Comércio de escravos em Itu na década final da escravatura - um panorama

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U NIVERSIDADE DE S ÃO P AULO F A C U LD A D E

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D EPARTAMENTO DE E CONOMIA Monografia

Comércio de escravos em Itu na década final da escravatura: um panorama

Aluno: Marcelo Dias de Araujo Ferreira Número USP: 5672587 Professor Orientador: José Flávio Motta São Paulo 2015 1

U NIVERSIDADE DE S ÃO P AULO F A C U LD A D E

DE

E C O N O M IA , A D M I NIS T RA Ç Ã O

E

C O NT A BI LI D A D E

D EPARTAMENTO DE E CONOMIA

Comércio de escravos em Itu na década final da escravatura: um panorama

Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de graduação em Economia pela Universidade de São Paulo, com orientador do Professor Doutor José Flávio Motta

Marcelo Dias de Araujo Ferreira

São Paulo 2015

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Agradecimentos Agradeço especialmente a meus pais, que sempre me amaram e me apoiaram para chegar até aqui. Também gostaria de agradecer à Giovanna, do Museu Republicano por ter me recebido e facilitado o acesso à documentação e a Anicleide Zequini, também pela recepção e pela indicação de artigos sobre a localidade. Finalmente, gostaria de agradecer a meu orientador, José Flávio Motta, por sempre ter sido uma inspiração como professor e apontar o caminho certo ao longo da confecção deste trabalho.

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Resumo O presente trabalho busca traçar um panorama do comércio de escravos na cidade de Itu, província de São Paulo, na década de 1880, levando em consideração preço, aptidão, idade, entre outras características, de escravos comercializados na cidade no período citado, contextualizando essas trocas no momento histórico pelo qual a cidade e país passavam. Classificação JEL: N36, N46, J49

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Sumário 1.

Introdução ............................................................................................................................ 8

2.

Conjuntura econômica de Itu ............................................................................................. 12

2.1 Breve histórico de Itu ......................................................................................... 12 2.2

O advento do açúcar: produto de exportação ............................................... 14

2.3

O avanço do café: açúcar para o mercado interno ....................................... 15

2.4

Itu nos anos 1880: a onda verde do café e o declínio do açúcar .................. 18

2.5 O surto do algodão .............................................................................................. 20 2.5 3.

Informes populacionais ................................................................................ 21

Revisão da literatura........................................................................................................... 22

3.1 O fim do tráfico negreiro transatlântico ............................................................. 23 3.2

Cessam os braços vindos do além-mar, buscam-se braços no além-terra .... 25

3.3 Depois da porteira do mar, a porteira da terra fecha: o tráfico interno de cativos relegado ao comércio intraprovincial ........................................................... 33 4.

Café, açúcar e escravos: o comércio de cativos em Itu no final da escravidão.................. 40

4.1

As fontes....................................................................................................... 40

.................................................................................................................................. 45 4.2

Antes da porteira fechar: a fazenda capoava e o ano de 1880...................... 47

4.3

A porteira fecha: o comércio de escravos em Itu às vésperas da abolição ... 59

5.

Conclusão ........................................................................................................................... 75

6.

Fontes e referências bibliográficas ..................................................................................... 76

6.1 Fontes primárias manuscritas ............................................................................. 76 6.2

Fontes primárias impressas ou disponíveis na internet ................................ 76

6.3

Fontes secundárias (autores citados) .................................................... 77

5

Índice de mapas Mapa 1 – Divisão do território paulista por Milliet. (São Paulo, 1939) ................ 16 Mapa 2 - Distância entre principais regiões exportadoras de cativos e o oeste cafeeiro. . ..................................................................................................................... 30 Mapa 3 - Distância extrema entre principais regiões exportadoras de escravos e a zona algodo-sucro-eira.. ...................................................................................... 30

Índice de figuras Figura 1- Casal Olympia da Fonseca e Carlos Vasconcellos de Almeida Prado e filhos, 1890. ............................................................................................................... 11 Figura 2- Escritura de compra e venda de escravos ............................................. 43 Figura 3 - Escritura de compra e venda de escravos .......................................... 44 Figura 4 - Notícia sobre libertação de escravos por Manoel de Oliveira na edição do dia 23/09/1883 no jornal Imprensa Ytuana ........................................... 47 Figura 5 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69 Figura 6 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69 Figura 7 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69 Figura 8 - Nota de Falecimento ................................................................................. 70 Figura 9 - Notícia sobre júri de escravo ................................................................... 70 Figura 10 - anúncio da venda judicial da herança dos órfãos Amaral Gurgel ... 71 Figura 11 - Notícia sobre escravos em fuga ........................................................... 74

Índice de gráficos Gráfico 1 - Pirâmide etária dos escravos vendidos pela família Nardi...............49 Gráfico 2 - Quantidade de escravos comercializados em Itu por ano entre 1880 e 1887................................................................................................................62 Gráfico 3 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887...................................................................................................................62 Gráfico 4 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por gênero..........................................................................................................64 Gráfico 5 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por gênero, faixa etária de 15 a 29 anos............................................................64

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Índice de tabelas Tabela 1- Produção e exportação de açúcar no oeste paulista em 1854...................................................................................................................15 Tabela 2 - Fazendas de café no oeste de São Paulo em 1854.........................17 Tabela 3 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1877.................................18 Tabela 4 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1881.................................18 Tabela 5 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1887.................................19 Tabela 6 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1893.................................19 Tabela 7 – População em Itu em 1874..............................................................21 Tabela 8 – População em Itu em anos selecionados........................................22 Tabela 9 – Mortalidade política da escravidão..................................................35 Tabela 10 – Origem dos escravos do sexo masculino vendidos pela família Nardi..................................................................................................................50 Tabela 11 – Idade média em anos dos escravos negociados em Itu em 1880...................................................................................................................52 Tabela 12 – Idade média em ano dos escravos negociados em Itu em 1880 sem considerar a venda dos escravos da fazenda Capoava ...........................53 Tabela 13 – Preço médio dos escravos separados por gênero em Itu em 1880...................................................................................................................53 Tabela 14 - Preço médio dos escravos separados por gênero e aptidão em Itu em 1880.............................................................................................................54 Tabela 15 – Preço médio dos escravos por sexo e faixa etária e tamanho das amostra..............................................................................................................55 Tabela 16 – Local de nascimento dos escravos do sexo masculino comercializados em Itu em 1880.......................................................................56 Tabela 17 – Local de nascimento dos escravos versus local de matrícula.......57 Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus população estrangeira em 1890........................................................................59 Tabela 19 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por gênero entre 1880 e 1887.......................................................................................................61 Tabela 20 – Preço médio real dos escravos por ano: para todas as faixas etárias e de 15 a 29 anos. Período de 1880-1887.............................................63 Tabela 21 – Local de matrícula dos escravos transacionados entre os Pacheco Jordão................................................................................................................65 Tabela 22 – Escravos negociados segundo sexo e ocupação (Itu, 18811886)..................................................................................................................67 Tabela 23 – Idade média por ano do escravos vendidos em Itu entre 1881 e 1887...................................................................................................................68 Tabela 24 – Escravos vendidos pelos órfãos Amaral Gurgel: preço do anúncio versus preço individual de venda estimado e idade..........................................72

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1. Introdução Durante a segunda metade do século XIX, o Brasil passou por uma série de transformações econômicas e políticas que alteraram características importantes do jovem país. Aos poucos, o eixo econômico foi se transferindo do nordeste açucareiro para o sudeste cafeeiro, levando ao país também a um novo equilíbrio demográfico. A Monarquia deu lugar à República e o trabalho escravo deu lugar ao trabalho livre.1 Em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assina a Lei Áurea, dando em uma canetada o triunfo a luta abolicionista, que há anos buscava derrubar o fúnebre regime de trabalho forçado que ceifou a humanidade de milhões de africanos e seus descendentes no Brasil ao longo de mais de trezentos anos2. Antes da canetada final de 1888, diversos marcos regulatórios tiveram impacto no comércio de escravos. Dentre eles podemos citar a Lei Eusébio de Queiróz que acabou com o tráfico internacional em 1850, a lei do ventre livre que em 1871 dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data e a Lei dos Sexagenários, que em 1885 garantiu liberdade aos escravos de 60 anos ou mais.3 Todos esses marcos reverberaram até a década de escopo de nosso estudo. Este trabalho tem como objetivo traçar um panorama do comércio de escravos na cidade de Itu, estado de São Paulo, na última década em que a escravidão vigorou durante segunda metade do século XIX. Para isso, coletamos uma série de escrituras que nos forneceram certas características dos escravos transacionados. Primeiramente, com o apoio da bibliografia, iremos fazer uma breve descrição sobre a história da cidade e suas características gerais: localização, população, características naturais, produção agrícola e economia.

1

“A SEGUNDA metade do século XIX assinala o momento de maior transformação econômica na história brasileira.” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 192-204) 2

A luta contra abolição no Brasil vem de longa data, mas ainda assim, a historiografia por vezes trata o fim do trabalho servil como apenas uma canetada. “Estas são fatos, ou circunstâncias, que devem, e precisam ser levados em conta antes de se chegar aqui ao 13 de maio(...)em 1972, tanto tempo depois, um dos nossos maiores pensadores, um notável professor universitário, ainda escreveria que “fora necessário que aparecesse uma mulher de coração generoso, e na ausência do pai, e de uma penada só, resolvesse um problema que os homens do Império não haviam sabido enfrentar com a mesma energia e intrepidez...” (GERSON, 1975, p. 306) 3

... legal landmarks annouced partial emancipation in 1871 and 1885 (freedom, respectly, for children thenceforth born to slave mothers and for sexagenarians)...” (SLENES, 2004, in The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the Americas, p.327)

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Em seguida, comentaremos a bibliografia sobre o tráfico de escravos no Brasil, focando especialmente no período pós 1850. Finalmente, nos debruçaremos sobre os dados coletados em Itu. Pouco tempo depois da assinatura da Lei Áurea, o então ministro da Fazenda Rui Barbosa, levou a cabo a queima de milhares de documentos referentes à escravidão, e como consequência, durante muito tempo acreditou-se que não haveria fontes primárias para pesquisar o comércio de escravos. Em sua revisão da literatura sobre estudos brasileiros sobre a escravidão, com ênfase em trabalhos socioeconômicos quantitativos, Klein relata a surpresa que muitos historiadores tiveram ao encontrar fontes primárias riquíssimas, com grandes detalhes sobre transações realizadas especialmente a partir de meados do século XIX no sudeste cafeeiro4. Várias fontes primárias vêm sido utilizadas para entender melhor a dinâmica do comércio de cativos. Motta (2012) se vale de diversas escrituras de compra e venda registradas em cartório em seu estudo sobre as localidades de Constituição (atual Piracicaba), Guaratinguetá, Areias e Casa Branca para estudar e comparar diversas características dos escravos comercializados nessas localidades ao longo da segunda metade do século XIX. Já Mello (1977) se utiliza de inventários de fazendeiros de café, cartas de libertação de escravos e anúncios do Jornal do Commercio, documentos ora do município neutro, ora da cidade fluminense de Vassouras, para traçar um panorama da desagregação do trabalho servil e calcular a expectativa que os fazendeiros tinham quanto ao fim da escravidão. Estes são apenas dois exemplos de trabalhos que se utilizam de rico material primário, disponível em cartórios, arquivos municipais e museus em diversas localidades por todo o país, muitos dos quais ainda esperam para ser estudados. O decreto nº2699 de 28 de novembro de 1860 determinou que transações envolvendo a compra e venda de escravos superiores a 200 mil réis fossem registradas por ordem cronológica em livro especial de notas. Este decreto facilitou em muito o nosso trabalho.5 A localidade que escolhemos – Itu, na

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Entre a queima dos registros da escravidão na década de 1890, a baixa qualidade dos arquivos notariais e a falha de promover um Censo Nacional até 1872, foi assumido que haveriam poucas fontes primárias, e que para estudar a história social brasileira no século XIX ter-se-ia que confiar em relatos de viajantes e relatórios publicados pelo governo”(KLEIN, 2009, p. 112). 5

“Art. 3º A escriptura publica he da substancia de todo e qualquer contracto de compra e venda, troca e dação in solutum de escravos, cujo valor ou preço exceder de 200$000, qualquer que fôr o lugar em que taes contractos se celebrarem ou effectuarem.

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região Central da província, tem preservada em excelente estado uma quantidade relevante de escrituras desde 1860 até 1887, o que nos permitirá realizar uma séria de descobertas sobre o comércio de escravos na localidade na década de 1880. Podemos considerar essa quantidade relevante, pois é seguro afirmar que a grande maioria, se não todos os escravos, tinham valor superior a 200 mil réis – nenhuma das escrituras, nem no período final da escravidão quando houve forte depressão de preços, apresentou escravos com valor sequer próximo à este piso. O Fundo Cartório de Notas de Itu, preservado pelo Museu Republicano Convenção de Itu da Universidade de São Paulo, possui cinco livros notariais dedicados exclusivamente ao registro de compra e venda de escravos. Digitalizamos todos eles, num total de mais de duas mil fotos que poderão ser utilizadas para estudos futuros. Para este trabalho, focaremos na última década da vigência da escravidão. Nos anos 80 foram realizadas 110 transações, sendo 2 delas de aluguel, 4 de direitos parciais, 2 vendas duplas (vendas que foram repetidas logo em seguida) 1 de destrato e 1 de ratificação, totalizando 215 escravos negociados. Temos informações sobre os preços individuais de 89 destes escravos. Há ainda 30 transações envolvendo a venda de mais de um escravo, variando de 2 a 26(curiosamente, a maior transação foi também a última, em outubro de 1887). Em 1881 foi criado um imposto para o tráfico interprovincial de escravos que praticamente impossibilitou a sua existência.6 O fim do tráfico interprovincial obviamente restringiu geograficamente a compra legal de cativos em Itu à província de São Paulo. Por isso, iremos considerar dois momentos distintos: num primeiro momento, usaremos as escrituras do ano de 1880 para

§ 1º As escripturas serão lavradas por ordem chronologica em livro especial de notas, aberto, numerado, rubricado e encerrado na fórma da Legislação em vigor, por Tabellião de notas legitimamente constituido, ou por Escrivão de Paz nos lugares designados pelo art. 1º da Lei de 30 de Outubro de 1830, e conterão, além das declarações exigidas pela Ordenação Liv. 4º, Tit. 78, §§ 4º, 5º e 6º e Tit. 80, § 7 º, os nomes e moradas dos contrahentes, o nome, sexo, côr, officio, ou profissão, estado, idade e naturalidade do escravo e quaesquer outras qualidades ou signaes que o possão distinguir. § 2º Da escriptura se dará traslado ao comprador na fórma e dentro do prazo da Ordenação Liv. 1º, Tit. 78, §§ 17 e 18 e mais Legislação em vigor.” Coleção de Leis do Império do Brasil - 1860, Página 1097 Vol. 1 pt II, disponível em : http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64263&norma=80168 6

(GRAHAM, 2004, p.302

10

caracterizar o comércio que ocorreu até então, e em seguida, faremos uma discussão para o período de 1881-1887, levando em conta também o impacto causado pela Lei dos Sexagenários, de 1885, e eventuais resquícios da Lei do Ventre Livre, de 18717. Antes de nos aventurarmos pelas escrituras, vamos investir em entender o momento pelo qual a cidade de Itu passava e como ela se inseria no comércio de escravos. Também, ao longo de nossa exposição, usaremos notícias publicadas por jornais contemporâneos8.

Figura 1- Casal Olympia da Fonseca e Carlos Vasconcellos de Almeida Prado e filhos, 9 1890.

Carlos comprou em 1880 um escravo de nome Firmino, do serviço da roça e uma escrava de nome Christina, do serviço doméstico. Além disso, Carlos foi um dos fundadores do Clube Republicano de Itu e na época da compra dos escravos, residia no sobrado onde hoje está localizado o museu republicano Convenção de Itu10.

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Ver citação 3

8

“Imprensa Ytuana” e “A Cidade de Ytu” digitalizados e disponibilizados em http://obrasraras.sibi.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269. 9

Foto retirada de: http://historiasdeitu.blogspot.com.br/2012/03/tradicional-familia-ituana.html,

10

Fonte: http://mr.vitis.uspnet.usp.br/index.php/home/historico-do-edificio.html

11

2. Conjuntura econômica de Itu 2.1 Breve histórico de Itu Para introduzirmos nosso estudo sobre a cidade de Itu, transcrevemos aqui a entrada sobre a cidade no Almanak da Província de São Paulo de 1873: “A cidade de Itú foi povoada pelo paulista Domingos Fernandes, e seu genro Christovão Diniz, os quaes conseguirão da autoridade apostólica da diocese do Rio de Janeiro, pelo anno de 1653, provisão para a erecção de capella curada sob o titulo de Nossa Senhor ada Candelaria, sendo elevada a villa em 1651. (...) O primeiro Imperador deu-lhe o titulo de Fidelissima (grifo no original), por haver partido dela o grandioso pensamento que deu origem à nossa independência. Por lei provincial de Fevereiro de 1842 foi elevada à categoria de cidade. A uma légua de distancia da Cidade corre o rio Tieté, formando uma catadupa de 39 a 40 pés de altura, donde provêm o nome de Itú, que em linguagem indígena significa agua saltando. Esta importante Cidade é bem arruada e possue templos sumptuosos, em que celebrão-se festas com toda a pompa e decencia. Conta entre os seus edifícios públicos a casa da Camara, a igreja Matriz, sob a invocação de Nossa Senhora da Candealaria, um Convento da Ordem do Carmo e outro da de S. Francisco, um Hospital de Caridade e outro de Lazaros, e outras igrejas e capelas. Possue bons collegios de educação, e a primeira fabrica de fiar e tecer, movida a vapor, existente na Provincia. Acha-se funcionando até o lugar denominado Pimenta a estrada de ferro que de Jundiahy dirige-se à Cidade, e em breve-espera-se ser toda a linha franqueada ao transito publico. Tambem em breve terá lugar a inauguração dos trabalhos do ramal que, passando por Indaiatuba, dirige-se a Capivary, e tratase do seu prolongamento até a Cidade da Constituição. Em seu Municipio cultiva-se café, cana de assucar, algodão, chá e outros gêneros.11 Dista da Capital 18 leguas ou 100 kilometros (...)”12 A partir da descrição feita pelo Almanak, algumas coisas ficam claras sobre a Itu de 1873: ela era uma cidade antiga e rica. Como não poderia deixar de ser, sua história faz parte de uma história maior – a história da Província de São Paulo, que por sua vez é indissociável da história do Brasil como um todo. 11

Trechos por nós negritados para chamar a atenção à riqueza da cidade e à sua produção agrícola.

12

Almanak da Província de São Paulo para 1873, p. 355

12

São Paulo foi batizada por um de seus governadores como “formosa sem dote” no início do século XVIII. Isso porque, ao contrário das províncias do nordeste açucareiro, não produzia nenhum bem exportável e estava desconectada do mercado mundial. A economia era praticamente de subsistência e uma sociedade mestiça entre brancos e indígenas, muitas vezes usados como escravos emergiu. As bandeiras, que exploravam o interior e recrutavam forçadamente indígenas para o trabalho escravo deram origem a figura mítica do paulista: o bandeirante13. A partir dos anos 1700 com o surgimento da mineração na vizinha Minas Gerais – ouro lá encontrado, diga-se de passagem pelos bandeirantes, a província de São Paulo se beneficiou ao produzir alimentos para as regiões mineiras e também com o ouro que os paulistas traziam. Depois, quando foi encontrado ouro na região do Mato Grosso, a província também se beneficiou, e Itu teve um papel de posto de abastecimento importante por estar localizada próxima à principal rota das Bandeiras: o Rio Tietê14. Com esse novo dinamismo, a província passou a importar escravos africanos e a dinâmica populacional mudou. Mas foi só após meados do século XVIII que a aparência da província começou a mudar de fato. Pesados investimentos públicos principalmente na rede de transporte conectando o planalto paulista com o porto de Santos, mais a “sorte” de um aumento nos preços do açúcar negociados no exterior deram o incentivo necessário para que a província encontrasse no açúcar seu primeiro produto de exportação. E nesse comércio, Itu, teve papel de destaque15. De maneira geral, Itu situa-se numa região pouco propícia ao desenvolvimento da agricultura, pois os solos ituanos possuem baixa fertilidade e são erodidos facilmente, por serem solos de baixa profundidade e possuírem declives acentuados16.

13

LUNA & KLEIN, 2003, cap. 1.

14

Ibid

15

Ibid

16

(QUIROGA, 2011, p. 35-36) baseado em AB‟SABER apud TRINDADE, Jaelson; TOSCANO, João Walter. Diagnóstico Geral da Cidade de Itu para a implantação de um programa de ação cultural. Vol. II. São Paulo: CONDEPHAAT, s/d, p. 14.

13

2.2 O advento do açúcar: produto de exportação

Apesar dessa característica para o longo prazo, o açúcar sem dúvidas deixara a cidade rica, já que a região contava com solo propício para a atividade em período anterior à sua exaustão. Situada bem na divisa entre solo rochoso e de pouca profundidade, em região com ausência de geadas e clima propício ao desenvolvimento da cana-de-açúcar, Itu de destacou na produção do ouro branco17. Como resultado, na primeira metade do século seguinte, o açúcar reinava quase que absoluto nas paisagens rurais do município. Em seu trabalho sobre o olhar estrangeiro de viajantes ingleses e norte-americanos que viajaram pela província de São Paulo no século XIX, Gerbovic (2009) cita a descrição de Itu feita por Edmund Pink em 1823: “Esta é uma grande cidade, a princípio, próspera, mas agora em declínio por causa da melhor localização de Campinas para o cultivo de cana-de-açúcar... Os habitantes são principalmente plantadores de cana-de-açúcar, muitos dos quais tivera, a atenção atraída tanto para este local como para as redondezas de Campinas, onde o solo é muito mais rico, com mais madeira, como para o mais distante e novo distrito de Piracicaba, onde o solo é ainda mais rico, mais ainda no início do cultivo. A essas circunstâncias deve ser atribuído o declínio desta cidade. Os agricultores não dão muita atenção ao reflorestamento depois que as fazendas são desmatadas para a plantação ou a madeira usada na preparação do açúcar. Nas redondezas desta cidade, sendo o lugar dos primeiros cultivadores de cana-de-açúcar na província, em muitas fazendas há, consequentemente, grande escassez do combustível necessário”18

17

"despovoada, com seus habitantes reduzidos a miséria. No fim do século a Vila achava-se á vanguarda da produção acucareira. Em 1798 aprodução total da Capitania era de 152.840 arrôbas de acúcar. Só Itu nesse ano, produziu 16.635 quintais, o que equivale a 66.540 arrôbas, ou seja, mais de 1/3 do açúcar fabricado em São Paulo- estas quantidades faziam-na a mais opulenta área paulista no período" (QUEIROZ, 1968, p. 243, através do artigo de ZEQUINI, 2010, disponível em: http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=24225. Sobre as características do solo, Zequini também aponta as percepções de PETRONE, 1968, p. 91: "Campinas, Itu, Moji Mirim e Sorocaba situam-se na divisa entre os solos que tem origem na decomposição de rochas cristalinas prédevonianas e a área onde os solos se formam, predominantemente, pela decomposição de rochas sedimentares". 18

Edmund Pink. A São Paulo de Edmund Pink... p. 90-91, apud GERBOVIC, 2009, p.85.

14

A decadência prevista por Pink, porém, não atingiu a cidade tão rapidamente. Como podemos observar na tabela a seguir, a cidade chegou à segunda metade do século XIX como uma das maiores produtoras de açúcar da província: Tabela 1- Produção e exportação de açúcar no oeste paulista em 1854

19

2.3 O avanço do café: açúcar para o mercado interno

Nessa mesma época, o café avançava rumo a oeste. O ouro verde havia entrado na província a partir do vale do Paraíba por volta dos anos 20 e avançava firme em direção ao oeste: “Em 1836, nas pouco menos de 600 mil arrobas de café produzidas na província paulista, calculou o autor em questão (Laërne – grifo nosso) que a participação da Zona Norte, região que compreendia o Vale do Paraíba e o litoral norte, era de 86,5%. (...) Em 1854, no total de mais de 3,5 milhões de arrobas de café produzidas, o predomínio da Zona Norte era ainda incontestável; contudo declinara sensivelmente para 77,5% do total. (...)E, em 1886, estava já nitidamente delineada a “marcha para o Oeste” da cafeicultura paulista. De uma produção provincial total de 10.374.350 arrobas, coube uma 19

Quadro retirado de MELO, 2009, p.95

15

parcela de 20,0% à Zona Norte, 29,0% à Central, 21,8% à Mogiana, 23,7% à Paulista, 4,1% à Araraquarense e 1,5% à Alta Sorocabana.”20 Segundo a classificação proposta por Sergio Milliet (1939), a cidade de Itu está localizada na Zona Central da província de São Paulo, ou seja, em plena zona de expansão cafeeira:

Mapa 1 – Divisão do território paulista por Milliet. (São Paulo, 1939)

21

Porém, voltando a 1854, quando a produção cafeeira da Zona Central ainda estava bem atrás da Zona Norte, chama à atenção a baixa quantidade de café que é produzido no município, se comparado a outras localidades do oeste paulista:

20

MOTTA, 2012, p. 25-28.

21

Fonte: modificado a partir de LOPES, 2012, apud MILLIET, 1938, p. 24

16

Tabela 2 - Fazendas de café no oeste de São Paulo em 1854

22

Fica claro, pelas tabelas 1 e 2, que Itu se atrasou, se comparado a municípios vizinhos, à febre do café. Melo, no trabalho anteriormente citado, discute a mudança do destino do açúcar produzido na província. Dados retirados do trabalho de Petrone (1962) mostram que no biênio 1836-1837 foram exportadas pelo porto de Santos 66.495 arrobas de açúcar procedentes de Itu, chegando a 141.613 no biênio 1846-1847.23 Em 1836 a produção total de açúcar em Itu chegou a 91.965.24 Ou seja, naquele ano, cerca de 73% do açúcar foi exportado. Na tabela 1 vimos que em 1854 a quantidade de açúcar que Itu exportou caiu mais de três vezes em relação à 1847 e estava inferior à exportada em 1837, sendo reduzida para 40.099 arrobas. Porém, a produção total chegou a 159.070, ou seja, cresceu cerca de 14% em pouco menos de 20 anos. De mão de todas essas estatísticas, Melo conclui que o açúcar não deixou de ser produzido, mas sim apenas teve seu destino redirecionado: agora ele não

22

Quadro retirado de MELO, 2009. p.68

23

PETRONE, 1962, p.166 apud MELO, 2009, p. 65

24

MULLER, 1978, apud MELO 2009, p. 62

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era mais exportado, e sim, voltado para o mercado interno, que crescia com os recursos do café e com a imigração25.

2.4 Itu nos anos 1880: a onda verde do café e o declínio do açúcar Infelizmente, diferentemente da informação que traz sobre outros municípios, o Almanak de 1873 não distingue a quantidade de fazendeiros de café e de açúcar, colocando-os no mesmo grupo como “fazendeiros de açúcar e café”, diferente do que ocorria em outras localidades onde os fazendeiros eram separados por tipo de produção26. Naquele mesmo ano, o Código de Posturas do Município de Itu de 1873 passou a determinar que se pagassem taxas para a produção de gêneros agrícolas.27 Os jornais “Imprensa Ytuana” e “Cidade de Ytu” passaram a publicar anualmente esses dados. Trazemos a seguir dados para a produção de gêneros agrícolas para os anos de 1878, 1881, 1887 e 1893: Tabela 3 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1877

28

Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos Açúcar 32 906.000 61.687,2 576.000 Café 17 667.000 45.414,31 1.980.000 Algodão 08 42.000 2.859,67 56.000 Chá 10 13.600 925,9 181.000 Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano IV, 17/03/1878

Tabela 4 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1881

Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos Açúcar 19 511.500 34.821 1.364.000 Café 31 520.500 35.434 1.388.000 Algodão 12 53.250 3.625 71.000

25

MELO, 2009, p. 90-91

26

Almanak da Província de São Paulo para 1873, p. 358

27

CERDAN 2009, p.36

28

CERDAN 2009, p.36 (formato da tabela e conversão para arrobas) & Imprensa Ytuana, Ano IV, 17/03/1878, p.3 (informações sobre impostos)

18

Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano VII, 19/03/1882, p.4 Tabela 5 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1887

Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos Açúcar 8 168.000 11.437 488.000 Café 23 961.500 65.457 1.002.000 Algodão 21 109.500 7.454 146.000 Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano XII, 04/05/1888, p.3-4 Tabela 6 – Produção de diversos gêneros em Itu - 1893

29

Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos Açúcar 3 19.500 1.327 52.000 Café 51 982.550 66.885 2.620.000 Aguardente 16 Impreciso30 Impreciso 819.000 Fonte: Jornal “A Cidade de Ytu”, Ano I, 19/04/1894, p. 3-4

As tabelas quatro e cinco estão exatamente dentro do período de escopo de nosso estudo, enquanto a tabela três se refere a um período um pouco anterior, e a tabela cinco, um pouco posterior. Podemos observar que a “virada” da transição da produção do açúcar para o café em Itu ocorre exatamente na transição dos anos 70 para os anos 80, com mais de 20 anos de atraso em relação às vizinhas Campinas e Jundiaí, sendo o açúcar praticamente abandonado em meados dos anos 90 em Itu. Apesar do grande aumento no número de produtores entre 1877 e 1881, o aumento em termos de produção só virá em 1887, provavelmente devido à natureza da rubiácea, que levava pelo menos quatro anos entre ser plantada e gerar frutos31. A rede de transportes criada para o escoamento do açúcar deixou uma infraestrutura pronta para o avanço do café, mas não de maneira satisfatória. Com o advento da ferrovia nos anos 60 e grande expansão a partir dos anos 70, a fronteira do café avançou para o planalto ocidental paulista, liberando 29

A Cidade de Ytu, Ano I, 19/04/1894, p. 3-4

30

A produção de aguardente foi medida em quintos, porém em escalas para cada produtor, sem a quantidade exata. 31

“Hence, on average, full production of young trees was reached at the age of six and sometimes between six and eight years”. MELLO, 1977, p.11

19

braços, ainda que de forma insuficiente, para o café32. Vale ressaltar que o transporte do café antes do advento dos trens era extremamente custoso, demorado e trabalho-intensivo, dificultado ainda mais pelo terreno acidentado entre os portos e as regiões produtoras. Por exemplo, uma viagem ao porto do Rio de Janeiro, a partir de uma fazenda em sua respectiva zona levava vários dias, já que a maioria das fazendas estavam localizadas entre 100 e 300 km do porto, e em média as excursões conseguiam fazer 12.6km por dia. O custo elevado desse transporte caiu pela metade com o uso das ferrovias. Para se ter uma ideia da economia de tempo, entre Barbacena e o Município Neutro distantes 379 km um do outro, de semanas o tempo de viagem caiu para apenas 12 horas em 1883, quando o trem ligou as duas cidades.33 A estrada de ferro Ytuana chegou a Itu em abril de 1873, ligando a cidade à Jundiaí, e de lá para a capital e para o porto de Santos. As dificuldades de transporte já não eram mais um empecilho para que a onda verde do café vencesse de uma vez por todas, a produção de açúcar no município.

2.5 O surto do algodão

Até agora consideramos três fatores que determinaram a produção agrícola em Itu na década de 1880: suas características geográficas, que foram propícias para a implantação da produção açucareira no século XVIII; o desenvolvimento desta, que enriqueceu o município; o advento da ferrovia, que facilitou enormemente o acesso às terras ituanas. Falta ainda considerarmos brevemente a produção de algodão no município e também sua composição populacional. Como exposto pelas tabelas citadas nas páginas anteriores, apesar de pouco expressiva em impostos e valor, houve uma produção de algodão digna de ser citada. A produção de algodão em Itu começou influenciada pela presença de importadores ingleses e também por outros britânicos que sempre ocupavam os altos cargos da ferrovia. Alguns deles procuravam opções de abastecimento de algodão às fábricas inglesas com o advento da guerra de secessão nos EUA. Em 1869, foi inaugurada a fábrica de tecidos São Luiz, que funcionou por mais de 100 anos em Itu e foi a primeira indústria do tipo em São Paulo, com

32

“A expansão ferroviária levada a cabo por esse grupo, a partir da década de 1870, alargou a fronteira agrícola para o planalto ocidental paulista e atendeu toda a lavoura com um sistema moderno de transporte rápido e em grande escala”. MELO, 2009, p. 13 33

MELLO, 1977, p.27-28

20

toda sua maquinaria adquiridas nos Estados Unidos. Essa presença acabou também atraindo importadoras de maquinarias e mecânicas, que ajudaram na introdução de novas técnicas no campo.34 Com o tempo, surgiram mais indústrias têxteis na província voltadas principalmente para o mercado interno, mas ainda assim, a produção de algodão em Itu não passou de um rápido surto35. Porém, no século seguinte, a produção de algodão voltou a subir na província para alimentar a indústria têxtil paulista – 80% do algodão usado por dita indústria, por volta dos anos 10 e 20 do século XX, era proveniente do próprio estado de São Paulo36.

2.5 Informes populacionais No ano seguinte à publicação do Almanak, o jornal local “O Ytuano” publicou o recenseamento da população local: Tabela 7 – População em Itu em 1874 (porcentagens na primeira coluna em relação à população total)

Homens Livres Mulheres Livres Homens Escravos Mulheres Escravas Total

População Total 3588 (33%) 3664 (34%) 2006 (18%)

População Urbana 1735 2017 431

População Rural 1853 1647 1575

1595 (15%)

584

1011

10853

4767

6086

Fonte: Jornal “O Ytuano”, ano II, 08/03/1874

Para ter uma ideia da evolução populacional ao longo do tempo, podemos comparar com os dados de anos anteriores:

34

ZEQUINI, 1991. No trabalho “O Quintal da fábrica”, Zequini analisa o desenvolvimento industrial em Itu e Salto, cap.1. 35

CERDAN, 2013, p. 35

36

SUZIGAN, 1971, p.104

21

Tabela 8– População em Itu em anos selecionados (porcentagens referentes à proporção do grupo ao total da população)

1798 Homens Livres 1786 (26%) Mulheres Livres 2040 (30%) Homens Escravos 1778 (26%) Mulheres Escravas 1154 (17%) Total 6758

1807 2043 (20%) 2447 (24%) 2345 (23%) 1550 (15%) 10192

1818 1702 (18%) 2217 (23%) 2447 (25%) 1366 (14%) 9550

1829 1660 (17%) 2147 (22%) 2616 (26%) 1557 (16%) 9809

Fonte: LISANTI FILHO, 1962 apud MELO, 2009. p. 34,

Podemos perceber que a proporção da população escrava caiu em 1874 principalmente devido à queda na proporção de escravos homens e veremos mais adiante que essa tendência continuou. O ciclo de açúcar em Itu introduziu os escravos africanos, que permaneceram sendo usados como mão de obra até o fim da escravidão. Ao chegar ao final do século XIX, Itu não estava isolada, muito pelo contrario: estava inserida numa das regiões mais dinâmicas do Brasil. Barros de Castro em 1980 propôs uma tipologia que dividia as regiões produtoras de açúcar da América em três tipos: superdotadas, que seriam as mais dinâmicas, demandando a maior parte da mão de obra escrava; membro-efetiva, que seriam as regiões de produção mais madura e finalmente, residuais, que seriam as regiões não exportadoras37. Numa tentativa de tentar entender o papel de Itu nos anos 80, a seguir, vamos comentar as características do comércio de escravos no Brasil e especialmente, durante o colapso do sistema escravista.

3. Revisão da literatura Nesta seção traçaremos um breve panorama sobre a literatura existente sobre o comércio de escravos no Brasil. Esta seção está dividida em três partes: primeiro, brevemente comentaremos sobre o tráfico transatlântico que existia antes de 1850. Depois, nos aprofundaremos um pouco mais no comércio interno de cativos que se intensificou enormemente após dita data. Finalmente, trataremos da desagregação do comércio interprovincial ocorrida a partir de 1881 e também da abolição do trabalho servil. Assim, nossa intenção é

37

NOGUEROL, 2002, p. 545

22

preparar o terreno para a análise que faremos de nossa amostra, com base na bibliografia existente sobre o tema.

3.1 O fim do tráfico negreiro transatlântico “O Brasil é o café, e o café é o negro”. Nessa citação atribuída ao Senador Silveira Martins38, se a tirarmos um pouco do contexto, poderíamos facilmente substituir o café por qualquer outro gênero agrícola exportável produzido durante a maior parte da vigência da escravidão. Na verdade, podemos ir mais além: podemos substituir o café por qualquer produção. Recrutados forçadamente primeiro para a lavoura canavieira do nordeste nos primórdios da colonização39 e depois para a produção de qualquer produto exportável, como algodão e o ouro, e finalmente para produções menos lucrativas, ao longo do tempo foram possuídos tanto por grandes fazendeiros como por ex-escravos, sendo utilizados nas grandes lavouras ou pequenas propriedades, apesar de sempre ser a mão de obra predominantemente usada nas indústrias exportadoras40. Até 1850 os negros eram principalmente trazidos da África para o Brasil. Com um estoque praticamente infinito de mão de obra enquanto durou o tráfico transatlântico, o preço dos escravos no Brasil permaneceu relativamente uniforme em diferentes regiões da colônia, e posteriormente do país, enquanto eles poderiam ser trazidos abundantemente da África41. O fim do tráfico internacional de cativos impôs sérias restrições ao fornecimento da mão de obra escrava no, desde 1822, país. Com o fim do fornecimento de braços africanos, uma estrutura econômica em que o uso da mão de obra escrava era generalizado, voltou a concentrá-la nas regiões produtoras de exportáveis42.

38

CONRAD, 1975, p.64

39

PRADO JÚNIOR, 2004, cap. 4

40

LUNA & KLEIN, 2010, cap.5 – neste capítulo sobre a economia da escravidão no Brasil, a imagem estereotipada do emprego da escravidão no Brasil é questionada. Há evidências em diversos estudos mais recentes de que a escravidão permeava toda a sociedade, e que mesmo em regiões exportadoras a maioria dos escravos não necessariamente era utilizada na produção de cash crops 41

NOGUEROL, 2002. Noguerol compara os preços dos escravos em duas regiões, uma exportadora e a outra não, antes e depois do fim do tráfico. Não havia diferença estatística enquanto o Brasil era abastecido por braços africanos, porém, após 1850 até a desorganização do comércio interprovincial de escravos, a diferença de preço de cativos nas diferentes regiões se mostrou estatisticamente significante. 42

LUNA & KLEIN, 2010, pags. 135, 143 e 146

23

O Brasil foi um dos últimos baluartes da escravidão e se atrasou em relação à maioria dos outros países em todos os passos que tomou em direção à libertação dos negros. O primeiro destes passos geralmente foi a proibição do tráfico internacional de escravos. Nos Estados Unidos, dito passo foi dado através do “slave trade act” já em 1808, que proibiu efetivamente a importação de escravos no país, abrindo espaço para o tráfico interno de cativos.43 Mas os americanos nem foram os pioneiros: o primeiro país a abolir o tráfico efetivamente foi a Dinamarca em 1802 e mesmo na América Latina, a maioria dos países aboliu o tráfico entre os anos 10 e 20 do século XIX. No Brasil, o tráfico internacional acabou a contragosto, depois de forte intervenção inglesa, apenas em 185044. Antes de 1850 o comércio interprovincial de escravos já existia: indígenas do norte ou do sul do Brasil eram vendidos para as plantations de açúcar no nordeste. Com o aumento do tráfico transatlântico, esse tipo de comércio diminui drasticamente até praticamente desaparecer no século XVIII. Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, houve uma pressão econômica para que escravos das plantations fossem trabalhar nas minas de ouro. De maneira geral, enquanto o preço do escravo comprado na África fosse baixo, havia poucos incentivos para deslocar um escravo que já estivesse adaptado à sua localidade no Brasil45. Por isso, após o fim do tráfico transatlântico, “o fluxo de escravos do norte para o sul transformou-se numa autêntica torrente e começou sendo considerado vital para os interesses dos fazendeiros da região do café”46. Surgia assim o tráfico interno de escravos no Brasil, que vigorou em maior ou menor escala enquanto sobreviveu a escravidão (após 1880 um imposto proibitivo de importação de escravos de outras províncias em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais condenou o comércio interno ao tráfico intraprovincial), com características peculiares que veremos a seguir.

43

SLENES, 2004 descreve o comércio interno de escravos no Brasil fazendo algumas breves comparações com o dos EUA. 44

LUNA & KLEIN, 2010, p.301.

45

GRAHAM, 2004, p. 292

46

CONRAD, 1975, p.65

24

3.2 Cessam os braços vindos do além-mar, buscam-se braços no além-terra

O fim do tráfico internacional de escravos é um primeiro passo rumo ao fim da escravidão porque a princípio, a população escrava tende a decrescer ao longo do tempo caso não seja reposta constantemente. No Brasil era claro como boa parte dos escravos morriam muito rapidamente após chegarem ao território e mesmo após o fim do tráfico internacional, as melhorias nas condições de vida dos escravos não melhoraram a ponto de, globalmente em todo o país, gerar um crescimento vegetativo sem a importação de escravos. Além disso, a proporção de escravos do sexo masculino que eram importados era alta o suficiente para dificultar a reprodução – há estimativas de que 65% dos escravos que saiam da África eram homens47. Há evidências de que foram trazidos cerca de três milhões e seiscentos mil escravos para o país até 185048. Vale ressaltar que já a partir de 1810, o tráfico internacional de escravos era ilegal, mas essa primeira lei "não pegou". Em 1831 foi aprovada uma nova lei e criou-se uma expectativa de que ela funcionaria de facto, tanto que os preços dos escravos negociados na costa da África chegaram a um quarto do preço anterior à promulgação da lei, enquanto no Rio de Janeiro, os preços subiam. Entretanto, não foi o que aconteceu. Na prática, o governo fez vistas grossas ao tráfico, que rapidamente voltou a subir e vários traficantes e até autoridades estavam envolvidas no comércio ilegal de escravos. Aqueles que tentavam cumprir a lei eram execrados, como o caso de Costa Pereira, que apreendeu uma escuna com mais de 300 escravos na costa do Rio de Janeiro. A carga foi entregue a seu destino e Costa Pereira foi "exilado" para o Pará, onde não teria como se intrometer no tráfico transatlântico49. Nesse mesmo momento entre os anos 20 e 30, a entrada de escravos no Brasil diminuiu, assim como diminui o valor em libras das exportações de açúcar. A partir dessa época, o café passa o açúcar como principal produto exportável do país, a ameaça da interrupção do tráfico transatlântico deixa de ser crível. A importação de escravos africanos volta a subir50. 47

LUNA & KLEIN(2010, p.162) citam essa estimativa retirada do banco de dados Emory, disponível em http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces na aba “Summary Statistics”. 48

CONRAD, 1975, p. 37

49

CONRAD, 1985, págs. 95-103

50

LUNA & KLEIN, 2010, págs. 77 e 94

25

Mesmo com essa fabulosa cifra de importação de escravos, a matrícula de 1872, levantamento mais confiável sobre o número de escravos feito no Brasil51, levantou apenas um milhão e meio de cativos, deixando evidente uma taxa de decréscimo assombrosa da população escrava. Porém, essa tendência nem sempre é verdade: no caso dos Estados Unidos, por exemplo, a população escrava cresceu de setecentos mil em 1790 para mais de quatro milhões em 1860. Mesmo tendo recebido muito mais escravos que os Estados Unidos, o Brasil nunca teve uma população escrava, num mesmo momento, superior à americana52. Portanto, o fim do tráfico internacional de escravos era um sinal claro que a escravidão eventualmente acabaria. Nos Estados Unidos, uma sociedade onde a libertação de escravos era mais rara que no Brasil, após o fim do tráfico houve uma melhora nas condições de vida dos escravos e houve uma taxa positiva de crescimento da população. Ou seja, o fim do tráfico per se não levaria a escravidão ao fim, e por isso a luta abolicionista culminou na guerra de secessão entre o sul escravocrata e o norte industrial. No Brasil, foi uma luta muito mais entre classes que entre regiões, e por aqui a elite nunca defendeu a escravidão abertamente, mas sim a sua manutenção até que uma forma alternativa de trabalho fosse encontrada futuramente, dificultando o avanço de qualquer movimento abolicionista que buscasse a abolição completa e imediata53. De fato, no Brasil havia uma clara tendência global rumo ao desaparecimento da mão de obra escrava, tanto pelo decréscimo dessa população através, do decréscimo vegetativo54 e libertações e principalmente, pela Lei do Ventre Livre de 1871, que colocou de fato um prazo de validade na escravidão ao declarar livres todos os filhos de escravos nascidos a partir de então. Além disso, a Lei Rio Branco, que esteve longe de ser aprovada sem um longo debate 55 criava um “fundo de emancipação”, em que recursos obtidos com impostos sobre a

51

MELLO, 1977, p. 72. “This census (a matrícula de1872 – grifo nosso) is also very realiable, since this register would provide the slaveowner with proof of legal property of the slave, and therefore give him incentives for an honest and thorough registry”. Ver também CONRAD, 1975, p.133-134. 52

CONRAD, 1975, p.37-38

53

LUNA & KLEIN, 2010, p.304-305

54

Ibid, p. 135. Regiões residuais, onde o trabalho era menos intenso, viram o começo de um crescimento vegetativo natural dos escravos, como no caso do Paraná antes da introdução do café. 55

CONRAD, 1975, cap. 6

26

escravidão seriam utilizados para libertar escravos, seguindo uma ordem de preferência56. É importante observarmos que essa tendência geral de queda não foi observada individualmente em todas as regiões. Entre 1823 e 1872, houve um crescimento geométrico médio da população escrava brasileira de 0.54 por cento ao ano, a partir de então caindo bruscamente para um decréscimo de -5,44% ao ano. Porém, ao observarmos diferentes regiões, temos figuras diferentes: no sudeste, a população escrava cresceu ao longo de todo período, e a uma taxa mais alta que a do país: 1,44% ao ano. Por outro lado, a escravaria nordestina diminui nos dois períodos: no primeiro a uma taxa de -0,29% ao ano, e no segundo, a uma taxa de -7,28% ao ano. Portanto, é razoável inferir que a população escrava estava se concentrando na região cafeeira, apesar de que esses dados não revelam as migrações que ocorriam internamente dentro dessa própria região57. Slenes, em seu artigo sobre o tráfico interno de escravos no Brasil publicado na coletânea The Chattel Principle – Internal Slave Trade in the Americas, organizada por Walter Johnson, classifica como “comércio interno de escravos” a prática da compra e venda de cativos dentro de um mesmo território, apesar de no caso brasileiro, haver dois mercados relativamente autônomos, um com centro no sudeste cafeeiro e outro com centro no nordeste açucareiro58. Em outro artigo na mesma coletânea59, Graham aponta que em períodos imediatamente subsequentes ao fim do tráfico internacional, boa parte dos escravos vendidos ainda eram africanos. Os comentários a seguir se baseiam principalmente nestes dois artigos da coletânea citada. Em 1852, no Rio um quinto dos escravos que passaram pelo porto eram de nação, ou seja, africanos. De maneira geral, a partir do fim do tráfico transatlântico, os escravos eram vendidos das regiões residuais (nordeste e sul) para o sudeste cafeeiro - aparentemente, o maior volume veio do nordeste, porém o sul perdeu mais braços negros proporcionalmente60.

56

Ibid, 1975, p. 134

57

MELLO, 1977, p.71-72

58

SLENES, 2004, p.325-361

59

GRAHAM, 2004, p.291-315

60

Ibid, p. 295

27

Durante os anos 60, com a guerra de secessão, houve um aumento dos preços internacionais do algodão. As províncias nordestinas algodoeiras (notadamente o Maranhão) acabaram segurando os braços escravos, pois deles necessitavam. A partir dos anos 70, porém, com a volta da participação dos EUA no mercado internacional e consequente queda dos preços do algodão, o comércio novamente se intensificou. Um escravo no oeste de São Paulo valia o dobro que na Bahia61. A maioria dos escravos que iam pro sudeste saiam de pequenas e médias propriedades, ou se não, das cidades - 60% dos escravos vendidos eram urbanos. A lavoura açucareira não perdia braços para o café. Havia uma pressão econômica para que os escravos saíssem da cidade para o campo e a maioria dos escravos vendidos eram homens. O preço baixo das crianças não compensava seus custos de transporte, o que implicava na separação de famílias inteiras (a lei de 1871, além de libertar os nascituros, passou a proibir não só a separação de mães e filhos, mas também a separação de casais de escravos)62. A grande maioria dos escravos foi transferida através da venda e não muitos migraram junto com seus donos, o que se via muito mais nos Estados Unidos, provavelmente devido às grandes distâncias a serem percorridas no Brasil em comparação aos Estados Unidos. Raramente um escravo saia de uma região residual diretamente para seu destino final na região cafeeira. Para evitar o pagamento da meia sisa múltiplas vezes, o dono dava uma procuração para um intermediário, que levava o escravo até o porto mais próximo, onde era vendido e outra procuração era fornecida. A partir de então, era transportado em navio até a corte (de Salvador ao Rio por terra levava-se seis semanas, enquanto que de barco eram apenas quatro dias), e lá era novamente vendido para outro intermediário, que levava o escravo para o interior do sudeste onde finalmente era vendido para seu dono. Todo esse transporte - a separação da família e o não saber para onde ia, causava enorme estresse psicológico, além do fato de que o trabalho nas plantações de café era muito mais pesado que nas zonas residuais63. Havia incentivos do governo para a transferência dos escravos do meio urbano para o rural, mas não para além dos limites das províncias. Restrições ao

61

Ibid, p. 296 e 298

62

Ibid, p. 297

63

Ibid p. 303-305

28

comércio interprovincial de escravos já começaram no século XVIII, mesmo que sem sucesso. Bloquear a saída dos escravos da Bahia tinha um objetivo claro: impedir a falta de braços para as plantations de açúcar. Porém, as restrições impostas no sudeste para receber escravos não tem motivação clara. A partir dos anos de 1880, Rio, Minas e São Paulo impuseram impostos que praticamente dobraram o preço dos escravos trazidos de outras províncias, acabando assim com o tráfico. Graham aponta que o porquê desse bloqueio é polêmico e não há consenso sobre o assunto64. Esse tráfico que ocorreu no Brasil apresentava características ao mesmo tempo parecidas e semelhantes com aquelas vistas nos Estados Unidos. Assim como na potência do norte, como já não se podia mais buscar braços na África, demandantes por mão de obra de regiões em expansão compravam cativos de regiões que os exportavam65. Por outro lado, Slenes aponta algumas diferenças importantes. Nos Estados Unidos, como também comentado por Graham, o mercado interno de escravos se restringia ao Deep South, uma região que não era tão extensa. No Brasil o mercado interno cobria uma área geográfica muito maior, e compreendia principalmente o centro-sul cafeeiro e o nordeste açucareiro, que funcionavam praticamente como dois mercados autônomos, o que ajuda a explicar a persistência da escravidão no Brasil. Além disso, no Brasil o comércio surgiu do nada e cresceu muito, enquanto nos Estados Unidos cresceu mais ou menos ao mesmo ritmo ao longo do tempo e a pressão internacional pela abolição da escravatura já era muito mais forte quando do desenvolvimento do mercado interno de cativos no Brasil66.

64

Ibid, p.301-303

65

SLENES, 2004, .p 333

66

Ibid, p. 327-333

29

67

Mapa 2 - Distância entre principais regiões exportadoras de cativos e o oeste cafeeiro. Vale ressaltar que boa parte dos deslocamentos cobria pelo menos a distância entre a Bahia ou Rio Grande do Sul e São Paulo.

Mapa 3 - Distância extrema entre principais regiões exportadoras de escravos e a zona 68 algodo-sucro-eira. Nesse caso, vale ressaltar que muitas transações ocorriam “dentro” do deep South, sendo as distâncias extremas bem menos percorridas em comparação ao Brasil.

67

Fonte: modificado a partir de SLENES, 2004, in in The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the Americas, p.326

30

Como comentamos anteriormente, na Bahia, um escravo chegou a valer metade do que valia no oeste paulista. A princípio pode parecer óbvio que, devido a esse diferencial no preço, o mercado nordestino estivesse fadado a fornecer braços para a lavoura do café. Porém, ao examinar as flutuações dos preços do café e da cana de açúcar, podemos observar que o preço do escravo no nordeste flutuava numa tendência muito parecida à do açúcar e bem diferente da do café. Ou seja, os braços na região serviam principalmente ao açúcar e estavam atrelados aos preços deste produto. Melo (2009), citando Subrinho (1992), afirma que, por exemplo, a lavoura açucareira sergipana ao invés de ceder braços para o sudeste cafeeiro, absorveu escravos de outros setores econômicos da província, ilustrando a inferência de Graham de que os escravos antes de migrarem entre regiões, migravam entre setores econômicos69. Motta (2012) em seu estudo comparativo do comércio interno de escravos em diferentes localidades paulista comenta brevemente sobre diversas estimativas para o total dos escravos traficados internamente. Segundo o autor, Gorender(1985) estima uma transferência de braços por volta dos trezentos mil escravos ao longo de 35 anos pós 1850. Slenes (1975), em seu detalhado trabalho sobre a demografia escrava entre 1850 e 1888 estima esse número por volta dos duzentos mil. Motta também cita o comentário feito por Conrad (1985) que estima que se o tráfico interprovincial chegou a duzentas mil almas, o intraprovincial pode ter chegado a quatrocentas mil70. Finalmente, Motta adota a avaliação mais conservadora feita por Slenes. Chegamos ao final desse período que vai do fim do tráfico transatlântico ao fim do comércio interprovincial com um cenário bastante divergente entre as províncias. Várias das províncias não-exportadoras haviam perdido boa parte de seus escravos para o sul e estavam havia tempos experimentando o trabalho livre. Com uma diminuição considerável da importância da escravidão, elas estavam menos árduas em defender a continuação dela71. Nas províncias do café, ao contrário, havia uma grande dependência do trabalho escravo,

68

Fonte: modificado a partir de TADMAN, 2004, in in The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the Americas, p.119 69

SUBRINHO, 1992, p. 181-191 e 228 apud MELLO, 2009 . 176

70

MOTTA, 2012, p.64-65. No capítulo 2 de sua dissertação sobre o comércio de escravos em localidades paulistas selecionadas, Motta nos oferece um panorama seletivo interessante sobre a historiografia do tráfico interno de escravos. 71

CONRAD, 1975, p.150-156

31

notadamente nos municípios cafeeiros – municípios não produtores de café da região passaram a perder braços para os produtores. Os fazendeiros já flertavam com as alternativas de imigração, ainda sem sucesso. O trabalhador brasileiro não era visto como opção e existia um medo real de falta de braços, caso a escravidão fosse abolida. Por isso as províncias do café no começo dos anos 80 ainda tentavam prolongar o trabalho escravo por mais três décadas72. Não esgotamos de maneira alguma a bibliografia sobre o tema, mas em suma, podemos caracterizar o tráfico interprovincial de escravos e suas consequências demográficas no período entre 1850 e 1881 da seguinte maneira: - forte pressão altista no preço dos escravos no sudeste cafeeiro; - transferência de braços dos setores menos dinâmicos da economia para setores mais dinâmicos (notadamente, do setor urbano para o rural), com ênfase na cafeicultura; - concentração demográfica de escravos no sudeste, especialmente jovens do sexo masculino; - decrescimento global da população escrava, através da mortalidade e libertações. Este cenário assustava alguns governos provinciais que temiam desde uma secessão ao estilo americano até a falta total de braços escravos para a economia local. Já há anos aconteciam tentativas para “segurar” braços dentro das províncias exportadoras, como ocorreu na Bahia a partir de 1862 com uma taxação de 200 mil réis cobrada para a exportação de escravos, que não teve impacto significativo no tráfico interprovincial. O golpe final a este tráfico veio no começo da década de 1880, quando as províncias do sudeste cafeeiro impuseram um imposto proibitivo de dois contos de réis – valor este muitas vezes superior ao preço de um escravo prime, à importação de escravos vindos de outra província. Esta lei por si só já desagregou o tráfico interprovincial, mas além dela, em 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe definiu que os escravos não poderiam ser vendidos para fora da província em que estavam matriculados73. Apesar de algumas exceções, tanto o imposto quanto a lei de fato desarticularam bastante o comércio brasileiro de cativos entre províncias.

72

Ibid, p.156-159

73

NEVES, 2000, p.108-109

32

3.3 Depois da porteira do mar, a porteira da terra fecha: o tráfico interno de cativos relegado ao comércio intraprovincial

O período que se iniciou em 1881 até 1888 foi marcado pela desagregação do comércio interprovincial de cativos e pelo fim da própria instituição da escravidão. Naquele momento, o Brasil era o único país grande que ainda baseava sua economia no trabalho escravo. Em 1881 as províncias do café impuseram um pesado imposto para a importação de escravos vindos de outras províncias. Com isso, esperava-se que as províncias do norte mantivessem um compromisso mais forte com a escravidão, já que para várias delas, a inexistência do trabalho escravo e o uso da mão de obra livre já era praticamente uma realidade74. Além disso, os avanços conseguidos pela lei de 1871 haviam frustrado os abolicionistas. O fundo de emancipação foi um fracasso: em 1876 apenas um milésimo dos escravos registrados havia sido liberto pelo fundo e a partir de 1880 ele passou a ser aplicado com mais frequência e em 1885 estima-se que mais de 214 mil escravos haviam sido libertos – quase 90 mil sem participação do fundo. O fundo acabou sendo mais uma demonstração de humanidade, e em muitos casos foi até usado para que os proprietários se livrassem de escravos indesejados pelo mercado75. Quanto aos recém-nascidos, apesar da proibição da venda dos escravos ingênuos em si, tornou-se prática vender seus serviços ou aluga-los. No fim das contas, a vida de um escravo liberto pela Lei Rio Branco pouco diferia da vida de um escravo comum76. Mesmo longe de alcançar os resultados esperados, a lei serviu como um sinalizador claro do fim da instituição, levantando o debate sobre o tema e mostrando que a abolição estava linhada aos melhores interesses da nação77. No começo dos anos 80, começaram a pipocar vários jornais pró-abolição, especialmente na capital do Império, o que levou a uma forte reação próescravatura e ao arrefecimento do movimento no ano seguinte78. Em 1881,

74

CONRAD, 1975, p. 208-209

75

Ibid p. 137-140

76

CONRAD, 1975, p.141-145

77

78

Ibid, p.146 Ibid, p. 206

33

após a imposição dos impostos nas províncias do café, surgiu um forte movimento emancipacionista no Ceará, cuja escravidão sobrevivia principalmente da exportação de braços para o sul – já fazia tempo que a província fazia bastante uso de mão de obra livre. Os abolicionistas convenceram os jangadeiros e não embarcarem mais os escravos nos navios, fechando assim o porto do Ceará ao comércio de escravos. O movimento tomou vulto na província de maneira irreversível e em 1884 a província do Ceará já estava livre, começando até a atrair escravos fugidos de outras províncias79. Mesmo antes de alcançar a vitória final, o movimento cearense já inspirava e se espalhava por todo o país. Há registros de erupções abolicionistas em diversas províncias e em 1883, o movimento abolicionista no Rio de Janeiro foi reavivado e a abolição no Ceará teve reverberações no Amazonas e Rio Grande do Sul 80. Além disso, as expectativas quanto continuação da instituição moribunda criaram um certo pânico, trazendo o preço dos escravos pra baixo e afetando negativamente até o preço de outros ativos econômicos81. Ainda assim, em 1883, Nabuco relatou a seguinte impressão em sua coletânea de discursos abolicionistas: "Ninguém, infelizmente, espera que a escravidão acabe de todo no Brasil antes de 1890(grifo nosso). Não há poder, atualmente conhecido, que nos deixe esperar uma duração menor, e uma lei que hoje lhe marcasse esse prazo aplacaria de repente as ondas agitadas(grifo nosso). Pois bem, não há escravo que dentro de cinco anos não tenha pago o seu valor, sendo os seus serviços inteligentemente aproveitados. Pense entretanto a lavoura, faça cada agricultor a conta dos seus escravos: do que eles efetivamente lhe custaram e do que lhe renderam, das crias que produziram - descontando os africanos importados depois de 1831 e seus filhos conhecidos, pelos quais seria um ultraje reclamarem uma indenização pública - e vejam se o país, depois de grandes e solenes avisos para que descontinuassem essa indústria

79

Ibid p.215-218 e p. 229 – Conrad aponta que apesar da libertação, ainda havia alguns poucos escravos na província após 1884. 80

Ibid, p.230-234. Para mais informações sobre a emancipação no Amazonas e Rio Grande do Sul, ver cap. 13 do mesmo livro. 81

Ibid, p. 256

34

cruel, não tem o direito de extingui-la, de chofre, sem ser acusado de os sacrificar."82 Nabuco não poderia ter sido mais profético: a escravidão foi pouco a pouco se desmoronando em todo o país, e a libertação só veio quando não havia mais como prolongar a situação. Mello (1978) tentou capturar essas expectativas quanto ao fim da escravidão construindo uma medida para a ela baseada na relação de preços entre o aluguel dos escravos e seus preços de venda: Tabela 9 – Mortalidade política da escravidão

Retirado diretamente de MELLO, 1978, p.57

Mello usa o ano de 1881 como representativo das expectativas anteriormente, e então, a expectativa era de que a escravidão durasse ainda por mais três décadas. É possível perceber que as expectativas só se reduziram

82

NABUCO, Joaquim: "O Abolicionismo - Conferências e discursos abolicionistas". Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1949, p.198.

35

rapidamente a partir dos acontecimentos de 1886. Não temos o instrumental proposto por Mello para calcular as expectativas em Itu, mas vamos usar esta ideia mais a frente para mostrar que de fato, a pressão abolicionista – variável exógena criada por Mello para tentar explicar o rápido decréscimo no preço dos escravos na década de 1880, também afetou as transações ocorridas na localidade paulista. O imposto interprovincial por si só provavelmente já causou uma grande mudança nas expectativas sobre a continuidade da escravidão. O tráfico intraprovincial ocorria com relativa força mesmo durante o período em que as porteiras entre províncias estavam abertas. Com as porteiras fechadas, começou a ficar clara uma tendência ao aumento da população escrava em municípios cafeeiros e uma perda da população escrava em municípios não cafeeiros – ou seja, estava ocorrendo uma transferência de escravos para essas regiões. Nesse contexto, a região central, onde Itu está localizada, apresentou relativa estabilidade econômica assim como o leste da província, com a região Mogiana-Paulista sendo a que mais cresceu às vésperas da abolição83. Motta, anteriormente citado, faz um estudo dentro da província de São Paulo que capta um pouco dessas tendências. Dentro da província paulista havia regiões com diferentes graus de desenvolvimento econômico e consequente demanda por escravos. Em sua tese de doutorado, Motta, analisa o comércio de escravos em quatro localidades: Casa Branca, no Oeste novo; Piracicaba, próxima à Itu, na região Central; Areias e Guaratinguetá, ambas no vale do Paraíba paulista. Como comentamos na primeira seção, o vale do Paraíba foi pioneiro na expansão cafeeira e foi decaindo ao longo do tempo. Casa Branca e Piracicaba por outro lado, levaram mais tempo para abraçarem o café e no período final da escravidão, estavam famintas por braços. Nos anos 70, observa-se no tráfico intraprovincial em Areias um fluxo de saídas maior que o de entradas, enquanto em Casa Branca, observa-se um fluxo de entrada superior ao de saídas, tendência que se mantém nos anos 80, porém com volume bastante menor num cenário de incerteza crescente em relação ao destino da escravidão84. Até o 13 de maio, muitos donos de escravos tentaram minimizar suas perdas o máximo possível. Mesmo em 1886, ainda era possível encontrar escravos em São Paulo vendidos a preços elevados. Conrad (1975) cita dois comentários,

83

LOWRIE, 1938, . 13-15 apud CONRAD, 1975, p.161

84

MOTTA, 2012, p. 248, 293 e 325

36

que se verdadeiros, mostram que seria razoável ainda comprar escravos às vésperas da abolição: “Se é verdade, conforme afirmou o historiador econômico brasileiro, Roberto Simonsen, que um “bom escravo masculino” podia produzir vinte e cinco sacas de café por ano, e sendo também verdade, como afirmou Afonso de E. Taunay, que o preço médio de uma saca de café em 1886/87 era de 30$770, o escravo comprado em São Paulo no início de 1886 por 1:600$000 poderia produzir café que valesse 769$250 no primeiro ano e, provavelmente, teria ganho para seu senhor grande parte do seu custo inicial antes do sistema escravocrata paulista começar a desmoronar-se em 1887”85. Ou seja, mesmo com todas as reformas e impedimentos sobre a escravidão, o comércio seguiu ativo em São Paulo - em proporção muito menor, é verdade, quase até o fim do regime. Até o momento final da escravidão ela nunca foi defendida abertamente, mas apenas até que se encontrasse outra alternativa. Por essa falta de defesa direta da escravidão, há na historiografia brasileira uma corrente que defende que o fim da escravidão ocorreu devido a sua incompatibilidade com o capitalismo86. Versiani (1994) traz argumentos econômicos para contrapor essa ideia de que o trabalho escravo é inerentemente mais custoso que o trabalho livre, e que por isso teria chegado ao fim. Segundo ele, outros autores demonstraram que essa suposição não é valida para qualquer tipo de trabalho. O comprador do escravo leva em conta a produtividade diferencial do escravo em relação ao trabalhador livre, o custo de coagi-lo ao trabalho e também o custo do investimento na compra de escravos. Para trabalhos em que é necessária uma habilidade maior (ou seja, em que o trabalhador precisa ser mais especializado), a escravidão é pouco aderente tanto pelo alto custo da coação como pela possibilidade de que o trabalho mal feito seja percebido apenas posteriormente. Já para trabalhos intensivos em esforço – ou seja, que não é necessário grande especialização, apenas uma grande quantidade de esforço – o controle da produção é mais fácil e a coação funciona mais efetivamente, devido a simplicidade das tarefas.87 Por isso a escravidão estereotípica seria aplicável a trabalhos intensivos em esforço, como nas 85

SIMONSEN, 1941, p. 267 e TAUNAY, 1945 p. 548 apud CONRAD, 1975, p.162-133

86

LUNA & KLEIN, 2010, pag. 119

87

VERSIANI, 1994, p.2-3 (versão traduzida), Luna & Klein anteriormente citados também citam o modelo de Stefano Fenoaltea

37

grandes plantations. Porém, como já comentamos, há uma série de outras atividades mais intensivas em habilidade em que os escravos também trabalhavam88. De fato, ao longo destes últimos suspiros da escravidão, os fazendeiros do oeste paulista tentaram usar ao máximo os serviços de seus escravos, abrindo mão deles só quando era absolutamente impossível dar continuidade ao sistema escravista. Esses fazendeiros tinham em vista a imigração europeia e pouco foram afetados pelo fim da escravidão, mas em outras localidades menos prósperas como o interior da província do Rio de Janeiro, a abolição gerou a ruína de muitos proprietários e foi rechaçada mesmo após a lei Áurea89. Depois de um longo período de discussão, em 1885 foi aprovada a Lei dos Sexagenários, que tinha como principal objetivo libertar escravos idosos, reforçar o fundo de emancipação, colocando preços máximos para os escravos e proibir o tráfico interprovincial, já praticamente extinto. Durante um curtíssimo período, o movimento abolicionista se arrefeceu, mas voltou com força logo em seguida devido a interpretações sobre a lei que foram vista como um retrocesso pelos que lutavam pela libertação. Já no ano seguinte, conseguiram uma vitória bastante simbólica: a abolição do açoite90. Todos esses acontecimentos seguramente diminuíram a expectativa quanto à duração da escravidão, como veremos mais adiante. Porém, enquanto a maior fortaleza pró-escravatura não fosse derrubada, a escravidão ainda teria alguma força. Subitamente e por um mero acaso, a cidade de Santos, que já quase não contava com escravos, tornou-se um centro abolicionista – seus escravos foram libertos e em fins de 1886, vários escravos de várias localidades da província começaram a procurar a cidade costeira como refúgio de liberdade91. A partir daí a escravatura esfacelou-se. Fugas em massa começaram no final daquele 1886 de maneira nunca antes vista, deixando atônitos tanto o governo quanto os fazendeiros. A população apoiava os fugidos e até forças policiais se

88

Ver referência 42

89

CONRAD, 1975, p.323

90

Ibid, cap. 15

91

Ibid, p.290-293

38

negavam a capturar negros. Estava claro que a escravidão estava muito próxima ao fim92. O próprio comércio interno de cativos criou uma situação que antes não existia, quando se traziam escravos da África. Antes, eles vinham sozinhos, eram de etnias diferentes, dificilmente poderiam organizar-se. Agora não: agora eles vinham de uma mesma cultura, falavam a mesma língua e tinham aspirações de liberdade93. Além disso, eles haviam sido arrancados do seio de suas famílias e de uma situação muito menos pesada, em termos de trabalho, que a que encontravam no sudeste cafeeiro. A experiência do tráfico em si era extremamente degradante para os cativos, em sua grande maioria, jovens do sexo masculino, que agora sozinhos e isolados, e provavelmente com raiva de sua situação, agora tendo muito menos a perder ao se rebelar-se. Ficou caricata enquanto durou o comércio a imagem do escravo baiano revoltoso que ameaçava perturbar a ordem das coisas na província de São Paulo e há até informes de que escravos trazidos do norte eram mais revoltosos que os africanos94. Ou seja, de certa maneira, mesmo com a porteira fechada, o “mal” já estava feito: a semente que alimentou revoltas massivas de escravos estava plantada e germinou em meados dos anos 80. Os preços dos escravos despencaram rapidamente ao longo da década de 1880 e para se proteger de uma falta de mão de obra iminente, os fazendeiros começaram a libertar seus escravos mediante um período de trabalho obrigatório em que eles receberiam salários95. O medo da falta de mão de obra foi diminuído com o sucesso das primeiras experiências imigratórias, tendo a província de São Paulo recebido mais de 32 mil imigrantes em 1887. Assim, rapidamente uma das províncias que mais defendia a escravidão passou a ser abolicionista96. São Paulo que tão firmemente defendeu a escravidão rapidamente tornou-se contra ela. A situação de caos que instaurou-se com as fugas em massa tornou a certeza da liberdade mais interessante que a incerteza da escravidão. Assim que São Paulo mudou de lado e tornou-se abolicionista, não faltava muito para

92

Ibid, p.289-300

93

DEAN, 1977, p.125-126

94

GRAHAM, 2004, p.311

95

Ibid, p.311

96

Ibid, p. 315

39

o sistema ruir97 – poucos meses depois, foi promulgada a Lei Áurea, encerrando um dos capítulos mais fúnebres da história do Brasil e dos que maior peso tem em nossa sociedade contemporânea.

4. Café, açúcar e escravos: o comércio de cativos em Itu no final da escravidão Esta seção está dividida em três partes: na primeira iremos apresentar as fontes primárias utilizadas neste trabalho – escrituras de compra e venda de escravos da cidade de Itu, por nós coletadas, e notícias e anúncios de jornais de Itu do século XIX, digitalizadas e disponíveis online no site do Sibi-USP. Em seguida, utilizaremos dados referentes ao ano de 1880 para representar os resultados do comércio de escravos até então. Finalmente, na última seção, descreveremos os escravos comercializados na cidade de Itu entre 1881 e 1888.

4.1

As fontes

Neste trabalho usaremos informações coletadas em escrituras de compra e venda de escravos do Primeiro Ofício de Itu. Tais escrituras estão preservadas pelo Museu Republicano da Universidade de São Paulo, em Itu. Utilizamos as escrituras de dois livros: um referente a transações efetuadas entre 1880 e 1887 ocorridas apenas em Itu, e outro com algumas transações feitas em Indaiatuba. Como comentamos anteriormente, desde 1860 transações de escravos com valores superiores a 200 mil réis deveriam ser registradas em livros especiais. Há informes sobre outros dois cartórios com escrituras de transações que ainda não foram coletadas. Como era do interesse dos proprietários garantir a posse de seus escravos98, é razoável supor que temos uma amostra representativa do comércio de escravos em Itu, que poderá ser ampliada caso as escrituras do segundo ofício e do primeiro cartório sejam coletadas. Ditas escrituras de maneira geral contém os seguintes informes: nome do comprador e vendedor, nome e preço do escravo, assim como sua idade, sexo, aptidão, local de nascimento e de matrícula. Não são todas as escrituras que

97

Ibid, p.319

98

MELLO, 1977, p.72. O comentário sobre a confiabilidade dos registros é feito sobre as matrículas, que davam uma prova de propriedade legal para o dono do escravo. Por isso, também é razoável supor que compradores teriam interesse em ter uma prova legal de compra ou venda de seus escravos.

40

possuem todas as informações. Por exemplo, escrituras de vendas em grupo geralmente apresentam apenas o preço total da venda, ficando impossível nesses casos aferir o preço individual de cada escravo. Outras vezes são informações sobre a naturalidade ou aptidão do escravo que estão em falta. Sexo e idade estão presentes em todas as escrituras, apesar de que podemos aferir que as informações não são 100% acuradas pelo fato de serem ditas pelo vendedor. Ao contrário de escrituras encontradas em outros cartórios, não há informes na maioria delas sobre a residência do comprador e do vendedor, impossibilitando caracterizar portanto o peso dos tráficos de entrada e de saída99. Além das escrituras, também nos valemos de jornais publicados em Itu no século XIX, em que vários dos personagens envolvidos nas transações são citados100. A seguir, a título de ilustração, disponibilizamos a imagem de uma dessas escrituras, assim como sua transcrição. A venda do escravo Benedicto, realizada em 1883, foi a com o segundo maior valor registrada no período entre 1883 e 1887, marcado por um declínio acentuado no preço e na quantidade de escravos transacionados. Ele era um escravo prime, ou seja, era um escravo do sexo masculino e estava na faixa etária mais valorizada101. Ao coletar as informações disponíveis em cada uma dessas escrituras, uma pergunta importante deve ser feita: quem eram as pessoas envolvidas nessas transações? Como era a experiência delas? Graham, em seu artigo por nós citado anteriormente, enumera várias experiências de vários escravos que foram comercializados. De maneira geral, foram separados de suas famílias, mas as experiências variam de jovens vendidos para trabalhar no café, mulheres vendidas para a prostituição, e até mesmo a história de Luiz Gama, que foi vendido ilegalmente. Apesar da diversidade de suas experiências, o 99

MOTTA (2012) usou a residência dos envolvidos nas transações para definir o tipo de comércio, de entrada e de saída. 100

Diversos jornais ituanos do século XIX e XX encontram-se digitalizados e disponíveis em http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269 101

Vários estudos por nós citados, como MOTTA(2012) e Mello (1978) mostram que o preço de escravos jovens do sexo masculino é quase sempre mais alto que qualquer outro tipo de escravo. FLAUSINO (2006), p.137 mostra as mesmas características no comércio de escravos em Mariana, Minas Gerais: “Quando procuramos relacionar a idade e os preços dos cativos, como mostra o gráfico 14, observamos claramente que os escravos do sexo masculino alcançaram preços superiores aos das mulheres em todas as faixas etárias, sobretudo na faixa etária de escravos adultos (15- 39 anos), quando o preço médio das mulheres representou 68,9% do preço dos homens.”

41

desgaste psicológico de passar de mão em mão sem saber seu destino final e a separação de seus laços familiares causavam grande revolta nesses cativos, que perderam todo o pouco que tinham102. A princípio, não podemos fazer muito além de especular sobre como foi a experiência dos envolvidos no comércio em Itu pela pouca quantidade de informações disponíveis nas escrituras. Ainda assim, refletir sobre como podem ter sido essas experiências, como propôs Graham, nos impede de esquecer a pergunta mais importante sobre o comércio de escravos: qual foi o significado do comércio de escravos para os humanos que foram comercializados?103

102

GRAHAM, 2004, págs. 304-310

103

Ibid, pág.291

42

Figura 2- Escritura de compra e venda de escravos

104

104

Fundo Cartório de Notas de Itu, caixa 32, página 80B

43

Figura 3 - Escritura de compra e venda de escravos

105

105

Fundo Cartório de Notas de Itu, caixa 32, página 81A

44

Escritura de venda e compra de um escravo, que faz Francisco Barreto de Souza a Manuel de Oliveira, pela quantia de 1:500$000. Saibão quantos este publico instrumento de escriptura de venda e compra de um escravo virem, qui no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo, de mil oitocentos e oitenta e três, sexagésimo segundo da Independência do Império, aos trinta e um dias do mês de julho do dito anno, nesta cidade de Itu e em meu cartório comparecerão parte entre si havidas e contratadas, de uma como vendedor Francisco Barreto de Souza, e de outra como comprador Manoel de Oliveira, de mim reconhecidos e de que dou fé. O bilhete de meia sisa, que me foi apresentado, é passado pela collectoria desta cidade, sob número um, em data de hoje, da quantia de quarenta mil réis, assignado pelo collector José Martins de Mello e pelo escrivão José Antonio Appolinario de Almeida Garrett. A matrícula do escravo Benedicto foi feita na collectoria desta cidade* na data de vinte e sete de Agosto de mil oitocentos de setenta e dous, sobre número dous mil e cincoenta da matrícula e dous da relação. Logo pelo vendedor foi dito, perante as testemunhas adiante nomeadas e assignadas, que elle é senhor e possuídor do escravo de nome Benedicto, preto, de trinta e um annos de idade, da Bahia, solteiro e do serviço da roça*, do qual escravo, no mesmo estado de saúde em que se acha faz venda, como de facto vendido tem ao comprador pela quantia de um conto e quinhentos mil réis*, a vista, que recebeu e dá quitação, sendo a competente meia sisa paga pelo comprador, à quem cede e transfere a posse que em dito escravo tinha, para que gose como seu que fica sendo pela compra feita e dá vista por represadas todas as clausulas precisas em direito, como de cada uma d’ellas fizesse especial menção. Pelo comprador foi dito que aceitava a presente escritura na forma n’ella declarada. De como assim disserão e outorgarão dou minha fé e me requererão lhes houvesse esta, que sendo-lhes lida e achando a contento se assiguão, sendo à rogos do comprador por não saber escrever José Ferreira de Almeida, com as testemunhas presentes Francisco Corrêa Pacheco e Antonio de Castro Andrade, todos desta cidade e reconhecidos de mim Francisco José de Andrade, Tabelião que a escrevi. A presente escriptura paga a sello proporcional de dous mil reis. O Tabellião. Itu, 31 de julho de 1883. Francisco Barreto de Souza, José Firmino de Almeida, Francisco Correa Pacheco, Antonio de Castro Andrade.

* Grifos nossos

45

Não sabemos muito sobre o escravo Benedicto. Sabemos que ele era baiano e que entrou em São Paulo antes de 1881, ou seja, antes da regulamentação do imposto que proibiu o tráfico interprovincial, pois ele foi matriculado na coletoria de Itu. Era jovem e solteiro, tinha 31 anos de idade. Porém, se em 1883 ele tinha 31 anos, isso implica que em 1872 quando foi matriculado, ele tinha apenas 20 anos de idade. Ou seja, seu deslocamento da Bahia para São Paulo ocorreu quando ele era ainda muito jovem. Pouco sabemos sobre Benedicto mas temos um pouco mais de informações sobre seu comprador e vendedor. Francisco Barreto de Souza apareceu algumas vezes em nossa pesquisa. Em 1880 ele vendeu três escravos no mesmo dia, além de vender Benedicto em 1883. Curiosamente, mais tarde, os dois escravos que vendeu em conjunto (um casal com três filhos ingênuos) foram por ele recomprados. Além desta “desvenda”, ele aparece como comprador em mais duas transações: uma em 1880 e outra em 1882, nas duas vezes comprando escravos homens. Isso faz sentido, afinal, segundo algumas citações no jornal Imprensa Ytuana, Francisco Barreto de Souza era lavrador de café106. Manoel de Oliveira também aparece mais vezes em nossa pesquisa: outras duas como comprador de escravos do sexo masculino em 1885 e uma como vendedor, em 1883, de uma escrava. Em 17 de maio de 1887, Manoel de Oliveira foi listado como lavrador de algodão, numa lista em que também aparece Francisco Barreto de Sousa como lavrador de café. Curiosamente, em 23 de setembro de 1883, Manoel de Oliveira já aparece libertando alguns de seus escravos condicionalmente, o que nos dá uma vaga ideia sobre sua expectativa quanto ao fim da escravidão. Aparentemente Manoel era bom em perceber tendências futuras. Deixamos a reprodução do original como ilustração das informações que utilizamos:

106

Na edição de 27 de agosto de 1873, Francisco Barreto de Sousa é listado como votante e elegível.

46

Figura 4 - Notícia sobre libertação de escravos por Manoel de Oliveira na edição do dia 23/09/1883 no jornal Imprensa Ytuana

Almeida Prado, Galvão de Almeida, Conceição, Nardi e diversos outros sobrenomes poderosos de Itu e da província de São Paulo aparecem nas escrituras coletadas. A pesquisa sobre o envolvimento dessas famílias com o comércio de escravos por si só já renderia uma monografia e foge de nosso escopo, mas eventualmente em transações pouco usuais vamos nos debruçar brevemente sobre os envolvidos. Porém, não só escravistas apareciam na imprensa. Por não terem sobrenomes, fica difícil a busca de mais informações sobre escravos, mas ainda assim vez ou outra encontramos algumas citações envolvendo escravos comercializados em Itu. Como comentamos, a escritura usada nesta transação é um exemplo de uma escritura representativa do estereótipo do cativo comercializado no tráfico interprovincial pós abolição do tráfico transatlântico: escravo jovem, da roça, do sexo masculino, vindo do nordeste, provavelmente para trabalhar na lavoura cafeeira já que foi vendido por lavrador de café. Algumas escrituras por nós coletadas eram vendas em grupo (nesse caso várias), alugueis ou “partes ideais” de escravos. Usaremos esses informes para construção de estatísticas descritivas, porém não as usaremos para compor a média dos preços de algumas características, como sexo e ocupação.

4.2

Antes da porteira fechar: a fazenda capoava e o ano de 1880

1880 foi o ano mais movimentado no comércio de escravos em Itu que registramos em nossa coleta. Naquele ano foram registradas no primeiro ofício de Itu as compras e vendas de 97 escravos. De um total de 110 escrituras para todo o período entre 1880 e 1887, 43 foram registradas em 1880. Uma dessas 47

escrituras foi da compra de partes ideais de uma escrava. Uma outra venda foi desfeita posteriormente com o vendedor original recomprando um casal de escravos, e portanto vamos considerar apenas uma delas, diminuindo assim o número de transações para 42 e o número de escravos negociados para 95. A título de comparação, Motta (2012) encontra uma média de escravos negociados por ano, registrados em escrituras de compra e venda no período imediatamente ao ano de 1880(1880 incluído) que chega a 79,6 em Piracicaba e 83 em Casa Branca, em plena fronteira de expansão do café 107. Como veremos a seguir, essa quantidade relativamente alta de transações teve um motivo. Das 42 transações registradas naquele ano, 14 eram de grupos de escravos, desde casais ou dois escravos em conjunto até um máximo de 13 cativos negociados em uma mesma transação, totalizando 62 escravos inteiros negociados em conjunto. Em algumas transações foi discriminado o preço individual dos escravos, nos dando, no total, informes individuais do preço de 32 escravos. Configura-se portanto, em transações envolvendo escravos vendidos integralmente, uma média de 2,29 escravos por transação. Nas transações em grupo, foram negociados em média 4,42 escravos. 12 transações envolviam como vendedor algum representante da família Nardi, tradicional em Itu, totalizando 40 escravos negociados108 – 34 em grupo em 6 transações e 6 individualmente. 28 dos escravos vendidos em conjunto e 2 dos que foram vendidos individualmente tiveram os mesmos compradores, que eram sócios: Virgílio Augusto de Araujo e João Guilherme da Costa Aguiar. Essas transações entre a família Nardi e os sócios Augusto & Aguiar representam uma proporção expressiva dos escravos vendidos integramente (e com sua venda registrada no primeiro ofício) em Itu no ano de 1880 – 30 de 94, tem uma explicação. Dona Leonor Garcia de Vasconcellos Noronha deixou como herança para seus sobrinhos, filhos do capitão Antônio Nardi de Vasconcellos, a fazenda Capoava. Em 1870 a fazenda possuía 69 escravos. Em testamento, dona Leonor definiu que as terras não poderiam ser nem vendidas nem alienadas, podendo ser passadas apenas de pai para filho.109

107

MOTTA, 2012, p.262

108

Desconsideramos os escravos ingênuos, pois eles a essa altura já eram considerados livres por causa da Lei do Ventre Livre. 109

Fonte: ZEQUINI, 2005, http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6894

48

Para administrar as terras, seus herdeiros fundaram a sociedade Nardi & Irmãos. Em 1878 entraram com um pedido de anulação de verba testamentária, para poderem vender a fazenda, obtendo sucesso em 1880. Assim, a fazenda foi vendida para a sociedade Augusto & Aguiar, e com elas, 30 de seus escravos. Outros 10 escravos da família Nardi tiveram outros compradores, como Carlos de Vasconcellos de Almeida Prado (ver pág. 9) e Francisco Barreto de Souza (ver pág. 37). Como encontramos apenas 40 escravos sendo vendidos pelos Nardi, que não se envolveram em mais nenhuma transação após 1880, não sabemos o destino dos restantes 29 escravos presentes nas terras da família em 1870 - eles podem ter sido vendidos em outro ofício, terem morrido ao longo desses 10 anos ou permanecido como propriedade dos Nardi. Essas transações são especialmente interessantes por representarem uma fotografia do comércio de cativos antes da Lei do Ventre Livre e até antes do fim do tráfico internacional. Antes de nos atermos aos dados totais de 1880, vamos fazer uma descrição mais cuidadosa dos escravos envolvidos nas vendas da família Nardi. Temos o informe de idade para 39 desses 40 escravos – uma não teve a idade reportada por ser inválida e foi vendida com seu esposo. A média da idade desses escravos negociados é alta – 39,6 anos. Vejamos a seguir a pirâmide etária dos escravos vendidos pela família Nardi:

60 a 69 anos

50 a 59 anos Mulheres Homens

35 a 49 anos

12 a 34 anos

10

5

0

5

10

Gráfico 1 – Pirâmide etária dos escravos vendidos pela família Nardi

Dos 40 escravos vendidos pela família, 29 eram do sexo masculino. Essa forma estranha da pirâmide, com distribuição relativamente homogênea do lado masculino e formato mais normal do lado feminino, representa mais ou menos 49

o que esperaríamos de uma fazenda de produto exportável: uma concentração de escravos do sexo masculino. A estranheza aqui vem do fato da alta proporção de escravos velhos, talvez reflexo de um período de maior prosperidade no passado ou até de boas condições de vida dos escravos. Zequini aponta que em 1870 a fazenda possuía 100 alqueires de café e 45 quartéis de cana, além da produção de outros gêneros de subsistência, como feijão e milho, além de algum gado. Como comentamos anteriormente, o tráfico internacional de escravos foi interrompido em 1850, portanto, escravos com mais de 30 anos de idade poderiam ser trazidos da África e escravos com menos de 30 anos de idade poderiam vir de outras províncias. Como quase todos os escravos foram matriculados em Itu (apenas um foi matriculado em Campinas), todos eles já estavam na região em 1872. Vejamos a seguir de onde esses escravos vieram: Tabela 10 – Origem dos escravos do sexo masculino vendidos pela família Nardi Faixa Etária

África

São Paulo

Nordeste

12 a 34 anos

0

7

2

35 a 49 anos

0

2

4

50 a 59 anos

5

0

1

60 a 69 anos

7

0

0

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Fica bastante claro que antes de 1830 a preferências por escravos vindos da África era clara. Não sabemos por que a família não comprou mais escravos africanos após 1830 – talvez por respeitar a lei que proibia o tráfico, apesar de ela não ser respeitada no país, como comentamos, antes de 1850. Aparentemente, até por volta de 1850 houve uma preferências por escravos nordestinos, e depois disso, preponderou a preferências por escravos da província. Dos escravos da província de São Paulo, todos eram naturais de Itu. Entre as escravas do sexo feminino, apenas uma, de 55 anos, era de nação. 9 eram de São Paulo e 2 do nordeste: uma de 40 e outra de 34 anos. Esta foto mostrada por essa transação – transação de escravos que estavam em Itu ou Campinas pelo menos desde 1872 – mostra um pouco como era o comércio de escravos na localidade no passado. Antes do fim do tráfico internacional, quando Itu era exportadora de açúcar, os escravos eram comprados na África. Depois, passaram a ser comprados do Nordeste, e finalmente, da própria província. Claro que essa transação isoladamente não representa todo o conjunto, mas, pelo seu peso no total, foi interessante analisa-la isoladamente.

50

Dos 29 escravos do sexo masculino, 20 tiveram sua aptidão mencionada. Um era do serviço doméstico e todos os outros eram do serviço da roça. Entre as mulheres, o padrão se repete: das 6 que tiveram suas profissões reportadas, 5 eram do serviço da roça e apenas 1 do serviço doméstico. Como uma parte relevante dos escravos foi vendida em grupo, não faremos uma análise de seu preço para as vendas da família Nardi. Voltaremos agora a nossa analise para a totalidade dos escravos negociados em 1880. Consideraremos aqui 42 escrituras de compra e venda de escravos para podermos fazer um panorama das características dos escravos comercializados. Como comentamos anteriormente, uma dessas transações feita em 31 de março de 1880 envolvendo um casal de escravos, de Francisco Barreto de Souza a João Baptista Pacheco Jordão foi revertida em 14 de junho do mesmo ano: (...) Logo, pelo vendedor foi dito, diante as testemunhas ao diante nomeadas e assignadas, que ele é senhor e possuidor de um casal de escravos, comprados do hoje comprador em trinta e um de março do corrente ano”(..) O casal possuía três ingênuos e tanto na primeira quanto na segunda transação, foram comercializados pela quantia de 4 milhões de réis. Não há evidência de nenhuma anormalidade no resto da escritura que justifique a venda do escravo para seus antigos donos, e nem na escritura da primeira venda, há evidências de algum tipo de consignação. Consideraremos apenas uma dessas transações em nosso estudo. Além desta, outra transação atípica foi a compra de duas terças partes de uma escrava de nome Rita, feita em 16 de julho. Em 1874, a população de escravos em Itu era de 3601 (ver pág. 10), numa população total de 10853. Em 1882, a população escrava havia diminuído para 2878110, e em 1886, a população escrava havia declinado fortemente, para 1354, enquanto a população total subiu para 15840 indivíduos111. Apesar de não termos informes para o ano de 1880, sabemos que ele está situado bem no meio de um período em que a tendência da população total é de alta e a da população de escravos é de queda, influenciada principalmente pelo período

110

CONRAD, 1975, p.356

111

Fonte:São Paulo do passado, disponível em http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1886.pdf pag 107 (população total) e 212 (escravos matriculados até 1887)

51

final da escravidão112. Itu perdia escravos assim como a maioria de seus vizinhos da região central (com a notável exceção de Campinas). Já na região mogiana, em vários municípios da zona de expansão cafeeira, houve um aumento da quantidade de escravos entre 1874 e 1882, evidenciando assim a necessidade de braços devido a rápida expansão no cultivo da rubiácea113. Dos 95 escravos negociados, 62 eram do sexo masculino e 33 do sexo feminino, ou seja, 65% eram homens e 35% eram mulheres. Dos 94 escravos para os quais temos informações sobre a idade, a média etária foi de 32,7 anos – consideravelmente inferior à média registrada nas transações que venderam os escravos da Fazenda Capoava. Tabela 11 – Idade média em anos dos escravos negociados em Itu em 1880

Idade média

Homens

Mulheres

34.75

28.71

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Nesse índice, a venda dos escravos da Fazenda Capoava teve um peso grande. Temos o informe de naturalidade de 81 escravos. Dos 18 escravos africanos negociados, 15 eram homens, ilustrando o peso que a razão de sexo teve ao importar escravos africanos, ainda que num peso muito maior que a proporção que citamos anteriormente (ver pag. 21). Dos 18 escravos africanos comercializados em Itu naquele ano, 13 eram da fazenda Capoava. Ou seja, a venda da fazenda acabou tendo um impacto para cima na idade dos escravos comercializados, visto que enquanto cerca de 22% dos escravos velhos eram de nação na totalidade dos escravos transacionados com naturalidade identificada, no conjunto da fazenda Capoava essa proporção chegou a 54%. Se não considerarmos a venda da fazenda Capoava, a média de idade dos escravos transacionados seria de 27.78 anos, que é uma média mais próxima à encontrada em outros estudos114. Notavelmente, a idade média dos homens cai devido à presença bem menor de escravos africanos na amostra. Já a das mulheres não se altera tanto, pois pouquíssimas escravas de nação foram

112

Ver gráfico em CONRAD, 1975 p. 77

113

Ibid p. 356 e ver pág. 31 deste trabalho

114

Ver MOTTA (2012), p. 62: em artigo sobre o tráfico de escravos velhos na província de São Paulo, Motta encontra uma idade média dos escravos comercializados em localidades paulistas selecionadas de 23,39 o final do período de 1874-1880, com tendência de alta para o período seguinte.

52

negociadas em geral. A idade média de homens seria substancialmente alterada: Tabela 12 – Idade média em ano dos escravos negociados em Itu em 1880, sem considerar a venda dos escravos da fazenda Capoava

Idade média

Homens

Mulheres

28.48

26.72

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

O que podemos concluir sobre isso? Talvez os Nardi não fossem muito interessados em tocar a fazenda Capoava, visto que ela não sofreu alterações em tamanho desde 1856 e apenas seus compradores Araujo & Aguiar a transformaram em uma fazenda de café115. Sem comprar novos escravos para a fazenda, obviamente os que ali estavam envelheciam e puxavam a média de idade dos escravos para cima. Teríamos que averiguar as escrituras de toda a década de 70 para confirmar essa hipótese de que os Nardi não compraram mais escravos por um longo período, mas o que fica claro é que os escravos da fazenda Capoava tiveram um grande impacto para cima na idade média dos escravos negociados em Itu no ano de 1880. Escravos do sexo masculino tem seu preço médio maior que escravas do sexo feminino. Para construir este índice, usamos apenas os informes que deixavam explícito o preço individual dos escravos: Tabela 13 – Preço médio dos escravos separados por gênero em Itu em 1880

Preço médio

Homens

Mulheres

1822000

1237000

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Outro recorte interessante a ser feito é o de aptidão do escravo. Esse informe está disponível para 75 dos 95 escravos. Desses 75, a grande maioria – 63, ou seja, 84% eram do serviço da roça. Dos 63 escravos do serviço da roça, 47 (74%) eram do sexo masculino. Em 1874, 61% da população rural escrava era masculina116, ou seja, faz sentido

115

Ver novamente ZEQUINI, 2010, em http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6894

116

Ver pág. 18

53

que num período em que se demanda por braços no campo, a maior parte da comercialização de escravos no meio rural fosse de escravos do sexo masculino. Finalmente, para 25 escravos do serviço da roça, temos também o informe individual sobre o preço. Assim, podemos fazer uma comparação entre a média dos preços dos escravos no geral e para aqueles que são do serviço da roça e do serviço doméstico: Tabela 14 - Preço médio dos escravos separados por gênero e aptidão em Itu em 1880 Preço médio/Sexo

Homens

Mulheres

Total

1822000

1237000

Serviço da roça

1800000

1266000

Serviço doméstico

1600000

1300000

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Este achado não é muito diferente do feito por Motta e Marcondes em sua análise de listas de emancipação e escrituras de compra e venda de escravos para localidades selecionadas do interior paulista. No artigo é citada uma outra pesquisa de Marcílio et alii, que analisando uma localidade baiana, concluiu que uma vez empregados no serviço da roça, não se encontra um diferencial significante entre homens e mulheres. Motta e Marcondes apontam que estes resultados não são necessariamente generalizáveis 117, tanto que no mesmo artigo, uma amostra pequena levou a um resultado mais extremo. Na amostra de escrituras de compra e venda de escravos de Guaratinguetá e Silveiras, foram transacionados 31 escravos e apenas três escravas da roça, levando a um diferencial de preço em que os escravos da roça valiam mais que o dobro que as escravas de mesma profissão. Na lista de classificação de Cruzeiro e Lorena, esse diferencial foi consideravelmente menor – escravas da roça alcançavam 83% dos escravos do sexo masculino da mesma ocupação, em uma amostra que envolvia 834 escravos e 337 escravas. Em nossa amostra de 47 escravos e 16 escravas da roça, encontramos um diferencial entre escravos e escravas da roça que era um pouco menor que a diferença da média geral de preços entre escravos do sexo masculino e feminino. Poucos foram os escravos do serviço doméstico para os quais conseguimos informes individuais de preço: apenas três mulheres e um homem. A proporção de sexo aqui se inverteu, como também se inverteu nos achados de Motta e

117

MOTTA & MARCONDES, 2001

54

Marcondes. Mas o preço do escravo masculino segue mais alto. Ou seja, apesar do serviço doméstico ser uma profissão tipicamente feminina, um escravo do sexo masculino tem um preço mais alto118. A propósito, o escravo em questão tinha apenas 12 anos. Há ainda sete outros escravos sobre os quais temos o informe de ocupação e preço individual: duas cozinheiras, uma costureira e dois pagem, sendo um homem e uma mulher. O único pagem do sexo masculino teve uma avaliação bem mais alta que todas as médias encontradas para os homens: dois contos e quatrocentos mil réis. Com exceção de uma cozinheira de 56 anos vendida por 500 mil réis, todas as outras escravas especializadas custaram entre um conto e duzentos e um conto e quatrocentos mil réis. Assim como Motta & Marcondes, para todas as faixas etárias encontradas nas escrituras por nós pesquisadas, os preços dos homens foram sempre superiores aos das mulheres: Tabela 15 – Preço médio dos escravos por sexo e faixa etária e tamanho das amostras Homens Número

Preço médio

de 10 a 14 anos

5

1670000

de 15 a 39 anos

10

2085000

de 40 a 59

3

1200000

Mulheres Número

Preço médio

de 10 a 14 anos

1

1000000

de 15 a 39 anos

13

1330769

de 40 a 59

2

750000

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Para a faixa etária mais valorizada – de 15 a 39 anos, foram transacionados mais homens que mulheres. Mas isso acontece apenas nas transações para as quais temos os informes individuais. Se considerarmos as vendas em grupo, passamos a ter 35 escravos homens e 25 escravas mulheres comercializados. Como já comentamos anteriormente, não poderemos informar se o tráfico realizado era inter ou intraprovincial devido a falta de informação sobre a

118

MOTTA & MARCONDES, 2001

55

residência dos envolvidos nas trocas. Porém, a localidade de nascimento e matrícula dos escravos nos dará uma ideia sobre a movimentação desses escravos até então. Comecemos analisando os 56 escravos do sexo masculino dos quais temos informes sobre o local de nascimento: Tabela 16 – Local de nascimento dos escravos do sexo masculino comercializados em Itu em 1880

Local de Nascimento

São Paulo

Sudeste

Norte e Nordeste

Sul

África

18

2

18

3

15

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

O peso dos escravos originários de outras províncias ou do além-mar é bastante alto – quase 70%. Mesmo se desconsiderarmos os escravos da fazenda Capoava, essa proporção é ainda bastante elevada. Praticamente todos os escravos paulistas comercializados naquele ano foram matriculados em Itu, em Indaiatuba (no mesmo termo) ou (apenas um em cada caso) em Tietê e Campinas. O único escravo matriculado em outra província era natural da Paraíba e tinha 33 anos. Os escravos africanos por sua vez foram todos matriculados na região, sendo 13 matriculados em Itu e os dois restantes, em Tietê e Porto Feliz, localidades próximas à Itu. Disso podemos concluir que todos esses escravos africanos já estavam na região em 1872, mas infelizmente não há como saber se eles passaram por outras províncias antes. É razoável supor que eles foram enviados diretamente para Itu, visto que a região era protagonista no desenvolvimento da lavoura açucareira em São Paulo - foi entre as décadas de 1830 e 1840 - justo a época que aparentemente os escravos entraram no país - que a província produzia açúcar para exportação119. Uma realidade um pouco distinta se desenha para os escravos que nasceram em outras províncias do Brasil.

119

LUNA & KLEIN, 2010, p. 88

56

Tabela 17 – Local de nascimento dos escravos versus local de matrícula Nascimento x Matrícula

São Paulo

Sudeste

Norte e Nordeste

Sul

Sudeste

1

1

0

0

Sul

1

0

0

1

Norte & Nordeste

7

0

11

0

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Dos 18 escravos de origem nortista ou nordestina, sete foram matriculados em São Paulo. Novamente, a venda da Fazenda Capoava tem um peso grande: dos escravos nordestinos, apenas os escravos vendidos pelos Nardi foram matriculados em São Paulo. Ou seja, os outros 11 escravos foram trazidos para a província após 1872, quando ocorreu a última matrícula até então. No total, dos 23 escravos originários em outras províncias, 13 não foram matriculados em São Paulo. Essa informação está em acordo com a periodização do comércio de cativos feita por Gorender e citada por Motta (2012)120: nos anos 70, o comércio interprovincial era muito intenso. Motta verificou que para Piracicaba – cidade próxima a Itu, o período de 1874-1880 apresentou características típicas da expansão cafeeira, ou seja escravos jovens, do sexo masculino, vindos de várias localidades121. De fato, se olharmos mais atentamente para algumas dessas transações, encontraremos fortes evidências de que algumas delas de fato fizeram parte do tráfico interprovincial. Em 14 de julho de 1880, Francisco Fernando de Barros Junior, republicano e rico fazendeiro que circulava entre as elites da província122, comprou oito escravos de Guilherme Augusto Raposo. Francisco também aparece como comprador de outros dois escravos em 1883. Guilherme Augusto Raposo por sua vez era negociante e morador do Rio de Janeiro, segundo outra escritura registrada na cidade de São Paulo em 1878123. Naquela ocasião ele vendeu sete escravas para um fazendeiro da província de São Paulo, todas muito jovens (de 13 a 23 anos) e com matrículas feitas no nordeste. Em Itu, os oito escravos vendidos por ele a Francisco

120

MOTTA (2012) p. 73

121

MOTTA (2012), p.355

122

ZEQUINI, 2014. Disponível em: http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=48076

123

Escritura disponível em: http://lemad.fflch.usp.br/es/node/7883

57

Fernando de Barros eram prime, e por isso mesmo o preço do conjunto alcançou a cifra de 2 milhões e 275 mil réis por cabeça. A título de comparação, há informes de Casa Branca e Piracicaba (localidades também na zona de expansão do café) de escravos prime custando pouco mais de 2 milhões de réis nominalmente, mas ao longo de toda a década de 70, ou seja, essa média captando também preços de anos anteriores que estavam em patamar mais baixo e com tendência altista124. Para Rio Claro, outra cidade próxima à Itu, há informes de escravos prime sendo vendidos em 1880 por 2 milhões e 300 mil réis, enquanto no interior da Bahia escravos semelhantes eram vendidos por apenas 1 milhão e 200 mil réis125. Todos os escravos envolvidos nesta transação eram nordestinos, do sexo masculino, jovens com média de idade de 21.75 anos (mínimo 15, máximo 35), solteiros e do serviço da roça. Ou seja, exatamente o perfil do escravo demandando pela lavoura cafeeira e que também alimentou a combustão do fogo abolicionista. Claro que não podemos saber se esses escravos estiveram diretamente ligados a qualquer insurreição, porém, por suas características, é bastante razoável supor que foram cortados de seus laços familiares e sociais. Nossos achados tanto para o ano de 1880 como um todo quando olhando especificamente para a venda da fazenda Capoava, parecem corroborar as hipóteses levantadas por nossa revisão bibliográfica. Em 1880 o tráfico interprovincial de escravos ainda ocorria livremente e a região cafeeira absorvia braços escravos de outras regiões. Dentro desse contexto, por estar em uma época de transição, podemos caracterizar Itu como uma zona de madura a residual quanto a produção de açúcar, e prestes a se tornar superdotada quando da invasão do café. De qualquer forma a localidade havia perdido seu protagonismo para outras cidades e nunca mais o recuperaria.

124

MOTTA (2012), pags. 231 e 255.

125

NEVES (2010), pág. 111, com informações sobre Rio Claro retiradas de DEAN, 1976

58

4.3

A porteira fecha: o comércio de escravos em Itu às vésperas da abolição

A dificuldade em classificar a natureza do tráfico (de saída ou de entrada) a partir das escrituras pela falta do local de moradia dos envolvidos nos atrapalha a conjecturar se Itu era de fato uma região madura/residual ou se estava voltando a ser superdotada. Ainda assim, pelos informes demográficos (ver pág. 48), sabemos que a população escrava em Itu estava declinando em meio a uma população total que crescia. Segundo dados para 1890126, Itu contava logo depois do fim da escravidão com uma população de cerca de mil estrangeiros em quase 14 mil habitantes. Enquanto isso, a vizinha Campinas, que havia observado um aumento de 1980 escravos entre 1874 e 1882 127, tinha uma população de mais de sete mil estrangeiros em 33 mil habitantes. Podemos observar uma correlação entre aumento dos braços escravos no período 1874-1882 e quantidade de imigrantes em 1890, visto que várias cidades do vale do Paraíba, então em declínio econômico, segundo as mesmas fontes, tiveram um aumento no número de escravos entre 1872 e 1884 bem menos expressivo que cidades da região mogiana e contavam com poucos imigrantes em 1890: Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus população estrangeira em 1890

Ribeirão Preto São Simão Casa Branca Descalvado Araraquara São Carlos Pirassununga Jaú Brotas Rio Claro Mogi Mirim Limeira Amparo Total

Região Mogiana Aumento 74-82 População estrangeira 1890 529 1282 417 0 1822 0 1521 4254 621 1522 1897 2266 2174 4560 989 393 -420 924 917 151 -1577 1395 570 3257 2500 0 11960 20004

126

BASANEZI, 1998, disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1890.pdf

127

CONRAD, 1975, p. 356

59

Continuação da Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus população estrangeira em 1890 Região Leste e Vale do Paraíba Aumento 74-82 População estrangeira 1890 Mogi das Cruzes -448 87 Jacareí

-96

108

S, José dos Campos

228

38

Caçapava Taubaté Pindamonhangaba São Luís Guaratinguetá Lorena Queluz Areias Bananal Total

1007 1033 459 -17 960 1126 57 395 -1113 3591

0 7 119 16 254 202 91 17 266 1205

Campinas Capivari Bragança Tatuí Porto Feliz Itu Jundiaí Atibaia Itapetininga São Roque Total

Região Central Aumento 74-82 População estrangeira 1890 1980 7045 423 882 -365 0 51 338 -423 150 -620 1063 -221 1735 -130 249 -36 37 -457 175 202 11674

Fontes: Basanezzi, 1998, págs. 144-145 e Conrad, 1975, p.356

Essas medidas nos ajudam a classificar Itu como uma região madura na década de 1880, com tendência à expansão. Isso porque em boa parte das cidades da região Mogiana, a essa altura boa parte delas cobertas de café 128, havia uma quantidade de estrangeiros bem maior que na região Central. Enquanto as cidades do Vale do Paraíba tiveram um saldo maior de escravos entre 74 e 82, receberam poucos imigrantes até 1890, indicando uma certa perda de competitividade por braços livres em comparação à região Central. Esta por sua vez, apesar da perda de escravos em boa parte de suas cidades,

128

MELO 2009, págs. 80-89

60

tinha uma quantidade alta de estrangeiros em 1890, o que indica uma maior atratividade a mão de obra. Tudo isso, é verdade, são apenas conjecturas, mas nos sentimos seguros em afirmar que Itu era uma cidade em transição de produções durante a última década de vigência da escravidão(ver pág. 15). A partir de 1881 com a imposição da taxa que praticamente proibiu o comércio interprovincial juntamente com as expectativas sendo formadas cada vez mais no sentido da abolição, a quantidade de escravos comercializada por ano em Itu diminuiu sensivelmente. Entre 1881 e 1887 foram comercializados 77 homens e 43 mulheres, totalizando 120 escravos comercializados no período, com informe individual de preço de 32 escravas e de 47 escravos em 67 escrituras, nos dando uma média de 1,79 escravos por transação. A última venda, ocorrida em 1887, envolveu 26 escravos. Vale lembrar que apenas em 1880, haviam sido comercializados 95 escravos. A queda na quantidade dos escravos comercializados também foi acompanhada por uma forte queda nos preços reais a partir de 1882. Vale ressaltar que pela baixíssima quantidade de escravos comercializada em 1884 e 1886 – e por, no caso desses dois anos, todos esses quatro escravos serem do sexo feminino, a média de preços para esses anos pode estar enviesada. Além disso, a própria desagregação do mercado de escravos pode ter levado a distorções consideráveis, como as que observaremos nos dados a seguir (desconsideramos os anos de 1884 e 1886 por não haver transações com informe individual de preço de escravos do sexo masculino): Tabela 19 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por gênero entre 1880 e 1887

1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887

Homens 62 34 11 4 0 9 0 19

Mulheres 33 10 7 6 2 9 2 7

Razão do sexo 187,8 340 157 66 100 270

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

61

70 60 50 40 Homens 30

Mulheres

20 10 0 1880

1881

1882

1883

1884

1885

1886

1887

Gráfico 2 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por ano entre 1880 e 1887 Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Preço real médio (Ano Base = 1880) 1800000 1600000 1400000 1200000 1000000 800000 600000 400000 200000 0

Preço real médio

1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 Gráfico 3 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 – Ano 129 Base = 1880 Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

129

Índice de inflação retirado de BUESCU,1973, p.223. O período entre 1880 a 1887 foi caracterizado por uma leve deflação de preços.

62

Após a lei de 1885 há uma leve recuperação no comércio de escravos. Essa recuperação talvez tenha ocorrido devido a Lei dos Sexagenários. Motta (2012), que também observou um leve reaquecimento do mercado em sua amostra para Piracicaba, infere que como a lei dispunha de uma lista com preços fixos de escravos e uma taxa anual de declínio em seus valores que chegaria a zero em treze anos, talvez as expectativas do mercado tivessem sido alteradas na direção de um prolongamento da escravidão. Mas essas expectativas duraram pouco: já no ano seguinte, o comércio voltou a cair novamente130. Conforme os anos foram passando, as distorções no mercado de escravos ficaram mais aparentes. Não foi só a tradicional distribuição de gênero que foi alterada, mas também os preços médios reais. A amostra pequena provavelmente também distorce os resultados, como podemos ver no ano de 1883, quando ao contrário do esperado, o preço das mulheres superou o dos homens. Os três escravos negociados naquele ano eram jovens e não há aparentemente motivo para que todos custassem, como ocorreu, menos de um conto de réis. Das cinco escravas negociadas naquele ano, quatro custavam um conto de réis ou mais, também sem motivo aparente que as sobrevalorizassem. Tabela 20 – Preço médio real dos escravos por ano: para todas as faixas etárias e de 15 a 29 anos. Período de 1880-1887 Todas as faixas etárias Homens Mulheres 1880 1822000 1237000 1881 1730260 1616910 1882 1717182 1007445 1883 716989.5 1080486 1885 716688.5 600018 1887 474100.5 426565.1 15 a 29 anos Homens Mulheres 1880 1938462 1295833 1881 1716925 1450218 1882 1836265 1170351 1883 716989.5 967102 1885 800024 816691.5 1887 6005337 450396.3

Fonte: Escrituras de compra e vendas de escravos

130

MOTTA, 2012, p. 359

63

Preço médio real dos escravos: 1880-1887 2000000 1800000 1600000 1400000 1200000 1000000

Homens

800000

Mulheres

600000 400000 200000 0 1880

1881

1882

1883

1885

1887

Gráfico 4 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por gênero – Ano Base = 1880

Preço médio real dos escravos entre 15 e 29 anos: 1880-1887 2500000

2000000

1500000 Homens Mulheres

1000000

500000

0 1880

1881

1882

1883

1885

1887

Gráfico 5 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por gênero, faixa etária de 15 a 29 anos – Ano Base = 1880 Fonte gráficos 4 e 5: Escrituras de compra e venda de escravos

64

Algumas transações nos chamaram a atenção e embora não tivessem informes individuais sobre o preço, continham outras informações interessantes. Em abril de 1881, José Elias Pacheco Jordão vendeu a seu filho Elias Fausto Pacheco Jordão131 a de 16 escravos, e houve também a troca de escravas entre os envolvidos na transação132. José Elias foi o primeiro presidente da Compania Ytuana de Estradas de Ferro e era um dos chefes do partido conservador133. Já seu filho Elias Fausto foi empresário e político de sucesso134. Foram negociados 13 escravos do sexo masculino e apenas três do sexo feminino. Todos esses escravos eram muito jovens – tinham de 12 a 26 anos, o que explicaria seu preço alto de um conto e 875 mil réis por cabeça. Cinco foram matriculados na província de São Paulo e os outros 11 foram matriculados no sul e no nordeste: Tabela 21 – Local de matrícula dos escravos transacionados entre os Pacheco Jordão Local de matrícula São Paulo (SP) Recife (PE) Porto Alegre (RS) Sorocaba (SP) Ipu (CE) Imperatriz (AL) Souza (PB) Sobral (CE) Una (SP) Limoeiro (CE) São Cosme (CE) Lapa (PR) Nazaré(PE)

Quantidade 2 1 1 3 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Esta transação foi a maior até 1887, quando a maior venda do período transacionou 26 escravos. Não há informações sobre preços individuais,

131

Fonte: http://www.arvore.net.br/Paulistana/Tenorios_2.htm

132

Decidimos não contabilizar as escravas permutadas em nossas estatísticas descritivas.

133

ZEQUINI, 2013

134

Fonte: http://www.itu.com.br/conteudo/detalhe.asp?cod_conteudo=24115

65

naturalidade e nem sobre as aptidões desses 16 escravos, apenas seu sexo e local de matrícula. Dos 53 escravos para os quais temos informes sobre província de origem e local de matrícula (lembrando que aí não estão incluídos os escravos negociados em 1887, pois a maioria deles, não tinha informe de origem), 46 nasceram na província de São Paulo. Dos que eram de outras províncias (Rio Grande do Sul, Bahia, Maranhão, “do norte” e um escravo de nação), apenas dois foram matriculados em outras províncias e logo no começo do período, sem nenhuma menção ao pagamento do imposto sobre o comércio interprovincial. Ou seja, a grande maioria dos escravos comercializados no período dos quais temos informes detalhados não sofreram movimentações interprovinciais após 1872-73. No mês seguinte à transação dos Pacheco Jordão, Frankin Basilio de Vasconcellos alugou um escravo de nome Couto, de 26 anos, do serviço da roça e crioulo de Itu pela quantia de um conto e 200 mil réis, pelo período de sete anos, a Joaquim Egydio do Campos Bicudo. Curiosamente, como a transação ocorreu no dia 9 de maio, a data do fim do contrato sete anos depois foi poucos dias antes de abolição total. Esse negócio não se mostrou tão bom para Franklin no futuro, pois outros escravos com características similares foram vendidos no mesmo ano por uma quantia maior que um conto de 200 mil réis. Outra escritura que chama a atenção é uma escritura de destrato data de 13 de junho de 1882. A transação ocorrida originalmente em abril de 1882 entre João Evangelista de Carvalho que vendeu para José Sampaio Gois seu escravo Innocencio, de 18 anos, do serviço da roça, natural de Sarapuí – SP, localidade próxima a Sorocaba. Poucos meses depois, devido ao escravo ser fugitivo, a escritura foi anulada como se não tivesse ocorrido. Um aspecto interessante do período é uma mudança na composição da aptidão dos escravos transacionados. Dos 65 escravos para os quais temos o informe sobre aptidão e foram vendidos até 1886, apenas 34 são do serviço da roça, ou seja, enquanto em 1880 84% dos escravos eram do serviço da roça, entre 1881 e 1886, essa proporção foi de apenas 52%. Conseguimos identificar também uma tendência declinante na proporção de escravos do serviço da roça ao longo da década135.

135

Para esta análise, também escolhemos deixar de fora os 26 escravos negociados em 1887. Analisaremos a transação separadamente.

66

Evolução da quantidade de escravos vendidos por aptidão:1881-1885 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0

Roça Doméstico Cozinha Pagem

1,881

1,882

1,883

1,884

1,885

Gráfico 6 – Evolução da quantidade de escravos vendidos por aptidão: 1881-1886

136

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Há também uma maior diversidade de ocupações, se compararmos apenas ao ano de 1880. Além disso, vale notar que os homens ocupam a mesma diversidade de profissões que as mulheres137. Se no serviço da roça os homens reinam absolutos, no serviço doméstico, para escrituras das quais conseguimos informes de profissão, a presença das mulheres é muito mais forte, assim como: Tabela 22 – Escravos negociados segundo sexo e ocupação (Itu, 1881-1886) Ocupação Homens Mulheres Serviço da roça 31 3 Serviço doméstico 2 10 Cozinheiro 0 5 Pagem 4 2 Pedreiro 1 0 Carreiro 1 0 Carpinteiro 1 0 Costureira 0 2 Mucama 0 2 Fonte: Escritura de compra e venda de escravos

136

Escolhemos o ano de 1887 dessa amostra por ter ocorrido apenas uma única transação envolvendo grande quantidade de escravos. 137

MOTTA 2012 p. 315 – Para uma amostra de Piracicaba, é encontrada maior diversidade de profissões para os homens para o mesmo período, assim como predomínio das mulheres no serviço doméstico.

67

Ao olharmos para os informes sobre a idade dos escravos, podemos perceber o impacto da lei do ventre livre. Apenas um escravo transacionado – Paula, de nova anos, que teve sua metade vendida em 1885 e era parte de uma herança, pareceu “burlar” a lei (não havia nada em sua escritura apontando que ela poderia ser vendida). Todos os outros escravos vendidos tinham nascido antes de 1871. Quanto aos sexagenários, não tivemos em nossa amostra para o período nenhum escravo comercializado com idade superior aos 60 anos de idade138. Dos 120 escravos para os quais temos o informe de idade, 71 tem entre 15 e 29 anos (60% da amostra) e 32 (26%) tem entre 30 e 44 anos. Apenas 6 (5%) tinham até 14 anos e 11 tinham mais de 45 anos (9%), sendo que o escravo mais velho negociado no período tinha 56 anos e foi negociado em 1881. Tabela 23 – Idade média por ano do escravos vendidos em Itu entre 1881 e 1887 Idades médias por ano Homens Mulheres 1881 25 28 1882 23 27 1883 24 25 1884 0 25 1885 24 28 1886 0 35 1887 36 28 1881-1887 27 28

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos

Podemos observar que a média por ano fica muito próxima a média para o período, com algumas exceções: para 1886 apenas duas mulheres foram vendidas, sendo uma delas com 52 anos de idade, puxando a média para cima. Já em 1887, a amostra é bem maior, mas assim como na fazenda Capoava, envolvia muitos escravos de uma mesma fazenda, o que pode indicar uma permanência prolongada desses escravos em tal propriedade. Finalmente, nos debruçaremos sobre a última transação de compra e venda de escravos feita na história de Itu. Ela ocorreu bem tarde – aos 22 dias de outubro de 1887, poucos meses antes da abolição e mais de um ano após o ultimo registro que tinha sido feito, datado de agosto de 1886.

138

MOTTA, 2012, p. 297-298: para a cidade de Areias, verificou que com o impacto nas faixas etárias extremas, as faixas intermediárias (15 a 29 anos e 30 a 44) ganharam maior importância.

68

A essa altura, diversos proprietários de escravos estavam oferecendo a liberdade em troca de mais algum tempo de serviço, às vezes acompanhados por um salário. Segue abaixo algumas notícias do jornal Imprensa Ituana, entre 1887 e 1888, ilustrando essa tendência:

Figura 5 - Notícia sobre libertação de escravos

Figura 6 - Notícia sobre libertação de escravos Fonte figuras 5 e 6: Jornal Imprensa Ytuana, 10/03/1888

Figura 7 - Notícia sobre libertação de escravos Fonte: Jornal Imprensa Ytuana, 10/08/1887

Encontramos diversas referências a essas libertações entre 1887 e 1888. Elas deixam clara a expectativa do momento: a escravidão duraria pouco tempo. Mas talvez os fazendeiros não esperavam que ela durasse tão pouco como de fato aconteceu.

69

Em 1884 morreu o senhor José Balduino do Amaral Gurgel:

Figura 8 - Nota de Falecimento Fonte: Imprensa Ytuana, 12/10/1884

Muito pouco tempo depois, em dezembro do mesmo ano como relata a edição de 7 de dezembro do mesmo jornal sua viúva Dona Maria do Amaral Gurgel também veio a falecer. Um ano antes, foi noticiado o júri de um escravo do falecido senhor do Amaral Gurgel, acusado do assassinato de seu reitor, tendo sido condenado a prisão perpétua, o que ilustra um pouco como estava o clima da época.

Figura 9 - Notícia sobre júri de escravo Fonte: Imprensa Ytuana, 02/12/1883

Desde 1869 estavam proibidos os leilões de escravos, mas as “praças judiciais”, ou seja, vendas supervisionadas por autoridades locais para o pagamento de dívidas ou divisão de bem entre herdeiros eram permitidas 139. Foi assim que três anos após o falecimento de seus pais, os órfãos Amaral

139

CONRAD, 1975, p.107

70

Gurgel viraram notícia em Itu: a venda judicial de sua herança de 26 escravos foi anunciada pelo juiz de órfãos de Itu algumas vezes ao longo de 1887.

Figura 10 - anúncio da venda judicial da herança dos órfãos Amaral Gurgel Fonte: Imprensa Ytuana, 31/08/1887

A venda foi concretizada em 22 de outubro do mesmo ano e todos os escravos foram vendidos, pela quantia de 12 contos de réis, para o poderoso fazendeiro Manuel Ernesto da Conceição, o conde de Serra Negra. Nossa sorte em encontrar o anúncio é que assim podemos estimar os preços individuais desses escravos. Nem todos os escravos anunciados tiveram seus preços discriminados, mas por existirem outros escravos com características parecidas e seus preços definidos nos anúncios, pudemos estimar o preço dos cinco escravos cujo valor não foi determinado. Estimamos o preço de venda individual dos escravos multiplicando o preço do anúncio pelo diferencial entre os valores totais da transação – o valor da transação representou 66% do valor total anunciado. No valor total da idade, colocamos a idade média. Dos 26 escravos envolvidos na transação, 22 eram

71

do serviço da roça, dois não tiveram aptidão identificada, um era feitor e um outro era carpinteiro140. O preço médio por escravo alcançou apenas 460 mil réis, sendo os escravos prime comprados por cerca de 600 mil réis – valor entre três e cinco vezes menor que o valor que poderiam ter sido vendidos até o começo dos anos 80. Tabela 24 – Escravos vendidos pelos órfãos Amaral Gurgel: preço do anúncio versus preço individual de venda estimado e idade (continua na página seguinte) Nome

Idade

Preço no anúncio

Preço de venda estimado

Marcelino

45

600000

400500

Sebastiana

36

600000

400500

Gabriel

20

900000

600750

Zacharias

29

900000

600750

Maria

18

675000

450562.5

Joaquina

39

450000

300375

Juliano

30

800000

534000

Zeferino

29

Lourenço

45

Pedro

30

534000

Manoel

40

400500

Ricardo

35

800000

534000

Roberto

50

400000

267000

Marcelino

50

Cyriaca

31

João

45

Lydia

22

675000

450562.5

Constantino

36

800000

534000

Leodoto

50

400000

267000

Josepha

30

800000

534000

Zacharias

21

Job

25

900000

600750

Maximiamo

35

800000

534000

Esther

21

675000

450562.5

Cesario

27

900000

600750

Timotheo

41

600000

400500

Total

33.8

17975000

11998312.5

534000 600000

400500

267000 600000

400500 400500

600750

140

Como esta foi a única transação ocorrida em 1887, informações sobre a distribuição de gêneros e preços médios podem ser encontradas nas páginas de 59 a 61.

72

Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos e jornal Imprensa Ytuana de 31/08/1887

Considerando que cada escravo em idade produtiva conseguia em média quase 800 mil réis de café por ano, em menos de dois anos o fazendeiro já teria coberto seus custos(ver pág. 35). Obviamente não usamos o mesmo instrumental usado por Mello(1977), porém chegamos a mesma conclusão que ele(ver pág 33): a essa altura, ninguém mais acreditava que a escravidão fosse durar muito. O Conde de Serra Negra assumiu um enorme risco. Alguns dias antes da data da venda, a 18 de outubro, o foi noticiada uma fuga na região. O relato dizia que os escravos fortemente armados haviam derrotado a força policial local no caminho de Salto. Houve troca de tiros e feridos quando os negros avistaram as forças policiais, mas rapidamente atravessaram a cidade rumo a São Paulo. Alguns estavam a cavalo e entre os negros havia mulheres e crianças. Essa notícia, assim como diversas outras, ilustra bem o clima de tensão da época141. Mesmo com a onda de libertações que estava ocorrendo em 1887 e também com a proposta dos fazendeiros de libertar os escravos após um certo período, as fugas em massa de escravos – fenômeno novo que pegou os fazendeiros de surpresa, continuaram com força no segundo semestre de 1887. As propostas dos fazendeiros não mais contentavam os escravos: eles queriam liberdade imediata142. Manuel Ernesto da Conceição era filho do também poderoso Francisco José da Conceição, o Barão de Serra Negra. No dia 10 de dezembro de 1887, as agitações que ocorriam em várias fazendas da província atingiram a propriedade da família: “No final de novembro e início de dezembro, a agitação parecia aumentar em São Paulo. Os jornais publicavam relatos cotidianos de escravos abandonando as fazendas, alguns deles armados. Em certos pontos, os fugitivos saqueavam e assaltavam nas estradas, recusando trabalhar. As unidades do exército enviadas para controla-los nada fizeram. Em 22 de novembro, o Barão de Serra Negra libertou mais de quatrocentos escravos com contratos de três anos, esperando sem dúvida que isso contentasse suas exigências e os conservasse pacificamente no trabalho, mas três semanas mais tarde esses escravos estavam cercando a “casa da moradia” e o próprio barão só 141

Essa fuga também foi relatada por CONRAD, 1975, p. 305

142

CONRAD, 1975, p.306

73

conseguiu escapar com vida devido à ajuda de “escravos fiéis”, que repeliram o ataque dos rebeldes”.143

Figura 11 - Notícia sobre escravos em fuga Fonte: Jornal Imprensa Ytuana, 14/12/1887

Não sabemos se os escravos comprados pelo Conde de Serra Negra estavam envolvidos na rebelião da fazenda de seu pai, mas seguramente os herdeiros do Amaral Gurgel tiveram muita “sorte” ao encontrarem um comprador para seus escravos. Em 28 de outubro de 1887 em meio a toda essa agitação abolicionista, foi anunciada uma outra venda judicial, dessa vez referente a uma execução que fazia João Baptista Correa de Sampaio aos herdeiros do finado José Ferreira Alves Gila. Os 14 escravos com idade média de 29 anos foram ofertados por um preço médio de apenas 350 mil réis – quase metade do valor pelos quais os escravos dos órfãos Amaral Gurgel foram ofertados e cerca de 80% do valor pelo qual eles foram pagos menos de dois meses depois. Não sabemos se o fato de ser uma execução puxou muito o preço dos escravos para baixo, mas sem dúvida, muita gente já não levava mais a sério a

143

Correio Paulistano, 22, 27 e 28 de novembro e 13 de dezembro de 1887 apud CONRAD, 1975, págs. 306-307

74

escravidão: a transação nunca foi efetuada o esses 14 escravos nunca mais foram mais vendidos144.

5. Conclusão As características por nós encontradas no comércio de escravos em Itu corroboram, na maior parte dos casos, os achados de autores sobre o assunto. Verificamos na seção 4.2 o peso do tráfico transatlântico antes de 1850, numa época em que Itu era uma importante produtora de açúcar, na transação da família Nardi que continha grande quantidade de escravos velhos. Também verificamos em outras transações ocorridas no ano de 1880 a presença de escravos comercializados no tráfico interprovincial, vindos do norte, nordeste e sul do país entre o fim do tráfico transatlântico e o fim do tráfico interprovincial. Além disso, encontramos preços altos e proporções etárias, de gênero e se aptidão parecidas com o que esperávamos. A partir de 1881, o cenário “previsível” de 1880 se esfacela. Houve anos que apenas mulheres foram comercializadas, a proporção de escravos no serviço da roça diminui e as transações em média envolviam menos escravos. Houve distorções nos preços e quantidades dos escravos transacionados, tornando nossa amostra muito pequena para dela podermos tirar conclusões generalizáveis145. O que sim ficou claro é: os fazendeiros paulista sabiam que a escravidão estava chegando ao fim. Os desequilíbrios no mercado de escravos aparentemente foram remediados pela mão de obra imigrante. Como discutimos no começo da seção 4.3, localidades com mais imigrantes logo após o fim da escravidão também foram aquelas que tiveram o maior saldo de escravos transacionados na década anterior. Assim, Itu se preparou para abraçar o café com força entre o final do século XIX e o começo do século XX.

144

Jornal Imprensa de Ytu, 22/10/1887 Apesar de ser possível supor que ela não ocorreu devido ao cenário da época, é possível também que ela tenha sido registrada em outro cartório. 145

A digitalização e tabelamento dessas escrituras seria fundamental para criar um panorama do comércio de escravos na província. Existem estudos isolados, mas ainda não um esforço conjunto para preservar essas fontes primárias. Ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1633017-cartorios-de-saopaulo-guardam-registros-da-escravidao.shtml

75

6. Fontes e referências bibliográficas 6.1 Fontes primárias manuscritas

Livros especiais para transações envolvendo escravos (termos de abertura) Fundo Cartório de Notas de Itu, livro 32 - “Servirá este livro para n’elle se lançar as escripturas de escravos, do 1º Tabellião desta cidade, e são suas folhas rubricadas com a minha rubrica – Assis Pacheco Junior – de que uso. Itu, 14 de fevereiro de 1880. Francisco de Assis Pacheco” Fundo Cartório de Notas de Itu, livro 34 – “Servirá este livro para o lançamento das escrituras de compra e venda de escarvos. São suas párginas rubricadas com a minha rubrica que diz (....) leva no fim do termo de encerramento. Itu, 2 de junho de 1876. ( Assinatura e título Ilegíveis)“

6.2 Fontes primárias impressas ou disponíveis na internet

BASSANEZI, M. S. C. B. (org.), 1998. São Paulo do passado: dados demográficos. Disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos.html Coleção das leis do império do Brasil, 1808-1889. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio Jornal "A cidade de Ytu". Disponível em: http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269 Jornal "Imprensa Ytuana". Disponível em: http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269 LUNÉ, A. J. B. (org.)Almanak da província de São Paulo para 1873. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00038100#page/1/mode/1up Voyages database. Banco de dados com informações sobre mais de 35 mil viagens de navios negreiros. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces

76

6.3 Fontes secundárias (autores citados)

BUESCU, M. 300 anos de inflação no Brasil. Rio de Janeiro. APEC: 1973. CERDAN, M. A. O tempo que os escravos tinham para si: um estado sobre autonomia escrava em Itu de 1850 a 1888. Tese(doutorado em história) Franca: UNESP, 2013. CERDAN, M. A. Praticando a liberdade: um estudo sobre resistências escravas em Itu (1850-1873). Tese (mestrado em história). Uberlândia: UFU, 2004. CONRAD, R. E. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 1975. CONRAD, R. E. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. GERBOVIC, T. O olhar estrangeiro em São Paulo até meados dos oitocentos: relatos de viajantes ingleses e norte-americanos. Tese (mestrado em história). São Paulo: USP, 2009. GERSON, B. A escravidão no império.Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1975. GRAHAM, R. "Another Middle Passage? The Internal Slave Trade in Brazil". In: JOHNSON, W. (ed.). The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the Americas. New Haven & London: Yale University Press, 2004, p. 291-324. KLEIN. H. S. "American Slavery in Recent Brazilian Scholarship, with Emphasis on Quantitative Socio-economics Studies". In: Slavery and Abolition. Routledge, vol. 30, p.111-133, 2009. LOPES, L. S. "Os proprietários de escravos e a estrutura da posse na antiga freguesia de São Simão, 1835". Estudos Econômicos,vol. 42, n.2, pag. 363400. São Paulo, abr-jun. 2012. LUNA, F. V. & KLEIN, H. S. Slavery and the economy of São Paulo, 17501850. Stanford: Stanford University Press, 2003. LUNA, F. V. & KLEIN, H. S. Slavery in Brazil. Cambridge University Press, 2010.

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