COMENTÁRIO A UM EXCERTO DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES

May 25, 2017 | Autor: Guilherme Bandeira | Categoria: Metaphysics, Aristotle
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“E, na verdade, o que desde os tempos antigos, assim como agora e sempre constitui o eterno objeto de pesquisa e eterno problema: ‘Que é o ser? ‘, equivale a este ‘que é a substância’? ” (Metafísica, 1028b 2-4) I Neste excerto, Aristóteles sugere que a pergunta sobre “o que é a substância?” seja tomada como objeto de investigação dos filósofos, tanto daqueles que o precederam quanto dos que ainda virão. Mas notemos que essa proposta de pesquisa vem em substituição à primeira pergunta “que é o ser?”, que deveria ceder espaço para uma mais correta e fundamental que seria: “o que é a substância?”. Aqui está pressuposta uma estratégia comum do texto aristotélico, que consiste em dizer que filósofos que o precederam buscavam questões importantes, mas não tinham ainda consciência de que o faziam devido a deficiências em suas formulações acerca delas1. Quando trilhavam esta tarefa de investigar a universalidade dos seres a partir do que eles têm em comum, que é o fato de serem, ou seja, quando trilhavam o caminho da investigação do ser enquanto ser, os antigos filósofos já estavam às voltas com a substância, como que a tateando, mas ainda não tinha sido possível a eles verbalizá-la de modo satisfatório. Falam dela de “maneira ainda confusa (...) balbuciavam indistintamente sobre todas as coisas, por ser ainda jovem e estar em seus primeiros passos” (993a 11-17). Daí a importância dessa passagem na economia do texto aristotélico. Ela nos permite ler o desenvolvimento da Metafísica como uma exposição das razões pelas quais os filósofos deveriam buscar, na substância ou nas substâncias, as qualidades que antes buscavam simples e indistintamente no “ser”. Ainda que Aristóteles se refira àqueles que “desde os tempos antigos” se perguntavam por essa questão, o que nos autoriza retroceder até Tales e sua resposta surpreendente “o ser é água”, fica bem evidente que o principal interlocutor de Aristóteles na Metafísica é Platão e sua teoria das formas como a melhor resposta até agora encontrada a essa pergunta primordial. Aristóteles enfatiza que uma das falhas que podem comprometer toda essa investigação, e que foi cometida por aqueles que o precederam, está em não prestar atenção no fato de que o ser se diz de várias maneiras, isto é, que o ser possui múltiplos sentidos. Este erro é particularmente crucial se o que se investiga na multiplicidade dos seres é aquilo que Aristóteles chama de “elementos constitutivos dos seres” (992b 18-21), isto é, as causas e os princípios que existiriam em todos os serem pelo simples fato de que eles são. Será a investigação deste sentido fundamental de ser que dará unidade a toda investigação do filósofo e ao qual se deu o nome de ousia. Ao usar este termo, Aristóteles não é novo e somente está seguindo seu mestre Platão. Por isso, podemos colocar Platão e o platonismo como seus interlocutores principais não só por razões biográficas, afinal Aristóteles foi membro da Academia de Platão por aproximadamente vinte anos2, mas 1

Semelhante procedimento argumentativo é utilizado por Aristóteles quando se refere à chamada “teoria das quatro causas” exposta na Física. Quando examina as doutrinas predecessoras que discorreram sobre este tema, Aristóteles conclui que “nenhum dos que trataram do princípio e da causa falou de outras causas além das que distinguimos nos livros da Física, mas todos, de certo modo, parece ter acenado justamente a elas, ainda que de maneira confusa” (988a 20-24, grifei). 2 Os débitos de Aristóteles, p. 207.

também por motivos internos ao seu texto. O interesse de Aristóteles em relação à teoria de Platão, mesmo que cambiante, faz com que não sejam raras as passagens nas quais a teoria das formas de Platão é examinada e suas fragilidades são expostas para dar conta da ciência do ser enquanto ser. De fato, há dois capítulos inteiros, os capítulos 6 e o capítulo 9 do Livro I da Metafísica (990a 34 – 993a 10), escritos com este objetivo. Dado o privilégio do platonismo para a elaboração da teoria da substância, o objetivo deste trabalho será elaborar um comentário a esta epígrafe partindo da crítica que Aristóteles desenvolve à teoria das formas de Platão. A tese específica é que só podemos avaliar teoria da substância elaborada por Aristóteles se compreendermos o pano de fundo platônico na qual ela é desenvolvida, pois não só os problemas que ela busca resolver já faziam parte do espectro platônico, como também seu desenvolvimento foi feito a partir dos limites da teoria das formas. Para cumprir com este objetivo, dividi este trabalho em três partes. Na primeira, busco avaliar a herança platônica da Metafísica a partir da leitura que Aristóteles faz do platonismo, mostrando que ambos, Aristóteles e Platão, partilham de um mesmo ideal epistêmico, no qual conhecer algo é formular a respeito delas definições universais. Ainda na primeira parte, examinarei a origem platônica do termo ousia, traduzida para o português por substância, mostrando que, embora fundamental, este conceito pode ser equívoco. Ousia pode significar algo como essência, isto é, aquele elemento sem o qual uma coisa deixaria de ser o que é, aquele elemento que dá o ser da coisa. Mas pode também significar substância, que é um tipo específico de ser dotado de qualidades determinadas. Na segunda parte, mostrarei as muitas deficiências encontradas por Aristóteles na teoria das formas, que podem ser resumidas em duas pontos principais: ele se recusa a afirmar, como Platão, que as formas possuem mais realidade que o próprio ser, ou seja, que as formas, existindo ao lado das coisas (para), explicariam mais o ser do que as coisas sensíveis; e também que a teoria platônica é deficiente pois ela complica os seres, multiplicando-os. Na terceira e última parte, mostro as vantagens da teoria da substância em comparação com a teoria das formas. Ela, ao mesmo tempo que cumpre o ideal platônico de buscar definições universais para as coisas, se referem ao sentido fundamental de ser como sendo um tode ti, isto é, um isto determinado, exigência que a teoria platônica, por tratar só de universais, não cumpre. Para elaborar um discurso com definições universais sobre a substância, Aristóteles precisou desenvolver os conceitos de potência e ato, que ainda não existiam na teoria das formas. Outra vantagem é a anterioridade da substância no tempo, no logos e também na gnosis. II A busca pelo sentido original do ser levou grande parte dos antigos filósofos a “pensarem que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais” (983a 8-10). Os que primeiro filosofaram buscaram em elementos como a água, segundo Tales, ou em combinações de alguns elementos como água, ar, terra e fogo, segundo Empédocles, aquele sentido de ser original e do qual toda mudança derivaria3. Esses elementos trariam consigo o sentido original do ser pois recusariam a mudança, na medida em que seriam realidades especiais do ser que permanecem idênticas “mesmo na mudança de suas afecções” (983a 11). 3

O tipo de mudança aqui referida é o sentido antigo e portanto pré-moderno de mudança. Neste sentido mudança envolve a mudança na qualidade, quantidade...

Platão, porém, devido a três influências a que sofreu, não olhou para a realidade para buscar aquilo que nela permanecia, pois, segundo elas, o requisito da imutabilidade não poderia se cumprido pelas coisas exclusivamente materiais. Desde cedo amigo de Crátilo e seguidor das doutrinas heraclitianas, Platão enxergava nas coisas materiais a eterna mudança, um “contínuo fluxo e das quais não se pode fazer ciência” (987a 35-36). Ao mesmo tempo, também sofreu a influência socrática e aceitou sua doutrina de que devemos buscar definições universais nas coisas4. É sobre esta dupla influência que Platão passa a se perguntar como extrair definições universais sobre uma realidade que está em perpétua mudança. Sua resposta é pela negativa, isto é, não podemos extrair da realidade material conceitos universais. O discurso dotado de universalidade deverá se restringir a um outro tipo de realidade, chamadas por Platão de ideias ou formas, que existiriam ao lado (pará) das coisas sensíveis e “delas recebem seus nomes” (987b 8). A relação das coisas sensíveis e as formas se daria por participação (metéxis), que, segundo Aristóteles, é o mesmo tipo de relação a que se referiam os pitagóricos, outra influência importante para Platão, quando diziam que os “seres subsistem por imitação dos números” (987b 12-13). Assim, quando discursamos sobre algum ente qualquer e atribuímos a ele a qualidade de ser belo, dizendo, por exemplo, “Esta é uma bela ação”, só podemos fazê-lo porque este ente, a ação, participa da forma do belo. Do mesmo modo, se dissermos “Esta é uma bela moça”, é porque, também, esta moça participa da forma do belo. Entretanto, nem a ação nem a moça são belos em si mesmos, apenas participam da essência do belo. Eles só o são pois participam dessa forma, sendo que, essa sim é o próprio belo, mantendo a unidade no múltiplo. O importante aqui é que, mesmo com a mudança perpétua das realidades materiais, Platão consegue elaborar um discurso dotado de universalidade, precisamente pelo fato de que este discurso não diz respeito essas coisas que apreendemos pelos sentidos, mas se refere a outros tipos de realidades, conhecidas por nós por meio do intelecto. A teoria das formas é um discurso sobre universais, entes dotados de imutabilidade e de eternidade, que causam o ser das outras coisas. As formas seriam, assim, o princípio de todas as coisas, são elas que na verdade causam o ser dos entes sensíveis, pois estas não seriam em si realidades autônomas e por isso dependeriam da participação das formas para serem algo. Por isso que, para Platão, só é possível elaborar o conceito de belo, porque existe a forma do belo e porque as coisas sensíveis meramente participam dessas formas. A conseqüência desta teoria está no fato de Platão enxergar mais ser nas formas do que nas coisas sensíveis, na medida em que aquelas, ao contrário destas, possuiriam as qualidades essenciais a um sentido primordial de ser, como as garantias de serem eternas, sempre idênticas a si próprias e não dependem de outras coisa para serem. À pergunta “o que é o ser enquanto ser?”, Platão responderia que o ser enquanto ser são as formas, pois, por exemplo, a forma do belo é o ser belo, o belo considerado em si mesmo. Platão é o primeiro a cunhar o conceito chave que será crucial para todo o projeto da Metafísica que é o conceitos ousia, traduzido por substância. Segundo a teoria das formas, somente as ideias, constituindo este sentido primordial de ser, poderiam ser ditas ousias. Por exemplo, quando dizemos que “Sócrates é homem” 4

Aqui há dois pontos que precisam ser esclarecidos. Aristóteles faz a ressalva de que, enquanto Sócrates buscava definições universais somente no âmbito da ética, Platão passou a buscá-las na “natureza em sua totalidade” (987b), o que o possibilitou desenvolver um discurso propriamente filosófico, pois passou a se referir à totalidade do ser enquanto ser. O segundo ponto é que estamos trabalhando com um vocabulário aristotélico quando falamos na busca por “definições universais”.

estamos empregando dois sentidos diferentes de ser: o ser Sócrates e o ser homem, precisando estabelecer uma relação entre as duas que dê sentido ao verbo ser na terceira pessoa: “é”. Como o ser de Sócrates somente participa do ser da forma do homem, participa da essência do homem, este é o sentido de ser principal, a ousia, e Sócrates só pode existir em relação a este sentido primeiro. IV Será a partir desse pano de fundo platônico que Aristóteles irá elaborar sua própria teoria sobre a ousia, mantendo o mesmo ideal epistêmico de buscar definições universais sobre as coisas em busca de um sentido primordial de ser. O problema é que definições universais, dotadas de universalidade, necessidade e identidade não pode ser satisfeito pela teoria das formas. Aristóteles não aceita a separação, feita por Platão, das formas em relação às coisas sensíveis, ocupando lugares separados.

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