Comi uma maçã na presença de um robô (O Robô e a maçã, Rio de Janeiro: 7Letras, 2010)

June 7, 2017 | Autor: Zaven Paré | Categoria: Behavioral Sciences, Humanoid Robotics
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COMI UMA MAÇÃ NA PRESENÇA DE UM ROBÔ

A maçã de Newton Foi Hiroshi Ishigur01 quem me explicou que o que eu fazia, sem saber, era robótica. Minhas máquinas eram, até então, objetos de espetáculo que mais deliberadamente interrogavam a ideia de representação do que a busca de imitação, como é frequentemente o caso na robótica. Ele marcou um encontro comigo e seus robôs, no seu Uncanny Valley (Vale da Estranheza), entre os laboratórios de robótica da universidade de Osaka e do centro de pesquisa d’ATR2 em Kioto. De criador, na qualidade de artista plástico, passei a inventor de marionetes e, inesperadamente, me tornei um pesquisador em laboratórios de robótica. Desde a minha chegada ao Japão, meu livro de cabeceira foi The Buddha in the Robot, para que eu me ambientasse às novas realidades que viveria. Trata-se de uma espécie de visão geral da concepção da relação entre o budismo e a robótica que o engenheiro Masahiro Mori escreveu em 1974, baseandose em sua experiência autobiográfica3. Mori é o fundador do Mukta Research institute4, instituição criada com a intenção de promover suas reflexões. A ideia de harmonia universal, sobre a qual se baseia o budismo, foi crucial para ligar a engenharia robótica às biotecnologias, por volta dos anos 60. Mori também é conhecido como o autor da teoria do Uncanny Valley: o efeito do “vale da estranheza” é o grau de familiaridade e empatia emocional ou de repulsa e rejeição que nos causam os robôs humanóides. Em Tókio, na companhia dos antropólogos Chihiro Minato e Emmanuel Grimaud, encontrei esse famoso roboticista de 82 anos, aposentado em sua casa. Ele nos falou longamente sobre sua vida de pesquisador, suas ideias, suas invenções e mais particularmente sobre a sua teoria. 17

Originalmente, sua teoria do Uncanny Valley, de 1970, expressa na forma de um gráfico, repertoriava separadamente dois graus de estranheza: um primeiro que comporta figuras antropomórficas imóveis (do animal de pelúcia à prótese da mão); e um segundo que comporta figuras antropomórficas em movimento (do robô industrial ao indivíduo saudável). Colocar isso em perspectiva – assim como esse acréscimo determinante que ele fez à sua teoria, em 2005, considerando “a expressão artística do ideal humano” e “os cyborgs com uma natureza religiosa” – é determinante para a abordagem de novos robôs humanóides5. A dupla busca – a da perfeição do imóvel, sugerida pelos itens do gráfico 1, e a da precisão do movimento dos elementos do gráfico 2 – me levou ao interesse particular pelos Budas de tipo Miroku6, do qual fala Mori, a propósito do estatuário budista do período Asuka7. Estive nos templos de Koryuji em Kioto e de Horyuji em Nara, assim como no pavilhão Horyuji do Museu Nacional de Tokyo. Assim, meu estudo foi sobre a fabricação de robôs chamados Karakuri com Mestre Shobei Tamaya8, em Nagoya, e sobre a manipulação de marionetes Bunraku com mestre Kiritake Kanjuro III9, em Osaka. A última parte de minha pesquisa deveria centrar-se na transposição moderna dessas artes por meio da robótica para observar onde poderão surgir novas questões sobre representação no exercício da imitação e da manipulação em tele-robótica. Tratava-se de considerar, finalmente, uma experiência com um robô, mais particularmente com um androide ou uma andreide10, aproveitar um momento de reflexão entre a perfeição da imobilidade e a precisão do movimento de uma dessas máquinas. Para aproveitar esse momento, experimentei descentralizar o meu olhar e o olhar do espectador da atenção do robô, para que ele fixasse, por sua vez, um novo “objeto de laboratório”. Após muitos testes mais ou menos ineficazes, escolhi comer uma maçã diante dele, sem dúvida porque a maçã é emblemática na questão da gravidade e cara aos marionetistas desde Kleist. Ao contrário de Newton, minha intenção não era adotar uma posição passiva em relação à maçã, mas colocá-la em situação, 18

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comendo-a. A intenção era saber se esse simples ato de colocá-la no centro da atenção poderia então transformá-la em uma fruta do conhecimento. As experiências enunciadas a seguir em forma de extratos de um caderno de notas são parte dos resultados do conjunto das minhas investigações no Japão11. Sexta, 25 de setembro 2009: descrição d’Hiroshi Ishiguro e primeiro dia de casting de robôs japoneses Chego ao campus Toyonaka da Universidade de Osaka depois de uma caminhada da estação de Ishibashi. O escritório onde tenho encontro fica no quarto andar do prédio do Departamento de Ciências de Engenharia. As quatro secretárias do Professor Ishiguro me cumprimentam. Espero na sala vizinha ao seu escritório. Trazem-me uma taça de chá verde; são 10 horas. No escritório há livros, uma planta verde, quatro monitores de computador, e alguns objetos fetiches. O Professor Ishiguro entra e me propõe imediatamente uma visita a um de seus laboratórios. Atravessamos o corredor e nos descalçamos. Ele me explica que se trata de um dos quatro laboratórios que ele supervisiona em dois campus da universidade. A partir desse momento, todas as minhas visitas e meus encontros se desenrolam em ritmo acelerado durante uma semana. Cara a cara rápido com Repliee-Q2: ela nos olha, parece mexer. Essa andreide é um clone d’Ayako Fujii, uma apresentadora popular do canal de televisão NHK. Ela está sentada na borda de um banco, diante da entrada, com uma atitude muito comportada, um pouco virada de lado, em direção a uma estudante sentada mais confortavelmente em uma cadeira, de frente para um monitor do seu posto de trabalho. Da base do banco, na altura dos pés, sai uma profusão de cabos, meio escondidos. Ele conecta as máquinas entre elas, ligando a apresentadora ao computador que a controla e a um compressor que a alimenta. Tudo é extremamente bem arrumado. Entre duas estantes, em espera, R1, o clone da filha do professor, fica de pé, um pouco solitária com seu vestido Laura Ashley. O professor se ausenta, me deixa com a estudante, com 20

quem converso sobre os loops que movimentam as máquinas; em seguida, ele volta e passamos ao laboratório, na sala ao lado, onde se encontram dois exemplares do robô comercial Wakamaru, desenvolvido pela Mitsubishi Heavy Industries. As duas carcaças amarelas, muito plácidas, estão paradas em seus postos de recarga que mais parecem um porta-casaco. São os dois robôs atores da peça de Oriza Hirata12 que estão em revisão para suas próximas apresentações na próxima primavera. Segundo chá verde, mal começamos a tocar em assuntos e fomos embora. Somente no carro do professor Ishiguro eu disponho de uma quantidade de elementos suficiente para poder descrevê-lo. Trata-se da primeira vez que eu o vejo manusear e manipular outra máquina que não são os teclados do computador, do telefone ou do Pager. Sem querer comparar o modelo a seu clone, o Geminoid, prefiro tentar descrever apenas o Senhor Ishiguro, por enquanto. Mesmo se o projeto de elaboração de um clone aparece por excelência como um enunciado ou a imagem concreta de uma descrição, é difícil ficar indiferente ao modelo. Estamos fora do laboratório, que é normalmente o “meio natural” do Professor e de seu Geminoid. O professor Ishiguro se veste de preto fosco; raramente usa tons além do cinza em suas escolhas vestimentários. Seus cabelos e seu olhar negros têm o mesmo aspecto brilhante que os objetos à sua volta: óculos escuros pretos com armação fosca; telefone e Pager pretos brilhantes em estojos acetinados pretos; sapatos pretos; Caixinha de bento laqueada em preto, dentro de uma sacola acetinada preta; carro Mazda laqueado preto com o interior de couro preto. A não ser quando é filmado, raramente ele tem um olhar desalinhado com seu rosto, o que é frequente entre os japoneses. Sua sobrancelha direita é mais levantada que a esquerda. Vamos de Osaka à Kioto para chegarmos ao laboratório da ATR; aceleração do Mazda; voz pausada do GPS; desaceleração do motor; tensão sem perder a atenção. No volante do seu carro, ele ultrapassa quase tudo o que aparece à sua frente: saída da auto-estrada, pedágio automático, seguido de um sinal vermelho. Ele dispara discretamente a abertura de sua janela, aperta o botão de seu aparelho de CD. Começam os primeiros acordes de Ave Maria, de Gabriel Fauré. Pausa. Ele acende um cigarro, engole 21

a fumaça, que envia parcialmente para o exterior do carro. Uma vez acabado o cigarro, ele o apaga; o sinal verde abre e o carro dá partida de novo. Após essa pausa, seguimos por mais um trecho de estrada. O timing parecia perfeitamente regulado: tínhamos 55 minutos para o trajeto. Na periferia de Nara, chegamos finalmente diante de um grande prédio relativamente recente, isolado no meio do nada. O painel ainda indica NITC13, que é a antiga instituição da qual dependia esse centro de pesquisa. O lugar é bastante austero. Com um crachá no casaco, passo a tarde com jovens pesquisadores de diferentes nacionalidades. Bem-vindo à casa das máquinas, dos robôs, dos androides e de clones de todos os gêneros: entre corredores e salas de laboratórios encontramos a inteira genealogia dos Robovie, os ancestrais do Wakamaru, e ainda outros exemplares de Wakamarus, generosamente cedidos por Mitsubishi aos laboratórios que colaboraram com o seu projeto de desenvolvimento. Os humanoides são mais ou menos idênticos proporcionalmente e construídos segundo o mesmo esquema. Têm em torno de um metro de altura. Um tronco, dois braços, e uma cabeça com dois olhos. Cada um deles tem suas próprias características e coabitam às vezes em pequenas séries, como Robovie I e II, ou em forma de protótipos como, Robovie 0 e III. São separados também por diferentes aspectos, como o Robovie-R ou R-ver 2 ou, por exemplo, revestidos de uma camada de silicone, no caso de Robovie II-S, II-F ou IV. Em cima das mesas esta disposto os mini-R2, uma gama de outros modelos de robôs menores, com finalidades mais comerciais e projetados em colaboração com o roboticista Tomotaka Takahashi. A sala do Geminoid está fechada. Ele não voltou de viagem. Na grande sala vizinha, uma marcação no chão é o testemunho dos ritos de utilização dos robôs durante os testes aos quais são submetidos. Alguns ruídos de loops de movimentos se fazem ouvir aqui e ali, robôs encontram-se espalhados e alguns roboticistas se aplicam discretamente a fazer experiências que parecem pouco demonstrativas. A impressão é a de um grande ballet minimalista, silencioso, misterioso. Mas o que me chama mais a atenção é que tudo que tem olhos: as máquinas parecem examinar o vazio com seus olhos, e os roboticistas se concentram 22

nos monitores de seus computadores, repletos de linhas de programas. Todos, homens e máquinas, parecem fechados em suas próprias esferas. Os pesquisadores estão parados e parecem congelados, olhando para os objetos imóveis para sondar cada uma de suas possibilidades de movimentos e de interações. Segunda, 28 de setembro de 2009: segundo dia de casting de robôs Retorno a Osaka, visita ao campus Suita nos laboratórios Yuragi14 e Erato15: o primeiro encontra-se no sétimo andar do edifício dedicado às nanotecnologias. A primeira máquina é uma fabricação perfeita: trata-se da reprodução do conjunto dos músculos de um braço direito (com exceção dos músculos do ombro) instalada num segmento de esqueleto da caixa torácica em alumínio, montado sobre um eixo que se assemelha a uma espinha dorsal. Desse suporte saem os 26 tubos que comandam o sistema pneumático de controle desse braço articulado perfeitamente reconstituído. Vista do exterior, a tentativa de construção parece tão complicada quanto gratuita. Trata-se de uma reprodução anatômica e não morfológica, tanto que os apoios que substituem os músculos têm um coeficiente de 10% de retração. O movimento se limita a uma leve dobra do antebraço em posição parada. De fato, trata-se, sem dúvida, da primeira máquina que observo verdadeiramente como uma plataforma de pesquisa. Esse braço é um pretexto suficientemente concreto e complexo para se interrogar sobre novas modalidades de programação e fazer surgir idéias a partir de uma certa forma de encantamento. O encontro com a máquina seguinte, no segundo laboratório que visitei no campus reforça essa primeira impressão. 23

Laboratório Erato: bem-vindo ao país das máquinas únicas, não únicas como se fossem máquinas celibatárias, mas únicas como filhos únicos. CB2 é um robô de silicone cinza de 1 metro de altura. Seu desenvolvimento cognitivo é como o de um bebê de 8 meses, de proporção física maior. Trata-se, sem dúvida, da mais emocionante e mais bonita máquina que já vi. Ele é uma plataforma de pesquisa para abordar vastos campos de estudos, tais como o contato visual, o toque e o prolongamento do corpo pela interação com objetos, a aquisição da posição vertical, a representação do espaço etc. Seu rosto de bebê com um olhar melancólico provoca uma certa pena. Ele será a lembrança mais inesquecível de minha viagem. Notas impacientes encontros

sobre

os

primeiros

dias

de

Os robôs encontrados nesses laboratórios de robótica são, em sua maioria, vetores de linguagem, de práticas, de materiais, de técnicas e de tecnologias. Eles questionam não somente as condições materiais de sua produção, mas também suas funções enquanto mediadores. Cada tipo de robô constitui, de fato, uma plataforma de pesquisa. No sentido mais amplo do termo, uma plataforma é um lugar alto e plano sobre o qual podemos posicionar, orientar e colocar uma ou diversas coisas. Pode se tratar de uma cena, de um pedestal, de uma base mais ou menos alta. No sentido figurado pode se tratar de um lugar ou de um objeto privilegiado, de um utensílio que serve de suporte a um material que concentra e que instrumentaliza certas funções, ou até certos serviços, que podem operar enquanto dispositivos. A plataforma pode ser também um suporte que reagrupa um conjunto de ideias sobre as quais se pode apoiar um programa e suas aplicações. Em informática, a plataforma é uma base de trabalho dentro de um contexto particular a partir do qual desenvolvemos os programas. Em robótica, um pouco como na indústria automobilística, uma plataforma é a estrutura de base do robô. Um robô pode ser considerado como um veículo. Essa estrutura de base pode ser utilizada para experimentar a construção e o uso de robôs de modelos variados, ou até mesmo 24

áreas de pesquisa totalmente diferentes, da mecânica à cognição ou à telecomunicação, por exemplo. A plataforma, criada assim, traz para os roboticistas uma economia de concepção e de construção e é assim que várias áreas de estudos podem se reagrupar em torno de um mesmo suporte de interfaces. Por exemplo, no Advanced Telecommunication Research Institute International (que é financiada por diferentes setores da indústria) diferentes empresas de informática, de telecomunicações, de indústrias automobilísticas ou da robótica dividem os resultados das pesquisas. Os robôs são artefatos que hoje nos parecem essenciais para questionar o humano em diferentes disciplinas: não somente no cruzamento de diferentes formas de expressão artísticas da escultura ao autômato, e da coreografia à dramaturgia, por exemplo -, mas também nas relações que estabelecem esses diferentes modos de representação com a ciência e a tecnologia. A maneira de dispor as partes de um aparelho ou elementos de trabalho para fins de exploração de mecanismos consiste numa exploração que alimentou os trabalhos de muitos artistas, tais como o escritor Raymond Roussel, ou Marcel Duchamp, até os trabalhos de outros artistas, tais como compositores, coreógrafos ou cineastas. Aliás, os dispositivos cada vez mais complexos estão também nas práticas e nos modos de uso de tecnologias do cotidiano. Da busca de certa forma de transcendência através de tais objetos - e do que podemos chamar uma forma de encantamento - emergem novos dispositivos mais complexos que a soma de suas partes. A partir de um determinado grau crítico de complexidade, novas propriedades aparecem nesses aparelhos, ou formas de organização e novas interações. Uma plataforma de pesquisa pode ser também um pretexto para visualizar e reproduzir sistemas ou inventar novos sistemas ainda mais complexos. Esses objetos, por vezes muito sofisticados tecnicamente, nos permitem pensar através de um outro ponto de vista. Eles podem nos ajudar também a nos perder e colocar em dúvida nossas próprias ferramentas, ou simplesmente estimular nossa imaginação. Criando verdadeiros novos objetos, a robótica contribui para o aparecimento de novos questionamentos que evocam não somente o humano, mas ainda 25

outros novos objetos. Alguns desses novos objetos podem vir a ser, por sua vez, marcadores que representam momentos de avanço. Por vezes, testemunham apenas momentos de passagem, e por outras, atraem nossa atenção para outras questões ainda mais importantes que estão em jogo, direcionadas a outras necessidades menos evidentes ou simplesmente a outras disciplinas de pesquisa. Uma plataforma de pesquisa não serve para limitar um fenômeno, mas sim para expandi-lo. Os robôs são, em geral, objetos em processo de transformação. A partir dessa articulação da plataforma, que designa um lugar e uma ligação do fenômeno de emergência com a função do dispositivo, busquei realizar uma experiência com uma dessas máquinas segundo uma abordagem artística. Como e até que ponto alguns desses robôs podem revelar certos dispositivos? É outono em Kioto, o tempo está ótimo e a paisagem é deslumbrante. Nada mais banal do que tentar descrever as folhas que caem das árvores, só que aqui no Japão as folhas que caem não são varridas, mas ajeitadas, e as árvores não são podadas, mas ajustadas. Descrever o Japão parece um exercício em que se substitui um verbo por outro, pois a grande diferença não está simplesmente nas coisas, mas está, sobretudo, na maneira como as coisas se fazem e se desfazem. Por exemplo, escrevendo, a ponta do meu lápis se desfaz no papel do meu caderno de notas. Minha tentativa de descrever os modos de existência das máquinas nos laboratórios procede em parte do mesmo exercício. Ao menos, no plano da descrição técnica dos locais e dos instrumentos, encontra-se, nem mais nem menos, simples banalidade de um centro de pesquisa com as janelas voltadas para o exterior, mesas cinza, monitores de computadores, pesquisadores ocupados, algumas ferramentas espalhadas e máquinas isoladas aqui e ali. À primeira vista, máquinas como essas não têm grande interesse, pois muitas vezes estamos longe da pesquisa de um ideal de representação do humano. Estamos longe também de uma emoção tal, que pudesse suscitar a imagem parada de uma pintura ou de uma escultura. Mas o que acaba nos emocionando no contato com esses robôs é que essas figuras são representações de um homem máquina em vir a ser, 26

representações de máquinas que se fazem e se desfazem diante de nossos olhos. Mesmo o projeto antropomórfico mais bem acabado continua sendo um objeto em fabricação, sem esquecer que este que observo continua sendo, antes de tudo, o chassi ou a plataforma de um objeto destinado a se mover. Descrever um objeto que se move é também um exercício complicado em que não podemos simplesmente explicar as coisas tentando nomeálas. Portanto, temos de ser vigilantes na escolha e na utilização das palavras para descrevê-la. Por exemplo, não podemos cair na armadilha de descrever os robôs como se estivessem “nos observando”, ao invés de “nos percebendo”; “nos amando” em vez de “nos olhando”; ou “nos adorando” ao invés de “nos fixando com o olhar”. A partir dos meus três primeiros meses passados em laboratório, observei robôs que estavam em sua maioria em uma situação de espera, às vezes deixados no canto de uma sala, ou parados por acaso num corredor. Estavam espalhados para todo lado, como veículos mal estacionados. Os robôs não são ferramentas que arrumamos facilmente em prateleiras, ou armários, e são frequentemente instrumentos de trabalho no cotidiano. Se por um acaso, achamos um escondido da vista do visitante, é porque ele está em sua embalagem pronto para ser enviado a um outro laboratório ou para uma demonstração. Mas, em geral, essencialmente por razões técnicas, eles saem raramente do lugar onde foram fabricados. Nunca completamente em exposição, nunca completamente em ação, costumam permanecer sozinhos ou separados, em grupos ou em casais espalhados no espaço do laboratório. Protótipos ou famílias de protótipos ou autômatos de série, os robôs são plataformas de pesquisa ou postos de trabalho móveis a espera que um técnico de informática ou de um roboticista que queira dedicar uma linha de programa. Podemos quase afirmar que sua verdadeira vocação é esperar. Investido no jogo, tal como os robôs, eu esperava também sentado ou em pé, sozinho ou ao lado de uma máquina, ou de um pesquisador frente a um robô ou um monitor de computador, na expectativa de uma observação ao vivo. Por mimetismo, me identifiquei, sem dúvida, a essas maquinas que esperavam, tentando aumentar a minha paciência ou frear a 27

minha impaciência. A partir dessa dupla observação, comecei a experimentar descrever tanto os meus gestos quanto analisar os gestos dos robôs, que poderiam testemunhar finalmente um comportamento de impaciência: “os quase nada” e os “nãosei-quê”. Queria experimentar falar do movimento a partir das ausências de gestos, um pouco como se deve falar do silêncio para descrever a música. Em meus ouvidos ressoa a “Impaciência” de Rameau, bato os meus cinco dedos da mão direita sobre meu joelho direito, movimento cada um dos dedos sobre meus joelhos, passo minha mão direita sobre o meu cabelo, esfrego a mesma mão sobre a minha bochecha esquerda com a barba mal feita, penso na rapidez do carro do professor Ishiguro, no cozimento no forno microondas e no zapping. Esperar é também pensar. Minha mão direita toca a minha outra mão, minhas mãos se cruzam, hesito em girar meus polegares, minhas mãos se apertam, se esticam, me estico todo, bocejo, olho para o teto, olho para o chão, olho para longe, tenho os olhos no vazio. Esperar é também não pensar. Olharia meu relógio se tivesse um. Coço minha orelha esquerda com minha mão direita, coço meu pescoço com a mesma mão, coço o meu braço direito com a outra mão, estou me coçando inteiro, amasso uma mosquinha em minha mão, pego o tecido da minha camisa entre o meu polegar e o meu indicador de minha mão direita, mexo no segundo botão da minha camisa com os dedos, esfrego o tecido da minha calça com as minhas duas mãos, bato com o pé direito, depois com o esquerdo, faço barulho com o meu sapato, estalo os dedos, canto, assovio, sopro, aperto meus lábios, finjo bocejar, acaricio o braço de minha cadeira, o aperto, encaixo a minha perna em torno do pé da minha cadeira, me apoio sobre o encosto, me retifico, me levanto da minha cadeira, sento de novo, espero (ad libitum). A impaciência é essa incapacidade de esperar ou de suportar uma situação, alguém ou alguma coisa. Há um tipo de impaciência que impede a imobilidade na espera, mas há também a doença muscular que impede a imobilidade no repouso. Frequentemente os loops de programas de movimentos se assemelham a esse estado patológico, como se houvesse um problema de neurotransmissores nas máquinas. Sem tentar descrever uma patologia ou fazer um paralelo com o efeito da dopamina sobre 28

frações de movimento, eu estava em vigília, a espera do momento em que o objeto se animaria, o instante em que a estátua viraria um autômato, o segundo em que a marionete se transformaria em robô. Do estatuário ao Karakuri, e do Bunraku ao robô, o efeito de presença e os diferentes modos de existência que nos são proposto aparecem nesse ponto do surgimento da transmissão do movimento, esteja eleparado como na escultura de Buda, ou em transformação como no braço ou no olhar de um robô. Depois de ter estudado a insatisfação das máquinas nos livros através da construção do personagem do leitor na literatura, minha intenção era passar do estudo de programas de leituras induzidos nas máquinas à observação de seus próprios mecanismos de aperfeiçoamento em laboratório. Na situação de observador de máquinas e seus mecanismos, passei desse hipotético sentimento de insatisfação das máquinas a observador de gestos que seriam suscetíveis de manifestar a impaciência que poderia resultar. Falar de impaciência em relação a um sentimento de um robô é, sem dúvida, uma hipótese irreal, já que eles não podem ter nem esperança nem ego, mas trata-se aqui de designar um momento metamórfico das máquinas, uma armadilha a ser evitada pelo observador. Os testes dos quais participam os robôs de laboratório da ATR estão relacionados ao controle e à interação, à locomoção, à motricidade, aos movimentos e aos gestos, ao contato ocular, ao reconhecimento facial ou vocal e ao mapping. A maioria dessas experiências busca encontrar bases de dados mensuráveis, com transcrição e tratamento sob forma de estatística, e transcrição em gráficos e quadros. Como um observador, eu assistia a esses testes sequenciais de instalação, de iniciação ou de jogos, como se fossem uma espécie de testes de Turing16 por robôs interpostos. Essas experiências variavam entre diversas operações de alguns minutos repetidos ou, por vezes, em seqüências de 20 a 40 minutos, com cobaias, na presença ou não de um público. Em certa desordem, vários pesquisadores abordavam problemáticas de comunicação, comportamentos sociais, reação psicológica ou cognitiva. Mas, no resto do tempo, os robôs ficavam sozinhos, desarmados, os olhos perdidos no vazio, imóveis, sem movimentar os braços, os olhos, mudos e silenciosos. Quase não percebíamos o barulho de seus motores elétricos escapar de 29

suas leves carapaças de metal e de plástico ou sob a sua pele de silicone, grossa e pesada como uma camada de gordura. Do laboratório e das máquinas se percebia, ou se sentia uma vida morna, por isso certamente um aparente tédio dos robôs. Contudo tratava-se de um vazio quase habitado, não habitado por pesquisadores, porque estes, mesmo que ocupados com seus monitores de computador, são quase tão frios quanto as suas máquinas, por mais que habitada por efeitos de presença. Curiosamente, esses efeitos são provocados e reforçados pela coabitação de robôs com os outros objetos dos quais dependem. Os instrumentos, os cabos, interruptores, lâmpadas, acomodações, teclados, monitores de computadores dão a impressão de participar, todos eles, de uma espécie de vertigem material. O que sentimos no laboratório é um pouco o que podemos sentir em relação a um módulo espacial vazio, em que repentinamente um copo plástico deixado sobre uma mesa, ou mesmo um braço articulado robotizado, nos faria pensar nos humanos que teriam deixado a nave. Há uma parte de fantasmas nos objetos. Em um laboratório de robótica onde as máquinas são abundantes, os fantasma parecem se multiplicar ainda mais. Por vezes, parece que os robôs são habitados por fantasmas: os movimentos os ocupam silenciosamente. À procura de todo tipo de gestos de fantasmas, passando mais tempo que previsto em presença de robôs, comecei a ver aparecer outros comportamentos, e isso não somente nas máquinas. Passei a me sentir também observado pelos fantasmas, caindo na minha própria armadilha e no jogo de sedução das máquinas. Quarta feira, 16 de dezembro de 2009: a experiência. Durante a experiência que se seguiu, apareceram alguns gestos de impaciência observados no meu primeiro estudo, mas o estudo completo e pré-catalogado será assunto de um trabalho separado, um “guia de pequenos gestos para o uso de androides”. A ação cura a impaciência. Finalmente, foram as circunstâncias que acabaram guiando a iniciativa de minha experiência com o Geminoid, que tinha acabado de chegar, fresquinho, vindo de sua exposição na ARS Electronica em Linz, na Áustria, sua primeira viagem. Recém 30

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consertado, recolocado em bom estado, ele estava, por assim dizer, recuperado de suas emoções, porque havia sido exposto às reações do público numa cafeteria, um projeto que tínhamos evocado com o professor Ishiguro quando nos encontramos pela primeira vez, na Inglaterra. Durante mais de um mês, o androide esteve em contato com o público, submetido a breves e episódicos encontros, suscitando espanto, conforto e desconforto, risos e sentimentos de repulsão. Um androide se diferencia de outros tipos de máquina porque ele representa uma maneira de ser antes de fazer. Diga a lenda que o professor, pessoalmente, ocupou o lugar do robô no último dia, correndo o risco de se expor aos mesmos perigos que o Geminoid. Mito de laboratório, agora objeto de exposição, o Geminoid em vida entrou no Panteõa dos robôs e das criaturas artificiais, como Electra17, de Fritz Lang, ou como Robby18, de Robert Kinoshita. Além da estupefação que ele provoca e a diversão, parecida com uma atração de feira, tem a fascinação que suscita também seu modelo, não somente através do que poderia transparecer a descrição do Professor Ishiguro, mas, sobretudo, através do discurso que defende sobre o fato de ter criado um androide à sua imagem. Inicialmente eu não conhecia o Professor antes de ter criado esse robô, o que altera em parte minha percepção de sua personalidade. Em segundo lugar, cada uma de suas argumentações muda conforme as circunstâncias nas quais são apresentadas, o que distorce em parte toda apreciação objetiva do personagem e de sua proposta. A última explicação, mais recorrente e mais verossímil, parece somente de ordem prática: depois da criação de Repliee-Q2, visto a dificuldade de acesso a seu modelo para fazer experiências sobre a interação entre o humano e o humanóide, era mais fácil usar um androide e um modelo que trabalhassem no mesmo lugar. O nome Geminoid se justifica especialmente pelo fato deste robõ ser mais suscetível a coabitar o mesmo espaço que seu modelo humano e a reforçar assim esse efeito que normalmente os gêmeos nos provocam. Os androides têm isso em particular, como ainda não são muitos, sua celebridade não é associada à sua execução técnica, que quase não é difundida pela mídia. Seu efeito de presença como celebridade transforma seu caráter meticulosamente fabricado 32

em algo menos importante ou até facultativo do modo como é apresentado enquanto personagem. No laboratório também, com escassas exceções, os androides são raramente apresentados sem a sua pele, apenas como estrutura mecânica. Em volta deles cria-se uma aura de pudor. Então, se esquece facilmente o dispositivo, como se ignora também em parte que são, antes de tudo, objetos da ciência e não simplesmente objetos técnicos. Edulcora-se ou esconde-se, muitas vezes de forma inconsciente, a sua verdadeira vocação. Sem dúvida, é devido à fascinação pelo instante e à fascinação por esses instantâneos de nós mesmos que podem nos revelar esses novos tipos de robôs. Mesmo se o presente se tornou algo mais importante do que o passado ou o futuro, o instante é hoje mais importante do que o presente: daí a vitória dessa espécie de hegemonia do efeito. Disso advem todo um poder da ilusão em geral e do efeito especial em particular. Os androides fazem parte dessa última categoria. Cada vez mais atribuímos uma espécie de imanência a qualquer objeto tecnológico. Aprender e tentar compreender, por vezes, nos é insuportável; esperar é tão insuportável quanto pensar ou quanto a ideia de fazer. Sem dúvida, o reflexo de esconder o aspecto técnico dos objetos tecnológicos é devida,, em grande parte, ao fato de que não compreendemos nada diante de um simples circuito eletrônico, ou ao fato de que, justamente, não somos obrigados a procurar entendê-lo. Mesmo se o Geminoid conquistou uma notoriedade imediata pela sua surpreendente realização, mesmo se sabendo nós sabemos, portanto, que os objetos tecnológicos são por excelência produtos com uma data de prescrição, não se pode tão imediatamente ter uma ideia simples sobre eles. Em geral, o Geminoid é apresentado ou utilizado de maneira frontal na hora das experimentações. Esta é raramente uma posição banal em situação de socialiabilidade, na presença de um desconhecido. É raro sentar-se de frente ou do outro lado de uma mesa face a um estranho. Tomei cuidado em questionar essa maneira de proceder, desde o início de minhas experiências, e fui testando diferentes posições na sala: primeiro sentei longe, depois ao lado do Geminoid, em seguida fui me colocando cada vez mais perto do Geminoid, ou mesmo atrás dele. A análise das relações entre humanos e humanoides em 33

laboratórios da ATR é geralmente desejada do ponto de vista do comportamento social, especialmente para estudar as relações entre humanos via humanoides. Assim, esse tipo de socialidade é assimilada, geralmente, a diferentes tipos de comportamentos sociais. Todavia, tudose passa quase sempre ao longe, logo que se entra na sala, ao abrir a porta. Trata-se de uma empatia natural com a silhueta do manequim em posição sentada, com a presença e uma certa familiaridade reforçadas pelo contexto da sala e de sua mobília. Multiplicando diferentes posições e me aproximando do robô, percebi que não havia não apenas um tipo de sociabilidade, mas duas outras. O primeiro tipo de relação se estabelece quando nos sentamos perto dele. Trata-se da posição crítica em que a máquina é frequentemente desmascarada, e também o momento em que ela pode ganhar vida. Passamos então de uma relação social a uma relação cultural, já que essa última é baseada na construção e na desconstrução permanente da credibilidade da relação estabelecida. A relação entre humano e humanoide se produz em referência a modos de representação, códigos e rituais, comoinstantes e impressões que criam esse momento que faz sentido. Num segundo momento, há a relação íntima, ou seja a que diz respeita à grande proximidade. Essa relação rara implica na crença e, especialmente, na sua confirmação, pelo toque, por exemplo. Na perspectiva desse tipo de relação, fiz a experiência de falar no ouvido do Geminoid, por interesse em a peculiar eficiência desse gesto. O reconforto e a confiança de achar um ouvido para nos escutar funciona muito bem com o Geminoid. Por pouco que imaginemos que ele tenha memória - pois somos conscientes de sermos coniventes com uma máquina -, isso lhe confere imediatamente a função de ser um depositário confiável de nossos testemunhos, de nossas lembranças, de nossas emoções, ou de nossos sentimentos. A simples ideia de que uma máquina possa estocar informações já é uma dupla garantia de que ela possa guardar nossos segredos. Essa experiência se desenvolvia de acordo com o o seguinte protocolo: chegar por trás, sem tocar no Geminoid. O efeito de presença é comparável ao de uma pessoa diante de nós em uma sala de cinema. Como podemos constatar, para sugerir a 34

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presença, às vezes não é necessário mais do que a silhueta do busto, o contorno da cabeça e dos ombros, os cabelos, alguns tiques e a percepção da respiração. Então, se curvar de leve e falar ao ouvido direito do Geminoid é uma maneira eficaz de dar sentido à sua presença. Esse tipo de interlocução, longe de ser neutra, define com precisão o lugar do depositário, o reforça em sua presença e pressupõe um potencial feedback. Dessa sensação nasce um sentimento de confiança que alimenta nossa crença: “fomos ouvidos”. Não há nem mesmo a necessidade de aprovação: um longo silêncio é suficiente e até diz muito sobre a partilha do segredo. O fato de trabalhar com uma máquina parcialmente telecomandada facilita em grande parte o procedimento das experiências. Assim, o Geminoid é mais rapidamente utilizável, evitando linhas de programação de interações pesadas e complicadas de serem programadas, que na verdade, fariam pouca diferença na espontaneidade da interação durante a experiência. Só as repetições de pequenos movimentos, tais como os pequenos reflexos do corpo – respiração, olhar e movimentos do rosto e dos braços – são pré-programados e constituem a base da linguagem corporal do Geminoid. Esses movimentos são suficientes para dar uma primeira simulação de presença. Imediatamente depois do primeiro contato com o Geminoid - que se manifesta na forma de diferentes tipos de espanto e surpresas -, uma vez o objeto reconhecido, parece que um modelo de protocolo de autopersuasão enquadra o fato de aceitar a incongruência da relação. O interlocutor ou a testemunha, na presença no Geminoid, constrói uma maneira de relação que é um incessante vai e vem entre a aceitação (o desejo de acreditar naquilo) e a rejeição do efeito de presença, dada a manifestação de certos sinais exteriores da maquinaria (a perda de sentido). De fato, os sinais que podem comprometer a aparência e o comportamento do Geminoid são, em sua maioria, falhas técnicas. No entanto, percebemos rápido que essas, as falhas técnicas, são essenciais para construir uma convenção de relação, porque são os elementos visíveis e os sinais comportamentais que caracterizam ou caricaturam a atitude e os movimentos do personagem. A percepção do espectador se constrói entre os elementos antropomórficos “personalizantes” do Geminoid, 36

e a virtuosidade e a imperfeição técnica que lhes confere “personalidade”. Por causa da complexidade tecnológica, no caso de uma relação prolongada ou repetida – como a que perseguimos durante várias semanas –, nem todos os sistemas de máquinas funcionam com a mesma eficácia ou com a mesma sincronia de uma seção de experiência à outra. Por exemplo, em certos dias o controle do rosto pode resultar em alguns problemas: os movimentos dos olhos podem ser falhos, o robô pode não piscar os olhos, ou então o delay programado da retransmissão digital da voz não assegura a sincronia com os movimentos mecânicos da boca. Diante de cada um desses defeitos cotidianos, somos obrigados a nos readaptar com base em novas convenções de relações e de autopersuasão, para garantir uma ligação de comunicação em novo nível. No fim das contas, o Geminoid não é um objeto tão liso quanto parece. Para minha grande surpresa, é a sua fragilidade técnica que provoca uma espécie de empatia através de uma forma de compaixão. Pouco a pouco, aceitamos suas imperfeições técnicas, suas irregularidades comportamentais e seus defeitos de personalidade. Com o tempo, ao invés de pesar, todos esses imprevistos observados tornam-se traços de personalidade específicos do Geminoid. Ao fim de algumas semanas de experiência de coabitação, aos poucos percebo que o efeito de presença se reforça. Nessa relação a longo prazo com o Geminoid, em que eu esperava sentir um certo cansaço, ao contrário, se estabeleceu a construção de uma comunicação diferente, a aceitação da construção de uma relação ainda mais complexa. O fascínio que o Geminoid provoca nos pesquisadores em laboratório faz, às vezes, duvidar da objetividade dos protocolos de certas experiências. Tenho a impressão de que o Professor Ishiguro com seu Geminoid é de alguma forma um falsificador e que os outros pesquisadores são, por vez, falsificadores cativos. Quase todos caem no jogo do Geminoid. Na maior parte do tempo, acreditam manipular os quadros de suas pesquisas, mas o fato de serem atores ao mesmo tempo que observadores das interações dá a impressão de que eles caem na própria armadilha. Conforme os dispositivos experimentais dos testes realizados em presença do Geminoid, podemos considerar esse robô como uma exceção que assume a posição do estrangeiro (o outro), sob a forma de 37

uma “loucura conceitual” que legitima a sua celebridade. Trata-se de uma exceção não somente no sentido da técnica (a máquina), mas também no sentido patológico (o doente). Portanto, a exceção está menos no lugar em que se encontra a máquina, e mais provavelmente na representação que fazemos dela. Aliás, a máquina não sabe onde é seu próprio lugar. Finalmente, é o nosso ponto de vista em relação ao robô que o coloca como representação dessa “loucura conceitual”. Depois de ter desenvolvido uma certa familiaridade com o Geminoid, minha intenção era tentar apresentar uma situação diferente, desvincular a atenção da “celebridade”. A proposta não era me colocar em uma postura iconoclasta ou radicalmente oposta a dos outros pesquisadores, porque o jogo torna-se falso de antemão. Então pensei que colocar em perspectiva esse aspecto de incongruência permitiria outro ponto de vista crítico e desmistificador em relação às categorias do laboratório. Mesmo tentando criar ironicamente uma espécie de “cena primitiva” em presença de um ser artificial, não ignorava os desafios que persistiriam nesse confronto. O procedimento abordado foi buscar um dispositivo suficientemente pertinente para anular ao máximo as causas e os efeitos do estigma do Geminoid. O mal-estar de um contato misto em geral – aqui, de um “cyber contato”, – revela a tensão que gera a copresença. É por isso que minha experiência tenta colocar em evidência as fragilidades de certas ínfimas tensões. Notas sobre a intenção do gesto, a experimentação e sua análise A iniciativa de comer uma maçã na presença do Geminoid vem do desejo de contar uma história, de criar um tema para a interação, nesse caso, criar um ambiente, já que se trata de uma experiência filmada. O suporte da narração me parece um dispositivo mais prático para descrever facilmente esse tipo de comunicação. O simples fato de tentar contar uma história me permitia essa superposição de intenções quase inconscientes. Essa espécie de desfocado artístico permitia essa situação, evitando assim criar um paradigma próprio a um situacionismo metodológico. 38

A narração permitia passar mais facilmente a um trabalho sobre a figuração, e em seguida à análise de certas configurações. A história sendo contável, poderia ser reencenada, poderia se dar em representação. Mas também é um exagero dizer que se tratava de uma história, porque a ideia da experiência era, no início, somente enunciada por uma frase: “comei uma maçã diante do Geminoid.” Era quase mais que um predicado que ressoava como um desafio: “comer uma maçã”. A cena podia ser repetida, claro, mas daí a falar de uma representação dramatizada, era um exagero, porque não havia exatamente uma adaptação de uma gramática ou de um vocabulário. Só a convenção e o fato de me saber observado ou filmado me constrangiam a ter certos cuidados, como não comer com a boca aberta (a que sou habituado) ou evitar colocar o dedo no nariz, por exemplo. Porque eu me sabia observado (pelo robô) e filmado (pela câmera) e que se tratava de minha própria experiência, tentei que não houvesse a ambiguidade do real, tampouco de caricatura, de manipulação, nem de ênfase na ação da sequência. Vendo-me na posição de ator nesse dispositivo, pensei nessa situação suficientemente simples e bem circunscrita para poder atuar, mas também suficientemente desfocada e pouco definida, como uma trama aberta, para poder ficar natural durante a ação. Mesmo se a experiência pudesse dar a impressão de ser carregada de intenções para preencher um caderno de encargos, ela devia ao mesmo tempo deixar uma inteira liberdade de ação aos “dois atores”. É bastante difícil sair de um repertório de situações que já tem seu próprio vocabulário e seu determinismo, seu espaço cognitivo de compromissos e negociações. Essa situação foi escolhida porque ela faz parte de um conjunto de atividades cotidianas, de instantes quaisquer, sem pressupostos normativos, como a ação trivial de escovar os dentes ou de amarar os sapatos. 39

Tratava-se de uma situação que, em princípio, não devia ser muito interpretada e que devia ser longa o suficiente para resultar numa sequência filmada e editada com duração satisfatória. O tempo é, sem dúvida, um das questões primordiais desse tipo de interação, mas não pode ser muito longo para não perder a atenção do observador ou do espectador. A intenção era também permitir um diagnóstico interessante da situação criada, não somente para descrever o que acontece, mas também para poder apontar o que faz sentido no conjunto do processo. Os dez minutos necessários para comer uma maçã pareciam razoáveis. Comer uma maçã significava me proporcionar enquadramento potencialmente “qualquer” e satisfatoriamente portador de complexidade, por ser uma cobaia suficientemente natural para a execução dessa ação ordinária. Trata-se da escolha de um gesto para a fabricação de um fato, da escolha de uma ação que permite de alguma forma o apagamento da presentação de si. Assim, essa performance pode ser analisada como sendo um momento qualquer, ao invés de ser vista como um momento encenado. Em geral, o dia começa com a maquinaria do Geminoid sendo ligada. Liga-se o compressor na sala refrigerada das máquinas onde estão concentrados os armários de computadores, no corredor do laboratório. Quando entramos no laboratório antes que o Geminoid seja ligado, ele parece estaragarrado à sua cadeira, sua cabeça e seus ombros caídos para trás, numa espécie de estado de catalepsia, com os olhos bem abertos, virados para o teto, e a boca escancarada. O Geminoid parece abalado, sem vida e sem movimento possível. Sua presença é tão impressionante que se torna hiper-realista como uma escultura de Duane Hanson19. Nesse momento preciso, se pode esquecer de que se trata de uma máquina parada e sem vida. Um botão vermelho na extremidade de um cabo liga o sistema pneumático do Geminoid. Uma vez acionado, o manequim se inclina violentamente para frente em uma espécie de convulsão incontrolável. Ele começa então uma série de movimentos de vai e vem, como um joão-teimoso, antes de se reerguer e paralisar brusquamente como uma mola rígida. Uma vez ligado o conjunto de computadores de controle, ele faz uma pose mais natural com certa tranquilidade. Pouco a pouco, percebemos seus loops de programas de pequenos e movimentos breves do busto se encadearem. 40

Tenho a impressão de tê-lo sempre conhecido, como acontece com uma pessoa com quem criamos uma forte ligação. Tenho a sensação de tê-lo conhecido antes de tê-lo encontrado, como se ele já tivesse um lugar em minha imaginação. Durante essa experimentação, convém dar ao termo “gesto” a sua maior extensão, quer dizer, um “conjunto de comportamentos” que fazem sentido, que são a expressão de uma certa maneira de ser, e que podem ter também uma contribuição simbólica, como poderemos perceber quando assistirmos à experiência. No desenrolar da ação se desenvolvem os movimentos do corpo, pequenos gestos, um conjunto de posturas ou de habitus corporais, e maneiras de se manter. Todos esses comportamentos são tidos por gestos quando se fazem ver, e funcionam como sinais, como linguagem. A série de atos e modos de conduta que pode ser qualificada de “gestos” é muito ampla: vai do gesto que se efetua no instante até o “gesto global” que constitui o desenvolvimento da ação, podendo conter assim uma ausência de movimento. Voluntariamente, a idéia de criar um diálogo com o Geminoid foi excluída dos limites do nosso enunciado. Comer uma maçã não nos obriga necessariamente a nos preocupar com o que acontece o nosso redor, por exemplo, na nossa intenção em relação ao outro. Ainda por cima, o Geminoid e seu manipulador (no caso, uma jovem pesquisadora alemã) não estão preparados para saber exatamente qual é o lugar que ocupam nessa situação criada. Eles mesmos são pegos desprevenidos: talvez eu tenha tido a intenção de colocá-los numa armadilha. As atitudes do Geminoid dão a impressão de hesitar entre a manifestação de uma vontade de presença ou de sua retirada. Às vezes, como o contato não parece se estabelecer, as expressões do Geminoid parecem se retratar como manifestações de reflexos, ou parecem abortar como falsas partidas. De minha parte, não preciso me esforçar para ser indiferente: estou muito ocupado em comer a maçã. Seguem-se formas de ausência de minha parte, ou interações incertas. Os olhares se encontram ou se cruzam ao acaso. Estou absorvido pela minha tarefa. Finalmente, os diferentes níveis de performance no desenvolvimento da ação funcionam como diferentes níveis de presença. Há irregularidade na interação, mas não se pode falar de descontinuidade. Nesse teatro, o Geminoid cessa de ser um acessório (milionário) 41

para ser substituído pela maçã que toma, de certa forma, seu lugar no centro da ação. É finalmente em torno da maçã que a situação é partilhada e que se organizam arranjos ordinários. Há o lugar do outro, em seguida o meu, que se organizam como um dispositivo em torno do acessório. Trata-se de uma espécie de cara a cara sem face a face ou de diálogo sem palavras, em volta de um eixo. Essa maçã é o pretexto para o confronto. Observo, por vezes, no androide uma espécie de situação de recuo, como um jogador colocado de lado, como uma pessoa em uma situação de regressão e de frustração. Ele é, muitas vezes, colocado em situação difícil. Há a situação banal do mal estar de um face a face comum, depois o constrangimento de uma presença conjunta sem atividade conjunta. Há uma espécie de ilisibilidade local pelo fato de não se ter tentado determinar demais a ação. Ao Tentar recriar uma relação com o mundo, em torno do ato de comer - como na peça de teatro com os robôs de Oriza Hirata -, eu não só me coloquei na lógica do momento, de um confronto, mas também numa lógica de configuração sem verdadeira reciprocidade. Não há simetria de relação, a não ser na nossa disposição espacial. Não há conversa, há um silêncio, uma ação banal sem convicção, sem verdadeira necessidade de intercompreensão e sem o pressuposto de uma presumível igualdade entre os participantes. A priori, breves trocas de olhares que são, sem dúvida, formas de reciprocidade das mais simples, são em parte suficientes para justificar o silêncio no qual imerge a situação. Assim, vivo a situação como num filme que teria como título: “O outro, a maçã e eu”. Esse filme tem um início e um fim, cujo desenvolvimento da ação é mantido pelo enquadramento da situação. Ao me fixar um objetivo e me limitar a ele, me precipitei na experiência levando comigo meu acólito, o Geminoid. Concentrando-me na maçã e esquecendo o resto, tento também não me deixar distrair por ele. Isso me lembra o personagem de Krapp que come uma banana na peça “Krapp Last Tape”20, de Samuel Beckett. Duas formas de distanciamento se encontram na situação da minha maçã e da situação da banana de Krapp: a situação do ator com sua própria atuação e a situação entre o dispositivo e seu público. Quando 42

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comemos, fazemos desaparecer os alimentos pelo mesmo buraco através do qual sai a palavra: a boca, tanto num caso quanto no outro, parece uma coxia que escamoteia uma parte da ação de mastigar para comer, ou a de articular para falar. Enquanto dispositivo, a ação de comer tem a vantagem de permanecer numa certa forma de oralidade. Mas, como as maçãs japonesas são grandes! Claro, elas são fotogênicas como a maçã da Branca de Neve, mas sua casca parece encerada, não parece uma fruta comestível. Atacá-la gulosamente e engoli-la não é tão simples assim. Mesmo não sendo muito gostosas, ainda bem que são, ao menos, refrescantes. De qualquer maneira, eu tinha de me esforçar, porque ali estava o desafio do projeto. Até então eu tinha me interessado pelo Geminoid enquanto plataforma, o que pressupõe observar um objeto em espera. Agora tinha que pensá-lo do ponto de vista do dispositivo que supõe a ação. Finalmente percebo que conheço mais o Geminoid do que o seu modelo. Mas através da participação do Geminoid nessa experiência, tenho quase a impressão de ter trabalhado diretamente com o Professor Ishiguro. Se penso nos dois ao mesmo tempo, noto que seus rostos têm a mesma expressão séria. Na maioria das vezes, eles dão a impressão de não ter emoção, ou de estarem concentrados e terem o controle total sobre si mesmos. Depois de ter passado mais tempo com o Geminoid do que com o Professor Ishiguro, tenho a impressão de que Hiroshi Ishiguro acaba se parecendo com um protótipo (claro que com mais tonicidade). Mas, depois de certo tempo, é quase incômodo perceber o quanto tenho a impressão de ter desenvolvido certo nível de intimidade com o Professor Ishiguro através da relação com seu clone. Sentado no laboratório, frente ao Geminoid, é fácil pensar no verdadeiro Professor Ishiguro como um outro exemplar, mais um outro clone, que dessa vez teria decidido seu próprio destino. Como um homem máquina do primeiro cinematógrafo, destinado a ser fixado na película para uma nova posteridade – como o personagem de Woody Allen, em “A rosa púrpura do Cairo”, que decidiu sair da tela –, Hiroshi Ishiguro parece ter decidido se levantar da cadeira do laboratório e sair de seu corpo de máquina. O Geminoid, que por vezes permanece sozinho 44

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no laboratório, nos faz pensar num simples envelope ou numa espécie de suporte mediúnico. Nessa figura de silicone, tal como uma figura de cera, baixam então diversas formas de encarnação, como em um ritual afro-brasileiro. Por vezes, digo a mim mesmo que é como se tivesse a impressão de ter comido uma maçã na presença do Geminoid no momento de um desses transes. Talvez os robôs sejam apenas objetos em transe, talvez sejam objetos de transição, ou mais metaforicamente, plataformas de trânsito. Tanto a análise da relação entre a situação e a ação examina as circunstâncias do ato, quanto a comparação do resultado entre a ação e suas questões revelam suas justificativas, suas pertinências e seus erros. Com o distanciamento creio que assistir à projeção vídeo da experiência me fez atentar para uma espécie de erro do gesto. Creio ainda que, involuntariamente, não faço mais do que reforçar o lugar do laboratório enquadrando a experiência entre parênteses no que parece ser, em parte, um ritual. Esse lugar e esse momento, que viraram uma espécie de arena simbólica da representação e de sua interpretação, me parecem em grande parte serem desviados pelas referências e pelas questões que são, sem dúvida, demasiadas simbólicas. “Comer uma maçã” não é mesma coisa que “amarrar o cadarço dos sapatos”. Quase lamento que ali onde estava suposto nada aparecer, tenham surgido muitas referências. Enfim, eu me deixei envolver no jogo de um drama simbólico ocidental muito evidente, e que eu, de certa forma, reconstruí sem querer. Mas como assinalei acima, uma vez que a distância entre os dois protagonistas implica uma ligação cultural, é difícil colocar de lado o fato de que a construção de uma relação cultural se baseia também, em grande parte, em trocas de representações simbólicas. Comer uma maçã, sentado em uma cadeira no meio de um laboratório, não tem de fato muito a ver com os ritos à mesa, não mais do que com uma tela de Magritte (não tenho um chapéu coco). A mesa é sociologicamente uma maneira de estar junto, mas no caso estou sozinho – ou quase –, na presença de um robô. O ato de comer uma maçã e a própria fruta são, sem dúvida, referências das que mais conotadas no Ocidente: “Eu afastei o homem, pela astúcia de seu Criador, eu o seduzi, e para aumentar a sua surpresa, foi com uma maçã!”21 A maçã simboliza o meio e o ato de conhecimento e significa globalmente 46

o conjunto de desejos terrestres ou a complacência nesses prazeres: da maçã da Discórdia de Páris até a maçã de ouro do Jardim das Hespérides; da maçã do Jardim do Éden à do Cântico dos Cânticos. Hà também a maçã da Branca de Neve; como aquela outra maçã envenenada e mordida por Alan Turing22, em 1954, a mesma que aparece em alguns computadores. Parece-me aqui que certas trocas simbólicas se operam independentemente de mim. A maçã é tanto a fruta veneno para encontrar um mundo melhor, quanto a fruta da imortalidade para deixar esse mundo – e a imortalidade parece me olhar através da máquina. A maçã é também a fruta da fecundidade do verbo divino e, tal como Yahvé, o Professor Ishiguro fez para si uma criatura à sua imagem. Ele parece me olhar através dela. A maçã é comumente o fruto da árvore da vida, ela cai da árvore da ciência e ela é o fruto da tentação do bem e do mal. Comer a maçã significa também, de uma forma simbólica, abusar de sua inteligência para conhecer o mal, de sua sensibilidade para o desejar e de sua liberdade para o fazer. Mordemos essa fruta para passar de um estado a outro, de um momento a outro, de um mundo a outro, como em um rito de passagem. O encontro do Geminoid pode ser considerado como um rito de passagem? O androide que me olha comer minha maçã é talvez uma extrapolação distante ou resultado do ato de Adão, que come a primeira maçã. Como a maçã, o objeto técnico robotizado que está sentado ao meu lado carrega simbolicamente a soma de uma ciência unificadora, visando uma certa forma de perpetuação da vida e de conhecimento distintivo anunciando a nossa queda. Penso em tudo isso ao mesmo tempo, como se agora eu me observasse e me projetasse demonstrando inconscientemente o desenvolvimento desses pensamentos ao androide, simplesmente comendo minha maçã diante dele. Mas o androide continua a me olhar sem revelação, pois ele não conhece nem a fome, nem a sede; nem a dor, nem a doença. Ele não conhece essa fruta maravilhosa. Não conhece nem seu sabor, nem seu cheiro. Durante a visualização do ato de comer, essa maçã finalmente me pareceu uma “mise en abîme” e o fruto de uma interação simbólica. Ela simboliza minha necessidade de querer sempre 47

explicar as coisas: não a ilusão, mas o efeito de presença. Permaneço o diretor da situação da mesma forma que somos permanentemente nossos próprios diretores. Mas acredito que aqui, minha direção da cena simboliza minha escolha de livre arbítrio, diante de uma máquina que, além de seus próprios limites técnicos, não tem a possibilidade de escolha. Talvez o Geminoid seja para todos os espectadores, tanto quanto somos, como uma marionete sobre a qual projetamos o que queremos ver.

talvez as que constituem verdadeiros momentos de graça pela sua naturalidade, que não exige um controle de sua execução. Meu gesto acaba assim por deixar suspensa ou mesmo eliminanda qualquer possibilidade de lugar para uma enunciação: o centro da experiência é simplesmente a maçã.

Uma maçã foi comida na presença de um robô

Zaven Paré

A situação não é simplesmente o enunciado de um jogo, de um drama dentro do enquadramento da câmera, ou de um ritual suscetível de ser repetido com os gestos mais ou menos naturais ou interpretados. Na escolha do desenvolvimento dessa ação há também uma certa intenção de gratuidade, a intenção de buscar poesia e eficiência de um ready made e a intenção de tentar fazer um ready made dessa situação. É, sem dúvida, o que mais me motivou para tentar ficar natural e espontâneo durante a filmagem, para poder tentar fazer desse instante um objeto. O que, sem dúvida, me orientou nessa direção foi a observação da aparente economia de meios ou de redução a enunciados próprios às experiências de laboratório. O compromisso confere às experiências científicas competências e qualidades estéticas às vezes inspiradoras e muitas vezes essenciais. No meio de procedimentos extremamente calculados, o que ocorre é que as descobertas de laboratório dão também a impressão de serem espontâneas como o resultado de uma improvisação ou de uma certa facilidade no balé experimental que forma um espetáculo. Meu gesto deveria parecer neutro e desinteressado diante da virtuosidade tecnológica. A máquina me constrangia tecnicamente de um lado, mas as circunstâncias me deixavam totalmente livre para tentar criar numa outra categoria essa experiência filmada. A ideia era achar também uma opção estética do dispositivo, suficientemente aberta para ser interpretada em termos de expressão,ou ainda qualitativamente apreendida. Não hà nada de elegante nem de exagerado no gesto de comer a maçã, mas essas simples situações que acontecem espontaneamente que são 48

Kioto, Inverno 2009.

Notes: 1. Em 2007, depois da observação de uma de minhas máquinas, no nosso encontro na Maison Francaise de Oxford, durante uma conferência sobre as praticas do antopomorfismo. 2. Advanced Telecommunication Research Institute International. 3. A Robot Engineer´s Thoughts on Science and Religion. 4. Mukta quer dizer “pérola”, em sânscrito. 5. Tais como Repliee-Q2 e o Geminoid, o clone do Professor Ishiguro, e outros robôs, como CB2, R1, os Robovie e Wakamaru que encontrei durante minha estadia. 6. Buda do futuro. 7. Período da segunda metade do século VI até 710, marcado pela chegada do budismo no arquipélago japonês. 8. Nona geração de uma antiga família de fabricantes de karakuri-ningyô. 9. Terceira geração de uma prestigiosa família de marionetistas de Bunraku. 10. Feminino de androide. 11. Ela existe sob a forma de um documento filmado no laboratório do Geminoid no centro de pesquisa ATR com a ajuda da pesquisadora alemã Ilona Straub. Desse material foi editado um vídeo do qual fizeram uma video-instalação em torno do gesto, assim como para abeleza do gesto talvez. 12. Escritor e diretor, atualmente Conselheiro da Cultura ao lado no Primeiro Ministro do Japão. 13. National Institute of Information and Communications Technology. 14. Yuragi project: Intelligent Artificial Agents and Information Systems Inspired by Biological Systems Dynamic. 15. Exploratory Research for Advanced Technology.

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16. O teste de Turing é um teste de inteligência artificial que consiste em colocar em confronto verbal um humano com um computador e um outro humano cego. Isso implica que o computador e o humano tentarão ter uma aparência semântica que imita a conversa humana. A simplicidade e a universalidade desse teste se dão efetivamente ao fato de que a conversa é limitada a uma troca textual entre os protagonistas. Se a pessoa que começa a conversa não for capaz de discernir o computador do humano, consideramos que o programa do computador passou no teste com sucesso. 17. Androide metálico encenado pela atriz Brigitte Helm em Metrópolis. 18. Robô do filme de ficção científica Forbiden Planet (1956). 19. Escultor hiper-realista americano (1925-1996). 20. Samuel Beckett, Krap Last Tape, 1960. 21. John Milton, Le Paradis perdu, Paris: Gallimard, 1995. pp.279-280. Tradução de Chateaubriand. 22. Alan Turing se suicidou em 1954 comendo uma maçã macerada no cianureto.

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