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Comentários a mesa “Uma defesa da disciplinaridade” José Leonardo Ruivo 1
Ocorreu entre os dias 20 a 24 de Julho, na UFRGS, o II Workshop de Filosofia e Ensino , com o tema “epistemologia e currículo”. Fiquei muito feliz em participar das atividades, particularmente da mesa redonda “Uma defesa da disciplinaridade”. Ali tive a oportunidade de ouvir a fala de Marta Vitória de Alencar e alguns breves comentários de Ronai Rocha (breves porque ele retomou e complementou alguns pontos que já havia desenvolvido na sua fala de abertura). Aqui elencarei alguns pontos das falas dos dois e apresentarei algumas linhas para uma maior investigação sobre o conceito de interdisciplinaridade e o lugar do professor de filosofia da educação básica no meio disso tudo. A fala de Marta, pautada por trechos de sua dissertação , parte da sua experiência como docente no Colégio de Aplicação da USP. Ela diz que nos seus primeiros anos no CAP recebeu a demanda de, enquanto professora de filosofia, deveria realizar estudos interdisciplinares de história e geografia. Essa situação foi gerando nela, ao longo dos anos, um desconforto por ver que seu papel como professora de filosofia não era efetivado, uma vez que ela estava a serviço de outras disciplinas. Dito de outro modo, ela percebia que a disciplina de filosofia havia perdido sua especificidade. A esse desconforto Marta se propôs a investigar o conceito de interdisciplinaridade. Contudo qualquer um, ainda hoje, que buscar delimitar o conceito de interdisciplinaridade encontrará as mesmas dificuldades que Marta há 4 anos. Não há um consenso sobre esse conceito. Há uma superfície, muito rasa, que diz que interdisciplinaridade envolve algum tipo de integração ou combinação (POMBO, 2008). Mas que tipo de integração ou combinação? Essa integração ou combinação necessita das disciplinas ou visa superálas? Como realizar a interdisciplinaridade na prática? Marta percorre meandros da história das idéias, identificando os movimentos de inter, multi e transdisciplinaridade como uma atitude: um contramovimento às ciências. Mas por qual motivo tornouse necessário realizar um contramovimento às ciências? Aqui parece haver uma explicação oriunda da história das ideias. Alguns autores parecem indicar que nossa cultura herdou da modernidade a ideia da crítica. Essa, enquanto atitude cultural, seria equivalente a ideia de questionar a tradição. Isso produz uma fragmentação dos saberes, evidenciado pela super especialização da ciência. Saberes fragmentados, quando institucionalizados, gerariam experiências fragmentadas sobre o mundo. É o exemplo do médico que sempre diagnostica de 1
Licenciado em Filosofia pela UFRGS, mestre e doutorando em epistemologia pela PUCRS. Email:
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acordo com a sua especialidade, mas não de acordo com a doença do paciente. Experiências fragmentadas sobre o mundo geram perda de sentido. Uma vez que o meu mundo é um recorte fechado e super especializado, então eu arbitrariamente desconsidero outras fatias da realidade que poderiam complementar e garantir um saber mais amplo sobre o mundo. Esse é o processo de crítica e crise. Um processo onde a educação perde o sentido, os valores perdem o sentido, as instituições perdem o sentido…. Toda essa descrição que estou fazendo aqui é muito rápida. Marta percorreu ela em sua fala pormenorizadamente, citando autores, e desenvolvendoa passo a passo. Meu propósito aqui não é avaliar ou discutir o valor de tal explicação. Mas acho importante citála porque boa parte dos discursos (senão os textos) sobre a necessidade da interdisciplinaridade vão nessa linha. E, além disso, creio que a ideia da interdisciplinaridade como uma atitude é o melhor modo de observar tal fenômeno. Com base nisso, a pergunta que Marta faz e que gostaria de me deter é: por que esse contramovimento às ciências, que é a interdisciplinaridade, precisa encontrar seu lugar de ser dentro da escola? Nesse momento gostaria de tentar aproximar a fala de Marta da fala de Ronai. Ele inicia lembrando a ambiguidade que o termo disciplina carrega. Creio que ele concordaria com a distinção que Olga Pombo faz, onde: “a palavra disciplina pode ter, pelo menos, três grandes significados. Disciplina como ramo do saber : a Matemática, a Física, a Biologia, a Sociologia ou a Psicologia são disciplinas, ramos do saber ou, melhor, alguns desses grandes ramos. (...) Disciplina como componente curricular : História, Ciências da Natureza, Cristalografia, Química Inorgânica, etc. (...) Finalmente, disciplina como conjunto de normas ou leis que regulam uma determinada actividade ou o comportamento de um determinado grupo: a disciplina militar, a disciplina automobilística ou a disciplina escolar, etc.” (2008, p. 13). O interesse de Ronai parece ser sobre a disciplina nos dois primeiros sentidos: como ramo do saber e como componente curricular. Valendome de uma postagem dele de 2013, “ Onze teses sobre filosofia e interdisciplinaridade ”, eu reconstruiria brevemente seu argumento do seguinte modo. Tanto a disciplina enquanto componente curricular como ramo do saber possuem uma historicidade. Ou seja, disciplina não é algo estanque (fetichizado, ele também utiliza) como alguns discursos tentam fazer ao postularem uma dicotomia entre as disciplinas e os estudos interdisciplinares. Esses discursos, ao forjarem tal dicotomia, identificam as disciplinas como estanques e os estudos interdisciplinares como não lineares, complexos e capazes de gerarem conhecimentos mais abrangentes sobre a realidade. Ronai, ao ir de encontro a esse discurso e garantir a historicidade das disciplinas (saberes e componentes curriculares) aponta para o fato de que a produção do conhecimento é algo dinâmico e não é necessária uma distinção
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meramente nominal para demonstrar campos de saberes que se tornaram inócuos para descrever a realidade daqueles que passaram a constituir o paradigma da narrativa científica. Além disso, a noção de disciplinas é fundamental porque desempenha uma espécie de ideal regulativo. Ideal regulativo porque responderia a curiosidade humana. Ou seja, a questionamentos que surgiram e ainda surgem sobre a realidade e sobre as nossas ideias da realidade. Mas o que é a interdisciplinaridade e, afinal, por que na escola? Creio que tanto Ronai como Marta são críticos de uma interdisciplinaridade como sendo simplesmente uma atitude de contramovimento às ciências. Isso porque, em primeiro lugar, ambos concordam na necessidade das disciplinas dada a função que essas desempenham na vida do ser humano. Contudo creio que ambos concordariam que uma ideia (mínima) de interdisciplinaridade é necessária: a de processos que aumentem a comunicação entre as disciplinas. Voltaremos a isso logo adiante. O que gostaria de frisar agora é que essa necessidade de comunicação responde de modo diferente nas disciplinas como saberes e nas disciplinas como componentes curriculares. Do ponto de vista dos saberes, a interdisciplinaridade serve para conectar especialistas a fim de gerar conhecimento de ponta. Já do ponto de vista escolar, e eu cito Ronai, “O interdisciplinar escolar é um recurso didático, que reforça o sentido de narratividade na experiência escolar.” Ou seja a atividade interdisciplinar na escola visa a melhorar o modo como transmitimos o conhecimento produzido pelos saberes para a geração que está em formação na escola. Isso quer dizer que cai por terra a ideia da interdisciplinaridade escolar como um contramovimento às ciências (ou saberes) afinal, uma coisa é disputar como o conhecimento é sistematizado, e outra é como esse conhecimento é transmitido. O conhecimento sistematizado é transmitido através de uma narratividade que deve sim se valer da interdisciplinaridade escolar, ou seja, deve valerse de processos que serviriam para aumentar a comunicação entre os diversos saberes sistematizados. Esses saberes sistematizados, ainda que possuam uma historicidade, possuem em comum o fato de responderem a curiosidade humana. Mas também possuem em comum o fato de investigarem aspectos particulares da realidade. Com exceção de um saber, que é a filosofia. Esse saber investiga aspectos gerais da realidade e, por isso, é por natureza transdisciplinar. Busquei ao longo dessa primeira parte resumir e aproximar as falas de Marta e Ronai. Contudo gostaria de apresentar algumas questões que para mim precisariam ser melhor exploradas. A primeira delas diz respeito a uma melhor especificação da filosofia na escola. Na fala de Marta vemos a morte da filosofia a serviço da história e
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da geografia para fins de criticar a noção de interdisciplinaridade como um contramovimento as ciências. Mas ficamos sem uma caracterização positiva do que há (ou deve haver) de específico na filosofia no espaço escolar. Ronai fala da filosofia como uma disciplina genérica, com um caráter naturalmente trans. Mas, na prática, o que isso representa para professores de filosofia na educação básica? Se algumas das coisas que disse aqui podem ser consideradas como ponto de partida para a constituição de um grupo de trabalho, creio que precisaremos enfrentar de modo direto e radical a pergunta o que deve ser a filosofia no espaço escolar? Parece haver uma preferência para um currículo de filosofia voltado para temas e problemas. Mas quais temas? E quais problemas? Penso que começar a assentar isso nos coloca na direção de fornecer algo de positivo para a comunidade de professores de filosofia que estão na educação básica hoje talvez à deriva, entre demandas de pluri, inter e trans disciplinaridades sem conseguir reconhecer o que há de específico na filosofia. Em segundo lugar, pergunto se a escola necessita de um espaço interdisciplinar. Michael Young (2011) vai de encontro a essa ideia quando diz que o espaço interdisciplinar deve ocorrer dentro das próprias disciplinas. Mas o que é um espaço interdisciplinar ocorrendo dentro da disciplina de filosofia? Ronai e Marta concordariam com essa afirmação? Ou discordariam de Young, apontando que são necessários espaços de pesquisa para os estudantes, espaços que deveriam ser interdisciplinares? REFERÊNCIAS POMBO, O. “Epistemologia da interdisciplinaridade” . Ideação – Revista do Centro de Educação e Letras Campus Foz do Iguaçu, 2008, v. 10, n. 1, pp. 940. YOUNG, Michael F. D. “ O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas ”. Rev. Bras. Educ. 2011, vol.16, n.48 pp. 609623