Comentários a mesa “Uma defesa da disciplinaridade”

July 5, 2017 | Autor: Leonardo Ruivo | Categoria: Ensino de Filosofia, Interdisciplinaridade
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Comentários a mesa “Uma defesa da disciplinaridade”  José Leonardo Ruivo 1   

Ocorreu entre  os  dias  20  a 24 de Julho,  na UFRGS, o ​ II ​ Workshop de Filosofia e  Ensino​ ,  com  o  tema  “epistemologia  e  currículo”.  Fiquei  muito  feliz  em  participar  das  atividades,  particularmente da mesa redonda  “Uma  defesa da  disciplinaridade”.  Ali tive  a oportunidade  de  ouvir a fala de Marta Vitória de Alencar e alguns breves comentários  de  Ronai  Rocha  (breves  porque  ele  retomou  e  complementou  alguns  pontos  que  já  havia desenvolvido na sua fala de abertura). Aqui elencarei alguns pontos das falas dos  dois  e  apresentarei  algumas  linhas  para   uma  maior  investigação  sobre  o  conceito  de  interdisciplinaridade  e  o  lugar  do  professor  de  filosofia  da  educação   básica  no  meio  disso tudo.    A  fala  de  Marta,  pautada  por  trechos  de  ​ sua  dissertação​ ,  parte  da  sua  experiência  como  docente  no  Colégio  de  Aplicação  da  USP.  Ela  diz  que  nos  seus  primeiros  anos  no  CAP  recebeu  a  demanda  de,  enquanto  professora  de  filosofia,  deveria  realizar  estudos  interdisciplinares  de  história   e  geografia.  Essa  situação  foi  gerando  nela,  ao  longo  dos  anos,  um  desconforto  por  ver  que  seu  papel  como  professora  de  filosofia  não  era  efetivado,  uma  vez que ela estava  a  serviço de  outras  disciplinas.  Dito de  outro  modo,  ela percebia  que a disciplina de  filosofia havia perdido  sua  especificidade.  A  esse  desconforto  Marta  se   propôs  a  investigar  o  conceito  de  interdisciplinaridade.  Contudo  qualquer  um,  ainda  hoje,  que  buscar  delimitar  o  conceito  de  interdisciplinaridade  encontrará  as  mesmas  dificuldades que  Marta  há  4  anos.  Não há  um  consenso  sobre  esse  conceito.  Há  uma  superfície,  muito  rasa,  que  diz  que   interdisciplinaridade  envolve algum  tipo  de integração  ou combinação (POMBO, 2008).  Mas  que tipo de  integração ou combinação? Essa integração ou combinação necessita  das  disciplinas  ou  visa  superá­las?  Como  realizar  a   interdisciplinaridade  na  prática?  Marta  percorre  meandros  da  história  das idéias,  identificando os movimentos  de inter,  multi e transdisciplinaridade como uma atitude: um contramovimento às ciências.  Mas  por  qual  motivo  tornou­se  necessário  realizar  um  contramovimento  às  ciências?  Aqui  parece  haver  uma  explicação  oriunda  da  história  das  ideias.  Alguns  autores  parecem  indicar  que  nossa  cultura  herdou  da  modernidade  a  ideia da crítica.  Essa,  enquanto atitude cultural, seria  equivalente  a  ideia  de questionar a tradição. Isso  produz  uma  fragmentação  dos  saberes,  evidenciado  pela  super  especialização  da  ciência.  Saberes  fragmentados,  quando   institucionalizados,  gerariam  experiências  fragmentadas  sobre  o  mundo.  É  o  exemplo  do  médico  que  sempre  diagnostica  de  1

  Licenciado  em  Filosofia  pela  UFRGS,  mestre  e  doutorando  em  epistemologia  pela  PUCRS.  Email:  [email protected] 

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acordo  com  a  sua  especialidade,  mas  não  de  acordo  com  a  doença  do  paciente.  Experiências  fragmentadas  sobre  o  mundo  geram  perda  de  sentido.  Uma  vez  que  o  meu  mundo  é  um  recorte  fechado  e  super  especializado,  então  eu  arbitrariamente  desconsidero  outras  fatias  da  realidade   que  poderiam  complementar  e  garantir  um  saber  mais  amplo  sobre  o  mundo.  Esse  é  o  processo  de crítica  e  crise. Um  processo  onde a  educação perde o sentido, os valores  perdem o sentido, as instituições perdem  o sentido….  Toda  essa  descrição que estou fazendo  aqui é muito rápida. Marta percorreu ela  em  sua  fala pormenorizadamente,  citando  autores, e desenvolvendo­a passo  a  passo.  Meu  propósito  aqui  não  é  avaliar  ou  discutir  o  valor  de  tal  explicação.  Mas  acho  importante  citá­la  porque  boa  parte  dos  discursos  (senão  os  textos)  sobre  a  necessidade  da  interdisciplinaridade  vão  nessa  linha.  E,  além disso,  creio  que a ideia  da  interdisciplinaridade  como  uma  atitude  é  o  melhor  modo  de  observar  tal  fenômeno.  Com base  nisso,  a  pergunta  que  Marta  faz  e  que gostaria de me deter é: por que esse  contramovimento às ciências, que é  a  interdisciplinaridade, precisa encontrar seu lugar  de ser dentro da escola?  Nesse  momento  gostaria  de  tentar  aproximar a fala  de  Marta  da  fala de Ronai.  Ele  inicia  lembrando  a  ambiguidade  que  o  termo  disciplina  carrega.  Creio  que  ele  concordaria com a distinção que Olga  Pombo  faz, onde: “a  palavra disciplina  pode ter,  pelo  menos, três  grandes  significados. Disciplina como ​ ramo do saber​ : a Matemática, a   Física,  a  Biologia,  a  Sociologia  ou  a  Psicologia  são  disciplinas,  ramos  do  saber  ou,  melhor,  alguns   desses  grandes  ramos.  (...)  Disciplina  como   ​ componente  curricular​ :  História, Ciências da Natureza, Cristalografia, Química Inorgânica, etc.  (...) Finalmente,  disciplina  como  ​ conjunto  de  normas  ​ ou  leis  que  regulam  uma  determinada  actividade  ou  o  comportamento  de  um  determinado  grupo:  a  disciplina  militar,  a  disciplina  automobilística ou a disciplina escolar, etc.” (2008, p. 13).  O  interesse  de  Ronai  parece ser  sobre  a  disciplina nos dois  primeiros sentidos:  como  ramo  do  saber  e  como  componente  curricular.  Valendo­me  de  uma  postagem  dele  de  2013,  “​ Onze  teses  sobre  filosofia  e  interdisciplinaridade​ ”,  eu  reconstruiria  brevemente seu argumento do seguinte modo.  Tanto  a  disciplina  enquanto  componente  curricular  como  ramo  do  saber  possuem  uma  historicidade.  Ou  seja,  disciplina  não  é  algo  estanque  (fetichizado,  ele  também  utiliza)  como  alguns  discursos  tentam  fazer  ao  postularem  uma  dicotomia  entre  as  disciplinas  e  os  estudos  interdisciplinares.  Esses  discursos,  ao  forjarem  tal  dicotomia,  identificam  as  disciplinas  como  estanques  e  os  estudos  interdisciplinares  como não lineares, complexos e capazes de gerarem conhecimentos mais abrangentes  sobre  a  realidade.  Ronai,  ao  ir  de  encontro  a  esse  discurso  e  garantir a  historicidade  das  disciplinas  (saberes  e  componentes  curriculares)  aponta  para  o  fato  de  que  a  produção  do   conhecimento  é  algo  dinâmico  e  não  é  necessária  uma  distinção 

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meramente  nominal  para  demonstrar  campos  de  saberes  que  se  tornaram  inócuos  para  descrever  a  realidade  daqueles  que  passaram  a  constituir  o  paradigma  da  narrativa científica.  Além  disso,  a  noção  de  disciplinas  é  fundamental  porque  desempenha  uma  espécie  de  ideal regulativo. Ideal  regulativo porque  responderia a curiosidade humana.  Ou  seja,  a  questionamentos que surgiram e ainda surgem sobre a realidade e sobre as  nossas ideias da realidade.  Mas o que é a interdisciplinaridade e, afinal, por que na escola?  Creio  que  tanto   Ronai  como  Marta  são  críticos  de  uma  interdisciplinaridade  como  sendo  simplesmente  uma  atitude  de  contramovimento  às  ciências.  Isso porque,  em  primeiro  lugar,  ambos  concordam  na  necessidade das disciplinas  ­ dada  a  função  que  essas  desempenham  na  vida  do  ser   humano.  Contudo  creio  que  ambos  concordariam  que  uma  ideia  (mínima)  de  interdisciplinaridade  é  necessária:  a  de  processos  que  aumentem  a  comunicação  entre as disciplinas.  Voltaremos  a isso  logo  adiante.  O  que  gostaria  de  frisar  agora  é  que  essa  necessidade   de  comunicação  responde  de   modo  diferente  nas  disciplinas  como  saberes  e  nas  disciplinas  como  componentes curriculares.  Do  ponto  de  vista  dos  saberes,  a  interdisciplinaridade  serve  para  conectar  especialistas a  fim de gerar  conhecimento de  ponta. Já do ponto de vista escolar, e eu  cito  Ronai,  “O  ​ interdisciplinar  escolar  é  um  recurso  didático,  que  reforça  o  sentido de  narratividade  na  experiência  escolar.” Ou seja a atividade interdisciplinar na escola visa  a melhorar  o  modo  como  transmitimos o conhecimento produzido pelos saberes para a  geração  que   está  em  formação na  escola.  Isso  quer dizer  que cai  por  terra  a  ideia  da  interdisciplinaridade  escolar  como  um  contramovimento às ciências (ou saberes) afinal,  uma  coisa  é  disputar  como  o  conhecimento  é  sistematizado,  e  outra  é  como  esse  conhecimento  é   transmitido.  O  conhecimento  sistematizado  é  transmitido  através  de   uma  narratividade que  deve  sim se valer  da interdisciplinaridade escolar, ou  seja, deve  valer­se  de  processos  que  serviriam  para  aumentar  a  comunicação  entre  os  diversos  saberes sistematizados.  Esses saberes  sistematizados, ainda que possuam uma historicidade, possuem  em  comum  o  fato  de  responderem  a  curiosidade  humana.  Mas também  possuem  em   comum  o  fato  de investigarem aspectos particulares da realidade. Com exceção de um  saber,  que é a filosofia. Esse saber investiga aspectos gerais da realidade e, por isso, é  por natureza transdisciplinar.    Busquei  ao longo dessa  primeira  parte resumir  e  aproximar  as  falas de Marta  e  Ronai.  Contudo  gostaria  de  apresentar  algumas  questões  que  para  mim  precisariam  ser  melhor  exploradas.  A  primeira  delas  diz  respeito  a  uma  melhor  especificação  da  filosofia  na  escola. Na  fala  de Marta vemos a morte da  filosofia a serviço  da  história e  

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da  geografia   para  fins  de  criticar  a  noção  de  interdisciplinaridade  como  um  contramovimento as ciências. Mas  ficamos  sem uma caracterização positiva do que há  (ou  deve  haver)  de  específico  na  filosofia  no  espaço  escolar.  Ronai  fala  da  filosofia  como  uma  disciplina  genérica,  com  um  caráter  naturalmente trans. Mas,  na  prática,  o  que isso representa para professores de filosofia na educação básica?  Se  algumas  das coisas  que disse  aqui  podem  ser consideradas como  ponto  de  partida  para  a constituição  de  um  grupo  de  trabalho,  creio  que precisaremos enfrentar  de  modo  direto  e  radical  a  pergunta  o  que  deve  ser  a  filosofia  no  espaço  escolar?  Parece  haver  uma  preferência  para  um  currículo  de  filosofia  voltado  para  temas  e  problemas.  Mas  quais temas?  E quais problemas? Penso que começar a assentar isso  nos  coloca  na direção  de  fornecer algo  de positivo  para  a  comunidade  de  professores  de  filosofia  que  estão  na  educação  básica  hoje  ­  talvez  à  deriva,  entre  demandas de  pluri,  inter  e  trans  disciplinaridades  sem  conseguir  reconhecer  o  que há de  específico  na filosofia.  Em segundo lugar, pergunto se a escola necessita de um espaço interdisciplinar.  Michael  Young  (2011)  vai  de  encontro  a  essa  ideia  quando  diz   que  o  espaço  interdisciplinar  deve  ocorrer  dentro  das  próprias  disciplinas.  Mas  o  que  é  um  espaço  interdisciplinar  ocorrendo  dentro da  disciplina  de  filosofia? Ronai e Marta concordariam  com  essa  afirmação?  Ou   discordariam  de  Young,  apontando  que  são  necessários  espaços de pesquisa para os estudantes, espaços que deveriam ser interdisciplinares?    REFERÊNCIAS  POMBO,  O.  “Epistemologia da interdisciplinaridade”​ . Ideação – Revista do Centro de Educação  e Letras Campus Foz do Iguaçu, 2008, v. 10, n. 1, pp. 9­40.  YOUNG,  Michael  F.  D.  “​ O  futuro  da  educação  em  uma  sociedade  do  conhecimento:  o  argumento  radical  em  defesa  de  um  currículo  centrado  em disciplinas​ ”. Rev. Bras. Educ. 2011,  vol.16, n.48 pp. 609­623 

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