificam entre tais critérios os que, previstos pelo número 1 do artigo 5.º, regem em matéria contratual. De harmonia com o primeiro, herdado da antepassada Convenção de Bruxelas9, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada, noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a Cf., infra, nota 35. Regulamento esse que, relativo à competência judiciária e ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, foi publicado no JO L, de 16 de Janeiro de 2001. 7 Cf. o Considerando 12. 8 Seja referido que, sublinhando a certeza jurídica como um dos mais importantes objectivos prosseguidos pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 – cf. o Considerando 11 -, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de certificar que a consecução de um tal objectivo “(...) exige, designadamente, que as regras de competência que derrogam o princípio geral (...), tais como o artigo 5.º, ponto 1, sejam interpretadas de modo a permitir que um requerido normalmente prudente preveja razoavelmente em que órgão jurisdicional, para além do Estado do seu domílio, pode ser accionado (...).” (cf. o parágrafo 24 da decisão proferida no caso C-440/97, GIE Groupe Concorde v. Master of the Vessel “Suhadiwarno Panjan”, Colectânea, 1999, I-6307). Cf., mais ainda, os acordãos proferidos nos casos C-26/91, Jakob Handte & Co. GmbH v. Traitements Mécano-chimiques des Surfaces SA, Colectânea, 1992, I-3967, parágrafo 18, e C-256/00, Besix SA v Wasserreinigungsbau Alfred Kretzschmar GmbH & Co. KG (WABAG), Colectânea, 2002, I-1699, parágrafos 26 e 54. 9 Cf. a primeira frase do número 1 do artigo 5.º correspondente. 5 6

obrigação em questão ─ é a lição da alínea a). Inovando em relação àquela Convenção, pertence à alínea b), por seu turno, a individualização da prestação relevante pelo que a dois tipos contratuais concerne: tem-se, assim e nos termos do seu primeiro travessão, que, no caso da venda de bens, o lugar onde a obrigação que serve de base à acção judicial deve ser cumprida coincide com o local onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devem ser entregues; e que, no caso da prestação de serviços, aquele lugar é sobreponível ao local onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devem ser prestados (segundo travessão); tudo a determinar que no quadro de um contrato de compra e venda de bens releve – e apenas releve - (o lugar do cumprimento d)a obrigação de entrega; e que, mais ainda, no quadro de uma prestação de serviços releve – e exclusivamente releve – (o lugar do cumprimento d)a obrigação do prestador de serviços ─ mesmo se a obrigação que serve de base à acção judicial é a do pagamento do preço dos bens ou dos serviços; ainda que o pedido se funde numa pluralidade de obrigações10. Enfim, pertence a alínea derradeira, a c), a determinação de que, não sendo aplicável a alínea b), cobra pertinência a alínea a)11. Resulta do brevemente exposto que, apoiado em esquema normativo complexo, o número 1 do artigo 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 obriga a tarefa de caracterização preliminar. Respeite o litígio a uma venda de bens e internacionalmente competente será, nos termos do primeiro travessão da alínea b), o tribunal do lugar onde os bens foram ou devem ser entregues; esteja em causa pretensão emergente de uma prestação de serviços e competente será, ex vi do segundo travessão, o tribunal do Estado onde os serviços foram ou devem ser prestados; enfim, trate-se de contrato não reconduzível a qualquer um daqueles tipos e internacionalmente competente será, então, o tribunal individualizado nos termos da alínea a). Reconhecidamente, reside nesta necessidade de caracterização – compra e venda de bens? prestação de serviços? outro tipo contratual? - uma das dificuldades inerentes ao manejo do número 1 do artigo 5º do Regulamento. Com ela já se

Cf., neste sentido, a Exposição de Motivos que acompanha a Proposta pela Comissão apresentada em 14 de Julho de 1999 [COM(1999)348 final], pp. 14-15. 11 Deve notar-se que, por isso que a alínea b) pressupõe que o lugar do cumprimento da obrigação de entrega dos bens ou da prestação de serviços ocorra no território de um Estado-Membro, o recurso à alínea a) terá lugar, mesmo tratando-se de uma venda de bens ou de uma prestação de serviços, uma vez que tal cumprimento tenha tido ou deva ter lugar fora dos limites daquele espaço geográfico (neste sentido, cf. a referida Exposição de Motivos, p. 15). 10

confrontara o Tribunal de Justiça12. Com ela volta a confrontar-se, nesta ocasião mais, o tribunal comunitário. Colocada à sua apreciação é, desta feita, a questão de saber se ainda há lugar a divisar um contrato de compra e venda aí onde a parte obrigada à entrega dos bens tem, no fabrico e entrega dos mesmos, de se acomodar a especificações, a exigências e a instruções da contraparte. Segundo pode ler-se no acórdão anotando, “(...) os contratos obrigavam a [Car Trim] a fabricar, como fabricante de equipamentos automóveis, airbags de uma determinada forma, com produtos comprados a fornecedores pré-determinados, para os poder entregar mediante encomenda, segundo as necessidades dos processos de produção da sociedade Key Safety e segundo um grande número de prescrições relativas à organização do trabalho, ao controlo de qualidade, à embalagem, à etiquetagem, às encomendas e às facturas.”13. Donde, o dilema: constitui um contrato de compra e venda, para os efeitos do número 1 do artigo 5.º do Regulamento «Bruxelas I», o contrato relativo ao fornecimento de mercadorias que devem ser fabricadas ou produzidas e fornecidas segundo as exigências do adquirente ou, diversamente, está-se já, no quadro de uma tal hipótese, perante contrato de prestação de serviços? Eis, em síntese breve, uma das questões, a primeira, levadas à apreciação do Tribunal de Justiça. Ocioso explicitá-lo, a sua relevância com relação ao problema da determinação da competência jurisdional projecta-se nas situações em cujos quadros o lugar da entrega dos bens não coincide com o lugar da prestação dos serviços14.

Assim, cf. o acórdão de 23 de Abril de 2009, proferido no caso C-533/07, Falco Privatstiftung und Thomas Rabitsch v. Gisela Weller-Lindhorst, em cujos quadros o Tribunal de Justiça pôde proceder a uma definição parcial negativa do conceito de «contrato de prestação de serviços». Assim é que, na ocasião, declarou que um contrato mediante o qual o titular de um direito de propriedade intelectual concede ao seu co-contratante a faculdade de explorar tal direito em contrapartida do pagamento de uma remuneração não se analisa em contrato de prestação de serviços para os efeitos do artigo 5.º, número 1, alínea b), do Regulamento (cf. o parágrafo 44). 13 Parágrafo 19. 14 Refira-se que, conquanto a delimitação recíproca dos conceitos de compra e venda e de prestação de serviços também cobre sentido no quadro do Regulamento (CE) n.º 593/2008 de 17 de Junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais («Roma I»), a relevância prática da distinção tende, no âmbito deste instrumento unificador de normas de conflitos, a resultar esbatida. Assim porquanto, ao menos tipicamente, ela vai desprovida de projecção no plano do Direito afinal reputado aplicável. Trata-se de uma consequência de o elemento de conexão ser, no quadro da alínea a) como no quadro da alínea b) do número 1 do artigo 4.º do Regulamento «Roma I», a residência habitual do obrigado à prestação característica (o vendedor ou o prestador de serviços), que não o lugar da entrega das mercadorias ou o lugar da prestação dos serviços. Isto dito, permanece intocado que a interrelação hermêutica entre os dois instrumentos - cf., a este propósito, o Considerando 17 do Regulamento «Roma I» - determina que as tomadas de posição do Tribunal de Justiça com referência aos conceitos do Regulamento «Bruxelas I» projectem efeitos com relação à fixação do sentido e alcance dos conceitos homólogos do Regulamento «Roma I». 12

Tendo entendido dispensar o sublinhado de que o artigo 5.º há-de interpretar-se à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do Regulamento (CE) n.º 44/200115, o Tribunal de Justiça encetou a sua aproximação à resolução dos problemas que lhe foram submetidos fazendo notar que, retendo o lugar da prestação de entrega dos bens e o lugar da prestação dos serviços – no quadro da alínea b) do número 1 do artigo 5.º, isto é -, o legislador fixou um critério que atende à prestação característica dos contratos (respectivamente, de compra e venda e de prestação de serviços)16. A implicação é, na perspectiva da instância comunitária, evidente: a de que, estando em causa a justa caracterização de um contrato, “(...) há que atender à [correspondente] obrigação típica (...).”17. Tem-se assim, ainda na expressão do tribunal, que “[u]m contrato cuja obrigação típica é a entrega de um bem será qualificado de «venda de bens» na acepção do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento. [E que, mais ainda, u]m contrato cuja obrigação típica é uma prestação de serviços será qualificado de «prestação de serviços» na acepção do referido artigo 5.º, n.º 1, alínea b), segundo travessão.”18. É raciocinando nestes moldes que o Tribunal do Luxemburgo vem a atribuir relevância particular a conjunto de disposições, de Direito Comunitário como de fonte extra-comunitária, cuja consideração, assevera, proporciona “(...) um indício de que o facto de a mercadoria a entregar dever ser fabricada ou produzida previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda.”19. São pelo Tribunal convocados: i) o artigo 1.º, número 4, da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio de 1999 relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, em cujos termos são considerados contratos de compra e venda, para efeitos do instrumento comunitário em referência, os contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir; ii) o artigo 3.º, número 1, da Convenção das Nações Unidas Sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de conformidade com o qual “[s]ão considerados de compra e venda os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir, a menos que o contraente que as encomende tenha de fornecer uma parte essencial dos elementos materiais necessários para o fabrico ou produção.”;; enfim, o artigo 6.º, número 2, da

Cp. as decisões proferidas nos casos Color Drack (C-386/05, parágrafo 18), Falco Privatstiftung (C-533/07, parágrafo 20) e Rehder (C-204/08, parágrafo 31). 16 Cf. o parágrafo 31 da decisão anotanda. 17 Cf. o parágrafo 32. 18 Ibidem. 19 Parágrafo 38. 15

Convenção das Nações Unidas de 14 de Junho de 1974 Sobre a Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias, com um alcance equivalente ao da disposição da Convenção de Viena acabada de transcrever. E antecipa-se o desfecho lógico. Carreadas as disposições legais indicadas – assim como, mais ainda, uma decisão pretérita do próprio Tribunal de Justiça versando a matéria dos contratos públicos20 -, veio a constituir determinação jurisdicional a de que “há que responder à primeira questão que os contratos cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências relativas à obtenção, à transformação e à entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por este fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e conformidade com o contrato da mercadoria, devem ser qualificados de «venda de bens» na acepção do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento.”21. É o tempo para deixar algumas notas. Uma primeira, relativa ao sentido da decisão, vai dirigida a sublinhar que a mesma incorpora - de resto, em linha com algumas das disposições legais nomeadas - grau de flexibilidade não despiciendo22. Assim, designadamente, porquanto não fecha a porta à possibilidade de que um contrato combinando elementos da compra e venda e da prestação de serviços haja de caracterizar-se como contrato de prestação de serviços. Sem que por isso, note-se – é este o ponto -, saia posta em questão a doutrina agora fixada. Trata-se de consequência que flui da abertura - necessária, do ponto de vista do Tribunal à consideração de circunstâncias cujo modo de concretização varia de caso para caso. Assim, ilustrativamente, a origem dos materiais a transformar, designadamente terem os mesmos, na sua totalidade ou maioria, sido fornecidos por uma ou por outra das partes 23.

Por meio dela, o Tribunal declarou que o conceito de «contratos públicos de fornecimento» constante do artigo 1.º, número 2, alínea c), primeiro parágrafo, da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processo de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, abrange a compra de produtos, independentemente da questão de saber se o produto considerado é colocado à disposição dos consumidores já pronto ou após ter sido fabricado segundo as suas exigências. Cf., para mais desenvolvimentos e pormenores, o parágrafo 39 do acórdão anotando. 21 Parágrafo 43. 22 Assinalando o ponto, cf. P. DE MIGUEL ASENSIO, “La Sentencia del Tribunal de Justiça en el Asunto Car Trim”, disponível em http://pedrodemiguelasensio.blogspot.com/2010/03/la-sentencia-del-tribunal-dejusticia.html, por último consultado em 14 de Maio de 2010. 23 Lê-se no parágrafo 40: “Se o comprador forneceu a totalidade ou a maioria dos materiais a partir dos quais a mercadoria é fabricada, esta circunstância pode constituir um indício a favor da qualificação do contrato como «contrato de prestação de serviços». Em contrapartida, em caso contrário, não existindo fornecimento 20

Ou – não menos relevante, no aviso do Tribunal - o tipo de responsabilidade que impende sobre o fornecedor, designadamente tratar-se de uma responsabilidade circunscrita à observância das indicações do adquirente ou, distintamente, uma responsabilidade que, de âmbito mais vasto, não perde de vista a aferição da qualidade da mercadoria final24. Não passa sem reparo, mais ainda, que, em vista da delimitação recíproca dos conceitos regulamentares de «compra e venda» e de «prestação de serviços», o Tribunal – no que se demarcou do caminho que fora o do Advogado-Geral - lançou mão de disposições substantivas de origem extra-comunitária, caso das sedeadas na Convenção de Viena de 1980 e das contidas na Convenção das Nações Unidas de 14 de Junho de 1974 sobre a Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias25. Justifica-se o sublinhado enquanto, argumentando como argumentou26, o Tribunal empresta força ao ponto de vista segundo o qual a via da interpretação autónoma – por si afirmada, em jurisprudência constante, com relação ao Regulamento (CE) n.º 44/200127 como com relação à antepassada Convenção de Bruxelas 196828 - não se constitui em liminar de materiais pelo comprador, existe um forte indício para que o contrato seja qualificado de «contrato de compra e venda de bens».”. No caso de espécie, a Key Safety não colocara nenhum material à disposição da Car Trim. 24 Assim, lê-se no parágrafo 42: “Se o vendedor é responsável pela qualidade e conformidade com o contrato da mercadoria, que é o resultado da sua actividade, essa responsabilidade fará inclinar a balança para uma qualificação como «contrato de venda de bens». Ao invés, se este só for responsável pela execução correcta segundo as instruções do comprador, essa circunstância milita mais a favor de uma qualificação do contrato como «prestação de serviços».”. 25 Nas Conclusões por si apresentadas em 24 de Setembro de 2009, o Advogado-Geral Ján Mazák apenas se refere a disposições de Direito Comunitário, bem como à jurisprudência do Tribunal de Justiça. Mais, lê-se no parágrafo 20 da referida peça processual que “(...) na medida em que o direito processual utiliza conceitos que têm um conteúdo material, como «bem» e «serviço», (...), é evidente que a interpretação desses conceitos e a sua delimitação respectiva devem ser procuradas, caso a caso, no direito comunitário material, tendo em consideração, em especial, o objecto da utilização de tais conceitos.” (itálico meu). 26 Na caracterização de F. ESTEBAN DE LA ROSA, o Tribunal levou a cabo “una argumentación de textura abierta” (cf. “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I: la Sentencia del tribunal de Justicia de 25 de febrero de 2010”, La Ley, n.º 7392, 30 Abril de 2010, p. 9). 27 Cf., exemplificativamente, o parágrafo 33 do acórdão de 23 de Abril de 2009, proferido no quadro do já aludido caso Falco Privatstiftung. 28 Cf., por exemplo, a doutrina por si afirmada no acórdão proferido em 13 de Julho de 1993, no quadro do caso Mulox IBC Ltd. v. Hendrick Geels (125/92), de conformidade com a qual “(...) essa interpretação autónoma é a única que permite assegurar a aplicação uniforme da convenção, cujo objectivo consiste, designadamente, na uniformização das regras de competência dos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes, evitando, na medida do possível, a multiplicação da titularidade da competência judiciária a respeito de uma mesma relação jurídica, e em reforçar a protecção jurídica das pessoas domiciliadas na Comunidade, permitindo, simultaneamente, ao requerente identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao requerido prever razoavelmente aquele perante o qual pode ser demandado” (cf. o parágrafo 11). Cf., mais ainda, sempre exemplificativamente, os acórdãos proferidos nos casos Petrus Wilhelmus Rutten v. Cross Medical Ltd (C-383/95, parágrafos 12 e 13) e Jackie Farrell v. James Long (C-295/95, parágrafos 12 e 13).

interdição ao recurso a instrumentos jurídicos autónomos. Mesmo se esses instrumentos não têm fonte comunitária. Mesmo se os mesmos não vigoram em todos os EstadosMembros29. Sobra que, discorrendo como discorreu, o Tribunal não se afadigou – e supõese que o deveria ter feito - no alinhavamento de razões susceptíveis de fundar um procedimento metodológico30 cuja bondade não pode dar-se por adquirida31. Enfim, aventa-se que, posto nenhum dos textos legais trazidos à colação levar por objecto a resolução de questões atinentes ao domínio da competência internacional dos tribunais, ter-se-ia justificado que a instância decisora se houvesse detido na explicitação das razões por que, atentos os interesses que se jogam no domínio da competência internacional, a solução a que chega é a mais adequada. Atentos esses interesses32. Nas palavras de Autor espanhol, “[e]l TJ opta por un criterio de uniformidad o unidad en la interpretación de las normas de competencia internacional con respecto al criterio seguido por otras normas, sin que se llegue a explicar la razón de ser de dicho criterio para el sistema de competencia judicial internacional, más allá del dato de la existencia de dichas normas y de la solución que contienen.”33. A omissão avulta como tanto mais flagrante quanto havia sido o próprio Advogado-Geral J. MAZÁK, nas Conclusões apresentadas em 24 de Setembro de 2009, a fazer valer que “[o]s elementos decorrentes do direito comunitário e da jurisprudência do

E, efectivamente, nem Portugal nem o Reino Unido são Estados contratantes da Convenção das Nações Unidas Sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Como também não o são – mas aqui, acompanhados por outros Estados-Membros – da Convenção das Nações Unidas de 14 de Junho de 1974 sobre a Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias. 30 Alude-se, por vezes, a uma «interpretação inter-convencional» (inter-conventional interpretation; interpretazione interconvenzionale). 31 Para uma enunciação de razões susceptíveis de fundamentar a via metodológica seguida pelo Tribunal de Justiça, cf. U. MAGNUS, “Introduction”, in U. MAGNUS / P. MANKOWSKI (ed.), Brussels I Regulation, Sellier, Berlin-NY, 2007, parágrafo 97;; F. FERRARI, “Remarks on the Autonomous Interpretation of the Brussels 1 Regulation, In Particular of the Concept of «Place of Delivery» Under Article 5(1)(b), and the Vienna Sales Convention (on the occasion of a recent Italian court decision)” / “Remarques sur l’interprétation autonome du Règlement de Bruxelles 1, notamment du concept de lieu de livraison au sens de l’article 5, paragraphe 1-b, et de la Convention de Vienne sur la Vente de Marchandises (à propos d’une récente décision italienne)”, Revue de droit des affaires / International Business Law Journal, 2007, n.º 1, 83-99, 90 e nota 80. 32 Cp., porém, F. FERRARI, “Remarks on the Autonomous Interpretation of the Brussels 1 Regulation, In Particular of the Concept of «Place of Delivery» Under Article 5(1)(b), and the Vienna Sales Convention (on the occasion of a recent Italian court decision)” / “Remarques sur l’interprétation autonome du Règlement de Bruxelles 1, notamment du concept de lieu de livraison au sens de l’article 5, paragraphe 1-b, et de la Convention de Vienne sur la Vente de Marchandises (à propos d’une récente décision italienne)”, cit., 90. 33 Cf. F. ESTEBAN DE LA ROSA, “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I: la Sentencia del tribunal de Justicia de 25 de febrero de 2010”, cit., p. 10. 29

Tribunal de Justiça não bastam para estabelecer critérios de delimitação geral entre «venda de bens» e «prestação de serviços».”34.

§ 4.º A determinação do lugar do cumprimento no quadro de uma venda que implica o transporte de mercadorias35 Tendo providenciado resposta afirmativa à primeira das questões que o Bundesgerichtshof submetera à sua apreciação – e, assim, tendo entendido que os contratos de fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir devem ser qualificados como «vendas de bens», na acepção do artigo 5.º, número 1, alínea b) -, o Tribunal de Justiça pôde avançar para a consideração da segunda, logicamente condicionda pelo sentido da resposta dada à anterior. Objecto de disquisição pelo tribunal passou a constituir, então, a determinação do lugar onde, no quadro de uma venda que implica o transporte da mercadoria, os bens vendidos foram ou deveriam ter sido entregues. Retorna-se presente o enunciado do órgão jurisdicional de reenvio: “(...) no caso de vendas à distância36, o lugar onde, nos termos do contrato, os bens vendidos foram ou devem ser entregues deve ser determinado de acordo com o lugar da entrega material ao comprador ou de acordo com o lugar onde os bens são entregues ao primeiro transportador com vista à sua transmissão ao comprador?”. Em linha com o teor gramatical da alínea b), o Tribunal começou por ser claro na certificação de que, antes do mais, importa atender às disposições do contrato37.

Cf. o parágrafo 18 das Conclusões referidas. Lê-se aí, mais ainda, que, “[t]al como resulta do n.º 33 do acórdão de 23 de Abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch, o conceito de «serviço» utilizado no Regulamento n.º 44/2001 tem um conteúdo autónomo, que é independente da interpretação deste conceito no quadro do artigo 50.º CE ou dos instrumentos de direito comunitário derivado que não o Regulamento n.º 44/2001. O mesmo se pode dizer, em nossa opinião, do conceito de «bem». Por conseguinte, a jurisprudência do Tribunal de Justiça que interpreta os conceitos de «serviço» e de «bem» à luz das liberdades fundamentais do mercado interno não é aplicável no contexto do regulamento n.º 44/2001.” 35 Supõe-se assistir razão à chamada de atenção, por exemplo formulada por F. ESTEBAN DE LA ROSA, segundo a qual a tradução do alemão «Versendungskauf» para «vendas à distância» («venta por correspondencia», «vendita a distanza», «vente à distance») se revela, in casu, como menos apropriada. Preferível teria sido que, como na versão inglesa, se houvesse feito utilização da expressão, com alcance não coincidente, «vendas que implicam o transporte de mercadorias» («contracts involving carriage of goods») (cf. “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I: la Sentencia del tribunal de Justicia de 25 de febrero de 2010”, cit., p. 4). 34

36 37

Cf. a nota anterior. Cf. o parágrafo 55.

Isso estabelecido, considerou, acto contínuo, o cenário da impossibilidade de determinação do lugar da entrega com arrimo no negócio. E fixou uma directriz: dado a regra de competência prevista no artigo 5.º, número 1, alínea b), do Regulamento ser autónoma - designadamente, ir-lhe subjacente o propósito de obviar aos inconvenientes do recurso a regras de índole conflitual -, impor-se a determinação do lugar da entrega dos bens segundo critério que respeite a génese, os objectivos e o sistema do Regulamento38. A esta luz, afastou o lugar onde os bens são entregues ao primeiro transportador com vista à sua transmissão ao comprador e reteve, como mais consentâneo com aquela génese, aqueles objectivos e aquele sistema, o lugar da entrega material dos bens ao vendedor. Fundamentou a decisão com apego em ordens várias de razões: à uma, a certeza jurídica; depois, a proximidade, enquanto o critério eleito assegura a existência de uma conexão estreita entre o contrato e o tribunal chamado a conhecer dele; enfim, a própria vocação da compra e venda, enquanto o objecto fundamental de um contrato de compra e venda de bens é a transferência destes do vendedor para o comprador39. Respeita o contributo original do acórdão anotando às hipóteses de impossibilidade de determinação do lugar da entrega com apego no contrato. Com referência às demais o acórdão é curto e tão-só repetidor dos termos da lei: se for assim possível identificar o local de entrega, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, é esse local que é considerado como o local onde as mercadorias foram ou devem ser entregues, por força do contrato, na acepção do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento40. Nenhuma explicação quanto ao modo como entre si se relacionam o «salvo convenção em contrário» constante do corpo da alínea b) e o «nos termos do contrato» figurante em cada um dos travessões da mesma alínea41. Nenhuma alusão a matização preterimente introduzida pelo próprio Tribunal de Justiça42.

Cf. o parágrafo 57. Cf. o parágrafo 61. 40 Cf. o parágrafo 55. 41 E, com efeito, é longe de convincente o afirmado no parágrafo 46 da decisão. Para uma tentativa de concatenação, cf. P. MANKOWSKI, Anotação ao artigo 5.º in U. MAGNUS / P. MANKOWSKI (ed.), Brussels I Regulation, op.cit., n.º 101. 42 De conformidade com o decidido pelo Tribunal do Luxemburgo, um acordo relativo ao lugar de execução, que não visa determinar o lugar onde o devedor deverá cumprir efectivamente a prestação que lhe incumbe, mas exclusivamente estabelecer um lugar de foro determinado, rege-se pelo artigo 17.º da Convenção (artigo 23.º do Regulamento) e só é válido se forem respeitadas as condições nele estabelecidas. Cf., neste sentido, o acórdão proferido, em 20 de Fevereiro de 1997, no caso C-106/95 (Mainschiffharts-Genossenschaft eG/Les Gravières Rhénanes SARL). Cf., mais ainda, o acórdão de 17 de Janeiro de 1980, proferido no caso 56/1979 (Siegfried Zelger v. Sebastiano Salinitrii). 38 39

Nenhuma palavra a respeito dos casos em que a entrega tem lugar, em termos efectivos e com a aceitação do comprador, em lugar distinto do determinado no contrato43. Não assim, consoante dito, pelo que respeita às hipóteses de impossibilidade de determinação do lugar da entrega com apego no contrato. É indesmentível, quanto a estas, a contribuição inovadora – o que, evidentemente, só por si não é o mesmo que meritória por parte da instância comunitária. Disse-se já de como, não se quedando pela atribuição de competência ao tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deve ser cumprida, antes se alargando à individualização da prestação relevante pelo que aos dois tipos mais divulgados na prática contratual concerne, o número 1 do artigo 5.º do Regulamento 44/2001 inova em relação à disposição homóloga da Convenção de Bruxelas44. O propósito do legislador comunitário foi duplo. À uma, reagir contra o fraccionamento da competência jurisdicional coevo das hipóteses em que de um contrato brota uma pluralidade de obrigações cujo cumprimento teve ou deve ter lugar em lugares distintos: em conformidade com o sistema regulamentar, no quadro de um contrato de compra e venda de bens releva – e apenas releva – a obrigação de entrega; assim como, no quadro de uma prestação de serviços releva – e exclusivamente releva – a obrigação do prestador de serviços45. Depois, reagir aos inconvenientes divulgadamente associados à intermediação dos sistemas conflituais como via tendente à individualização do lugar do cumprimento46: para efeitos do número 1 do artigo 5.º, o lugar do cumprimento é, no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os

Cf. S. LEIBLE, anotação ao Artigo 5.º in T. RAUSCHER (hrsg.), Europäisches Zivilprozessrecht, Band I, 2ª ed., Selier, München, 2006, p. 180, n.º 51; F. FERRARI, “Remarks on the Autonomous Interpretation of the Brussels 1 Regulation, In Particular of the Concept of «Place of Delivery» Under Article 5(1)(b), and the Vienna Sales Convention (on the occasion of a recent Italian court decision)” / “Remarques sur l’interprétation autonome du Règlement de Bruxelles 1, notamment du concept de lieu de livraison au sens de l’article 5, paragraphe 1-b, et de la Convention de Vienne sur la Vente de Marchandises (à propos d’une récente décision italienne)”, cit., 92; P. MANKOWSKI, Anotação ao artigo 5.º, cit., nºos 106 e 107. 44 Cf. a primeira frase do número 1 do artigo 5.º correspondente. 45 Mesmo se a obrigação que serve de base à acção judicial é a do pagamento do preço dos bens ou dos serviços. Ainda que o pedido se funde numa pluralidade de obrigações. Cf., neste sentido, a Exposição de Motivos que acompanha a Proposta pela Comissão apresentada em 14 de Julho de 1999 [COM(1999)348 final], 14-15. 46 Assim, as dificuldades que a complexidade inerente ao procedimento faz impender sobre os operadores; o propiciamento de resultados não uniformes; enfim, o tendencial favorecimento dos tribunais do Estado onde o demandante tem domícilio e, bem assim, dos tribunais do Estado onde o demandado se encontra domiciliado. 43

bens foram ou devem ser entregues; no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devem ser prestados. É corrente, por referência à dimensão por último evidenciada, a alusão a uma definição autónoma do lugar do cumprimento, com tal alusão pretendendo significar-se que a alínea b) elege e enuncia o critério – os termos do contrato – por cuja bitola há-de aquele lugar ser determinado47. A expressão encontramo-la, à cabeça, na própria Exposição de Motivos que acompanha a Proposta pela Comissão apresentada em 1999, a qual, ademais de a uma “(...) designação pragmática do local de execução, repousando num critério puramente factual (...)”, faz menção expressa a que “(...) a fim de atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado em que corre o processo, o segundo parágrafo designa de forma autónoma o local de execução da «obrigação que serve de fundamento ao pedido» em duas hipóteses precisas. Para a venda de mercadorias, este lugar será aquele em que, por força do contrato, as mercadorias foram ou deveriam ter sido entregues. No que diz respeito à prestação de serviços, esse lugar será, ainda por força do contrato, aquele em que os serviços foram ou deveriam ter sido prestados.”48. Torna-se fácil, contra o pano de fundo delineado, aquilatar do alcance – não diminuto - da decisão anotanda. Estribado em que o carácter autónomo da regra contida no artigo 5.º, número 1, alínea b), postula que, ainda quando o contrato não contenha nenhuma disposição que revele a vontade das partes quanto ao lugar da entrega dos bens, se determine o lugar do cumprimento com renúncia à intermediação do sistema conflitual do foro, o Tribunal de Justiça fixou um critério substantivo que provê a essa determinação no quadro das vendas envolvendo o transporte de mercadorias. Assim procedendo, despediu-se da doutrina Tessili e trilhou, com passos largos, uma «via materializadora»49. Acorrem ao espírito algumas observações.

Cp., porém, L. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, volume III., Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Almedina, Coimbra, 2002, p. 84, para quem “[b]em vistas as coisas, não se trata de uma verdadeira definição autónoma do lugar de cumprimento, mas de estabelecer que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços.”. 48 Cf. a p. 14 do documento referido supra na nota 10 (itálico meu). 49 Cf. a epígrafe do já por mais de uma vez referido estudo de F. ESTEBAN DE LA ROSA: “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I (...)”. 47

Começa por acompanhar-se o Tribunal de Justiça na sua afirmação de que “(...) a autonomia dos critérios de conexão, previstos no artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do regulamento, exclui o recurso às regras de direito internacional privado do Estado-Membro do foro, assim como ao direito material que, por força daquele, seria aplicável.”50. Sucede que, isso indisputável, é limitada a medida em que, no quadro da alínea b), o legislador levou a cabo uma definição autónoma do lugar do cumprimento. Tem cabimento, por referência a essa disposição, a alusão a uma definição autónoma do lugar do cumprimento na medida – e tão-só - em que a alínea b) elege e enuncia um critério – os termos do contrato – por cuja bitola há-de, para os efeitos dessa disposição, aquele lugar ser determinado. Sobra que quando o contrato não contém nenhuma disposição reveladora da vontade das partes quanto ao lugar da entrega dos bens, os termos legais inculcam a necessidade de o aplicador recorrer, via alínea c), à directriz fixada na alínea a). Ora, de confomidade com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça, esta disposição deve ser interpretada no sentido de que o lugar onde a obrigação foi ou deve ser cumprida “(...) deve ser determinada em conformidade com a lei que rege a obrigação em litígio, de acordo com as regras de conflitos do órgão jurisdicional chamado a decidir o litígio.”51. Conhecem-se, por certo, os inconvenientes associados à intermediação dos sistemas conflituais como via tendente à individualização do lugar do cumprimento 52. Porém – e o ponto não é despiciendo -, conhece-os também o legislador que, sem embargo, não proveu a uma definição autónoma do lugar do cumprimento da obrigação relevante senão para as hipóteses referidas na alínea b) e nos exactos termos por esta disposição prescritos. Não parece desadequado, em conformidade, interrogar a bondade da decisão de 25 de Fevereiro de 2010 à luz da índole de uma actividade que, sem prejuízo da autonomia específica da ciência jurídica, está a jusante da tarefa de legiferação. Não é tudo. Discorrendo praeter legem – é a hipótese mais benigna -, o tribunal do Luxemburgo avançou um critério material que, segundo faz valer, quadra, por conforme à génese, aos objectivos e ao sistema do Regulamento, às hipóteses das vendas envolvendo o transporte de mercadorias. Surge, evidente, a questão de saber como raciocinar no quadro de outras hipóteses. Consoante bem afirma F. ESTEBAN DE LA ROSA, “[l]a respuesta Cf. o parágrafo 53. Cf., para além da decisão proferida, a 6 de Outubro de 1976, no caso 12/1976 (Industrie Tessili Italiana Como v Dunlop AG), os acórdãos proferidos nos casos C-288/1992 (Custom Made Commercial Ltd/ Stawa Metallbau GmbH), C-440/1997 (GIE Groupe Concorde e outros/Comandante do navio Suhadiwarno Panjan ) e C-420/1997 (Leathertex Divisione Sintetici Spa/Bodetex BVBA). 52 Cf., supra, nota 46. 50 51

material que ofrece el TJ al problema de la determinación del lugar de entrega de la mercancia no se puede considerar completa o cerrada pues no se proporcionan soluciones efectivas para todos los casos.”53. Deve entender-se que, atenta aquela mesma génese, aqueles mesmos objectivos e aquele mesmo sistema, o recurso à técnica da lex causae resulta interdito sempre que o aplicador se mova no quadro de contrato de compra e venda (e, por paridade de razão, de prestação de serviços)? Admitindo-se a afirmativa – de resto, também inculcada pela consideração de outra muito recente decisão do mesmo Tribunal 54 -, de que critério substantivo lançar mão tendo em vista a determinação do lugar da entrega dos bens ou da prestação de serviços? Assim, por exemplo, pensando-se no caso particular dos serviços prestados em linha, seria o caso de a escolha dever ter lugar entre o local de origem dos serviços (tipicamente, coincidente com o lugar da situação do estabelecimento do prestador) e o lugar de destino dos mesmos? Admitindo-se o bem fundado da alternativa, como antecipar a que venha a ser a opção do tribunal? Não parece que esta situação de indefinição seja a mais compatível com o desiderato de certeza jurídica expresso no Considerando 11 do Regulamento «Bruxelas I». Enfim, baixe-se o olhar sobre o concreto critério material que, na avaliação da instância comunitária, deve presidir à determinação do lugar da entrega no quadro das vendas que envolvem o transporte de mercadorias. Já se sabe como, tomando por bons os termos da alternativa que lhe fora submetida pelo Bundesgerichtshof 55, o Tribunal de Justiça ofereceu adesão ao lugar da entrega material dos bens ao comprador. E, mais ainda, como fundamentou a sua tomada de posição com apelo a três ordens de razões: ademais de à certeza jurídica e à proximidade, também à vocação da compra e venda enquanto o objecto fundamental de um contrato deste tipo é a transferência dos bens para o comprador. Entende-se assistir valor – de resto, como não? – a cada um dos três argumentos carreados. Isto dito, subsiste que um esforço de argumentação adicional teria sido apreciado, designadamente porquanto o critério relegado pelo tribunal é, nem mais nem menos, o acolhido pelo artigo 31.º, alínea a), da Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos

Cf. “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I: la Sentencia del tribunal de Justicia de 25 de febrero de 2010”, cit., p. 13. 54 Assim, cf. a decisão proferida, a 11 de Março de 2010, no caso C-19/09 (Wood Floor Solutions Andreas Domberger GmbH / Silva Trade SA). 55 Cf. o parágrafo 59: “Há que considerar, à semelhança do órgão jurisdicional de reenvio, que [o lugar da entrega material da mercadoria ao comprador e o lugar da entrega da mercadoria ao primeiro transportador tendo em vista a sua transmissão ao comprador] são os mais aptos para determinar, no caso de omissão, o lugar de cumprimento onde os bens foram ou devam ser entregues.”. 53

de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. A mesma Convenção em que o tribunal procurara auxílio em vista da qualificação do contrato56.

Maria João Matias Fernandes

Fazendo notar que existem hipóteses em cujos quadros o lugar da entrega da mercadoria assume um carácter apenas fortuito aí onde, pelo contrário, a componente da prestação de serviços se reveste de importância capital, F. ESTEBAN DE LA ROSA propõe que, no quadro dos contratos complexos envolvendo elementos da compra e venda e da prestação de serviços, se adira à solução da alternatividade de foros. Em particular, faz valer que “(...) una solución razonable y alternativa respecto de la que ha sido señalada por el TJ, podría pasar por permitir que el demandante presente su demanda bien ante los tribunales del lugar de entrega de la mercancía o bien ante los tribunales del país en donde se han llevado a cabo los servicios relacionados con la fabricación del producto (...)” (cf. “Nuevos avances hacia la materialización del foro del lugar de ejecución del contrato del Reglamento Bruselas I: la Sentencia del Tribunal de Justicia de 25 de febrero de 2010”, cit., p. 14) 56

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