Comentário ao STJ - AgRg no REsp 1.508.656/GO

May 27, 2017 | Autor: L. Dias Cardoso | Categoria: Crime, Direito Penal, Processo Penal, Derecho penal y procesal penal, Direitos Sexuais
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COMENTÁRIO AO JULGAMENTO PROFERIDO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO AgRg no REsp nº 1.508.656/GO RECURSO ESPECIAL. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MENOR. ART. 244-A DA LEI N. 8.069/1990. REEXAME DE PROVAS. DESNECESSIDADE. SÚMULA N. 7 DO STJ. AFASTAMENTO. CRIANÇA E ADOLESCENTE. COMPORTAMENTO DE NATUREZA SEXUAL. VULNERABILIDADE E IMATURIDADE PRESUMIDAS. PROPRIETÁRIA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL UTILIZADO PARA A PRÁTICA DE PROSTITUIÇÃO DA MENOR. AUFERIMENTO DE LUCRO. CRIME CONFIGURADO. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. AGRAVOS REGIMENTAIS PROVIDOS. Não há necessidade de reexame do arcabouço fático-probatório acostados aos autos quando a conclusão esposada no acórdão atacado deixa claro e bem delimitado todo o contexto fático em que os delitos foram perpetrados - incluindo o de exploração sexual de menor. Aplicar-se-ia a Súmula n. 7 desta Corte caso houvesse controvérsia em torno dos fatos ou se imperiosa fosse a revisão probatória, para a confirmação do que foi relatado pela Corte de origem. Conforme já fartamente debatido e assentado em diversas oportunidades aqui neste órgão colegiado (REsp Repetitivo n. 1.480.881/PI, de minha relatoria, 3ª S., DJe 10/9/2015; AgRg no REsp n. 1.347.038/MG, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe 3/9/2015, REsp n. 1.312.620/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 27/6/2014; AgRg no REsp n. 1.075.052/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T., DJe 1º/2/2013, REsp n. 1.104.802/RS, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª T., DJe 3/8/2009), atos ou comportamentos de natureza sexual perpetrados por crianças e adolescentes, ainda que aparentemente voluntários ou consentidos, não podem receber a mesma valoração que se conferiria a quem já atingiu a vida adulta; antes, devem ser tratados dentro da vulnerabilidade e da imaturidade que são (presumidamente) peculiares a uma fase do desenvolvimento humano ainda incompleta. É desimportante e mesmo inconveniente a ênfase dada ao fato de que coube à adolescente a iniciativa de se dirigir ao estabelecimento pertencente à ora agravada, com o fim de, "espontaneamente", realizar programas sexuais. Essa "voluntariedade" da opção da adolescente – e, por ser jovem ainda em tal fase de desenvolvimento, ilide qualquer tentativa de se lhe atribuir plena disponibilidade sobre seu pensar e agir - não pode implicar ausência de responsabilidade penal da proprietária do estabelecimento comercial que assentiu na prática habitual de mercancia sexual do corpo da adolescente, e de tal atividade auferiu regular proveito e lucro. No caso, o fato de haver a ré, deliberadamente, fornecido o espaço do seu estabelecimento para o fim descrito, auferindo vantagem econômica de tal mercancia ilícita - não somente vantagem direta, com a cobrança de percentual sobre o valor do programa sexual, mas também indireta, com o consumo de bebidas pelos "fregueses" da jovem – pode, sim, ser interpretado como ineludível participação na submissão da adolescente à exploração sexual. Isso porque, em virtude da dispensa de coação e da notória facilitação/favorecimento da ré para a prática da prostituição da menor, é perfeitamente possível a tipificação da conduta no tipo sob exame, seja no caput seja no § 1º do artigo. Agravos regimentais providos, para dar provimento ao recurso especial, com o fim de restabelecer a sentença condenatória, no tocante ao crime do art. 244-A da Lei n. 8.069/1990. (AgRg no REsp 1508656/GO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 01/12/2015, DJe 01/02/2016)

COMENTÁRIOS O caso sobre o qual se debruçou a Corte Cidadã, embora demande profundas reflexões jurídicas, é, faticamente, simples: a ré, proprietária de um bar, fornecia espaço para a prática da prostituição, mediante a cobrança de uma comissão sobre o valor auferido em tal atividade. Dentre as profissionais que se utilizavam do estabelecimento, havia uma

adolescente de 14 anos, que, segundo se averiguou, se dedicava, voluntariamente, a tal mercancia ilícita. A controvérsia chegou à apreciação do STJ por conta de Recurso Especial manejado pelo Ministério Público contra acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, que absolveu a ré da prática do crime descrito no art. 244-A, § 1o, da Lei nº 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). O caput do aludido tipo penal descreve a conduta daquele que “submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2o desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual”, ao passo que o parágrafo primeiro prescreve que “incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo”. A corte goiana entendeu não ter havido a configuração daquele delito, e, assim, uma vez que “ausente prova de que a adolescente tenha sido coagida, constrangida ou subjugada à prostituição, imperativa a absolvição da ré pela prática do crime de exploração sexual de criança ou adolescente”. Portanto, considerou-se necessária à tipificação do crime em questão a coação por parte do autor. Em outras palavras, a submissão à prostituição ou à exploração sexual a que alude o tipo penal deveria se dar mediante coação, sob tal compreensão. Essa questão representa um dos dois pilares sobre os quais se erige a controvérsia levada à apreciação do STJ. A outra – adiante se verá – consiste em saber se a voluntariedade da menor na submissão à prostituição influencia na tipificação da conduta. O recurso ministerial arguiu que não seria exigível, para a configuração do delito, coação e tampouco submissão ou a redução à obediência ao autor do crime. Trata-se, portanto, de interpretação divergente conferida ao verbo nuclear do tipo: submeter. Argumentouse, ainda, que a submissão à prostituição mediante coação configuraria, em verdade, o crime de estupro, e não aquele descrito pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao Recurso Especial foi negado seguimento, por entender o relator que a análise do recurso demandaria o revolvimento de fatos e provas. Assim, uma vez que o acórdão do Tribunal local havia registrado que a menor se prostituía voluntariamente e que a ré não a coagiu a fazê-lo, o Ministro relator considerou que analisar a tipicidade da conduta demandaria novo exame acerca da existência, ou não, de voluntariedade por parte da menor. Aqui, muito embora essa decisão monocrática somente tenha suscitado a existência de óbice formal ao reclamo, já se colhe do Ministro relator posicionamento no sentido de

que a espontaneidade, por parte da adolescente, na dedicação à prostituição impossibilitaria a tipificação do delito descrito pelo art. 244-A, § 1o, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Houve, contudo, divergência, a qual consolidou, posteriormente, a orientação vencedora. Inicialmente, afastou-se o óbice sumular ao seguimento do recurso, por se considerar que os elementos fáticos delineados pelo acórdão recorrido (a ré ser proprietária do bar em que ocorria a prostituição e a menoridade de uma das garotas que se prostituíam) são suficientes à elucidação da controvérsia. Antecipa-se, assim, a posição de que é irrelevante à configuração do crime em debate a voluntariedade da criança ou do adolescente que se dedica à prostituição. Ademais, o voto vencedor consigna circunstância interessante: o fato de que, à época do cometimento crime imputado à ré, ainda não havia sido promulgada a Lei nº 12.015, de 2009, que promoveu profundas alterações no capítulo do Código Penal atinente aos crimes sexuais. Tal diploma editou o art. 218-B, que tipifica a conduta daquele que “submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone”, acrescentando, no paragrafo 2o, inciso II, que “incorre nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo” (o que nada mais é senão a forma qualificada do delito descrito no art. 229 do estatuto punitivo 1 ). Cuida-se, é visível, de redação mais abrangente que aquela contida no art. 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (revogado desde o advento da nova lei), que limita o núcleo do tipo ao verbo “submeter”, sem espaço para os demais verbos consignados no novo dispositivo (que são aqueles antes presentes na antiga redação dada ao art. 228, § 1º, do Código Penal). Assim, tem-se que, fosse a conduta praticada já sob a égide da nova legislação, seria induvidosa a sua subsunção ao art. 218-B do Código Penal, na modalidade de facilitar a prostituição. É evidente, porém, que, por conta da irretroatividade da lei penal, não se pôde tipificar a conduta da ré em tal dispositivo legal; restou a subsunção, então, ao art. 244-A, § 1o, do



1 MASSON, Cleber. Código penal comentado. 2. ed., rev., atual. e ampl.. São Paulo: Método, 2014. p. 921.

Estatuto da Criança e do Adolescente, muito embora esteja revogado pelo novel dispositivo do Código Penal2. O voto vencedor passa, então, à análise da conduta da ré: considera que favorecer e propiciar a prostituição da menor em seu estabelecimento, considerada a vulnerabilidade da adolescente, configura, sim, a submissão da menor à exploração sexual. A submissão, defende-se, não deve ser equiparada à coação. Eis o cerne da questão: em que consiste a submissão a que faz menção o dispositivo legal em estudo? O voto vencido considerou que tal vocábulo abrange a coação; assim, inexistindo coação, não haveria submissão. Não foi, contudo, a orientação prevalecente. Além disso, a outra indagação fulcral diz respeito à (ir)relevância da voluntariedade do menor na dedicação à prostituição – isto é, se o fato de a criança ou o adolescente realizarem, espontaneamente, aquela atividade, influencia, ou não, na configuração do delito em debate. Pois bem. Para partir da mais simples das indagações, é necessário indagar acerca do conceito assumido pelo verbo submeter no art. 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (bem como no atual art. 218-B do Código Penal). Em comentários a esse novel dispositivo, Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, argumenta que “submeter (subjugar, dominar moralmente) é o verbo nuclear, cujo objeto é a prostituição (realização de ato sexual mediante paga, em caráter habitual) ou exploração sexual (tirar proveito de ato sexual)” 3 . O mencionado autor compreende, ainda, que a submissão à prostituição, para que tipifique o delito em comento, deve ser caracterizada pelo domínio moral4. De modo semelhante, Cléber Masson, em comentários ao atual art. 218-B do Código Penal, compreende que “submeter significa subjugar ou sujeitar alguém a determinado comportamento”5. Cézar Roberto Bittencourt ainda leciona que submeter representa conduta sedutora, isto é, aliciadora da vontade da vítima, normalmente em dificuldades ou em situações

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed., rev., atual. e ampl. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 275. 3 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. p. 275. 4 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. p. 276. 5 MASSON, Cleber. Código penal comentado. p. 919.

vulneráveis – carentes de oportunidades, recursos ou meios materiais e pessoais para aspirar a algo melhor na vida6. Parece evidente, assim, a resposta à primeira e mais simples das indagações: a submissão a que se refere o art. 244-A, § 1o, do Estatuto da Criança e do Adolescente (também prevista no atual art. 218-B do Código Penal) prescinde de coação, seja de ordem moral ou física. Com efeito, solução contrária – exigir-se a coação para a configuração da submissão à prostituição – não atenta ao fato de que, havendo violência ou grave ameaça praticadas com o fim de compelir terceiro à prática de ato sexual, estaria configurado o crime de estupro (arts. 213 ou 217-A do Código Penal). Salienta-se que, acertadamente, também essa foi a orientação adotada pelo acórdão ora em análise, em que se assentou que “o vocábulo ‘submeter’ não deve ser interpretado como ação coercitiva (moral, física ou psicológica), como imposição hierárquica ou de qualquer outra prática que implique redução à obediência do explorador”. Em suma, a existência de coação é irrelevante à tipificação da conduta de submeter menor à prostituição. Resta, então, o questionamento quanto à voluntariedade do menor como elemento apto a influenciar na tipificação da conduta ou, em outras palavras, quanto à presunção de vulnerabilidade daquele que se submete à prostituição. Tal reflexão é controversa e desafia posicionamentos divergentes na doutrina e jurisprudência. Na análise de tal controvérsia, parece salutar ressaltar, de início, que a prostituição, em si, não é um ato jurídica e penalmente reprovável (é um “indiferente penal”7), muito embora haja entendimentos de que é moralmente censurável8. O seu incentivo – que recebe o nome de lenocínio, a par de especificidades inerentes a casos específicos –, porém, é reprimido pelo Direito Penal, até mesmo quando a vítima que realiza aquela mercancia é maior de idade. Não à toa, criminaliza-se, no art. 229 do Código Penal, a conduta de “manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente” (delito, inclusive, que também foi imputado à ré do caso analisado pelo STJ, 6 BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: dos crimes contra a dignidade

sexual até dos crimes contra a fé pública. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 292. 7 BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: dos crimes contra a dignidade

sexual até dos crimes contra a fé pública. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 305.

8 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: arts. 213 a 359-H. 10. ed. São Paulo, Saraiva,

2012. p. 139.

muito embora tal acusação tenha sido fulminada pela prescrição). Com muito mais razão, pune-se o agente que de alguma forma auxilia a prostituição de menores, em um cenário no qual pouco importa a voluntariedade da criança ou do adolescente. A resposta que se dá à controvérsia pode ser analisada em paralelo com aquela que se confere a casos semelhantes, nomeadamente a hipóteses em que o agente mantém relações sexuais com menor de 14 anos – o que, em tese, configuraria o crime descrito no art. 217-A do Código Penal, de nomen juris estupro de vulnerável. Todavia, parte da doutrina e da jurisprudência compreende que a “vulnerabilidade” em questão não diz respeito somente à idade do menor, mas também ao seu desenvolvimento sexual. Assim, em determinadas situações, a presunção de violência elaborada pela lei penal quando há envolvimento de menor de 14 anos em atos sexuais deveria ser relativizada. A jurisprudência do STJ não pacificou orientação uníssona acerca da matéria. Com efeito, há diversos pronunciamentos que compreendem que a presunção em questão é absoluta (por todos, o REsp Repetitivo nº 1.480.881/PI, de relatoria do Min. Rogério Schietti Cruz, com acórdão publicado em 10/9/2015), bem como há outros que relativizam aquela presunção (a exemplo do AgRg no REsp nº 1214407/SC, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/09/2011). A divergência jurisprudencial reflete-se também na doutrina, havendo penalistas que defendem ser absoluta a presunção, bem como outros que a relativizam. Há, assim, duas correntes igualmente expressivas quanto à relevância do consentimento do menor na prática de atos sexuais. Indagação semelhante apresenta-se no caso do delito descrito no art. 244-A do ECA e no art. 218-B do CP: diz respeito à relevância da voluntariedade do menor que se prostitui. Apesar de as situações citadas serem semelhantes e de haver expressivos entendimentos – sobretudo na doutrina – de que é necessário levar em conta o consentimento do menor no crime do art. 217-A do CP, compreende-se que, em relação à submissão de vulnerável à prostituição, não é possível relativizar essa vulnerabilidade, sendo a idade, portanto, um dado absoluto a esse respeito. Com efeito, no crime de estupro de vulnerável, o consentimento do menor, se realmente verificado, é influenciado, em regra, apenas por questões de ordem emocional e sexual. Já quando a criança ou o adolescente submetem-se à prostituição, fatores outros influenciam nessa decisão, os quais, usualmente, são de ordem financeira, em

decorrência das adversidades enfrentadas por tais jovens em suas vidas, de modo a não lhes restar opção outra senão a mercancia sexual. É criticável, assim, sobretudo nesse contexto de dificuldades vivenciadas pela vítima que se submete à prostituição e em que o agente responsável por propiciar tal prática tem consciência da condição etária do menor, a responsabilização do jovem por tal conduta. De fato, em tais condições, pouco importa se há, por parte da criança ou do adolescente, voluntariedade na dedicação àquela mercancia libidinosa. É salutar, ainda, a atenção ao bem jurídico que se almeja proteger com a criminalização da submissão de menores à prostituição: trata-se do “desenvolvimento e [d]a formação saudável da personalidade do menor, para que, na sua fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual” 9 , nos termos lançados por Cézar Roberto Bittencourt. Cuida-se, em termos simples, da dignidade sexual do menor de idade. Todavia, o mesmo penalista – em posição representativa da adotada por diversos outros –, paradoxalmente, argumenta que a dificuldade de discernimento e a vulnerabilidade do menor devem ser comprovadas, de modo a relativizar a presunção elaborada pela lei. O autor, por considerar que a lei traça uma injustificável diferenciação de espécies de vulnerabilidade sexual, cria uma distinção entre a presunção de violência contida no art. 217-A do Código Penal e a que se extrai do art. 218-B: aquela, relacionada aos menores de 14 anos, seria absoluta; esta, atinente aos menores de 18 anos, relativa, muito por conta da “evolução da moral sexual na sociedade contemporânea” 10. Todavia, em contraposição – e em defesa da mesma posição encampada pelo acórdão analisado –, é necessário frisar que a realidade social brasileira demanda que haja uma severa repressão à prática de submissão de menores à prostituição, sobretudo em se tratando de indivíduos em penuriosa situação econômica e familiar. Assim, a acentuada proteção à dignidade sexual dos menores se revela particularmente relevante diante de tal realidade social, de modo que a especial proteção àquele bem jurídico – com a consequente irrelevância da voluntariedade do menor – se revela não como confusão entre moral e direito, mas como medida impositiva de política criminal ou, ainda, como salvaguarda absoluta, através do direito penal, da dignidade sexual dos menores de idade em face da conduta de terceiros que pretendem submetê-los à prostituições, com 9 BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: dos crimes contra a dignidade

sexual até dos crimes contra a fé pública. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 288.

10 BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal. p. 296.

os deletérios efeitos que tal incentivo provoca no amadurecimento mental e sexual da vítima. É interessante citar, nesse ínterim, lição de Nelson Hungria – a qual, embora date de mais de meio século atrás, remanesce atual: “entre os mais relevantes interesses da sociedade está a disciplina ético-sexual, segundo as normas de cultura, e como a juventude, em razão mesma da sua fragilidade ou maleabilidade psíquica, está mais exposta à influência maligna da libidinagem e do vício, é natural que a sua pudicícia ou dignidade sexual seja especial objeto da reforçada proteção penal”11. Assim, por mais que seja criticável a opção legislativa segundo a qual o consentimento do menor não influencia na tipificação da conduta aqui em questão, sob a óptica de uma eventual proteção excessiva e pueril da sexualidade juvenil, compreende-se que, no atual regime legal, a presunção de vulnerabilidade do menor ante a submissão à prostituição é absoluta. Explica-se: a decisão quanto à dedicação, ou não, àquela mercancia sexual é muito mais complexa que o processo mental decisório relativo à participação em conjunção carnal ou em outro ato libidinoso, sem que nesta segunda prática esteja imbricado qualquer motivo de ordem financeira. Dessa forma, em face de todas as circunstâncias aqui comentadas, afigura-se acertada a orientação encampada pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto pelo aspecto dogmático, quanto por manter íntegra a sua própria jurisprudência a respeito do tem, simbolizada, sobretudo, no seguinte precedente. LUIZ EDUARDO DIAS CARDOSO Advogado criminalista. Mestrando e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: [email protected].



11 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959. v. 8, p. 181.

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