Comentário - O desenvolvimento das relações de dependência pessoal (séc. VIII-IX)

June 19, 2017 | Autor: Diogo Jesus | Categoria: Medieval History, Carolingian Studies, Merovingian period, Feudalism and Lordship
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Lisboa, 8 de Novembro de 2015

Comentário textual Documento 11 – O desenvolvimento das Relações de Dependência Pessoal

Trabalho apresentado na cadeira de História Medieval (Economia e Sociedade), regida pela Prof. Doutora Ana Maria Rodrigues

Realizado por: Diogo Jesus Nº 53154 Licenciatura de História – 1º Semestre, 2015/16

O presente trabalho centra-se na análise aos três textos que compõem o documento 11 (em anexo). Torna-se necessário, antes de mais, precisar os nossos objectivos. Em primeiro lugar, clarificaremos o fio condutor que perpassa os excertos e a sua datação no tempo. Em seguida, apresentaremos os dois principais factores explicativos deste primeiro feudalismo. Posteriormente, indicaremos as linhas de força que regem a tendência por detrás dos laços de vassalagem. Entrando no estudo dos textos apresentados, começaremos por uma sucinta apresentação das fontes, seguida da análise detalhada propriamente dita. Por fim, concluiremos com o que se seguiu a este período. O documento 11 alista excertos dos séculos VIII a IX, uma época em que se regista um gradual desenvolvimento das relações de dependência pessoal. Não será ainda um feudalismo, na sua verdadeira e total acepção, gerando-se portanto algum debate na sua compartimentação dentro do fenómeno feudal. Assim, alguns autores optam por falar num primeiro feudalismo. O termo pode assumir, para os medievalistas, dois sentidos: o tipo de sociedade centrada no feudo, organizada pela particularidade das relações entre homens, abrangendo todas as esferas da vida (socioeconómica) ou apenas as relações estabelecidas entre homens, isto é, estritamente, os laços de dependência e hierarquização (jurídica). Marc Bloch afirma que o feudo/senhorio rural não é articulação mas a chave do sistema; dos rendimentos do senhorio vive toda a sociedade feudal1. F.-L. Ganshof declara que o feudalismo é, senão a trave mestra, pelo menos o elemento mais saliente na hierarquia dos direitos sobre a terra (que a sociedade feudal comporta); Georges Duby observa que o feudo é apenas uma das articulações do sistema feudal2. No período estudado (séculos VIII e IX) há efectivamente a aceleração de um processo que culminará nos séculos seguintes. Não se pode falar de relações feudais mas apenas de laços de dependência vassálica. Por enquanto, o vassalo escolhe o amo voluntariamente, devendo-lhe fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo deve em troca fidelidade, protecção e sustento. O laço que os une é ainda, informal, ou melhor, mais precário. Por um lado, esta constituição de laços sociopolíticos na Idade Média é herança das tradições bárbaras, isto é, do companheirismo germânico. Por outro lado, mescla-se com o legado das instituições romanas, a clientela, em que os homens se colocam na dependência de um patrono, por exemplo, para ascender 1

Ver BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 60 Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 63 e seguintes

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socialmente. A política das relações de subordinação pessoal de homem para homem faz desaparecer o conceito público da esfera do político assumindo, então, raízes privadas e patrimoniais (a commendatio e o feudo), o que origina a fragmentação do poder e sua estratificação compartimentada3. Desenvolve-se aqui o que será uma classe de senhores, cavaleiros dedicados à guerra e defesa, mantidas pela massa de camponeses, livres ou servos por meio de tributos ou do cultivo directo do feudo. Enumeremos as tendências que se vão afirmar na chamada primeira idade feudal. São a fixação de laços de homem para homem, o estabelecimento e valoração dos costumes e certas regras, a crescente maior precisão do vocabulário político e social das relações de dependência, a hereditariedade dos feudos e cargos concedidos e a estreita ligação entre exercício do poder, actividade das armas e posse das terras. Perto do ano 1000 chega a chamada “feudalidade clássica” 4 . Alguns chamam já segunda feudalidade, outros a única. Ganshof faz distinção entre esta época e a anterior, carolíngia, concluindo que são claramente diferentes. O período carolíngio é extremamente importante, neste caso, na história dos laços de vassalidade5. Também a evolução das villae romanas através da Alta Idade Média, associando a terra ao colonato e escravos, facilita a compreender qual a utilidade e que modelos vão os feudos assumir, concedidos para cimentar e permitir os laços dependência desde os últimos tempos merovíngios. Na base deste fenómeno estão sobretudo duas causas que explicam a feudalização progressiva das relações de dependência. Estão relacionadas nem que seja pelo facto de uma facilitar o sucesso da outra e vice-versa. «O feudalismo medieval nasceu no seio de uma época infinitamente perturbada. Em certa medida, nasceu dessas mesmas perturbações» 6 . A primeira deve-se a factores externos: as invasões que se dão notadamente entre os séculos VIII e XI, precisamente abarcando o período destes três documentos em análise. Mantém-se um ambiente tumultuoso provocado a sul pelos fiéis do islão e povos arabizados. A leste, húngaros e eslavos penetram ora lentamente ora de forma belicosa e recorrendo a incursões de saque. A norte, os escandinavos, organizam campanhas sistemáticas de pilhagem desde 3

Ver BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162 Ver FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 45 5 Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 13-19 6 Cf. BLOCH, A Sociedade Feudal, pp. 20 4

a actual Inglaterra, seguindo a costa, até ao território itálico. As guerras de fronteiras e a penetração e saque levados a cabo pelos variados povos invasores revelam a incapacidade dos reis na defesa dos seus domínios. Surgem então abades, senhores castelãos, condes ou pequenos chefes que com a sua pequena hoste asseguram uma pequena jurisdição. Quem defende é quem está no limes. Tornam-se autoridades no seu território, originando uma fragmentação do poder em que as diferentes partes o assumem com autorização régia ou não. A segunda causa reside no deperecimento do Estado, naquilo que Otto Hinze aponta como principal causa do feudalismo: um “imperialismo” precipitado” na evolução social da tribo para o Estado. Os francos, ao aparecerem na transição e face ao vácuo de poder deixado pelo império romano, assumem extemporaneamente um papel imperial, gérmen do feudalismo de carácter tríplice: militar, político e económico7. A formação da sociedade vassálica carolíngia foi um fenómeno espontâneo mas foi essa mesma vassalagem que conduziu à desagregação do império e do Estado carolíngios. Desde Pepino, o Breve, que é favorecida. Este carolíngio e seus sucessores favorecem esta evolução social integrando-a no quadro dos organismos de Estado. São utilizados os laços privados como instrumento de governo8. Essa é a alternativa face a uma insuficiência e ineficácia dos quadros de estado, à expansão do reino franco sob Pepino e Carlos Magno, às comunicações medíocres, à impossibilidade de recrutar pessoal suficiente, competente e seguro, aos recursos da realeza sempre limitados e irregulares. Só resta agarrarem-se a uma minoria, a aristocracia. Ligando-a a si dominariam efectivamente o território conseguido. Multiplica-se o número de vassalos directos do rei com privilégios e benefícios importantes. A estes associam-se vassalos menores. Também militarmente os exércitos carolíngios formam-se por vassalos e seus dependentes, aumentando os efectivos e valor das hostes. De referir ainda que em matéria político-administrativa se integram tanto leigos como clérigos. A multiplicação dos laços de recomendação e vassalidade, concomitante à desagregação de todo o edifício centralizador é então produto dos momentos de partilhas dinásticas, das invasões, clima de insegurança.

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Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 21 Ver GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 27-69

Posto esta contextualização e explanação prévia, iniciemos o estudo do documento 11 propriamente dito. A fonte comum aos três textos aí contidos é a Monumenta Germaniae Historica (MGH). Esta é uma série ou compilação cuidada de fontes primárias, tanto crónica como arquivística, para o estudo da história germânica, em sentido lato (Bretanha, República Checa, Polónia, Áustria, França, Países Baixos…). Abarca temporalmente desde o fim do império romano até às cercanias do ano 1500. Iniciada nos princípios do século XIX insere-se na tentativa de revestir a História de um carácter científico. Nasce no actual território da Alemanha, ao mesmo tempo que se desenvolve o romantismo. É composta por inúmeros volumes eé um projecto continuado ainda nos dias de hoje. O texto 1, está identificado com o título “A Recomendação na Época Merovíngia (Fórmula de Tours, 2º quartel séc. VIII) ”. Podemos desde logo depreender que se trata de uma fórmula protocolar utilizada no tempo dos últimos reis francos merovíngios. É retirado de um formulário ou repertório de modelos provenientes de Tours (daí Formulae Turonenses) onde foram reunidos durante o segundo quartel do século VIII os actos habituais que serviam de quadros ou modelos aos escribas para a redacção de documentos oficiais. Este dado (ser uma fórmula) pode ser corroborado pela informação bibliográfica (apelidado de Formulae Turonenses, inserido nas Formulae Merowingici et Karolini Aevi da MGH) ou pela abertura do prólogo onde se deixa por preencher o nome dos intervenientes («Magnífico Senhor X…, eu Y…»). Observamos que quem se recomenda é claramente um homem miserável, desprovido, na pobreza: «não tenho com que me alimentar nem vestir». Pediu então auxílio a um agente mais poderoso ou um senhor, consequentemente. O preâmbulo relembra um dos mobiles da recomendação ao mesmo tempo que sublinha a sua natureza e efeitos: um individuo isolado, sem recursos, coloca-se na dependência de uma personagem a quem promete não abandonar («não terei o poder de me subtrair ao vosso poder»), podendo exigir, o senhor, dele todos os tipos de serviços, que se podem exigir à dignidade de um homem livre. Em retorno a sua existência material é assegurada. Responderia esta relação às necessidades e desejos dos homens livres. O recomendado serve o seu dominus, senhor, aumentando o seu poder e influência. É um contrato recíproco. O vassalo escolhe o amo voluntariamente e o amo recebe-o da mesma forma.

O sustento a dar poderia ser uma concessão por período prolongado de uma terra, ao beneficiário visto que nesta época, a agricultura é a actividade económica por excelência. Diz-nos que quis «poder entregar-me ou encomendar-me ao vosso mundoburdum, o que eu fiz». Dois conceitos urgem ser explicitados. Em primeiro lugar, a recomendação ou encomendação. Proveniente do latim commendatio, passa a ser empregue sobretudo a partir do século IX mas existem antecedentes na expressão se commendare, presente no latim clássico e depois nas leis bárbaras e crónicas do século VI. Recomendar-se seria tornar-se no “homem de outros”, cobrir-se com a sua autoridade e comprometer-se a obedecer ou respeitá-lo. Em segundo lugar, o mundoburdum ou maimbour. Significa entrar no patrocinato ou protecção de um terceiro. É uma expressão do francês antigo, apropriada do germânico latinizado mundeburnis/mundium (com o valor de patrocinium). Representa o acto pelo qual um homem livre entrava no patrocínio de outro, objectivo da recomendação ou commendatio. Estipula depois as condições em que se ligou ao seu senhor. Primeiramente a longevidade da contratualização é repetida ao longo da fórmula. «Enquanto viver», «durante toda a minha vida» ou «permanecer todos os dias da minha vida» evidenciam que termina com a morte do vassalo, mencionado assim expressamente, ficando implícito que a morte do senhor resultaria igualmente no termo. Estamos perante um verdadeiro contracto que mostra a existência de uma ligação visto que este já está amarrado por gestos e palavras, quando se apresenta a fórmula (preenchida) às duas partes. Não parece ser o documento que institua a recomendação. Apenas estabelece uma emenda punitiva aos desvios nas obrigações contratuais, exposta no final9. A referência à relação entre os dois é sempre no passado (por exemplo «roguei à vossa piedade – e a vossa vontade concedeu-mo»). Esta dependência criada estabelece direitos e deveres tanto para o senhor como para o vassalo, mantendo um elevado grau de revogabilidade. Primeiro, só prenderá por uma vida e não hereditariamente. Depois, está dependente da boa conduta do senhor sujeito a

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Directamente do texto 1, do documento 11, em anexo, referimo-nos à passagem: «foi estabelecido que se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, pagaria ao seu par uma composição de dez soldos, e que a convenção ficaria em vigor.»

multa pecuniária ou no limite abandono da relação pessoal. Por fim, é afirmado que são emitidas duas cópias que confirmam a vontade das partes. Numa consideração final acerca deste texto, permitam-nos assertar dois pontos. A formação de clientelas na monarquia franca, durante a época merovíngia, está na origem das instituições “feudovassálicas”. Especialmente entre o Loire e o Reno onde as clientelas armadas são recorrentes e as ameaças mais presentes. Muitos são os que teriam necessidade de protecção e vinham pedi-la a alguma poderosa personagem. As obrigações de ambas as partes são aqui gerais e os seus contratantes parecem poder ser de condição social variada (desde auxílio económico a militar ou ambas), tendo de ser homens livres, e portanto ajusta-se a situações muito diferentes.

Os textos 2 e 3, tanto pela sua natureza, como datação e conteúdo devem ser, a nosso ver, agrupadas para um melhor entendimento do grau de relação de dependência pessoal que estamos presentes. O texto 2 trata-se de uma “Capitular do ano 847”, referida em nota de rodapé como dada por Carlos, o Calvo, em Meersen. O texto 3, “Capitular do ano 869”, é também de Carlos, o Calvo. Ambas se inserem na Capitularia Regnum Francorum, integrante da MGH. Para terminar esta introdução da parte externa dos textos resta especificar o sentido de capitular. São as leis, em capítulos (daí a sua denominação), emanadas das grandes reuniões de homens livres francos. Falemos sucintamente das personagens e contexto por detrás destas duas capitulares. Carlos, o Calvo, a quem são atribuídas, foi neto de Carlos Magno juntamente com os seus irmãos e co-herdeiros Luís e Lotário. É-lhe incumbida como parte da tripartição dos domínios deixados por seu pai Luís, o Pio, desde 843, a Francia Occidentalis (tornando-se seu rei). De 875 até à sua morte em 877 torna-se rei de Itália e imperador do Sacro Império Romano-Germânico sob o nome de Carlos II. Estes dois textos inserem-se na luta de poder entre os irmãos pela posse do trono do império unificado. O primeiro (texto 2), datado de 847, é outorgado no princípio do reinado de Carlos, o Calvo, num período coexistência mais ou menos pacífica. Insere-se numa série de acordos entre os irmãos, neste caso específico para a região de Meersen, situada nos actuais Países Baixos. Do segundo excerto (texto 3) apenas sabemos o seu autor e a data

de 869, ano em que, instigado pela morte do seu sobrinho Lotário II, Carlos vai tentar apoderar-se desses domínios lotaríngios. É precisamente durante o reinado de Carlos, o Calvo que o vassalo, na França, cede o feudo aos seus herdeiros. O reinado de Carlos, o Calvo é «a fase decisiva em que foram concentrados elementos-chave até então mal reunidos»10. Lembremos que já Pepino, o Breve e sucessores fomentaram os laços privados numa tentativa de maior eficácia governativa. Estamos perante aquilo que Ganshof chama de «feudalismo carolíngio»11. Observa-se então em todo o documento uma verdadeira formalização e institucionalização das relações de dependência pessoal. Expressões como «queremos também que cada homem livre no nosso reino possa (…) escolher um senhor, tal como deseje» ou «da mesma maneira, recomendamos-vos, e a todos os outros nossos fiéis, que assegureis aos vossos homens (…)» são sintomáticas de um sistema que quer por forças externas quer pela decisão real impõe a instituição da vassalagem. Aqui, tal como no texto 3 (onde a ideia subjacente é análoga), notamos uma clara evolução face ao período anterior, patente no texto 1 (que é do século VIII, final do ultimo rei merovíngio versus este referente ao mundo do carolíngio Carlos, o Calvo mais de um século depois). Já não é um homem livre qualquer que se encomenda por iniciativa própria. É o próprio rei que obriga («Ordenamos») cada um desses homens a ter um senhor. Estipula que esse laço só poderá ser quebrado por força maior, tal como manda os senhores assegurar (proteger, defender…) os seus dependentes e «não lhes façais nada contra a razão». Ressalta ainda, além da repetição desta última expressão citada que se traduz no desejo de boa-fé na condução da aliança senhor-vassalo, o constante apelo ao costume. Defende este status quo que pretende impor legitimado e salvaguardado pela «maneira habitual na época dos nossos predecessores». No terceiro texto a estudar, como já referido há uma repetição do sentimento e ideias expressas no seu par (capitular do texto 2). Acrescentemos só que a vontade de criar uma verdadeira rede ou hierarquia é aqui mais explícita. Também se diferencia por regular, aqui, apenas a alta nobreza, o alto clero. São contemplados os «nossos bispos, abades, condes e vassalos».

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Cf. BOUTRUCHE, Seigneurie et féodalité. Le premier age des liens d´homme à homme, t. 1, pp 161-162 Cf. GANSHOF, Que é o feudalismo?, pp. 28

«Desde 880, a França do norte se cobre de fortificações privadas devido aos grandes senhores eclesiásticos e leigos. A permissão real não é mais solicitada a não ser de quando em vez»12. A tradição alicerça de novo as predisposições deste fragmento. Os grandes senhores, vassalos do rei, são obrigados, nos moldes de uma dependência igualmente de homem para homem, a ter por sua vez vassalos13. Estabelece-se formalmente uma verdadeira pirâmide, base de toda a medievalidade vindoura. Portanto, focando o desenvolvimento das relações de dependência pessoal, podemos, a partir de meados do século IX, perceber que a encomendação havia originado a vassalidade. As relações de dependência pessoal enquadram-se numa hierarquia cujo rei figura no topo. A configuração de emanação do poder é Rei, vassi dominici 14 , seus vassalos. Um senhor podia ter na sua dependência outros senhores (como provam os textos 2 e 3), que por sua vez dependiam de um superior hierárquico de quem lhe viera a concessão. Gera-se assim uma relação pessoal a vários níveis, a qual era comprovada no momento de cada investidura por uma homenagem (termo usado a partir do séc. XI mas cujo ritual se filia na commendatio) e um juramento de fidelidade (em prática desde o século VIII). Na base da mesma escala, os vilãos, colonos e servos trabalham a terra, cimentando com o seu trabalho, a pirâmide social. O sustento dos senhores poderá ser na forma de terra, benefício ou feudo. Toda a hierarquia consequente leva à fragmentação dos direitos de propriedade. Exercem, assim, em proveito próprio poderes normalmente detidos pelo Estado. Chegámos, então, à parte final deste exame. O que se segue a estes séculos VIII e IX que procuramos explicar? Em traços gerais, a partir do século X-XI instala-se o feudalismo ou a sociedade feudal. Passamos da vassalidade à feudalidade. Como acertadamente afirma E. Peroy, «a transição entre vassalidade e feudalidade é o “desfasamento no tempo entre as relações pessoais e o regime de terras»15. O governo dos homens vai ser regido por uma vassalidade rígida, feudal, estabelecida e muito clara. O latifúndio tenta ser autárcico e a vida quotidiana procede dele. Os condes 12

Cf. GIORDANI, História do mundo feudal, pp. 111 Em conformidade com o excerto do texto 3: «queremos e ordenamos que os vassalos dos nossos [vassidominici] (…) recebam dos seus respectivos senhores a lei e a justiça» 14 Isto é “vassalos do senhor”, com o significado de vassalos directos do rei. 15 Cf. FOURQUIN, Senhorio e feudalidade na Idade Média, pp. 46 13

e duques antes representantes, agora são substitutos do monarca. Impõem a sua vontade (com grande autonomia ou até independência) ao conjunto dos homens livres do condado ou pagus. Continuam a ser chefes militares e agora os homens livres, em caso de guerra, servem primeiramente como seus soldados e não do rei. Refira-se, por fim, que este feudalismo não tem uma única faceta. Varia de acordo com as regiões, apresentando diferentes tonalidades. O oeste da actual França e em especial a Alemanha, vêem um desmembramento dos poderes públicos em pequenos grupos de comando pessoal. A Germânia a leste do Reno, vê um período de vassalidade depois tornado feudalismo. A unidade de base é a castelania. No fim do séc. X, a fortuna fundiária carolíngia vê-se reduzida progressivamente e o seu possuidor é já rei só de nome. Na Francia Occidentalis o particularismo é menos acentuado que na Alemanha. Nesses estados alemães desenvolve-se um feudalismo original vindo da resistência das instituições imperiais carolíngias. No entanto, a França vai conseguir com maior facilidade regressar a uma unidade centralizadora, que os alemães só conhecerão completamente na segunda metade de 1800. No século X, em Itália, o lasso controlo franco leva à emergência de principados, com força autónoma. Curioso é o caso do papa francês Silvestre II que tenta impor o feudo, nos estados pontificais. Mencione-se as chamadas “feudalidades de importação” implantadas na Inglaterra e nos estados latinos no Oriente para onde os conquistadores francos ou normandos levaram a sua maneira de sistema feudal. Falando da Inglaterra, antes de 1066, somos levados a crer que os anglo-saxónicos e anglo-dinamarquesas tinham relações pessoais, mas nem tão difundidos nem formais como os carolíngios. A batalha de Hastings nesse ano, não marcara a ruptura completa. Guilherme impõe de cima para baixo um sistema feudovassálico. Os anglo-normandos vêem o feudalismo não como adversário mas como aliado do poder régio. Na Europa meridional, leia-se Espanha, França a sul do Loire, Portugal, o senhorio é a marca mais que o feudalismo (na sua verdadeira significação). A recomendação evolui para o ritual da homenagem. Faz-se então o juramento sobre relíquias ou um corpo santo. Os deveres recíprocos evoluem para um peso da ajuda

militar que passa a justificar per si o feudo. Cada vez mais a concessão do feudo, bens fundiários, domínios rurais, porções de terra ou funções, cargos administrativos, rendas até, tornam-se condição necessária da vassalagem. O termo feudo passa a substituir o beneficio. Logo, observamos que os laços de solidariedade enfraquecem pelo estabelecimento de um vassalo numa terra. Rompem-se os estreitos laços e o feudo passa a ser visto como hereditário e propriedade da estirpe que o detém.

REFERENCIAÇÃO BIBLIOGRÁFICA FONTES: Formulae Turonenses, nº 43, em Monumenta Germaniae Historica, Formulae Merowingici et Karolini Aevi, ed. ZEUMER, 1ª parte, 1882, p. 158, traduzido pela docente a partir da versão francesa de R. BOUTRUCHE, Signeurie et Feodalité, vol. I, Paris, Aubier, 1959, pp. 363-364 Capitularia Regnum Francorum, em Monumenta Germaniae Historica, ed. A. BORETIUS e V. KRAUSE, t. II, Hannover, 1883-1897, pp. 71 e 337, traduzido por Fernanda ESPINOSA, Antologia de Textos Históricos Medievais, 1ª ed., Lisboa, 1972, pp. 171-172 BIBLIOGRAFIA GERAL: BLOCH, Marc, A Sociedade Feudal, Lisboa, Ed. 70, 1982. BOUTRUCHE, Robert, Seigneurie etféodalité, t. 1 – Le premier age des liens d´homme à homme, Paris, Aubier, 1959. pp. 12-20; 161-198 FOSSIER, Robert, Enfance de l´europe: aspects économiquesetsociaux, Paris, PUF, 1982. FOURQUIN, Guy. Senhorio e Feudalidade na Idade Média, edições 70, 1970. pp. 11-156

GANSHOF, F.-L., Que é o feudalismo?, publicações Europa América, 4ª ed, 1976 BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA: GALASSO, G., Poder e Instituições em Itália. Desde a queda do Império Romano aos dias de hoje: “Os francos e o feudalismo”. Livraria Bertrand, 1984. pp. 3442 GIORDANI, Mário Curtis, História do Mundo Feudal, t. 1, 2ª edição, 1984.pp. 110-122 TREVELYAN, G., História da Inglaterra, t. 1, Lisboa, 1945, edições Cosmos, tradução de Vitorino Magalhães Godinho. pp. 107-144

O DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA PESSOAL

1 – A RECOMENDAÇÃO NA ÉPOCA MEROVÍNGIA (FÓRMULA DE TOURS, 2º QUARTEL SÉC. VIII) Magnífico senhor X..., eu Y.... Sabido que é por todos que não tenho com que me alimentar nem vestir, roguei à vossa piedade - e a vossa vontade concedeu-mo - poder entregar-me ou encomendar-me ao vosso mundoburdum., o que eu fiz nas seguintes condições. Deveis ajudar-me e manter-me, tanto no que toca à comida como ao vestuário, na medida em que poderei servir-vos e merecê-lo. Enquanto viver, dever-vos-ei o serviço e a obediência que se podem esperar de um homem livre; e, durante toda a minha vida, não terei o poder de me subtrair ao vosso poder ou mundoburdum, mas deverei, pelo contrário, permanecer todos os dias da minha vida sob o vosso poderio e protecção. Em consequência, foi estabelecido que se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, pagaria ao seu par uma composição de dez soldos, e que a convenção ficaria em vigor. Também foi estabelecido que, deste acto, seriam redigidas duas cartas de mesmo teor, confirmadas pelas partes, o que elas fizeram. (Formulae Turonenses, nº43, em Monumenta Germaniae Historica, Formulae Merowingici et Karolini Aevi, ed. ZEUMER, 1ª parte, 1882, p. 158, traduzido pela docente a partir da versão francesa de R. BOUTRUCHE, Seigneurie et Féodalité, vol. I, Paris, Aubier, 1959, pp. 363-364).

2 - CAPITULAR DO ANO 8471. [...] Queremos também que cada homem livre no nosso reino possa, de entre nós2 ou de entre os nossos fiéis, escolher um senhor, tal como o deseje. Ordenamos também que nenhum homem possa deixar o seu senhor sem uma causa justa e que ninguém o receba, salvo da maneira habitual na época dos nossos predecessores. E sabei que queremos assegurar aos nossos fiéis o seu direito e não queremos fazerlhes nada contra a razão. Da mesma maneira, recomendamo-vos, e a todos os outros nossos fiéis, que assegureis aos vossos homens o seu direito e não lhes façais nada contra a razão.[...] 1 2

Dada por Carlos o Calvo em Meerssen. Referência a Lotário, Luis e Carlos.

3 - CAPITULAR DO ANO 8693. [...] Conservaremos aos nossos fiéis a sua lei e justiça, tal como foram aplicadas aos seus predecessores no tempo dos nossos predecessores; e queremos e ordenamos que os vassalos dos nossos bispos, abades, abadessas, condes e vassalos recebam dos seus respectivos senhores a lei e a justiça tal como foram aplicadas aos seus predecessores pelos seus senhores, no tempo dos próprios predecessores. [...] (Capitularia Regnum Francorum, em Monumenta Germaniae Historica, ed. A. BORETIUS e V. KRAUSE, t. II, Hannover, 1883-1897, pp. 71 e 337, traduzido por Fernanda ESPINOSA, Antologia de Textos Históricos Medievais, 1ª ed., Lisboa, 1972, pp. 171-172)

BIBLIOGRAFIA:

BLOCH, Marc, A Sociedade Feudal, Lisboa, Ed. 70, 1982.

BOUTRUCHE, Robert, Seigneurie et féodalité, t. 1 – Le premier âge des liens d’homme à homme, Paris, Aubier, 1959.

FOSSIER, Robert, Enfance de l’Europe: aspects économiques et sociaux, Paris, PUF, 1982.

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Também de Carlos o Calvo.

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