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Transnacionalização Religiosa: religiões em movimento

Donizete Rodrigues Ari Pedro Oro (Organizadores)

Transnacionalização Religiosa: religiões em movimento

Donizete Rodrigues Ari Pedro Oro (Organizadores)

2014

Copyright © Editora CirKula LTDA, 2014. 1° edição - 2014

Revisão do Original: dos autores Editoração: Graziele Borguetto Capa: Gregório Cemin Impressão: Cirkula

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO-CIP T772 Transnacionalização religiosa : religiões em movimento [recurso eletrônico] / Donizete Rodrigues, Ari Pedro Oro (organizadores). – Porto Alegre : CirKula, 2014. 388 p. E-book. ISBN: 978-85-67442-14-3 1.Religião. 2. Transnacionalização religiosa. 3. Antropologia da religião. 4. Globalização. I. Rodrigues, Donizete. II. Oro, Ari Pedro. CDU: 2-18

Bibliotecária responsável: Jacira Gil Bernardes - CRB 10/463

Todos os direitos reservados a Editora CirKula LTDA. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98). Editora CirKula Rua Ramis Galvão, 133 - Passo d’Areia - Porto Alegre - RS - CEP: 91340-270 e-mail: [email protected] Loja Virtual: www.cirkula.com.br

Conselho Editorial César Alessandro Sagrillo Figueiredo José Rogério Lopes Leandro Raizer Mauro Meirelles Valdir Pedde Conselho Científico Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, Pesquisador do CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) e Professor da Universidade Católica Argentina. André Corten (Canadá) - Doutor em Sciences Politiques et Sociales pela Universidade de Louvain e Professor de Ciência Política da Universidade de Quebec em Montreal (UQAM). Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I - Panthéon-Sorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal. César Alessandro Sagrillo Figueiredo (Brasil) - Doutor em Ciência Política e Professor Adjunto da Universidade Federal de Tocantins (UFT). Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departamento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS. Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dirléia Fanfa Sarmento (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora em Ciências da Educação pela Universidade do Algarve (Portugal) e Professora do Centro Universitário La Salle. Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne. Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Associada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio Meneghetti Faculdade (AMF). Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM). José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Professora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora pela UNED/ Madrid e Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Professor do Centro Universitário La Salle (Unilasalle). Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris X-Nanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre. Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS/Erechim). Valdir Pedde (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Professor da Universidade Feevale (FEEVALE). Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais (UNILASALLE).

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Sumário

Introdução................................................................................................... 11 COMO A FÉ E A RELIGIÃO ESTABELECEM CONEXÕES TRANSNACIONAIS? O PENTECOSTALISMO E SEUS MODOS DE EXPANSÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

......................................................................................................................... 21 Cleonardo Mauricio Junior e Roberta B. C. Campos.

Pentecostalismo, globalização e consumo: uma reflexão teórica sobre os bens de marcação religiosa

......................................................................................................................... 47 Daniel Alves

DINÂMICAS DO PENTECOSTALISMO BRASILEIRO NA EUROPA: O CASO DA IURD EM PORTUGAL, ESPANHA, IRLANDA, ITÁLIA E ALEMANHA

......................................................................................................................... 61 Donizete Rodrigues e Marcos de Araújo Silva

PROSPERIDADE E LIBERTAÇÃO: SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EVANGÉLICA TRANSNACIONAL NOS RITUAIS ARGENTINOS DA IGREJA UNIVERSAL

......................................................................................................................... 93 Marcelo Tadvald

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AS IMBRICAÇÕES DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS NA “RECONSTRUÇÃO NACIONAL” DE ANGOLA: DA BENEVOLÊNCIA À ALTERIDADE MUÇULMANA

....................................................................................................................... 115 Camila A. M. Sampaio

IGREJA EVANGÉLICA ENCONTROS DE FÉ DE PORTO ALEGRE: SENTIDOS E EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO EM REDES TRANSNACIONAIS

....................................................................................................................... 151 Mariana Reinisch Picolotto e Ari Pedro Oro

A IGREJA COMO PEDACINHO DO BRASIL: RELIGIÃO TRANSNACIONAL NA CAPITAL DO TEXAS

....................................................................................................................... 177 Rodrigo Otávio Serrão Santana de Jesus e Flávia Ferreira Pires

O PROCESSO DE TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA AO SUL DA AMÉRICA DO SUL: RECONSTRUINDO PERCURSOS E NARRATIVAS MÍTICAS

....................................................................................................................... 207 Mauro Meirelles

MINHA LÍNGUA, MINHA FÉ, MINHA IGREJA: SER CATÓLICO ESTRANGEIRO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA HOLANDA

....................................................................................................................... 237 Mísia Lins Reesink

MISSIONÁRIOS DO FIM DO MUNDO: MISSIONÁRIOS E MISSÕES CATÓLICAS BRASILEIRAS ALÉM-FRONTEIRAS EM TEMPOS DE TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA

....................................................................................................................... 273 Antônio Braga

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A “CONSTRUÇÃO” DA IDENTIDADE AFRO-RELIGIOSA NA FRONTEIRA BRASIL, PERU E COLÔMBIA

....................................................................................................................... 299 Reginaldo Conceição da Silva.

A DESCOBERTA DE PUTAMAGAL PELO CABOCLO PENA DOURADA

....................................................................................................................... 321 Joana Bahia

TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA E CONVERSÃO: UM DIÁLOGO SOBRE O BUDISMO DA SOKA GAKKAI NO BRASIL

....................................................................................................................... 353 Suzana Ramos Coutinho

Resenhas Biográficas............................................................................... 377 Índice Remissivo...................................................................................... 383

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INTRODUÇÃO Donizete Rodrigues Ari Pedro Oro

Este livro reúne textos que foram apresentados no Grupo de Trabalho “Religiões em Movimento: transnacionalização religiosa”, durante a 29ª. Reunião Brasileira de Antropologia, que ocorreu no Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014. Durante três dias, acadêmicos de diferentes instituições de ensino superior do país e do exterior, apresentaram e discutiram várias comunicações resultantes de suas pesquisas que procuravam dar conta das principais expressões religiosas que compartilham dos imaginários e das pautas de ação transnacionais. Procurou-se, especialmente, debater as formas e os significados agregados às crenças e práticas que atravessam as fronteiras nacionais e as conseqüências desse processo nos campos religiosos locais e na relação com os marcos regulatórios e os sistemas políticos dos Estados Nacionais. A incidência dos trabalhos recaiu especialmente sobre a internacionalização de denominações pentecostais e neopentecostais brasileiras, os movimentos transnacionais ligados ao catolicismo e ao Budismo da Soka Gakkai e a circulação internacional das religiões afro-americanas. Portanto, este livro coloca à disposição dos leitores um conjunto de textos que possuem em comum a preocupação de analisar os fluxos e circulações transnacionais de igrejas 11

e religiões que compartilham o imaginário da globalização e que põem em prática estratégias e processos para viabilizar a sua transnacionalização religiosa. A obra é composta de treze capítulos. Inicia com dois textos analíticos. No primeiro deles, Cleonardo Mauricio Junior e Roberta Bivar Carneiro Campos refletem sobre as maneiras como indivíduos imbuídos de fé religiosa se movem em direção às “border zones” transnacionais, ora borradas ora mais definidas. O foco repousa nas experiências que tornam os crentes pentecostais imbuídos do desejo de se moverem transnacionalmente, aceitando o comissionamento de expandir sua fé globalmente, na interação com a liderança pentecostal. Neste sentido, reforça-se a importância da circulação do carisma pentecostal e das relações entre o compartilhamento do carisma e a construção de vocações transnacionais, incidindo nessas relações, uma chave para a compreensão da expansão do pentecostalismo global. No segundo texto, Daniel Alves analisa os processos de marcação e desmarcação de bens religiosos, os redimensionamentos de fronteira entre o religioso e o secular, promovidos por tais processos, a importância da internet na cadeia de consumo de tais bens e seus impactos sobre a globalização das religiões. Ou seja, paralelamente às formas de consumo que reforçam a marcação religiosa dos bens, estreitando-os a um pertencimento específico, nota-se também a estratégia de difusão da mensagem a públicos externos aos grupos religiosos, especialmente no que tange à produção musical, onde bandas vêm intencionalmente desmarcando os elementos religiosos das letras, com o intuito de atenuar proselitismos no conteúdo e atrair pessoas “de fora” das comunidades religiosas.

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Na sequência comparecem três capítulos que versam sobre a Igreja Universal do Reino Deus. O primeiro deles, escrito por Donizete Rodrigues e Marcos de Araújo Silva, aborda a presença desta igreja na Europa, mais especificamente em Portugal, Espanha, Irlanda, Itália e Alemanha. Com base numa etnografia multi-situada e em observação -participante, este capítulo analisa um importante aspecto da diáspora do neopentecostalismo brasileiro: a expressiva atuação da IURD na Europa, onde desenvolve um forte trabalho de proselitismo, visando a conversão e o reavivamento religioso de imigrantes (nomeadamente brasileiros, hispânicos e negros africanos) e de nacionais. A análise comparativa, entre os cinco países europeus referidos, possibilitou observar importantes especificidades e diferenciadas estratégias de evangelização entre grupos étnico-raciais tão diferenciados. A abordagem incide, em particular, na relação entre religião e um fenômeno migratório transcontinental, caracterizado por uma mobilidade geográfica religiosa, uma enorme expansão pentecostal do chamado “Sul” para o “Norte” global, provocando mudanças significativas no panorama religioso mundial e criando, desta forma, novas ‘spiritual geographies’. O segundo texto sobre a Universal é escrito por Marcelo Tadvald e versa sobre as estratégias postas em prática por esta igreja no seu processo de transnacionalização para a Argentina. Discorre, especialmente, sobre as adaptações de significados típicos da sociedade brasileira de origem e sua ressemantização em conformidade com o contexto social de recepção, além de analisar os discursos, objetos e representações observados em rituais da Universal na Argentina que fomentam, a partir das ideias de prosperidade e de liberta-

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ção, uma típica identidade dizimista transnacional naquele país. Depois da presença da Universal na Europa e na América Latina, o terceiro texto discorre sobre a Universal na África, mais especificamente em Angola. Camila Alves Machado Sampaio menciona que neste país, práticas e instituições religiosas devem ser reconhecidas pelo Estado para atuar e manter templos. O reconhecimento jurídico não assegura uma condição permanente para o exercício religioso, que está condicionado a uma arena de disputas entre diferentes poderes e atores sociais articulados em torno do ideal de reconstrução nacional de Angola no período pós-guerra. A autora analisa alguns aspectos em torno dessas conexões: 1) as associações e impasses de alguns dos significados propostos para a “nação” angolana no pós-guerra; 2) as experiências e sentidos de “modernidade” vividos por frequentadores da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD); e 3) o contraponto da recente demolição de templos religiosos islâmicos no país, após o islamismo ter sido considerado inadequado ao processo de “desenvolvimento” de uma “Nova Angola”. Além disso, aponta convergências e divergências presentes entre propostas oficiais do Estado, projetos religiosos e vivências cotidianas. Os três capítulos seguintes versam sobre outras igrejas evangélicas brasileiras transnacionais. No primeiro deles, Mariana Reinisch Picolotto e Ari Pedro Oro discorrem sobre a Igreja Encontros de Fé, de Porto Alegre, e suas práticas de transnacionalização religiosa promovidas pelo seu fundador e presidente, Isaias Figueiró, mediante o recurso de firmar parcerias e participar em redes religiosas internacionais. Além de discutir os sentidos e significados da parti-

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cipação da igreja e de seu líder nas redes religiosas, o texto analisa uma experiência de parceria firmada por esta igreja do Rio Grande do Sul com a igreja sueca Word of Life, então liderada pelo pastor Ulf Ekman, para implantar em Porto Alegre uma Escola Bíblica, a qual funcionou de março a dezembro de 2011. O texto também efetua um balanço desta experiência de parceria internacional. O seguinte texto, escrito por Rodrigo Otávio Serrão Santana de Jesus e Flávia Ferreira Pires, versa sobre duas igrejas evangélicas brasileiras implantadas na cidade norte-americana de Austin, no Texas: a Primeira Igreja Batista Brasileira de Austin e a Assembleia de Deus Fogo Pentecostal, e sua relação com a comunidade migrante brasileira. O texto destaca, especialmente, os processos de manutenção cultural, as redes sociais e de apoio e as formas de assimilação cultural proporcionadas ou desestimuladas pelas igrejas em questão. Consideradas pelos fiéis brasileiros enquanto um “pedacinho do Brasil” no exterior, as igrejas servem, entre outras coisas, para adiar o seu retorno ao Brasil ou, até mesmo, para fazê-los decidir-se a residir permanentemente nos Estados Unidos. A pesquisa baseia sua análise teóricoconceitual em estudos diaspóricos e transnacionais para, em seguida, analisar os dados obtidos em campo, através de entrevistas, questionários e observações realizadas no ano de 2013 durante trinta dias. Mauro Meirelles, na última análise sobre a presença de igrejas evangélicas brasileiras no exterior, discorre sobre igrejas que participam do circuito do sul da América, estabelecendo relações entre Brasil, Argentina e Uruguai. Mais especificamente, o texto analisa encontros e aproximações de imaginários políticos e religiosos, bem como mútuas in-

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terferências, observados nos processos eleitorais ocorridos nos três países entre os anos de 2007 e 2012. Além disso, o autor sustenta existir nesta região uma “matriz cultural cisplatina” feita de um conjunto de memórias, coletivas e individuais, que remetem a uma narrativa mítica acerca daqueles que iniciaram o processo de transnacionalização, ligados, especialmente, às igrejas Deus é Amor, Encontros de Fé e Batista Brasa. Neste contexto, inserem-se também as religiões de matriz africana que se transnacionalizam especialmente do Rio Grande do Sul para a Argentina e o Uruguai, havendo o reconhecimento da importância histórica detida neste processo por alguns lideres afro-religiosos de Porto Alegre, como Mãe Ieda de Ogum e Pai Cleón de Oxalá, entre outros. A transnacionalização das religiões afro-brasileiras, mencionada no texto anterior é objeto de estudo específico dos dois próximos trabalhos que integram este livro. No primeiro deles, Reginaldo Conceição da Silva analisa a construção da identidade afro-religiosa na fronteira Brasil, Peru e Colômbia. Mais especificamente, discorre sobre a presença afro-religiosa em Tabatinga, no Alto Solimões, localizada na referida tríplice fronteira, cujos terreiros atraem peruanos e colombianos, além de brasileiros. O autor chama a atenção para a articulação dos saberes e das práticas afro-religiosas e indígenas, que se configuram como elementos capazes de levar cada um dos membros dessas religiões a se auto identificarem como “povos de terreiro” ou, num sentido mais amplo, como povos ou comunidades tradicionais, bem como em definir politicamente suas territorialidades específicas a partir das práticas ritualísticas. O outro texto sobre a transnacionalização das religiões afro brasileiras é escrito por Joana D’Arc do Valle Bahia, que

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analisa as práticas cotidianas dos terreiros de candomblé localizados no norte de Portugal, onde despontam metáforas sobre os processos pós-coloniais, especialmente na circularidade de ideias do chamado Atlântico Negro, em que representações e imagens sobre Brasil, África e Portugal se fazem presente na linguagem religiosa. Na sequência, dois capítulos versam sobre dimensões transnacionais do catolicismo. No primeiro deles, Mísia Lins Vieira Reesink discorre sobre uma comunidade católica de língua portuguesa localizada na cidade de Haia, na Holanda, onde seus membros elaboram práticas e maneiras de ser católico tidas como diferentes daquelas que vigoram no país de acolhimento. Trata-se de imigrantes provenientes de diferentes países: Brasil, Portugal e países africanos do PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) - Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau - que precisam negociar e descobrir caminhos de lidar não só com questões externas mas também com as diferenças culturais e étnicas dentro da “comunidade”. Em face dessas diferenças e possíveis fontes de tensão e conflito, a comunidade de imigrantes de língua portuguesa encontra sua unidade e convergência na sua identificação em “ser católico” e na sua partilha de uma mesma “língua”. Tendo isto em mente, e a partir de uma perspectiva etnográfica, o texto reflete sobre a relação entre “ser católico”, “fé” e “língua” em um contexto de imigração transnacional, para tentar compreender o que “faz” a comunidade católica de língua portuguesa em Haia. Antônio Braga trata da questão das missões e missionários católicos brasileiros na Europa. Analisa as especificidades dos empreendimentos missionários, a partir de suas correlações com o fenômeno conhecido na literatura espe-

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cializada como “missões reversas”. O autor parte do entendimento de que para melhor compreensão das missões reversas católicas é necessário levar em conta os fenômenos mais amplos dos processos de transnacionalização religiosa e a emergência de uma nova cartografia global da religião. A hipótese levantada é a de que essas missões e missionários das Novas Comunidades introduzem um conjunto de novidades em termos de perfil, agenda e formas de atuação missionária católica, contribuindo ainda mais para as mudanças que vem ocorrendo nas relações existentes entre o que poderíamos denominar de “catolicismos de centro” e “catolicismos periféricos”. Finalmente, Suzana Ramos Coutinho analisa os diferentes modos como a ‘Brasil Soka Gakkai Internacional’ (BSGI) desenvolve estratégias de inserção no campo religioso brasileiro, elaborando especialmente uma imagem pública de ONG e não a de um grupo religioso. O modo contraditório como a BSGI utiliza a imagem e também a prática de ONG responde a necessidades específicas do próprio grupo: o recrutamento e a manutenção dos membros. A autora sugere que a inserção deste grupo religioso específico no terceiro setor gera mais complexidades além de simplesmente suprir lacunas deixadas pelo Estado. Enfim, o texto discute as ambigüidades de um grupo que responde às necessidades de um país imerso em imensas desigualdades sociais mas que, ao mesmo tempo, se utiliza deste processo como uma eficiente estratégia de marketing e um plano de ação para recrutar novos membros. Como podemos observar, os textos que seguem dão conta de fluxos e dinâmicas transnacionais de diferentes religiões, cujos movimentos alcançam várias regiões do mundo.

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Neste sentido, a pretensão desta coletânea é contribuir para o aprofundamento da compreensão de uma das mais significativas características do fenômeno religioso na atualidade: os deslocamentos entre fronteiras nacionais, com a especificidade de se dar, em grande medida, na direção sul-norte, invertendo, assim, a tendência histórica em que se operava a transnacionalização religiosa.

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COMO A FÉ E A RELIGIÃO ESTABELECEM CONEXÕES TRANSNACIONAIS? O PENTECOSTALISMO E SEUS MODOS DE EXPANSÃO NO MUNDO GLOBALIZADO Cleonardo Mauricio Junior Roberta B. C. Campos

Como a fé e a religião são acessadas na criação de conexões transnacionais? Esta pergunta, dependendo das preocupações do(a) pesquisador(a), pode ser abordada pelo viés do enraizamento ou desenraizamento, levando-o/a a explorar a força ou a fraqueza dos laços sociais e simbólicos criados por uma determinada fé, religião ou religiosidade com uma localidade. A discussão teria por foco atores sociais deslocados, desterritorializados, criando e imaginando comunidades multiétnicas, multiculturais, panculturais, etc. Todavia, o que discutiremos neste trabalho tem outro foco: as maneiras como indivíduos, imbuídos de fé religiosa, podem mover-se em direção a essas “border zones” transnacionais, ora borradas ora mais definidas. Em outras palavras, abordaremos uma das maneiras pelas quais a transnacionalidade torna-se possível, focando na construção dos significados e motivações que levam indivíduos pentecostais a moveremse transnacionalmente. Aqui tentaremos uma aproximação

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das questões da transnacionalidade da fé e do religioso com nossas pesquisas sobre liderança religiosa pentecostal: como a constituição de líderes carismáticos (pastores, obreiros, missionários, cantores), em algumas ocasiões, acontece paralelamente à construção de vocações transnacionais? Como a liderança pentecostal promove a transnacionalização do religioso? Perguntamo-nos mais especificamente sobre as experiências que tornam os crentes pentecostais imbuídos do desejo de moverem-se transnacionalmente, aceitando o comissionamento de expandir sua fé globalmente, na interação com a liderança pentecostal. O debate na literatura nacional e internacional tenta dar conta da transnacionalização do pentecostalismo, em linhas gerais, a partir da análise e reforço da agência institucional e/ou da capacidade do líder em criar conexões através de seu carisma pessoal. Nossa análise seguirá outro caminho: queremos apontar a necessidade de se estudar a microssociologia da transnacionalização religiosa, aspecto muitas vezes obscurecido pelo foco, não menos importante, nas instituições e fatores macrossociológicos. A figura do líder será indispensável em nossa análise. Mas não se trata aqui de enfatizar suas habilidades em tornar-se nó entre redes transnacionais. Nossa microssociologia da transnacionalização tem como foco o papel da interação entre líderes e fiéis na ativação de vocações missionárias. Para tanto, partiremos da afirmação que a cultura pentecostal é baseada numa “busca generalizada pelo carisma” (Mauricio Junior, 2011). Mais precisamente, apostamos na importância de se investigar o que Campos (2011, 2014) chama de circulação do carisma

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pentecostal1. Uma vez que o acesso ao carisma pentecostal se dá através de diferentes formas e canais de compartilhamento, um dos resultados deste compartilhamento é a construção de vocações transnacionais, nos dizeres dos fiéis, missionárias. Acompanharemos as narrativas de líderes pentecostais brasileiros que se deslocaram, ou mantém o desejo de se deslocarem transnacionalmente a fim de compreendermos as relações entre o compartilhamento do carisma e a construção de vocações transnacionais, contribuindo com isso para melhor entendermos os modos de expansão do pentecostalismo global.

Dando inteligibilidade a uma “unruly theorization”: Da globalização à transnacionalização Falar de religião é falar de fluxos, cruzamentos de fronteiras territoriais e temporais (Tweed, 2006: 158). As religiões, em geral, podem ser a um só tempo translocais e enraizadas. E como Bonnerjee et al (2012) já chamaram atenção, a religião tem similaridades com diáspora e transnacionalidade, na medida em que evoca conexões que transcendem o espaço e, ao mesmo tempo, cria conexões locais. Não sem surpresas, apesar das disputas em torno do conceito, é um fenômeno religioso (a diáspora do povo judeu) que tem servido de imaginação metafórica para dar conta dos fluxos migratórios (Cohen, 1997). Mais adiante explicitaremos melhor estes conceitos: a busca generalizada pelo carisma e sua circulação. Para uma explanação detalhada ver Campos, 2011; Campos; Mauricio Junior, 2013.

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No entanto, muitas críticas aos conceitos de diáspora e transnacionalidade têm sido feitas, em especial pela sua polissemia. Como bem diagnosticou Trajano Filho, trata-se de um campo de pesquisa marcado por “unruly theorization” (2009: 522). Nosso primeiro passo será, portanto, delimitar brevemente os conceitos dos quais faremos uso ao longo deste trabalho. Nosso objetivo não é trazer ao campo as regras que faltariam a esta “teoria indisciplinada, rebelde” a que se refere Trajano. Pretendemos tão somente deixar claro ao que nos referimos quando trouxermos à baila termos como transnacionalização, diáspora, indigenização, entre outros. Consequentemente, no entanto, esperamos trazer alguma contribuição para que os estudiosos do tema passem a falar a mesma língua. Em primeiro lugar, é necessário esclarecer porque vários autores, entre os quais nos incluímos, preferem o termo transnacionalização ao invés de globalização. Quando se fala de globalização cultural, mais especificamente da religiosa, não se pode dizer que estamos diante de um fenômeno totalmente novo, haja vista a vocação universal de religiões como o cristianismo e o islã. O que a cultura global contemporânea traria, então, de novo? Para responder esta pergunta, Stefania Capone (2004) aponta a noção de desterritorialização como o fator preponderante para torná-la (a cultura global) diferente da que a precedeu. A noção de globalização, assim, estaria mais próxima do sentido de uma helenização, ou seja, de “imperialismos culturais pré-modernos que permaneceriam vinculados ao seu local de origem” (Capone, 2004: 10 [tradução nossa])2. Por sua vez, a noção de transnacio“des impérialismes culturels pré-modernes’ qui demeuraient liés à leurs lieux d’origine” (Capone, 2004: 10).

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nalização já traria em si o diferencial contemporâneo da desterritorialização, ou seja, o fato de que “a cultura global contemporânea não estaria vinculada a algum lugar determinado” (Capone, 2004: 10)3. Para Van der Veer (2001), a noção de globalização sempre esteve ligada às análises que pretendiam dar conta da formação dos Estados, seja nas sociedades colonizadoras ou nas colonizadas, e não daria conta, por exemplo, da dissolução dos Estados-Nação como consequência do desenvolvimento da governança transnacional e da economia global (citado em Capone, 2004). Quando se fala em transnacionalização, portanto, e em suma, o que se busca é evitar circunscrever fenômenos culturais que “viajam” internacionalmente a um local determinado, bem como desviar-se de dar a esta viagem um sentido unidirecional. Respeitar-se-iam, assim, os fluxos e contra-fluxos contemporâneos. Dizer que transnacionalização implica em um processo de desterritorialização não significa afirmar, no entanto, que tal processo acontece no vácuo. Ou seja, a cultura contemporânea não está totalmente desprovida de lugar (hors lieu), à deriva, sem âncoras. Como nos diz Capone, respondendo críticos como Friedman (2000) que acusam a noção de transnacionalização de produzir a noção de esfacelamento de toda relação entre culturas e territórios, O processo de desterritorialização raramente se faz sem que haja reterritorialização em seguida. Se há dissolução ou deslocamento de pontos de referência, raízes e fronteiras, também há produção paralela “la culture globale contemporaine ne serait, elle, liée à aucun lieu déterminé” (Capone, 2004: 10).

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de discursos sobre as origens que permitem “re-ancorar” aquilo que foi desterritorializado nos novos espaços, reais ou simbólicos (Capone, 2004: 11 [tradução nossa])4.

Os autores da coletânea Transnacionalização Religiosa: Fluxos e Redes (Oro, Steil, Rickli 2012) contribuem para esclarecer que o termo transnacionalização não enseja qualquer “aversão ao local” quando afirmam ser ele composto de um “duplo movimento”: a desterritorialização seguida de uma “indigenização”. Este último, o conceito escolhido para especificar o que Capone (2004) chamou de reterritorialização. Ao falar de “território”, dizem estes autores, faz-se referência a “uma relação dos atores com o espaço vivido”. E é justamente este “espaço identitário que sofre um processo de desenraizamento quando se processa a desterritorialização, isto é, a mobilidade de sujeitos, de objetos, de ideias e imagens” (2004: 8). A indigenização, por sua vez, diria respeito à “possibilidade de ideias, valores, imagens e crenças recebidas por grupos locais... se ‘indigenizarem’ segundo lógicas próprias de ressemantização das mesmas” (2004: 8-9). Os autores se utilizam do termo “indigenização” como forma de se contrapor às noções de “hibridização” ou “creolização”. Quando se fala de hibridização traz-se um entendimento de que o híbrido, ou sincrético, não seria puro e, portanto, menos autêntico (Friedman 1994). Esta dicotomia puro/imle processus de déterritorialisation se fait rarement sans qu’il y ait reterrito­rialisation à la suite. S’il y a dissolution ou déplacement des points de référence, des racines ou des frontières, il y a aussi production parallèle de discours sur les origines qui permettent de « réancrer » ce qui a été « déterritorialisé » dans de nouveaux espa­ces, réels ou symboliques. (Capone, 2004: 11).

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puro é ainda mais forte quando se fala de creolização, que pressupõe culturas previamente fechadas em si mesmas e que teriam sido abertas e colocadas em contato com outras após a globalização (Friedman 1994). Com isso, tem-se que Hibridização e Creolização estariam para a globalização (dentro do entendimento deste termo que discutimos anteriormente), assim como a indigenização está para a transnacionalização. A formação de redes é o último fenômeno que está contido na noção de transnacionalização. Com o “encolhimento do planeta” (Augé, 2012: 33), devido principalmente ao avanço das tecnologias de comunicação, “ao invés de comunidades de imigrantes tentando desesperadamente se manter em contato com seu local de origem, haveria formação de redes diaspóricas” (Capone, 2004: 10 [tradução nossa])5, ou, o que consideramos consistir em um termo mais adequado (explicaremos mais adiante), redes culturais desterritorializadas (Clarke apud Capone, 2004). Quando se trata das religiões, pode-se dizer que a constituição de redes se apresenta como uma constante nos processos de transnacionalização. A transnacionalização (desterritorialização/indigenização) engendra, assim, “modelos alternativos de ser e existir e oportunizam o surgimento de redes transnacionais de indivíduos que se juntam em torno de uma causa, movimento de ideias ou de valores religiosos” (Oro, Steil, Rickli 2012: 8-9). Referir-se à formação de redes permite-nos ainda falar de transnacionalização sem requerer que os envolvidos se locomovam, fisicamente falando, de suas localidades. A partir do “Au lieu de communautés de migrants qui essaient désespérément de garder le contact avec leur lieu d’origine, il y aurait constitution de réseaux diasporiques” (Capone, 2004: 10)

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momento que é possível, com a “morte das distâncias” (Van der Veer 2001), entrar em relações transnacionais a partir de sua localidade, “pode-se construir redes transnacionais a partir de casa” (Capone 2004: 11 [tradução nossa])6. Podemos agora concluir nossa tentativa de evitar que este trabalho herde das atuais teorias de globalização cultural a categoria de “unrully theorization”, afirmando que nossa utilização da noção de transnacionalização guarda em si os três processos vistos até agora: a desterritorialização, a indigenização e a formação de redes, em detrimento da noção de globalização e daquilo que ela, por sua vez, também traz ao que analisa (como hibridização e creolização). E, sempre que utilizarmos o termo, estaremos fazendo referência àquele complexo conceitual.

Dando inteligibilidade a uma “unruly theorization” (2): Transnacionalização ou Diáspora Como dissemos anteriormente, muitas críticas aos conceitos de diáspora e transnacionalidade tem sido feitas, em especial pela sua polissemia. Ao especificarmos o que entendemos por transnacionalização (desterritorialização + indigenização + redes) mostramos porque preferimos este conceito em detrimento do de globalização. Passemos agora a explicitar porque ele é preferível, ainda, em relação ao conceito de diáspora, pelo menos no que se refere ao fenômeno

“on peut tisser des réseaux transnationaux tout en restant chez soi” (Capone 2004: 11)

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que analisaremos posteriormente: como a fé e a religião estabelecem conexões transnacionais. Entendemos que a discussão sobre o conceito de diáspora se faz oportuna uma vez que tem sido utilizada por muitos autores (Clifford, 1997; Cohen, 2008; Hall, 1990; Safran, 2004), necessidade intensificada com o lançamento de uma coletânea intitulada “A Diáspora das Religiões Brasileiras” (The Diaspora of Brazilian Religions, Rocha; Vasquez 2013), a qual tem suscitado interesse internacional sobre o campo religioso brasileiro. Ao justificarem a utilização do termo diáspora como conceito, os autores admitem a extensão do termo para além do seu limite inicial: “o deslocamento forçado de uma população de sua terra natal”. Além desta característica de deslocamento forçado, o termo diáspora (usado em seu sentido original) levaria em consideração “a memória e o desejo intenso de retorno” (Clifford, 1997; Shuval, 2000) como forma de manter a conexão com a terra a qual estão incapacitados de retornar. Além do deslocamento forçado e da memória como elemento de conexão, vistos acima, Brubaker (2005: 5) cita a “manutenção dos limites”, no sentido da preservação de uma identidade distintiva em relação à sociedade de acolhimento, como sendo, na maior parte das discussões, considerado o critério indispensável de diáspora. A mencionada extensão promovida por Rocha e Vasquez (2013) leva o uso do termo diáspora além de seu referente original para significar simplesmente a dispersão de povos, línguas e culturas. Entendemos que tal “extensão” traz uma perda de rigor ao conceito, levando-o a significar tudo (e ao mesmo tempo nada, portanto) o que se refira aos deslocamentos para além das fronteiras das nações, sendo utilizado por várias vezes, como mostra Reesink (2014), tão somen29

te como sinônimo de migração. Afirmando estarem cientes deste risco, e na tentativa de esquivar-se dele, os autores da coletânea sobre a Diáspora das Religiões Brasileiras igualam a noção de diáspora ao termo original grego, diasperein, que, eles afirmam, “significa literalmente ‘espalhar sementes’, mas que designa a disseminação da cultura helenística através da conquista, colonização, imigração e redes mercantis do antigo Mediterrâneo” (Reesink, 2014: 7), alegando estarem diante da transposição, senão da cultura helenística, de uma “brasilidade” e de uma pátria imaginada para o exterior. Ainda assim, fica claro, no nosso entender, que os autores conseguem apenas imprimir uma perda de especificidade ao conceito. Além disso, regressam perigosamente ao unidirecionalismo próximo das noções de globalização, ao mencionarem o equivalente brasileiro da helenização, reeditando problemas já superados pelo conceito de transnacionalização. Estes usos levam autores como Reesink (2014) a afirmarem que a Diáspora não deve ser levada a sério como categoria analítica, somente como categoria da prática. No entanto, não descartamos diáspora como categoria analítica. Defendemos somente que, ao ser utilizado como conceito, o termo diáspora seja aplicado ao seu sentido estrito (deslocamento forçado + memória + manutenção dos limites). Ao contrastarmos o conceito de diáspora e transnacionalização, entendemos que este último ajustar-se-ia melhor aos fenômenos que ora analisamos e na maioria das vezes, arriscamos dizer, às análises sobre o deslocamento dos fenômenos religiosos ao longo do globo. Trazemos, assim, a comparação entre diáspora e transnacionalidade feita pelos autores de Connected Communities: Diaspora and Transnationality (Bonnerjee et al, 2012). Eles afirmam: 30

Ao contrário das comunidades diásporicas, que imaginam e recriam conexões entre grupos de migrantes com uma base territorial para identificação, pertença e identidade, a investigação sobre a transnacionalidade incide mais sobre as conexões que existem através de redes reais (2012: 12 [tradução nossa])7.

E seguem informando o que consiste no núcleo do conceito de transnacionalidade: o elemento-chave da transnacionalidade é que ela se refere a movimentos e práticas dos migrantes e/ou os fluxos de mercadorias e de capital incorporados, e a análise destes fluxos com respeito às fronteiras nacionais e as construções culturais da nação, do cidadão e da vida social”... Consequentemente, muito da pesquisa sobre transnacionalidade tem se concentrado nas redes através das quais as “comunidades” são construídas, ao lado da criação de “espaços sociais transnacionais (Bonnerjee et al, 2012: 12 [grifos nossos, tradução nossa]).8

“In contrast to diasporic communities that imagine and recreate connections across migrant groups with a territorial basis for attachment, belonging and identity, research on transnationality focuses more on connections that exist through actual networks” (Bonnerjee et alii, 2012: 12) 8 the key feature of transnationality is that it refers to ‘embodied movements and practices of migrants and/or the flows of commodities and capital, and analyse these flows with respect to national borders and the cultural constructions of nation, citizen and social life’... Consequently, much research on transnationality has focused on the networks through which ‘communities’ are constructed, alongside the creation of ‘transnational social spaces’ (Bonnerjee et al, 2012: 12). 7

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Portanto falar de transnacionalização implica em apresentar as formas pelas quais comunidades são construídas através de redes que operam entre espaços. Ou seja, como observado por esses autores, falar de comunidades transnacionais é falar de “connected communities” mais do que comunidades imaginadas. Também acompanhamos os autores na definição de “comunidade” (“a procura por pertencimento nas condições inseguras da sociedade moderna”), bem como seguimos sua noção de “comunidade estendida” (stretched-out community) a fim de relacionar comunidade e transnacionalização. Assim, podemos concluir nosso “freio de arrumação” conceitual esperando ter deixado claro qual o sentido em que adotaremos o conceito de transnacionalidade e como ele será aqui referido. Recapitulando: transnacionalização significará, neste trabalho, a junção das noções de desterritorialização, indigenização e formação de redes. Este último em um sentido mais apurado, o de “connected communities”, conforme acabamos de mostrar. Tendo definido o sentido pelo qual a transnacionalidade será aqui referida, voltemo-nos na direção de entender como a fé pentecostal é usada para criar conexões entre espaços culturais, étnicos, e linguísticos. Enquanto o debate na literatura internacional gira em torno do aparato institucional pentecostal ou da capacidade do líder de fazer o papel de nó entre redes transnacionais, queremos focar na construção dos significados e motivações que levam indivíduos pentecostais a moverem-se transnacionalmente. A figura do líder pentecostal também será importante, mas, desta feita, para compreendermos como a constituição de líderes carismáticos (pastores, obreiros, missionários, cantores), em algumas ocasiões, acontece paralelamente à construção de vocações

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transnacionais. Perguntamo-nos, mais especificamente, sobre as experiências que tornam os crentes pentecostais imbuídos do desejo de moverem-se transnacionalmente, aceitando o comissionamento de expandir sua fé globalmente na interação com a liderança pentecostal. Antes, porém, é necessário compreender o que chamamos de circulação do carisma pentecostal, porque é através das cadeias de interações carismáticas, na busca generalizada pelo carisma, que vocações transnacionais podem ser criadas.

A busca generalizada pelo carisma e a construção de chamados transnacionais Em trabalhos anteriores denominamos a cultura pentecostal como baseada na busca generalizada pelo carisma (Mauricio Junior, 2011). Com isso, queremos afirmar não ser monopólio do líder carismático o sentido de posse do carisma. Pelo contrário, para ser “usado por Deus” - objetivo de todo crente - o fiel também deseja, mais do que isso, necessita de carisma para si (Campos, 2011, 2014), a fim de adquirir o status mandatório de pessoa pentecostal completa9 (Campos; Mauricio Junior, 2012). Por sua vez, o conceito de carisma, consagrado por Weber (2000), é utilizado aqui para dar conta de categorias nativas pentecostais como “a unção do Espírito Santo” ou Apresentamos a trajetória de construção da pessoa pentecostal como uma passagem do status de neófito para o de profeta (a pessoa pentecostal completa). Para mais detalhes, ver Campos; Mauricio Junior, 2012.

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“o poder de Deus”. Fazemos dele referência, em suma, para representar a potência que permite ao fiel agir carismaticamente, ou seja, ingressar nas interações que definimos como carismáticas, passando a entender a si mesmo - e ser reconhecido pelo seu grupo - como pessoa pentecostal completa. Estas interações promovem o que chamamos de circulação do carisma10, ou seja, a construção (do sentido) de um fluxo carismático entre o líder pentecostal e os pastores e crentes comuns, principalmente durante a performance carismática realizada pelo primeiro em meio à sua prédica. Mostramos em detalhes, também, como esta circulação do carisma iniciada na interação-origem entre o líder carismático e o fiel, repercute nas interações carismáticas entre os próprios fieis, e entre estes e os não-crentes, o que se configura como um dos princípios indispensáveis à expansão pentecostal (Campos; Mauricio Junior, 2013). Como se dão na prática, então, as interações carismáticas entre os pentecostais, onde se dá, para nós, a circulação do carisma? Baseado nos trabalhos de Simon Coleman (2000, 2006, 2009), entendemos que elas se concretizam através de Um processo contínuo de internalização e externalização, gerando uma cadeia de circulação verbal onde cada crente, tendo armazenado, internalizado, o carisma em seu self através das chamadas experiências de in-filling (preenchimento), precisa esten-

Para uma discussão mais completa do nosso uso do conceito de carisma e de como ele permite que possamos pensar em sua circulação ver Campos e Mauricio Junior, 2013. 10

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dê-lo (reaching out)11, externalizá-lo, ao (ainda que desconhecido) outro, sobretudo no ato de “dar uma palavra”, “abençoar” ou “profetizar sobre a vida do seu irmão (Mauricio Junior, 2011: 61-62).

São justamente estas interações, que intitulamos de carismáticas, responsáveis por despertar a vocação das lideranças pentecostais, além de confirmar a autoridade daqueles que a conduzem (para mais detalhes, ver Mauricio Junior, 2014). No que diz respeito a este trabalho queremos afirmar que, quando um irmão de fé dá uma palavra “da parte de Deus” a outrem promovendo a circulação do carisma, também são responsáveis por ativarem vocações transnacionais, levando fiéis a se entenderem como chamados por Deus para moverem-se transnacionalmente. Não excluímos aqui os fatores institucionais, políticos e econômicos da transnacionalização do pentecostalismo. Nosso objetivo é tão somente mostrar como os fiéis pentecostais podem assumir posições nas redes transnacionais de suas instituições como uma resposta de fé a um chamado considerado divino. Vejamos: Nossa pesquisa sobre liderança pentecostal se deu principalmente entre os crentes da Assembleia de Deus (AD), mais precisamente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), a igreja de Silas Malafaia. A AD foi fundada por dois missionários suecos, Daniel Berg e Gunnar Vingren, que deixaram a Suécia chegando ao Brasil em 1910, passando um período nos Estados Unidos antes de desembarcarem em Belém do Pará. A forma como os fundadores da AD foTraduzimos por “estender-se” o termo “reaching out”, usado por Coleman (2000, 2006, 2009). Significa um princípio formador da identidade do crente, que deve estender-se até, ou alcançar, os outros, contribuindo para a formação de seus selves carismáticos. 11

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ram “chamados por Deus” para o trabalho missionário no Brasil é um exemplo de como as interações carismáticas citadas acima engendram vocações transnacionais. Tendo deixado a Suécia e imigrado para os Estados Unidos, Berg e Vingren estavam reunidos em um culto em South Bend, Indiana, pedindo para que Deus revelasse seu propósito para a vida deles. Foi quando um irmão de fé presente no culto afirmou para ambos que, enquanto orava, Deus teria lhe mostrado uma palavra, Pará, e entendia que este seria o nome de uma cidade. Nenhum dos presentes sequer sabia do nome ou da existência deste local. O profeta dizia ainda ser esta palavra a resposta que Berg e Vingren estavam procurando para o seu futuro. Ambos foram à biblioteca da cidade e descobriram se tratar de um Estado brasileiro, logo ao sul da linha do Equador (Berg, 1995). A questão agora era arrecadar o dinheiro e ir à Nova York, já que era de lá que partiam os navios em direção à América do Sul. Berg e Vingren fizeram uma visita a um pastor, dono de um jornal que difundia o avivamento pentecostal. Chegando lá, Deus teria dito a Vingren para que doasse ao pastor todo o dinheiro que possuía - um montante de noventa dólares. No mesmo dia, em um culto, receberam dos irmãos ali presentes quantia mais do que suficiente para irem até Nova York. Chegando lá, enquanto caminhava pelas ruas, Vingren encontra um conhecido que o entregou uma quantia em dinheiro, afirmando tê-lo feito devido a um sonho no qual Deus ordenara enviar aquele recurso por correspondência para o próprio Vingren. Naquele exato momento, ele estava caminhando em direção aos correios para enviá-lo a quantia de 90 dólares. De posse deles, Berg e Vingren foram em busca do navio que zarparia em direção ao Brasil (Berg, 1995; Conde, 2008).

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É necessário reforçar como a convicção de que os fundadores da AD brasileira deveriam deixar os Estados Unidos em direção ao Pará foi sendo construída a partir das interações carismáticas com os fiéis e líderes pentecostais. O carisma circulou no ato de “dar uma palavra” quando Adolf Udlin, o irmão que sonhou com o Pará, profetizou para Berg e Vingren. Desta interação, aquele saiu confirmado como profeta e os últimos tiveram sua vocação transnacional ativada. A circulação do carisma também se deu em forma de recursos financeiros. A cadeia que se forma quando Berg e Vingren doam os 90 dólares, e os recebem de volta em Nova York faz crescer a convicção de que eles estavam baseados em sua fé para seguirem em frente na sua decisão. Esta constituição de vocações transnacionais a partir de interações carismáticas não se restringe ao mito fundador da maior igreja evangélica brasileira. Em trabalho de campo entre os fieis da ADVEC, Mauricio Junior (2014), ao realizar uma etnografia da construção das subjetividades dos líderes carismáticos, percebeu que as narrativas que serviram de lastro para a veracidade dos chamados daqueles jovens candidatos a pastor giravam necessariamente em torno de encontros místicos baseados no “dar/receber uma palavra da parte de Deus”. Estes encontros, além disso, reviviam mitos fundadores tanto dos líderes carismáticos já consagrados no meio pentecostal, quanto dos mitos bíblicos. Em suma, ao ser perguntado como se deu a ocasião de seu “chamado” para pastor, o vocacionado, em geral, relatava uma experiência mística que define o momento no qual foi separado, chamado por Deus para a carreira pastoral. Dentre as entrevistas feitas por Mauricio Junior, a realizada com Ivan (26 anos) diz respeito diretamente ao foco deste trabalho:

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- Qual é o teu chamado? - Ser um pastor que as pessoas chamam de Evangelista. Que seria ir para os lugares, pregar a palavra, implantar uma igreja, deixar a igreja lá andando sozinha e ir para outro lugar pregar a palavra... Deus me chamou pra isso: Pra fazer o que costumamos chamar aqui no meio pentecostal de pastor-missionário. Desde os meus doze anos de idade... Mas o chamado ficou muito forte a partir dos 16 anos. Foi quando Ele foi claro. - Claro? De que forma? - Foi quando Deus usou uma irmã... Ela me parou na rua e disse o seguinte: - ‘Ivan, sabe o que Deus está me mostrando? Que você vai ser enviado, você e sua família, para o campo missionário’. E aquilo ardia muito forte no meu coração desde pequeno, mas não era claro. Mas só que nesse período, entre 16 e 18 anos, quando a irmã Gorete falou que Deus iria me enviar [junto com minha família] para o campo missionário eu não estava sequer namorando... ... E o lugar que Deus me mostrava era um só, o Egito. Eu sou apaixonado pelo Egito. Eu não entendia. Hoje entendo porque desde pequeno eu era apaixonado pelas coisas do Egito. Estudei as pirâmides. Estudei a história do lugar. As dinastias dos faraós. Estudei tudo. E eu não entendia porque eu era tão apaixonado por isso. Era por causa do chamado de Deus na minha vida e eu não entendia ainda....

Quando a irmã “dá a palavra” da parte de Deus a Ivan, esclarece um interesse que este afirma já estar “em seu coração” desde sempre, colocado por Deus. Esse esclarecimento se dá muitas vezes entre irmãos de fé, como vimos, mas principalmente na relação com o pastor ou uma liderança religiosa. O próprio Ivan afirma terem perseverado dúvidas 38

a respeito de seu chamado mesmo após o episódio acima relatado. É através da pregação de um pastor que o seu chamado é confirmado. Assim ele nos diz: Em outubro de 2012, ano passado, no congresso de juventude da ADVEC Natal, Deus tornou público aquilo que ele havia falado pra mim. Estava acontecendo um culto na igreja onde o pastor Alex Moreno estava pregando. E ele parou a ministração e falou assim: ‘Está aqui no meio de nós – e havia cerca de 450 jovens – o líder da juventude da igreja de lá do Recife. Ele está aqui’. Estava escuro, estava com jogo de luz e tudo. Então, [ele pediu] que [esta pessoa] se identificasse e eu não me manifestei porque até então éramos cinco líderes. Era uma comissão de liderança que tinha cinco líderes e eu estava no meio. Mas aí ele foi específico: ‘Ele estava em uma reunião lá na sala junto com os pastores. Estavam todos os pastores e só ele de jovem tava lá dentro’. Só tinha eu mesmo, não tinha como escapar. Então eu levantei a mão e me identifiquei. Ele falou: ‘Assim diz o Senhor’. [E depois] começou a falar: ‘Deus tem visto a dedicação que você tem tido à obra dEle. Ele tem te visto no serviço da casa do Senhor, como você tem cuidado dos pastores. Do jeito que você tem feito, Deus vai fazer com você. Deus vai levantar você com muita pressa para pastorear as ovelhas’. E começou a dizer tudo o que Deus faria na minha vida, tornando público o chamado que Deus havia entregue a mim ainda pequeno.

Trajetória semelhante se dá com Márcia (nome fictício), que trabalhou como missionária para sua igreja, a Batista Renovada. Depois de ser enviada para Londres para aprimorar seu inglês, lá ficou por quatro anos auxiliando em uma

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igreja para imigrantes. Depois, trabalhou numa cidade do Marrocos em cooperação com uma ONG realizando assistência social durante mais quatro anos e meio, e atualmente desenvolve outro projeto social na Espanha. Perguntamos a ela como teria surgido o desejo de ser missionária e deixar seu lar para fazer missões em outros países12. Ela nos disse: Primeiro eu ouvi dentro de mim Deus me dizendo o que era pra eu fazer... eu ouvi dentro de mim que eu deveria mesmo largar tudo, os sonhos, meus sonhos de ser tradutora - eu queria ser tradutora por mim e também porque eu pensava em ganhar dinheiro e transformar minha família, a condição financeira da minha família - e foi difícil pra mim no comecinho, mas um dia indo num culto em uma casinha de uma irmã, que era até da Assembleia [de Deus], ela perguntou se eu podia me ajoelhar, eu disse que sim e ela orou por mim: ‘eu vejo você trabalhando com um povo bem carente num futuro, você fazendo um trabalho muito bonito’... mas eu não tava convencida ainda, não sabia muita coisa. Depois, outra vez que eu lembro bem, eu fui num culto em Olinda, e sentei lá e a pessoa que tava dirigindo o culto disse assim: ‘hoje chegou uma pessoa aqui que ela foi chamada pelo Senhor, ela tem um chamado do Senhor’... e foi dizendo ‘essa pessoa vai fazer isso e isso e isso e isso’, e claro, eu tava louca pra conhecer quem era essa pessoa e aí ela vai e diz [apontando pra mim]: “você que tá sentada aí, fique de pé”. Eu pensei: nunca que sou eu, essa mulher tá louca, eu não sou essa pessoa”. Só depois vim a entender, né. Ela tava vendo meu futuro. Diferentemente dos dados referentes à entrevista com Ivan, retirada da dissertação de Mauricio Junior (2014), a entrevista com Márcia faz parte do âmbito de uma pesquisa exploratória sobre missionários brasileiros no exterior, desenvolvida pelos autores deste capítulo. 12

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Como Ivan, vimos que o chamado de Márcia é “ativado” na interação com os irmãos em situações místicas, de circulação do carisma, as quais denominamos de carismáticas. Esta trajetória da concretização da vocação necessita, no entanto, de experiências de confirmação (ver Mauricio Junior 2014 para uma explanação mais detalhada) para que as convicções dos vocacionados sejam moldadas em direção à aceitação do comissionamento que lhes é outorgado. Também como Ivan, vimos como Márcia havia permanecido receosa em relação à veracidade do seu chamado e esta convicção no seu chamado advém de outra experiência: Depois de uns dois anos, vou a um encontro [que aconteceu em um clube] e durante uma apresentação de teatro em que se falava das necessidades enfrentadas pelas crianças pelo mundo todo, ouvi uma voz dizendo assim: ‘você deixa tudo por isso?’. Depois eu tenho a sensação que eu estava sendo arrancada do meu Estado... E eu escutava uma segunda vez: você deixa tudo por isso? E na terceira vez (... ) era como se eu não tivesse nação, família, nada, nada, nada. Eu tava totalmente solta, e eu escutava a voz de novo assim: você deixa tudo? (...) Eu disse sim, eu deixo tudo por isso ai... então o que eu comecei a fazer a partir disso foi me preparar.

Tanto na ativação do chamado, quanto na confirmação do mesmo, a participação em interações carismáticas capitaneadas com pessoas situadas em um maior nível da estratificação carismática, ou seja, líderes considerados pessoas “cheias do Espírito Santo” (aqueles que manejam virtuosamente tais interações) é essencial para por o carisma em circulação e servir de lastro tanto para a confirmação das voca-

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ções quanto para a necessária modelagem das subjetividades a elas atreladas. Márcia é nitidamente chamada a desterritorializar-se a fim de buscar a re-territorialização aonde, em suas palavras, Deus a quisesse enviar, expandindo o carisma e fazendo-o circular transnacionalmente.

Considerações Finais Assim, as cadeias de interações pelas quais o carisma circula - e nas quais todo crente tem o dever de se engajar - atuam na formação da pessoa pentecostal (Campos; Mauricio Junior, 2012, 2013), como também na formação de vocações, inclusive transnacionais. Tentamos mostrar como a liderança pentecostal - detentora, também, de capital social e institucional - é capaz de influenciar os fiéis a evangelizar no estrangeiro. Não se trata da capacidade do líder em criar conexões transnacionais tão somente. O foco não está nas suas qualidades pessoais e habilidades para mover-se entre as redes, mas na interação entre líderes e fieis ordinários. Tratamos de uma microssociologia da transnacionalização religiosa que se debruça sobre a relação entre a circulação do carisma e a constituição de vocações transnacionais. O compartilhamento do carisma se dá através de diferentes formas e canais e uma das características deste compartilhamento - assim esperamos ter deixado claro - é a ativação da motivação dos fieis em moverem-se transnacionalmente, criando conexões a partir da fé pentecostal.

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PENTECOSTALISMO, GLOBALIZAÇÃO E CONSUMO: UMA REFLEXÃO TEÓRICA SOBRE OS BENS DE MARCAÇÃO RELIGIOSA* Daniel Alves

No interior de grandes períodos históricos, transforma-se com a totalidade do modo de existência das coletividades humanas também o seu modo de percepção. Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.

Introdução O presente texto, escrito na forma de ensaio interpretativo, visa circunscrever o objeto comumente descrito como “consumo-religioso”, que em nosso entender configura-se como a ponta de um processo de produção e circulação de bens de marcação religiosa. Distantes tanto de uma análise comportamental de consumo quanto de uma teoria crítica desses bens, almejamos diferenciar de forma analítica estes objetos de outros também reconhecidos como “religiosos”. *A reflexão do presente texto insere-se no contexto do projeto de pesquisa “Religião e consumo: análise da circulação e consumo de bens religiosamente marcados na microrregião de Catalão-GO”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital MCTI/CNPq/ Universal 14/2014)

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Numa segunda parte, partimos para uma interpretação da relação entre consumo religioso, mídia e globalização, com o objetivo de mapear algumas tendências teóricas e expor alguns caminhos de investigação sobre o tema.

Circunscrevendo os objetos de marcação religiosa Ao entrar numa religião, sendo por socialização ou conversão, o sujeito vai sendo incorporado ao grupo a partir de um sistema de ideias que corresponde, em alguma medida, a um sistema de objetos. Estes objetos são ferramentas de identificação e inculcação. Ainda que possamos analiticamente separar estas faces do fenômeno, é importante salientar que identificação e inculcação fazem parte de um processo indissociável na prática. Objetos religiosamente marcados comportam em si algo que remete a um todo, um mundo povoado de símbolos e signos que dão sentido a uma gama considerável de questões, que vão desde o destino do ser depois da morte e a existência de seres racionais não perceptíveis, passando pela ordem do universo até questões prosaicas como o que fazer com o dinheiro em face da ordem cósmica. O vajra do budismo tibetano, as bíblias cristãs, o ostensório católico e os objetos de assentamento de santo nas religiões afro-brasileiras fazem parte de quatro sistemas de objetos religiosos diferentes, mas que, dentro de seus contextos, ganham uma dimensão que se convencionou chamar sagrada. Colocar objetos consagrados como mercadorias partícipes da mesma lógica dos objetos profanos pode gerar reações emocionais coletivas (blasfêmia). Contudo, o fato é que estes objetos, em algum 48

momento anterior à consagração, são vendidos. Os mecanismos de consagração religiosa é que os retiram da circulação comum, levando-os a outro patamar. Um objeto que pertenceu a um grande mestre budista tibetano, os ostensórios que portam hóstias cridas como corpo de Cristo ou os objetos enterrados para consagrar uma casa a um santo são objetos de consagração ligados ao ofício dos especialistas religiosos, que é criar bens religiosos de salvação. Isso os retira do mercado comum dos objetos religiosamente marcados. A reprodutibilidade técnica pulverizou o senso do sagrado. Essa pulverização talvez fosse melhor expressa pelo verbo francês éclater (espalhar de forma explosiva e efusiva), bastante explorado no plano mitológico ameríndio por Lévi -Strauss em sua obra A Oleira Ciumenta (1985). Pulverização sugere, de certa maneira, enfraquecimento. O que ocorreu com a religião na era da reprodutibilidade técnica foi o contrário. Ao estilhaçarem-se, os objetos de marcação religiosa passaram a intensificar o processo de identificação/inculcação. Esse fenômeno acompanha o “conjunto dos processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios para satisfazê-las” (Hervieu -Léger, 2008: 41). Seria fundamental pensar a expansão dos objetos marcadamente religiosos por meio da reprodutibilidade técnica, na sociedade individualista moderna, dentro desse paradoxo da satisfação impossível das necessidades criadas por esta mesma sociedade. Portanto, temos na rama dos objetos religiosamente marcados pelo menos duas categorias: a dos objetos dedicados à consagração religiosa hegemônica e a dos objetos para marca-

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ção ou consumo religiosos. Ambas remetem a uma mediação institucional do sagrado: os primeiros firmam as identidades dos já inseridos/convertidos/inculcados, os segundos servem mais como portas de entrada. Os livros religiosos, CDs e DVDs, via de regra, fazem a ponte para que a pessoa que lê insira-se num grupo e passe a coletivamente partilhar daqueles princípios. Contudo, objetos de consumo religioso prestam-se à livre interpretação: eles induzem, não dirigem à prática religiosa. Um indivíduo interessado em religiões pode ter muitos livros católicos e espíritas em casa, e se declarar budista (Alves, 2004). De maneira semelhante ao pedestre nas metrópoles (De Certeau, 2008), o indivíduo pode inventar um caminho e encontrar as suas estratégias de interpretação frente aos conteúdos que consome. Mas assim como algumas ruas prestam-se mais ao exercício da autonomia de circulação dos pedestres, os diferentes conteúdos de objetos de marcação religiosa supõem relações de maior autonomia ou heteronomia de interpretação da parte do consumidor. O “Catecismo da Igreja Católica” e o livro do padre Marcelo Rossi “Ágape” são ambos vendidos nas lojas católicas brasileiras, mas o primeiro, enquanto manifestação de uma eclesiologia, abre possibilidades muito restritas de autonomia de interpretação do sujeito se comparado com o segundo. Se existem as máquinas-ferramenta do ofício religioso, há também os objetos contra-hegemônicos de consagração religiosa. Eles escapam, por estratégias e táticas, do controle institucional das igrejas e dos templos. A partir e através deles, novos santos não cessam de surgir e se difundir na América Latina. No Brasil, os ex-votos do catolicismo popular correspondem mais perfeitamente a estes objetos. Estes objetos encerram em si uma heteronomia interpretativa radical 50

do santo em sua relação direta mas hierárquica do fiel com o mediador, que espelha as diferenças de classe em sociedade. E se existe a indústria para a indução das massas aos grupos religiosos, existe a indústria de objetos de marcação religiosa difusa, que se destina a uma fabricação íntima de um caminho espiritual. Objetos de consumo religioso difuso que respondem a uma sensibilidade religiosa do estilo nova era. Portanto: essa tipologia, como outra já publicada sobre outro tema (Alves, 2012a) serve como um mapa inicial. Ela norteia o olhar sobre o objeto, mas continuamente a realidade observada descortina nuanças e transitoriedades. O enrijecimento esquemático aconteceria se não houvesse rebatimento com dados empíricos, o exercício de sua interpretação e o retrabalho intelectivo sobre o esquema. Há outra questão mais profunda. Pareceria aqui uma espécie de “retorno positivista”, que supõe que a realidade seja ordenada e que o pensamento traduz, simples e transparentemente, a ordem exterior ao sujeito. Por isso, não estamos falando de objetos, mas de formas de objetificação que relacionam elementos da realidade física com sistemas de representação, ambos em constante mudança.

Consumo, racionalidade e globalização Assumimos, portanto, que a objetificação por marcação no consumo religioso é hegemônica, no que tange à produção de seu conteúdo como indutora de adesão ou consolidação de adeptos a instituições religiosas, mas de interpretação autônoma por parte dos sujeitos que se relacionam com esses objetos materiais. Esse espaço da autonomia subjetiva da in51

terpretação da escrita, por sinal, construiu-se originalmente a partir da reivindicação da interpretação bíblica pelos protestantes no século XVI. Expandindo-se às imagens e aos sons, a existência desse espaço de autonomia interpretativa tornou possível a criação dos campos literário e artístico, assim como da indústria cultural de massa. A indústria cultural de massa, fenômeno social eminentemente moderno, diz respeito à dimensão societária, ou seja, às ações sociais voltadas a fins. Por mais que seu conteúdo transmita valores, sua produção responde à sustentação de empreendimentos capitalistas, sofrendo influências de mercado. Entenda-se, no que tange a tais influências, que a disponibilidade de objetos no mercado e a possibilidade de obtê-los refletem as desigualdades do espaço social. No que tange aos objetos marcados com significados religiosos, suas disponibilidades e segmentações, seus conteúdos e interpretações, respondem de alguma forma às desigualdades existentes no campo religioso. A tradução teórica dessa forma seria, a nosso ver, um dos objetivos primordiais do conjunto de trabalhos que se dedicam aos objetos de marcação religiosa para o desvendamento das lógicas sociais de identidade e desigualdade social. Featharstone (1997) separa três linhas de reflexão sobre o consumo: uma primeira associada à crítica da indústria cultural de massa da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer); outra, socioantropológica, trabalha sobre os sistemas simbólicos/sociais que atuam, de modos mais ou menos estruturantes, nos atos racionais da escolha (Veblen, Bourdieu, Balandier, Sahlins, Douglas); e outra, psicogenética, enfatiza os processos históricos que sedimentaram o surgimento do sujeito consumidor (Elias, Campbell). Filiamo-nos aqui à segunda linha de reflexão mencionada por Featharstone. 52

Estendendo o paradoxo da secularização nas sociedades modernas mencionado anteriormente, diríamos que a profusão do mercado de objetos de marcação religiosa faz crescer, do ponto de vista das religiões institucionalizadas, os riscos da interpretação autônoma dos não-especialistas. A racionalização, nas sociedades modernas tardias, faz aumentar o espectro de incertezas sobre a realidade e, por conseguinte, a percepção coletiva de que focos de irracionalidade podem levar ao descontrole absoluto (ver o fundamentalismo enquanto tema científico e/ou ferramenta de dominação político-militar). Da mesma maneira, a ampliação do desenvolvimento técnico e tecnológico humano estimula a percepção coletiva de que haja riscos inerentes e irreversíveis que levariam a um colapso planetário (Beck, 2010). Consideramos que a percepção dos riscos é construída em grande medida pelas lutas pela hegemonia de categorias de entendimento internas aos campos sociais (religioso, político, científico), porém a visão analógica a la Pierre Bourdieu oblitera dois aspectos importantes: a interdependência entre os campos e a relativa independência das trajetórias das polêmicas em relação aos campos (este último, tratado especialmente em obras de Bruno Latour). Os agentes especialistas das instituições religiosas tradicionais apresentam visões por vezes divididas em relação à profusão de objetos vendidos com marcação religiosa. Alegria, talvez, por ver povoado o mundo de objetos marcados pela sua religião, ou por alguma orientação de valor num mundo secularizado. Por outro lado, essa profusão pode ser entendida como risco quando se encontram sentidos religiosos em objetos de consumo mediados por dinheiro. Uma das fontes tradicionais de dominação simbólica, especialmente no campo da religião, continua a ser o “ato desinteressado” 53

(Bourdieu, 1996), sendo assim, pode haver um choque de lógicas religiosas e mercantis, geralmente equacionado no cristianismo pelo entendimento de que os bens e o dinheiro são bênçãos (“foi Deus quem me deu”) que podem ser circulados dentro de uma lógica religiosa. O consumo de bens de marcação religiosa torna oneroso o controle institucional sobre a interpretação dos sujeitos, mas por outro lado promove o encontro financeiramente rentável de um mundo de objetos que anunciam com o de neo-conversos que são levados a renunciar, ou de convertidos levados a confirmar sua fé. A socialização dentro das religiões é parte importante do processo de recepção de um novo adepto, seja ele nascido em uma família já pertencente ou não. No cristianismo, a inserção de um novo membro numa comunidade de fiéis se dá por meios semelhantes, passando pelo compartilhamento de vivências comuns nos rituais, nas formações religiosas, nas festividades. Por mais que as considerações anteriores pareçam ultrapassadas pela sua inspiração durkheimiana, mesmo quando a religião é vista sob o ponto de vista moderno do mercado religioso, esta dimensão comunitária não desaparece. Os grupos cristãos continuam, nos dias de hoje talvez até mais do que outrora, a partilhar símbolos que os identificam poderosamente através das formas sensoriais (especialmente associadas à visão e à audição) exploradas pelas mídias. Só que as tradicionais instituições religiosas, típicas do catolicismo e evangelismo organizados em igrejas, perderam o monopólio dessa produção e distribuição simbólica, sendo esta uma faceta do processo de secularização. E essa intensificação do compartilhamento por meio das mídias eletrônicas e impressas vem produzindo a aceleração de desterri-

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torializações e reterritorializações de símbolos religiosos e suas interpretações, sendo esta uma faceta de outro macroprocesso: globalização. A comunitarização religiosa baseada na tradição não encontra obstáculo com a globalização; aliás, mui-tos trabalhos tem revelado que o contrário acontece com frequência em nossos dias (p. ex., Castells, 2000). Processos de comunitarização religiosa parecem prescindir da territorialidade da igreja. Espaços de sociabilidade passam a surgir em redes sociais eletrônicas e igrejas on-line. Diz-se com frequência (Freston, 1994; Mariano, 2005) que o pentecostalismo clássico era refratário ao mundo, tanto em termos de valores quanto em termos políticos, e que esta relação com o mundo estaria sendo uma resposta do pentecostalismo contemporâneo, muito mais permeável aos valores capitalistas do sucesso e da fruição da vida. Indiretamente, isso serviu para interpretar a relação dos evangélicos com as mídias, que também teria sido estreitada apenas nas últimas décadas. Assumir essa conexão de fatores impede de perceber a forma social do uso das mídias pelos pentecostais do início do século passado, algo talvez mais estudado pelos próprios pentecostais quando contam a sua história. As conversões ao pentecostalismo relacionam-se quase sempre a testemunhos de transformações pessoais de outros convertidos que emergem tanto em texto (uma retórica discursiva), quanto em contexto (um meio sociocultural específico) e em pré-texto (uma tradição cristã bíblica, no caso latinoamericana). As mídias impulsionaram e impulsionam estas mensagens para dentro e para fora do campo pentecostal, e o estudo do emprego destas mídias, a nosso ver, pode ser uma chave para a compreensão da globalização religiosa contemporânea.

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Postulamos que tais objetos conformam os indivíduos a modos de subjetivação específicos (Foucault, 1984), dentro dos quais as emoções e pulsões individuais são equalizadas num diapasão simbólico de cunho religioso. Existem implicações sociológicas e políticas importantes na difusão destes modos religiosos de ser. Partilhamos com outros trabalhos semelhantes o interesse pelas formas de diálogo que os conteúdos dos objetos religiosos mantém entre si, de forma a configurar “um universo de consumos culturais que outorga um sentido de qualificação e pertencimento à pessoa” (Algranti, 2013: 47 [tradução livre do espanhol, minha]). Esse modo de ser, no caso do Pentecostalismo, pretende-se global. Já discutimos em outros momentos os fundamentos religiosos da concepção globalizante de Igreja (Alves, 2012b), assim como suas implicações para a construção de “imagens da ordem global” nas crenças e práticas pentecostais (Alves; Oro, 2012). Adendaríamos apenas que, do ponto de vista da teoria crítica, CDs, DVDs e li-vros, enquanto bens de consumo modernos de massa, acentuam seu valor de exposição em detrimento ao seu valor de culto (Benjamin, 2012), e nisto a perda da aura da obra de arte estaria totalmente em conformidade com o processo de globalização. Mas há mais aqui. No campo do pentecostalismo avivado, há motivos para dizer que, na apreciação de livros de pregadores ungidos e nos DVDs e vídeos de cultos na Internet que dão testemunho de poder espiritual, a sensação experiencial hic et nunc característica da discussão da aura em Benjamin (muito associada pelo autor à dimensão ritual originária da apreciação estética no Ocidente) retorna na forma de deleite espiritual interior em cadeia. Por isso, analisar redes transnacionais de líderes pentecostais exigiu uma compreensão

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de uma racionalidade teológica, de uma estética de si e de formas de desterritorialização e reterritorialização. Um aspecto interessante do consumo religioso de massa, em relação aos seus conteúdos veiculados, são as estratégias de marcação e, por vezes, desmarcação religiosa. Citemos dois exemplos. Algumas bandas que se identificam como evangélicas ou católicas expandem suas audiências por meio da atenuação do foco de sua mensagem, possibilitando o entendimento de que suas músicas não falam de valores religiosos. Isso tem acontecido a respeito das músicas de bandas de rock como Rescate na Argentina (Semán; Gallo, 2008) e Rosa de Saron, no Brasil. Livros como os de Bernardo Stamateas na Argentina (Rocca, 2013) ou os do padre Marcelo Rossi, no Brasil, são vendidos entremeando as linguagens dos ensinamentos com a autoajuda. Outra estratégia, talvez mais perceptível no campo do consumo religioso do que a anterior, está na divulgação de marcas religiosas como a Canção Nova no Brasil (Sena, 2013) e as editoras de livros e gravadoras de música que não cessam de surgir no meio evangélico, geralmente associadas a alguma instituição religiosa.

Considerações Finais Parte importante do processo de socialização nas religiões passa pelo compartilhamento de bens de consumo de marcação religiosa, como livros, CDs e DVDs. A circulação destes bens intensifica-se com sua veiculação via internet, seja para sua divulgação ou aquisição. O processo de globalização intensifica a circulação de bens produzidos em outras partes do globo, amplificando a identificação religiosa 57

para além das comunidades locais e difundindo imagens da ordem global. Temos, portanto, formas de consumo de reforçam a marcação religiosa dos bens, estreitando-os a um pertencimento específico. Por outro lado, torna-se perceptível outra estratégia de difusão da mensagem a públicos externos aos grupos religiosos. Especialmente no que tange à produção musical, observamos bandas que vêm intencionalmente desmarcando os elementos religiosos das letras, com o intuito de atenuar proselitismos no conteúdo e atrair pessoas “de fora” das comunidades religiosas. Também, especial-mente no que se refere ao gospel, percebemos que músicos seculares incorporam em seus repertórios músicas conhecidas no meio evangélico. Refletimos aqui sobre bens religiosos de marcação religiosa, os redimensionamentos de fronteira entre religioso e secular promovidos por tais processos, a importância das mídias na cadeia de consumo de tais bens e suas relações com a globalização das religiões.

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DINÂMICAS DO PENTECOSTALISMO BRASILEIRO NA EUROPA: O CASO DA IURD EM PORTUGAL, ESPANHA, IRLANDA, ITÁLIA E ALEMANHA Donizete Rodrigues Marcos de Araújo Silva

Introdução O neopentecostalismo, protestante e católico, surgiu nos Estados Unidos na década de 1960 e rapidamente se expandiu para diferentes regiões do globo, nomeadamente para a América Latina e África (Corten; Fratani, 2001). A partir deste movimento religioso, surgiram nestas regiões milhares de novas igrejas protestantes-evangélicas (Chesnut, 1997). Sendo uma ‘religion on the move’, ou seja, com forte mobilidade geográfica - de fiéis, igrejas e missionários (Fer, 2007) - é hoje um dos maiores e mais dinâmicos movimentos religiosos (Coleman, 2000; Martin, 2002), sendo o Brasil o país com a maior concentração de pentecostais do mundo (Freston 2010)13. Este movimento religioso continua em forte processo de expansão. Segundo o Pew Forum on Religion & Public Life (2011), há atualmente cerca de 870 milhões de pentecostais no mundo, sendo 305 milhões de origem católica (os carismáticos) e 564 milhões de origem protestante (os evangélicos). 13

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A forte expansão do neopentecostalismo a partir da América Latina para a Europa ocorre dentro da denominada ‘reverse mission’ (Freston, 2010). Surgidas a partir do trabalho de evangelização do continente americano pelo protestantismo europeu (no início do século XVI) e do seu reavivamento religioso materializado no pentecostalismo norte-americano (no início do século XX), as novas igrejas protestantes pentecostais consideram-se responsáveis pela importante ‘missão divina’ de (re)cristianizar a Europa; anteriormente exportadora de instituições e doutrinas religiosas - e que passa hoje por um forte processo de secularização/laicização (Davie, 2002) - a Europa é hoje um território fértil para o trabalho missionário cristão oriundo preponderantemente da América Latina (Oro, 2013; Rocha; Vásquez, 2013). Com base em trabalho de campo na perspectiva da etnografia multi-situada (Falzon, 2009), este capítulo aborda um importante aspecto da diáspora do neopentecostalismo brasileiro: a expressiva presença e atuação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) na Europa. O estudo incidiu sobre o seu forte proselitismo, que visa a conversão e o reavivamento religioso de imigrantes (brasileiros e negros africanos) e de nacionais. A análise comparativa, entre cinco países europeus (Portugal, Espanha, Irlanda, Itália e Alemanha), possibilitou observar importantes especificidades e diferenciadas estratégias de evangelização entre grupos étnico-raciais tão diferenciados. A abordagem incide, em particular, na relação entre religião e um fenômeno migratório transcontinental, caracterizado por uma mobilidade geográfica religiosa, uma enorme expansão pentecostal do chamado “Sul” para o “Norte” global14, provocando mudanças significativas no panorama religioso mundial e criando, desta forma, novas ‘spiritual geographies’ (Maskens, 2012). 62

O Neopentecostalismo Brasileiro A partir do final dos anos de 1980, as principais igrejas protestantes-evangélicas e grupos católico-carismáticos brasileiros começaram um rápido e expressivo movimento de expansão internacional e, como consequência, o Brasil é hoje um importante (se não mesmo o primeiro) país exportador de missionários protestantes e católicos (Velho, 2009; Mariz, 2009). Neste contexto da dinâmica mundial do pentecostalismo brasileiro, a IURD é o movimento religioso com maior expressão e visibilidade. Esta igreja, criada no Rio de Janeiro, em 1977, pelo então pastor Edir Macedo, teve um crescimento nacional e internacional verdadeiramente notável (Rodrigues, 2006). Atualmente, é uma das maiores denominações evangélicas no Brasil e uma das mais importantes no processo de expansão internacional do pentecostalismo brasileiro, estando presente em quase todos os países do mundo e contando com cerca de 8 milhões de fiéis. Como afirmou Freston (1999), “que a IURD tenha-se expandido a outros países (...) não surpreende, mas sim a dimensão e velocidade dessa expansão” (1999: 3).14 É importante realçar que as categorizações “Norte/Sul” global expressam não uma configuração geográfica, mas política e social. Isso porque o “Norte global” inclui áreas e grupos sujeitos à exclusão social, enquanto o “Sul” possui elites que gozam de considerável prosperidade. Existem também regiões e grupos em posições intermediárias ou transicionais, como é o caso da China (Zhang; Ong, 2008). Já no caso de países como Itália e Espanha, Paul Krugman considera que o crescente agravamento da crise econômica nestes países (e acrescentaríamos Portugal), desde 2008, fizeram com que ambos passassem a integrar, em termos sociais e políticos, o “Sul” do mundo. Fonte: http:// www.economics21.org/blog/paul-krugman-and-euro. http://informazioneconsapevole.blogspot.com.br/2011/11/paul-krugman-litaliacon-leuro-si-e.html. Acessos em 25/07/2014. 14

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Nas suas práticas e discursos religiosos, os conceitos mais valorizados são: a salvação espiritual, a saúde física e o bem-estar económico. Suportado pela ‘teologia da prosperidade’, o discurso iurdiano, no contexto diaspórico, é especialmente dirigido aos imigrantes, às minorias étnicas, aos mais pobres. O poder político e o controle religioso estão fortemente centralizados na pessoa do seu fundador, Edir Macedo, seja no Brasil ou em qualquer país do mundo onde a (sua) igreja se instala, muitas vezes com nomes diferentes: os bispos e pastores controlam as atividades administrativas, econômico-financeiras e doutrinais. Além disso, mesmo na diáspora, onde há pastores nacionais e/ou de outras nacionalidades à frente de igrejas locais, a liderança continua centrada nos elementos brasileiros. Com base na nossa etnografia na Europa, podemos afirmar que, embora a Igreja do Reino de Deus tente projetarse como uma igreja “Universal”, “não-étnica”, “não-imigrante”, a sua composição étnica corrobora o fato de que ainda não conseguiu dissociar a sua imagem de “igreja étnica”, de “igreja de e para imigrantes”. Mais de 70% dos fiéis afirmaram que já pertenceram ou tinham participado de rituais religiosos, aos quais hoje chamam de “bruxaria”, “feitiçaria”, “magia negra”, “macumbaria” e “xamanismo”; portanto, rituais principalmente ligados às religiões africanas e afro-brasileiras. Este último aspecto é bastante relevante em termos antropológicos, pois ajuda a compreender como a liturgia (sincrética) da IURD consegue atrair e converter, na Europa, um público tão heterogêneo. Muitos dos fieis justificaram a conversão e permanência nesta igreja ao fato de terem sido “curados” de algum problema (físico ou espiritual). Portanto, os sentidos terapêuti-

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cos e de eficácia simbólica, que costumam ser atribuídos por tais grupos de fiéis às atividades da IURD, devem-se, em especial, às capacidades desta igreja neopentecostal de dialogar com públicos heterogêneos, em termos socioculturais, de origens nacionais e de experiências religiosas prévias. Estes heterogêneos grupos de novos convertidos apresentam, em muitos casos, semelhanças significativas: concepções de sagrado que provêm de crenças e ritos relacionados com religiões animistas africanas, espiritismo, esoterismo, xamanismo, práticas que, parafraseando Claude Lévi-Strauss (1962), podemos chamar de “bricolagens religiosas individuais”. Ou seja, essa heterogeneidade de experiências religiosas prévias dialoga proficuamente com o caráter extremamente sincrético e adaptativo da IURD (Freston, 1999; Oro, 2006). A IURD não só não despreza as cosmologias religiosas anteriores dos fiéis, mas também as reinterpreta e as ressignifica. Neste contexto, tanto lhes concedem novos sentidos, quanto justificam a sua liturgia, fortemente baseada na concepção de guerra espiritual entre “tudo que é da igreja” (e de Deus) e “tudo que é do mundo” (visto como fruto das obras do diabo)15. Marshall Sahlins (1997) fala de uma “indigenização da modernidade” por povos do Pacífico, que recontextualizaram práticas e objetos do “Ocidente” inserindo-os em suas próprias ordens cosmológicas. No território europeu, onde Esta conceção de guerra espiritual na IURD já foi apontada por diversos estudos sócio antropológicos, em especial por Anders Ruuth e Donizete Rodrigues (1999), que defendem que a liturgia da IURD foi construída a partir de uma nova trindade: não mais centradas nas figuras clássicas do “Pai, do Filho e do Espírito Santo” da Igreja Católica Romana, mas sim nas representações de “Deus, do Demônio e do Homem”. 15

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existem tradições seculares relacionadas às noções de bruxaria, feitiçaria e ocultismo (principalmente em países como Portugal e Espanha), a IURD vêm promovendo o que podemos chamar de uma “indigenização do pentecostalismo brasileiro”, através da aposta e do reforço do diálogo intercultural com os “outros”, que faz com que as ritualidades e práticas litúrgicas “iurdianas” possam adquirir uma certa inteligibilidade para os segmentos da população “nativa” da Europa. Para compreender melhor as dinâmicas do pentecostalismo brasileiro na Europa, vejamos os estudos de caso sobre imigrantes e as igrejas evangélicas brasileiras em diferentes países, nomeadamente Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e Alemanha.

Portugal A partir de 1974, Portugal iniciou um grande processo de transformação social, política e econômica. Imediatamente após a revolução democrática, as colônias ganharam independência, marcando o fim do império colonial. O processo de descolonização foi acompanhado pelo retorno de cerca de 500 mil portugueses (os denominados ‘retornados’), refugiados e imigrantes negros africanos, juntamente com alguns mestiços indianos de Goa (Rodrigues, 2014). A adesão à União Europeia trouxe um grande desenvolvimento econômico, tornando Portugal um destino atrativo para trabalhadores imigrantes, especialmente no sector da construção civil (Machado, 1997). Na sua modernidade tardia, este país passou por um processo notável de trans66

formação e tornou-se numa host-society, um país com expressiva presença de imigrantes. No entanto, é importante notar que, com a grave crise econômica e financeira, iniciada em 2008, ocorreu uma diminuição significativa da imigração para Portugal e, por outro lado, um aumento da emigração portuguesa para outros países europeus - principalmente do Norte mais rico, que não sofreram tanto os efeitos da crise - mas também para Angola e Brasil, países que atualmente passam por um maior crescimento econômico. Em termos religiosos, Portugal é ainda um país predominantemente católico. No entanto, nas últimas décadas, com a significativa entrada de imigrantes, houve um grande alargamento do ‘campo simbólico-religioso’, no sentido preconizado por Bourdieu (1986). Tudo começou na década de 1980, com a chegada das primeiras igrejas brasileiras neopentecostais. A partir da década de 1990, este fenômeno se intensificou, com o fluxo massivo de imigrantes brasileiros e a chegada de um grande número de novas igrejas evangélicas de origem brasileira - e outras já criadas em Portugal -, provocando, desta forma, rápidas e significativas mudanças religiosas na sociedade portuguesa (Ruuth; Rodrigues, 1999; Rodrigues, 2014). Oriundas diretamente do Brasil - como é o caso da IURD, “Deus é Amor”, Assembleias de Deus e a Congregação Cristã - ou já criadas no contexto da diáspora (mas quase sempre sob a liderança de pastores brasileiros), as igrejas neopentecostais priorizam no trabalho de evangelização os seguintes grupos: imigrantes pobres, na sua grande maioria ilegais, em especial brasileiros e negros africanos de língua portuguesa, oriundos das ex-colônias; ciganos portugueses; e nacionais portugueses pobres. Portanto, o “público-alvo”

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para a evangelização/conversão pertencem aos três segmentos da sociedade portuguesa que mais sofrem com os processos de exclusão social. No contexto da notável presença do neopentecostalismo brasileiro em Portugal, uma das denominações religiosas mais importantes é a IURD. Edir Macedo acreditava que em Portugal, sendo um país pequeno e falando a mesma língua, seria relativamente fácil instalar a (sua) igreja. Era um país estratégico, principalmente porque facilitaria a sua expansão dentro da Europa e para os países africanos de língua oficial portuguesa. No entanto, a sua implantação, em 1989, não foi tarefa fácil; causou um aceso e controverso debate social, político e religioso, com impacto muito negativo nos meios de comunicação. O seu forte proselitismo, associado à prática agressiva de arrecadação de dinheiro, através de dízimos e ofertas dos fiéis, tem causado discriminações, especialmente por uma certa elite intelectual e pela Igreja Católica. Na tentativa de escapar do forte estigma, associado ao nome ‘Igreja Universal do Reino de Deus’, a identificação dos locais de culto aparecem hoje com um novo nome - “Centro de Ajuda Espiritual”. No entanto, apesar de sua implantação inicial não ter sido fácil, passados mais de 20 anos, a IURD teve um enorme sucesso. Com os seus recentes “Centros de Ajuda Espiritual”, e é hoje uma das maiores e mais importantes igrejas pentecostais brasileiras estabelecidas no país (Swatowiski, 2010). Usando inicialmente Portugal como base de expansão, a IURD está hoje solidamente instalada em todos os países europeus onde há uma expressiva presença de imigrantes, tendo inclusive aberto 12 templos na Rússia. Destes, três se concentram na capital Moscou e todos possuem

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o nome de “Религиозная организация Церковь Христиан веры евангельской “Царство Божие” (Organização Religiosa da Igreja de Cristãos de Fé Evangélica ‘Reino de Deus’)16.

Itália O pentecostalismo foi introduzido na católica Itália, em 1908. Hoje (depois da Grã-Bretanha) o território italiano apresenta a segunda maior população de evangélicos na Europa Ocidental, sendo as Assembleias de Deus a maior denominação pentecostal (Anderson, 2004). Embora também com pesquisas sobre grupos católicos, o foco central da nossa etnografia foi a IURD, onde atua com o nome de ‘Chiesa Cristiana dello Spirito Santo’ (CCSS). O estudo privilegiou o seu forte proselitismo e estratégia de implantação neste país e o seu trabalho de evangelização com imigrantes, brasileiros e outras minorias étnicas, e com os nacionais italianos (Rodrigues; Silva, 2012). A instalação da IURD na Itália ocorreu em 1993 e foi feita seguindo a sua tradicional e conhecida prática - através da compra e arrendamento de espaços para a prática de culto, espaços estes localizados em áreas urbanas centrais. Seguindo criteriosamente a sua estratégia de expansão e conversão evangélica, hoje tem salas de culto e grupos de oração (que normalmente se transformam em congregações locais) em várias cidades italianas. A sede nacional, a ‘catedral’, foi esPara mais informações sobre os templos russos da IURD, ver o site: http://www.iurd.ru/ e http://iurdenderecos.wordpress.com/about/ russia/. Acessos em 18/06/2014. 16

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trategicamente instalada a poucos metros da movimentada Roma Termini, a principal estação central de trens, não só da área metropolitana de Roma, mas de toda a Itália. Inaugurado em 27 de junho de 2010, o templo tem capacidade para abrigar 500 pessoas sentadas e fica aberto permanentemente, com quatro reuniões diárias e atendimento espiritual durante as 24 horas do dia. Quanto à composição étnica-racial dos fiéis, para além de um pequeno número de latino-americanos (mestiços hispânicos, oriundos das ex-colônias espanholas) e de imigrantes do leste europeu (romenos, sobretudo), a grande maioria dos fiéis são brasileiros e negros africanos, oriundos principalmente da Nigéria, de Camarões e de Cabo Verde; há inclusive um culto, no domingo à tarde, que é celebrado em inglês, especialmente para imigrantes oriundos de países africanos de língua inglesa. Deve-se salientar que a específica inserção laboral da maior parte dos imigrantes africanos de língua portuguesa constitui um fator que lhes concede uma certa modalidade de ‘capital simbólico’ (Bourdieu, 2007), e isso faz com que a sua presença nos templos italianos da IURD seja significativamente valorizada pelos pastores e obreiros. Missionários que, obviamente, possuem interesse em compartilhar deste capital simbólico e revertê-los a favor dos seus respectivos interesses no ‘Belpaese’: interesses estes que podem variar desde a intenção de atingir e atrair segmentos da sociedade italiana, até diminuir a extrema burocracia para expandir seus meios de comunicação no território das grandes cidades italianas (Silva, 2013). Uma das ações mais emblemáticas da atuação da IURD na Itália é aquela dirigida ao segmento de imigrantes africa-

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nos de língua materna inglesa. Abaixo, algumas descrições etnográficas permitem uma visualização de parte deste específico conjunto de atividades. Domingo, dia 6 de março de 2011. O culto começou às 16h e terminou às 17h. Estavam presentes uma imigrante latino-americana, sete africanas (cinco nigerianas) e uma afro-americana, casada com um italiano. Os dois temas principais do culto foram Power (Força) e Faith (Fé). Todo o culto foi feito com as pessoas à frente no altar, em pé. Num momento de forte espiritualidade de oração coletiva e de imposição das mãos, uma fiel africana manifestou estado de possessão demoníaca. O exorcismo foi feito pelo pastor Pedro, um português convertido em Portugal e que é casado com uma portuguesa. O seu primeiro trabalho como pastor foi nos Estados Unidos (Califórnia), onde pregava em espanhol, visando converter a comunidade hispânica. Depois de passar por Londres, foi enviado pela hierarquia da IURD para ser pastor em Roma. A única obreira presente neste culto era negra e chamava-se Esther. É importante notar que foi escolhida uma obreira negra porque o culto em causa era especialmente dedicado aos fiéis negros. Neste caso, para além de partilharem a mesma identidade religiosa (de serem todos evangélicos), há também a partilha da mesma pertença étnico-racial (de serem todos negros). Esther na época era estudante oriunda da Nigéria e havia chegado à Itália em 2006. Como é prática na IURD, a importância do dízimo foi realçada pelo pastor durante todo o culto. Na projeção de vídeos com testemunhos, houve um em particular, em inglês, de uma afro-americana, que falou sobre os problemas que ela enfrentava antes da sua conversão à IURD: infelicidade, problemas econômi-

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cos e de saúde, decorrentes de um processo de depressão e desemprego. Ela testemunhou enfaticamente que, após a conversão, a sua vida mudou radicalmente e que todos os problemas foram sanados - “Hoje sou feliz, com saúde e com um bom emprego”, concluiu. Em seguida, houve o testemunho presencial de uma mulher negra sul-africana, que falou sobre a sua experiência religiosa na IURD, testemunho este muito semelhante ao apresentado anteriormente na projeção em vídeo. A grande maioria dos fiéis presentes estava com uma fita vermelha no pulso direito (colocada no culto do domingo anterior) que foi cortada pelo pastor Pedro. A fita simboliza a ligação do fiel com a Igreja, como uma corrente que o liga à instituição religiosa e que, além disso, lembra diariamente ao fiel que ele faz parte da Igreja. Após o corte da fita, ocorreu a colocação de uma nova fita vermelha no pulso dos presentes, reproduzindo e reforçando assim, simbolicamente, a união deles com a Igreja. Os fiéis ficam assim “amarrados”  à Igreja, pois foram intimados a estarem presentes no culto do próximo fim de semana para renovação da fita/vínculo. Questionada sobre a razão de ter se tornado uma “crente fiel” da IURD em Roma, Santana, uma cabo-verdiana nascida em 1958 e que frequenta a sede italiana da igreja desde 2010, nos relatou em 2011 que isso ocorreu porque os pastores conhecem bem a “maneira de pensar e ver o mundo” dos africanos em geral e dos cabo-verdianos como ela, em particular. Tal fator, na opinião de Santana, diferencia positivamente a IURD de outras igrejas que tentam evangelizar imigrantes africanos no território italiano.

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Irlanda A Irlanda, como os outros países católicos europeus, está sofrendo um forte processo de reavivamento religioso, nomeadamente pela nova e significativa presença de denominações neopentecostais, cujo fenômeno está diretamente relacionado com a entrada de imigrantes, igrejas evangélicas e missionários vindos da América Latina e África. A expressiva presença de imigrantes brasileiros17, a partir dos anos de 1990, atraiu a instalação de igrejas evangélicas brasileiras, como Assembleias de Deus, Deus é Amor, Igreja Quadrangular e, principalmente, a IURD, objeto da nossa etnografia em Dublin. A IURD foi introduzida na Irlanda, em 2003, pelo Bispo Aroldo Martins, via Reino Unido, onde a igreja já estava instalada desde 1995. Os primeiros cultos foram realizados num hotel em Dublin. Com a sua eficiente estratégia de implantação, hoje possui congregações e grupos de oração/ células nos condados de Roscommom e Galway, principalmente em Gort, onde há uma grande concentração de brasileiros - formando um enclave étnico, o little Brazil - e várias congregações na área metropolitana de Dublin, onde se situa a sua ‘catedral-sede’. Está também presente com uma congregação e grupos de oração na Irlanda do Norte, em Portadown (County Armagh). Em maio de 2012, buscando uma maior visibilidade neste país, a IURD realizou um megaculto no Croke Park Stadium, em Dublin, com a presença de milhares de pessoas, De acordo com dados da Garda National Immigration Bureau, em 2013, residiam na Irlanda cerca de 12 mil imigrantes brasileiros. 17

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fiéis da igreja e potenciais convertidos. Em março de 2013, a fim de dar maior apoio ao processo de implantação/expansão, o bispo Júlio Freitas (um dos responsáveis pela igreja na Europa e genro de Edir Macedo) realizou uma série de eventos religiosos neste país. Como é padrão na IURD, na diáspora a liderança é sempre assumida por um brasileiro; neste caso, o pastor Guilherme era o responsável pela ‘catedral-sede’ de Dublin. Além deste, havia um pastor brasileiro (também branco) e um pastor negro, nigeriano, para atender os fiéis oriundos deste país. De acordo com o que verificámos nos cultos - e numa entrevista/conversa informal com o pastor brasileiro - podemos afirmar que, quanto à composição étnica-racial, cerca de 80% dos fiéis são imigrantes negros africanos, 15% de brasileiros e apenas 5% de nacionais, situação muito semelhante a que encontrámos na Itália. A composição, por culto, das/dos obreiras/os refletem esta diferenciação étnico-racial: quatro indivíduos, uma/um nigeriana/o e uma/ um angolana/o; uma/um brasileira/o; e apenas uma obreira irlandesa. Portanto, os maiores seguidores da IURD na Irlanda - e também na Irlanda do Norte, onde também fizemos etnografia - são principalmente imigrantes negros africanos (provenientes de ex-colónias inglesas), brasileiros e apenas uma pequena minoria de nacionais irlandeses.

Espanha Assim como Portugal, historicamente, a Espanha sempre foi um típico país de emigrantes. No entanto, a chegada massiva de imigrantes, nas últimas décadas, provocou uma 74

significativa transformação na sua estrutura étnica, cultural e religiosa. Do ponto de vista religioso, Espanha é ainda um país predominantemente católico (73,5%); porém, atualmente, menos da metade dos imigrantes são católicos e tem crescido significativamente o número de evangélicos (Santiago, 2010; Pérez-Agote, 2010). O pentecostalismo chegou em 1923, trazido por missionários suecos, mas cresceu muito lentamente e encontrou muitas dificuldades para atingir a população católica espanhola. Contudo, devido à migração transcontinental dos últimos anos, existem hoje diversas denominações neopentecostais, fundadas por missionários oriundos de África, da América Latina em geral (MacHarg, 2008) e do Brasil, como é o caso da IURD, que se instalou neste país, em 1992, com o nome de ‘Familia Unida’ (Silva; Rodrigues, 2013). Quanto à composição étnico-racial, cerca de 90% dos fiéis da Familia Unida é composto por imigrantes latino-americanos (hispânicos, oriundos das ex-colónias espanholas), brasileiros e negros africanos. A fim de evidenciar alguns importantes aspectos desta igreja em Espanha, relatamos abaixo alguns dados da nossa etnografia. Sexta feira, 16h do dia 20 de janeiro de 2012. Sessão Espiritual do Descarrego no Templo da Familia Unida no distrito barcelonês de San Andreu. Estavam treze fiéis, sendo onze mulheres e dois homens. O pastor Roberto convocou todos para participarem da primeira oração. Em seguida, perguntou a cada pessoa como estavam antes e como se sentiam depois da oração. Das oito pessoas que relataram que antes da oração estavam com dores de cabeça, “peso nas costas” e/ou ansiedade e “vontade de chorar”, Illana, uma mulher equatoriana (44 anos), foi a única que ainda estava

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a sentir um “peso nas costas”. O pastor reagiu, dizendo que aquele “peso” era um sinal de que um mal estava atuando na sua vida e a chamou para o altar. Logo após receber uma oração do pastor sobre sua cabeça (pela imposição das mãos), Illana manifestou um violento estado de possessão demoníaca. A entidade, que se autodenominava “Exu das almas” e que havia tomado conta do seu corpo, disse através de Illana: “Eu sou o dono da alma dela”. O pastor Roberto estava se recuperando de uma gripe e, por isso, convocou a obreira Derlene (52 anos), nascida em Ponta Porã, para realizar o exorcismo. Illana então manifestou uma entidade chamada Lúcifer e passou a se debater de maneira muito violenta pelo chão. Derlene dispensa a ajuda de Luis, o outro obreiro presente, e continua o exorcismo sozinha, demonstrando muita força física e “trato” para lidar com aquela situação, até que ela determina: “Acabou pra você, Satanás! Você vai ser queimado agora! Queimado em nome de Jesus!” Derlene e os demais presentes estenderam suas mãos em direção à Illana e juntos gritaram: “Queima, Jesus! Queima, Jesus!”, diversas vezes, até que Illana desfaleceu no chão. Ao recobrar a consciência, ela chorou e indagou o que seria de sua vida se não pudesse vir à igreja e se libertar daquela entidade demoníaca. Illana agradeceu, especialmente, a Derlene, a quem chamou de “soldado de Deus”. A jovem Sabrina, nascida em 1987, em Belo Horizonte, de 1999 até 2006 morou com sua mãe na Espanha (Andaluzia) e ambas moram na capital catalã desde 2008. No primeiro culto da IURD em que participou com sua mãe em Barcelona, Sabrina se sentiu mal e após receber uma oração particular do pastor no altar, ela vomitou a “comida macumbada” que ela disse ter ingerido quando tinha onze anos de

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idade; fato que a deixou “livre do mal que existia dentro dela”18. Segundo Sabrina, no Brasil ela e sua família frequentavam a Umbanda; ela apenas como “frequentadora”, mas a sua mãe e sua tia tinham chegado a “fazer a cabeça”19. Já vivendo na Espanha, Sabrina comentou que frequentou rituais aos quais ela chamou de “magia negra”, mas que aceitou o convite de uma amiga nigeriana para conhecer a Familia Unida e, nesta igreja, passou a entender que todos os seus problemas tinham uma origem espiritual. Outra fiel que conhecemos no templo de San Andreu foi Olenka, que tem um passado religioso muito interessante: quando tinha 5 anos de idade foi oferecida por seu pai a um xamã na Bolívia. Desde então, ela estava possuída pelo “Exu É pertinente salientar que essa prática de tentar, literalmente, “expulsar o mal” de dentro da pessoa através do vômito é também comum nos rituais de “descarrego” que a IURD promove e aos quais tivemos a oportunidade de presenciar em vários contextos nacionais (Brasil, Estados Unidos e vários países europeus). Como já foi amplamente estudado, a IURD dialoga bastante em termos litúrgicos com as religiões de matriz africana - vale lembrar que Edir Macedo era adepto da Umbanda antes de fundar esta igreja. Por essa razão, normalmente nas “sessões espirituais de descarrego”, os pastores perguntam às pessoas, que sentem que “existe um mal em suas vidas”, se no passado elas recordam de terem participado do Ebori - cerimônia das religiões brasileiras de matriz africana, que consiste em oferecer comida aos orixás e aos demais iniciados - ou se recordam de terem ingerido ou recebido algum ebó. Ebó é um termo yorubá que define as oferendas que são dadas aos orixás nos rituais das religiões afro-brasileiras. Estas oferendas podem ser refeições e, nesses casos, são chamadas de “comida de santo” pelos adeptos de tais religiões e de “comida macumbada” pelos pastores e fiéis da IURD. 19 Na Umbanda, “fazer a cabeça” significa um tipo de “batismo” no qual ao visitante é concedido um vínculo formal com o grupo religioso. Este ritual normalmente culmina com um corte na cabeça e a introdução de um pouco de “sangue de santo” na pessoa. O “sangue de santo” é, geralmente, composto de sangue de algum animal que foi oferecido em sacrifício aos espíritos. 18

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da morte”. Em cinco diferentes cultos, presenciámos Olenka manifestar tal entidade demoníaca nas “sessões espirituais do descarrego” do templo da Familia Unida de San Andreu. Após recobrar a consciência, Olenka ouvia sempre do pastor Roberto que ainda não estava completamente livre daquele demônio, pelo fato de ser “inconstante”, de não ter tomado uma decisão definitiva de se tornar um membro fiel da igreja. Numa destas ocasiões, em 03 de fevereiro de 2012, o pastor disse para Olenka de uma maneira que todos os presentes pudessem escutar: Mira, sabes que será así hasta que usted decídase. Usted viene acá, hace las oraciones, manifiesta esto demonio, nosotros quitamos él de usted, pero él siempre vuelve. ¿Sabes ya porque es así no es? Porque no está acaeciendo una reciprocidad para con Dios de su parte: usted no si entrega totalmente, hace pequeñas ofrendas y recibe de Dios sólo una pequeña liberación. Dios es justo! Si quieres una liberación completa, definitiva, debes entregarte llenamente y hacer un voto de fe, de sacrificio en este próximo domingo! No piensas mucho! Yo sé que tu compañero y tu hermana pone dudas en tu cabeza, habla para dejares nosotros, pero asume las riendas de tu vida! El nuestro Dios quiere ver todas las mujeres como usted fuertes, independientes y fieles primero a Él y sólo después a los otros! Hace esta prueba de fe y así, sin duda, usted será dependiente sólo de usted misma y vencerá este diablo que piensa que es el dueño de tu vida (Pastor Roberto).

Uma semana depois, Olenka comentou que aquelas palavras do pastor lhe encheram de coragem para “tomar uma atitude de fé” ao sair da igreja naquela tarde, passar no ban-

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co e sacar todo o dinheiro que tinha em sua poupança. No domingo seguinte, 5 de fevereiro, Olenka fez um “voto de fé” e ofereceu todo aquele dinheiro a Deus, no altar da igreja, e disse que sentiu ter recebido o Espírito Santo. A partir daquele momento, deixou de se considerar e de ser considerada (pelo pastor, pelos obreiros e pelos demais membros da igreja) como uma fiel inconstante. Além disso, afirmou ter deixado de ser “dominada” por seu companheiro e por sua irmã, e que passou a exercer mais autoridade sobre seus dois filhos e a encarar o mundo de uma maneira diferente, não mais como uma “coitadinha que aceita tudo”, mas como uma “nova mulher”: saudável e com forças para lutar e vencer, dona do seu próprio destino. A mudança exigiu muitos sacrifícios e muito “desapego” em todas as áreas de sua vida, tanto que esta sua “atitude de entrega a Deus” fez com que alguns dos seus familiares ficassem com raiva, a chamassem de “idiota” e se afastassem dela. Sem expressar nem demonstrar arrependimento, Olenka disse que tudo isso que fez foi “imprescindível e necessário”, já que ela tem certeza de que não consegue mais viver bem, nem como mulher, nem como mãe e nem como imigrante longe da igreja. Questionada sobre isso, explicou: Yo siento que soy una persona más inteligente y que ahora tengo más fuerzas en todos los sentidos. Desde aquel día de mi entrega total, yo miro la religión como ella debe ser mirada, es decir, como una cosa de Dios, pero que tiene sus reglas propias y que no está apartada del mercado y de este mundo cruel y competitivo donde vivimos. [...] Mi familia critícame diciendo: Ellos son ladrones, sólo quieren quitar tu dinero’ e yo les digo: ¿y cuál es la iglesia que no es así? Ahora entiendo que lo que antes me parecía ma-

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chista y mercantilizado en la iglesia en realidad es sinónimo de fuerza y refleja esto nuestro mundo acá, que es una selva. Después de mi decisión de fe, yo soy más fuerte como mujer, como inmigrante, como todo. Mi manera de ver el mundo, mis pensamientos, como yo trato con los otros, todo ha cambiado. Si yo tuvo que pagar para tener estos cambios, fue un dinero muy bien empleado.

A nossa etnografia permite-nos afirmar que a IURD é uma igreja que incentiva muito o empreendedorismo, a ideia de reciprocidade entre seus fiéis e também o preceito de que o enriquecimento - materializado no consumo de bens materiais caros - é um meio eficaz para se alcançar a “cidadania” e o “bem-estar social” (moradia, educação e saúde) em países em “profunda crise econômica e moral” e com “avançado neoliberalismo” como, segundo os pastores da igreja, é a Espanha. Não por acaso, Olenka se tornou uma pequena empresária desde que aprendeu, na IURD, que “é dando que se recebe” e que explorar as suas “ganas por prosperidad” (vontade de prosperar) seria algo “bom, saudável e divino”. Através do contato que mantivemos pela internet, a interlocutora nos relatou que vem “subindo na vida”, adquirindo bens materiais e percebemos que ela associa o seu atual “bem -estar” ao fato de poder consumir “coisas caras e de valor” e não apenas “coisas utilitárias”. Antes de uma das reuniões da prosperidade econômica no Templo de San Andreu ocorrida em 23/01/2012, Derlene sintetizou bem essa noção para uma nova fiel oriunda de Moçambique que estava na igreja pela primeira vez: Deus quer sempre o melhor pra gente, quer que a gente tenha um bom carro, uma boa casa, dinheiro

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no banco. Isso é cidadania, e isso nenhum governo, nenhum político vai dar pra nós. Só quem pode dar isso pra nós é ele ó [aponta para o nome de Jesus no altar da igreja].

Os casos de Olenka e de Derlene parecem corroborar nossa hipótese de que as estratégias doutrinárias e litúrgicas que são desenvolvidas pela IURD (dentre estas aquelas que se definem como “curativas”) fomentam processos de criação de novas formas de subjetivação20 (Foucault 1995), que foram produzidas a partir do apoio emocional vinculado às lógicas de redistribuição e reciprocidade produzidas pela noção de ‘dádiva’ (Mauss, 1974) e que também são influenciadas pela noção de ‘capitalismo de consumo’ (Trumbull, 2006) - processos que são potencializados pelo fato de ser uma denominação religiosa que possui a seu favor um aparato midiático gigantesco e bem estruturado dentro e fora do Brasil.

Alemanha Na Alemanha, a IURD adota o nome de Hilfszentrum (Centro Alternativo) ou apenas a sigla UKRG (Universale Kirche vom Reich Gottes). Abriu na capital do país o seu Para Foucault (1995), diferentes formas de subjetivação dizem respeito aos diferentes tipos de conhecimentos que as identidades individuais e coletivas (re)produzem a partir das suas interações com os mecanismos de poder que se exercem através das instituições que regulam a vida social. Ou seja, conhecimentos que se desenvolvem a partir dos elementos idiossincráticos dos indivíduos, das relações que estes estabelecem com os “outros” e com as esferas políticas e de poder mais amplas nas quais tais indivíduos estão inseridos. 20

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primeiro grupo de oração, em 1991, e o primeiro templo em 1994, cinco anos após a queda do muro de Berlim. Atualmente, a UKRG está presente, além da capital, em mais sete importantes metrópoles alemãs: Stuttgart, Munique, Hamburgo, Frankfurt, Colônia, Dortmund e Nuremberg. A distribuição dos cultos na sede berlinense (principal templo da IURD na Alemanha), localizada no histórico e valorizado distrito de Mitte, ocorre durante a semana: de segunda a sexta, às 8hs, 10hs, 15hs e às 18hs, cultos em alemão e às 19:30hs em português; aos sábados, os cultos são às 8hs e às 18hs e a língua utilizada varia entre o português, alemão e inglês e depende, segundo os obreiros, do público presente, ou melhor, da língua materna da maioria presente na ocasião. Aos domingos, os cultos em português são às 8 e às 10 da manhã e às 18hs ocorre o culto em alemão. Os cultos em português são dirigidos aos imigrantes brasileiros, portugueses e africanos, oriundos de países de língua portuguesa, especialmente Angola e Moçambique. Vale salientar que, de acordo com Flávia, 38 anos, uma obreira brasileira, os cultos em alemão são assistidos por alguns autóctones, pelos imigrantes que aprenderam esta língua e também por imigrantes da África do Sul e da Namíbia. Segundo Flávia, o africâner é uma língua germânica bastante similar ao alemão e, por isso, os imigrantes destes dois últimos países normalmente entendem os cultos alemães da IURD. Na sexta-feira 24 de janeiro de 2014, presenciamos um culto em português celebrado pelo pastor brasileiro Bruno e estavam presentes 42 pessoas: a maioria imigrantes angolanos, brasileiros e portugueses. De acordo com Flávia, que mora na Europa desde 2002, estes imigrantes conheceram

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o trabalho evangelizador da IURD em seus países de origem, mas diante da “frieza” dos alemães, perceberam que o dinheiro não lhes garantia “paz de espírito” e, por essa razão, procuraram a igreja e nela encontraram o conforto que necessitavam para problemas como famílias desestruturadas ou “dispersas” por vários países. A paulista Flávia nasceu em Santo André e veio inicialmente trabalhar como auxiliar de cozinha em Luxemburgo (onde aprendeu a falar alemão). Após conhecer um grego, em 2007, ela se mudou para Berlim e, nesta cidade, recebeu o “Espírito Santo” na IURD e se tornou obreira em 2012. Esta interlocutora relatou que muitos angolanos, brasileiros e portugueses, que frequentam a sede berlinense da IURD, viviam no sul da Europa e vieram para a Alemanha “fugindo” da crise económica. O problema, de acordo com Flávia, é que estas “re-migrações” fizeram com que suas respectivas famílias, que já estavam dispersas, sofressem novos processos migratórios de alguns de seus membros e, com isso, se tornasse ainda mais “espalhadas”. Nas palavras de Flávia: Tem brasileiras aqui que os filhos possuem dois pais e dois avôs e avós por parte de pais. Elas se casaram antes aqui na Europa, se separaram, casaram de novo e as crianças ficam agora divididas entre o pai de sangue e padrasto. Isso causa confusão. Uma menina outro dia veio me dizer que não sabia se devia obedecer mais seu avô espanhol de sangue, ou seu avô alemão, pai do homem que agora é seu padrasto e que exige que ela se comporte como sua neta. A gente aqui tem que saber lidar com esse tipo de situação.

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Acrescentou que estes novos parentescos, provocados pelas “re-migrações”, trazem mudanças e novos problemas às vidas de muitos imigrantes que procuram a igreja; pessoas que muitas vezes estão bem economicamente, mas com suas vidas profundamente abaladas por fatores como as negociações, arranjos e conflitos que tais parentescos promovem. Não por acaso, uma das correntes que mais fazem sucesso na IURD berlinense é aquela que é voltada especificamente para solucionar problemas familiares ou problemas como ansiedade e depressão de pessoas que sofrem por ter parte dos seus entes queridos dispersos pelos vários países das suas trajetórias migratórias. Jaciara, 35 anos, nascida em Moçambique - e que prefere ser chamada de Loren - nos relatou que o seu vínculo com a IURD se consolidou no momento em que esta igreja lhe permitiu saber lidar com sua particular situação familiar: mãe à distância de duas crianças, uma que vive com os pais dela em Maputo e outra que vive com seu ex-marido em Portugal. O atual marido de Loren, um romeno que também é fiel da IURD em Berlim, pretende ter um filho com ela. Loren, no entanto, comentou, em janeiro de 2014, que sentia receio de ter mais um filho e, no futuro, não poder por alguma razão exercer presencialmente a maternidade. Falando sobre os angolanos e sul-africanos que participam dos cultos, Flávia salientou que a igreja sabe bem escutar e dar as respostas certas para estas pessoas que, em termos culturais, são tão diferentes umas das outras. Porém, em sua opinião, na maioria dos casos compartilham histórias de sofrimento, solidão e desânimo em relação ao ser humano. A IURD mais do que respeitar e compreender a diversidade dos imigrantes que vêm do continente africano e latino

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-americano, sabe dialogar com suas concepções religiosas e lhes ajudar a discernir bem entre o que “é de Deus” e o que não é. Este discernimento, na opinião desta interlocutora, é imprescindível, pois as diversas religiosidades prévias dos imigrantes que procuram a igreja em muitos casos deixam neles visões “perturbadas” que, quando se somam a um ambiente social “diabolicamente laico e ateu” como é o alemão, podem ser fatais.

Considerações Finais Conforme muitos autores já realçaram, a religião é muito importante para a população imigrante. No contexto da diáspora, além do apoio espiritual, a religião contribui para a manutenção da identidade, proporciona valores positivos, maior integração social, forte sentido de pertença e desenvolve a solidariedade pragmática, ou seja, atividades que ajudam os fiéis na consecução de moradia, emprego, educação formal e acesso à saúde. As instituições religiosas são lugares/pontos de encontro nos quais os imigrantes encontram co-nacionais e outros imigrantes na mesma situação econômica, social e jurídica. Os locais de culto não promovem apenas eventos litúrgicos; sendo também importantes espaços de sociabilidade, facilitam a integração e interação social dos recém-chegados e a difusão de informações, perspectivas e possibilidades nas mais diversas esferas sociais e económicas. Os países (colonizadores) europeus foram, no passado, emi-nentes exportadores de instituições e doutrinas religiosas para a América Latina e África. No entanto, dentro da 85

lógica da reverse mission, a Europa é hoje um território fértil para o trabalho missionário e também para as dinâmicas socioculturais e identitárias desta importante presença religiosa latino-americana de matriz neopentecostal, católica e evangélica. Segundo Freston (2010), a ‘missionização invertida’ é encorajada e vista por segmentos expressivos das sociedades europeias como um fenômeno ‘positivo’, que colabora no enfrentamento do declínio do cristianismo e, também, no enfrentamento da expansão do islamismo no continente europeu. Os nossos estudos antropológicos em Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Alemanha - e trabalhos etnográficos exploratórios na Letônia e França - sugerem que tais processos de declínio e expansão religiosa têm incitado, nas últimas décadas, debates constantes sobre a conexão entre as noções de “cristianismo” e “identidade europeia” e, dessa maneira, evidenciado a relevância sociocultural e política de iniciativas promovidas por missionários neopentecostais. Paul Freston (2010) chama a atenção para o problema que os missionários, oriundos da América Latina e de África, enfrentam para evangelizar os “nativos” europeus, de fazer com que após conhecer o trabalho de suas igrejas, os nacionais permaneçam fieis e se sintam “em casa”. Segundo este sociólogo, o fator de diferenciação entre os missionários estrangeiros que atuam na Europa são as suas origens geográficas. As experiências de racismo geralmente são mais presentes na vida dos missionários de origem africana (negros) do que nos de origem latino-americana. Além disso, em muitos casos, os brasileiros são vistos pelos europeus como “racialmente diferentes” (porém de descendência europeia) e “culturalmente diferentes” (porém com um alto nível de “proximidade cultural” com os europeus). É difícil para qual-

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quer missionário que venha de fora do eixo Europa-EUA atingir os seus objetivos doutrinários nestas áreas geográficas sem que a população anfitriã (host society) sinta algum tipo de “proximidade cultural” e sem que haja importantes mudanças por parte destes missionários como a disposição para “europeizar-se” ou “americanizar-se”, mudanças estas que a experiência da discriminação desencoraja. O objetivo deste capítulo foi analisar os principais aspectos socioculturais que envolvem as estratégias de evangelização da IURD na Europa, especialmente as ações que esta instituição desenvolve, dinamicamente, para que suas atividades litúrgicas adquiram inteligibilidade para grupos tão heterogêneos como são os constituídos por imigrantes africanos e latino-americanos, nomeadamente brasileiros. No entanto, novas investigações são necessárias para melhor compreensão socio-antropológica deste complexo fenômeno do mercado simbólico-religioso globalizado e transnacional que é a evangelização neopentecostal brasileira em países europeus.

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PROSPERIDADE E LIBERTAÇÃO: SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EVANGÉLICA TRANSNACIONAL NOS RITUAIS ARGENTINOS DA IGREJA UNIVERSAL Marcelo Tadvald

O Deus desse mundo é o dinheiro. É toma lá, dá cá! Edir Macedo

Rituais Iurdianos na Argentina Igrejas da terceira onda pentecostal no Brasil como a Universal do Reino de Deus (IURD), depositam em sua lógica institucional processos de intensa ritualização como agentes de conversão, mediação e difusão de sua doutrina junto aos fiéis. Para tanto, a utilização de diferentes expedientes, como músicas, materiais iconográficos e propagandísticos, símbolos e referências religiosas do cotidiano e do imaginário de outras religiões, principalmente do universo cristão ou de matriz africana (como sal grosso, óleos, água sacralizada, menorás, pombas brancas etc), mitigam o caráter “transcendental” da opção autônoma, conformando os 93

adeptos a receptáculos desses símbolos e transmissores de uma doutrina específica e dos códigos e visões de mundo nela impregnadas. Sem dúvida, tanto no Brasil quanto no caso da transnacionalização para países como a Argentina, a participação nos cultos é imprescindível para a experiência religiosa oferecida pela IURD, mas também para a própria igreja, pois são esses os momentos privilegia-dos para que, dentre outros aspectos, ela receba ofertas (doações) dos fiéis. A partir dos cultos, torna-se possível avaliar a presença iurdiana sob diferentes aspectos, uma vez que os mesmos reproduzem o seu modelo litúrgico peculiar onde quer que ela se faça presente, mas por também revelarem certas estratégias de adaptação no contexto exterior. Desta forma, a partir de algumas experiências etnográficas que vivenciei em alguns rituais iurdianos no país platino e, conforme minha própria sensibilidade etnográfica diante das situações vivenciadas, procuro compreender aspectos que delimitam o que concebo por identidade iurdiana transnacional argentina. Ademais, é importante registrar que penso nesses rituais enquanto uma perspectiva, quer dizer, como um ponto de vista particular a partir do qual se constitui um discurso sobre o social, tal qual sugeriu Edmund Leach (1996), no intuito de desconstruir a clássica tradição durkheimiana de conceber os rituais como um tipo específico de ação relacionada ao universo do sagrado (Durkheim, 2000). Na Argentina, as segundas-feiras são dedicadas a reuniões que trabalham diretamente com o tema da prosperidade. As terças-feiras são dedicadas a reuniões que trabalham questões de saúde física ou psicológica. Quartas e domingos são dias dedicados ao “Espírito Santo”. Sextas-feiras, dedica-

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das ao trabalho de libertação (no Brasil, as chamadas Sessões do Descarrego), são os dias que possuem mais cultos. A propósito, em conjunto com a reunião de domingo que ocorre às 10h, tais reuniões são aquelas que atraem mais público para os templos, especialmente para o Templo de la Fe, sua catedral no país. As quintas-feiras (e também as reuniões dominicais) são destinadas à família; aos sábados as atividades são conduzidas por obreiros e pastores auxiliares por se tratar do dia de folga dos pastores “titulares”. Nesses dias se observa maior audiência de jovens, especialmente durante as sessões da Terapia del Amor. Contudo, independente do tema, o aspecto que “atravessa” todas as reuniões são os constantes pedidos por ofertas. A seguir, analiso algumas instâncias de construção da identidade iurdiana na Argentina a partir daquilo observado em seus rituais locais.

Discursos Em rituais religiosos podemos observar os conjuntos de formalidades e etapas prescritas dentro de um mote cerimonial, que realizam, re-atualizam, agregam e fornecem sentido aos participantes. No caso dos rituais da IURD, percebemos a importância conferida aos motivos, discursos e procedimentos litúrgicos que estimulam e atuam principalmente sobre os imaginários da libertação e da prosperidade. A fim de visualizar e compreender algumas categorias estruturantes elaboradas e transmitidas nos cultos pela Universal e em que medida tais categorias são apreendidas pelos sujeitos e reproduzidas por eles em sua experiência religiosa e comportamental, acredito ser pertinente uma análise de 95

enunciados e etapas litúrgicas apresentadas neste momento particular da experiência religiosa nos templos promovida pela IURD. Ainda que o modelo litúrgico iurdiano que também se transnacionaliza procure observar uma lógica comum, uma vez deslocado para contextos distintos daquele que o originou, no intuito de adaptar-se, apresenta diferenças mais ou menos sutis conforme podemos avaliar quando temos a possibilidade de vivenciar esses rituais em distintos cenários sociais. Tal procedimento nos permite desvelar de que maneira determinada instituição religiosa manifesta seus atributos primordiais procurando estabelecê-los para aqueles a que se reportam. Este expediente analítico só pode ser utilizado em estudos acerca de instituições que possuem práticas litúrgicas acessíveis a observação. No caso da IURD, esta tarefa se torna possível em função do reconhecimento de seu modelo litúrgico como alicerce de sua teologia e de seu crescimento material. Além do motivo financeiro, é importante destacar que a liturgia iurdiana manifesta e realiza sua ideologia acerca de diversos aspectos, como a sua concepção de cura, de fé, do bem, do mal, de conversão etc, ou seja, de todo o imaginário que deve ser transmitido para os fiéis e compartilhado entre eles. Pensando no ritual como um jogo ou como uma cena (Turner, 2013), é possível identificar personagens com atribuições específicas para que o mesmo transcorra dentro de certa lógica almejada. No caso dos cultos iurdianos, observamos que a realização do modelo é situada a partir de sujeitos particulares, com funções litúrgicas particulares: bispos e pastores, chefes cerimoniais; um corpo de ajudantes que os assiste, obreiros, obreiras, músicos, técnicos de som e luz, se-

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guranças... Pessoas com funções importantes de vigilância, organização, auxílio em um sem-número de tarefas imprescindíveis para que o ritual transcorra da melhor maneira possível e assim possa atingir os distintos objetivos em jogo; a audiência, composta de fiéis, convertidos em potencial, curiosos (incluindo, eventualmente, pesquisadores) e até os demônios ou entidades maléficas que ali se manifestam. Cada um destes sujeitos possui papéis e desejos particulares. Os chefes cerimoniais podem estar preocupados com uma evangelização que promova o maior número de conversões ou de ofertas possíveis e quanto maior for o seu sucesso nestes empreendimentos, mais esses sujeitos deverão ascender na hierarquia da igreja; os ajudantes, especialmente os obreiros e obreiros, podem estar preocupados tanto com a evangelização e com o transcurso ordeiro das cerimônias quanto com a sua própria ascensão na mesma estrutura hierárquica; a audiência está ali presente por diferentes e complexas motivações, que vão desde uma ordem espiritual e/ou física e material, à reordenação da vida pessoal ou familiar, lazer ou por interesses outros, como no caso de um pesquisador que realiza uma observação participante, por exemplo. Todos cumprem funções particulares que em conjunto realizam o ritual em si. O corpo discursivo da IURD observável claramente nos rituais se fundamenta a partir de uma interdiscursividade com elementos de outras religiões, como os de matriz africana, ou até mesmo do judaísmo, no caso da utilização de menorás nos palcos, mesmo que eles não passem de adornos, fazendo a função de símbolos nunca explorados ou utilizados diretamente em qualquer momento nos rituais observados por mim tanto no Brasil quanto na Argentina. Assim, é

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possível perceber que os processos ritualísticos de cura (libertação) e de prosperidade são significados e respaldados a partir de poderes superiores totalizantes, como o do Espírito Santo. Dado que a IURD celebra uma concepção imanente do poder superior (no caso, o Espírito Santo), este deve se manifestar nos cultos a partir da palavra do mestre cerimonial, e mediante o mestre que o invoca, institui-se como verdadeira autoridade ali presente. Mas, como ele se “manifesta” pela palavra do pastor ou do bispo, ao cabo são os próprios pastores e bispos que se (re)investem de autoridade. “Em nome do Espírito Santo”, a palavra dos mestres cerimoniais (os únicos realmente capazes de invocar o Espírito Santo) se torna praticamente infalível e irrefutável. São os rituais que conferem ao tempo e ao espaço sua dimensão de sagrado (Corten, 2004). No caso das sessões de descarga espiritual, o que se observa tanto em um quanto em outro país é o estabelecimento de um verdadeiro campo de batalha onde se realiza uma guerra espiritual, em que está em jogo a luta pelo sagrado. Tendo como inimigo nesta guerra santa proclamada pelos iurdianos - símbolos e entidades das religiões de matriz africana, os exorcismos promovidos pelas sessões de cura assumiram um caráter de “contra-feitiço”, graças à própria agregação das categorias discursivas combatidas. Entretanto, esse modelo, na Argentina, ainda que presente, não possui a mesma força e incidência sobre a anuência dos fiéis conforme o discurso enunciado observado no Brasil. O discurso que pode ser extraído dos rituais iurdianos (seja dos sujeitos-bispos e pastores, seja dos sujeitos-fiéis) mostra não necessariamente uma polissemia, mas antes um corpo discursivo mais ou menos coeso construído através de

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uma relação dialógica estabelecida entre esses sujeitos. Por isso, a interação do público deve ser constante. É interessante pensar que o papel do sujeito neste momento ritualístico pode lhe conferir maior ou menor autoridade no que se refere a elaboração desse discurso, tendo o sujeito-bispo/pastor um papel mais privilegiado devido a sua posição em cena. Isso, contudo, não necessariamente transforma o enunciado como prioritariamente exterior ao sujeito, pois, uma vez estabelecida uma relação dialógica entre as partes, por mais que um dos sujeitos se encontre em uma posição mais privilegiada no sentido de conduzir os rumos cerimoniais e de consolidação do discurso, este jamais se realizará plenamente se não fizer sentido para o outro sujeito, no caso, a audiência. O enunciável jamais poderá realizar-se exteriormente ao sujeito. O discurso iurdiano aciona uma espécie de vulnerabilidade intrínseca aos membros. O corpus discursivo vem de fora, é proporcionado pela IURD, mas este, na verdade, consiste numa apropriação ou re-significação de outro já interiorizado anteriormente pela audiência. Por isso, no Brasil, atacar nos rituais entidades do panteão afro-religioso pode fazer mais sentido do que realizar a mesma proeza diante de um público que não confere ao universo negro a mesma posição e proporção em seu imaginário social conforme aquilo que encontramos no Brasil. Este é o caso da sociedade argentina em geral. Por outro lado, ao explorar em seus rituais na Argentina expedientes do imaginário católico, por exemplo, a IURD pode construir sua discursividade de forma mais profícua naquele contexto. No Brasil, os mecanismos são parecidos, mas o discurso iurdiano se fundamenta agregando ou reelaborando instâncias simbólicas de forma diferente.

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Conforme o modelo proposto por Dominique Maingueneau (1984), os interdiscursos são sempre produzidos dentro de um delimitado universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo, em que a identidade discursiva é constituída na relação com o outro, sem que necessariamente um corpo discursivo institucional esteja se reproduzindo idealmente dentre os sujeitos. Se, por um lado, analisar o espaço ritual onde esses discursos são produzidos se torna condição para compreendê-los, do mesmo modo será preciso analisar de que maneira as pessoas incorporam e manifestam esses discursos. Será que, no caso da IURD, os sujeitos-fiéis o fazem da maneira preconizada pela instituição, independente do contexto nacional? Do ponto de vista de quem observa o comportamento dos fiéis nos cultos tanto no Brasil quanto na Argentina, não. Os fiéis na Argentina reagem diferentemente nos cultos em algumas situações, como diante de piadas dos pastores ou da evocação de entidades afro-religiosas. Mas, do ponto de vista dos sujeitos-fiéis, tal questão se torna mais difícil de responder, isto porque as motivações que os levam a se comportar de tal ou qual maneira podem ser as mais variadas possíveis. Por isso é que, em qualquer jogo interativo, ou constitutivo de interdiscursos, é imprescindível atentarmos para todas as possibilidades, já que todo e qualquer sujeito age de acordo com certas expectativas que ele projeta serem compartilhadas pelo outro ou que respondam àquilo que ele imagina ser procedente dentro daquele cenário determinado e de sua experiência religiosa. Assim, o discurso institucional, através do ritual, tão somente possui o poder de conduzir as formulações discursivas. Isto não elimina o poder do sujeito-bispo/pastor de conduzir a formulação discursiva, pelo contrário, garante-

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lhe a autoridade de possuí-lo, infalivelmente, “em nome do Nosso Senhor Jesus Cristo” ou do “Espírito Santo”. Por isso é possível “confundir” a sua voz com a de Deus, torná-lo o representante da palavra divina. Dentro do ritual, o sujeito-bispo/pastor apenas representa performaticamente tais atributos e, através dessa autoridade que o ritual e que a instituição lhe confere, ele pode reproduzir (e mesmo construir) um discurso desejado. Para além do ritual é que as motivações dos sujeitos-fiéis em ajudar na construção de tal discurso devem se apresentar. Mas é apenas no ritual que tais motivações podem ser razoavelmente percebidas. A dualidade do sujeito-fiel iurdiano e a complexidade de suas motivações enquanto participante (imprescindível) dos rituais, dualidade já apontada em alguns estudos (Ribeiro, 2005; Tadvald, 2005), nada mais é do que resultado da própria dualidade discursiva que existe na interdiscursividade característica da IURD, que prima pelo caráter adaptativo: por exemplo, no Brasil, pela inversão, em um sentido pejorativo, das categorias existentes nas religiões de matriz africana; na Argentina, pela apropriação, em um sentido positivo, de categorias do imaginário cristão-católico.

Objetos e Representações A IURD inclui em seus cultos a distribuição de toda a sorte de objetos, amuletos ou fetiches que, mediante o universo litúrgico, investem-se de simbolismo sacralizado e mágico. Esses objetos possuem os mais diferentes propósitos, mas, em geral, funcionam mais diretamente como expedientes de comunicação, de libertação ou de prosperidade. Entre eles 101

podemos observar um sem-número de panfletos, envelopes, caixinhas em formato de urnas ou de templos, objetos também utilizados para fins publicitários, de evangelização, envio de mensagens, obtenção de ofertas, etc. Tais materiais impressos também podem acompanhar outros expedientes “mágicos” distribuídos pelos obreiros nos templos, tais como “sabão para descarrêgo”, “água abençoada”, “chave para vitória”, “sal grosso bendito pelo Espírito Santo”, “água do Rio Jordão”, “pedras do túmulo de Jesus”, “pó abençoado”, “rosas milagrosas” (brancas para problemas sentimentais, vermelhas para problemas de saúde e amarelas para problemas financeiros), “areia da praia do mar da Galiléia”, “óleo de Israel ou do Monte das Oliveiras”, “cajado de Jacó”, e até “correntinhas” parecidas com os escapulários católicos, mas sem as imagens de Jesus ou de Maria. Além desses objetos que são distribuídos, nos cultos também observamos a utilização de objetos maiores, que devem interagir com os fiéis para fins mágico-salvadores, como o “muro de isopor” a ser derrubado publicamente no templo, o “manto sagrado” que deve ser tocado pelos fiéis ou a “porta da vitória” que deve ser atravessada por aqueles que desejam prosperidade e assim por diante. Elementos como as rosas, pedaços de sabão, frasquinhos de óleo e águas abençoadas são utilizadas com um forte sentido imediatista mágico e supersticioso. Tais expedientes são bem recebidos pela comunidade religiosa em questão, agregando sentido e estabelecendo pontes de significado entre a doutrina iurdiana e a religiosidade popular constituída por ela. A aceitação destes elementos e objetos só é possível porque atinge uma comunidade de sentido permeável a este tipo de práticas. Ademais, constitui-se em uma estratégia importante dentro do mercado religioso local, ao pri102

mar pela renovação constante desses “instrumentos sagrados” que respondem a demandas de gratificação instantânea e de crescimento da mentalidade mágica, representações para as quais a IURD se mostra atenta e que, justamente por reconhecer sua pertinência e importância, não se furta em investir consideravelmente. Na Argentina, estimou-se que, nos anos de crescimento no país, a igreja incrementou sensivelmente o seu gasto em materiais de culto: de cem mil pesos em 1998, passou a gastar mais de 1,1 milhão de pesos poucos anos depois (42 mil reais e 470 mil reais, respectivamente), conforme seus balanços divulgados para o governo (Seselovsky, 2011). Outro expediente observado nos templos argentinos da IURD é importante de nota: a bandeira da Argentina. A bandeira está presente tanto nos templos maiores, como a catedral ou o templo do microcentro de Buenos Aires, quanto nos menores, como os de Palermo, Once, Flores, Liniers, Tigre. Ademais, ela está sempre posicionada naquele que talvez seja o lugar mais estratégico possível: o palco, junto com os demais elementos que o compõe, portanto, à vista de todos. Evidentemente, isto não ocorre por acaso. Segundo Oro, Os usos das bandeiras nestas circunstâncias obedecem a razões simbólicas, a saber: a) expressar publicamente que o país representado pelas bandeiras é detentor do avivamento religioso (no campo evangélico), ou da tradição e do saber afro-religioso; b) expor publicamente as bandeiras para que os países por ela representados sejam ungidos pela força do Espírito Santo, ou pelo axé, que emanam dos rituais e práticas religiosas celebradas. Neste caso, no contexto pentecostal, é recorrente a aproximação

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simbólica da bandeira com o ‘manto de Isaias’, ou ‘o manto de Eliseu’, ou seja, assim como os profetas usaram o manto para realizarem prodígios, da mesma forma a bandeira ungida será portadora de poder e autoridade, suscetível de trazer a prosperidade e as bênçãos para as nações (2009: 237-38).

Acabam, assim, criando um sentido maior de proximidade entre a instituição estrangeira e a sociedade nacional receptora, re-significando possíveis impressões de invasão ou de não-pertencimento. Esses aspectos são importantes para a constituição das comunidades de sentido religioso transnacionais em questão e para a formulação de identidades religiosas que respondam a anseios institucionais específicos, como a manutenção dos convertidos e a obtenção do maior número de ofertas possível.

Prosperidade e identidade dizimista transnacional No contexto evangélico em geral, o dízimo, por si só, pode ser tomado como uma exigência obrigatória de Deus, sendo fundamental para a vida física, espiritual e financeira do fiel cristão. Contudo, diante do lugar que a prática assumiu dentro da teologia iurdiana, não por acaso representada diretamente pelo nome de Teologia da Prosperidade, a necessidade de angariar o maior número de ofertas, sacrifícios ou doações possíveis a partir de um modelo discursivo que procura legitimar e sacralizar o ato em si, tornou-se um aspecto crucial e característico não somente da IURD, mas também de toda a rede de igrejas neopentecostais que surgiram pos-

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teriormente e que tem como base teológica, doutrinária e ritualística os pedidos por dinheiro. Com o tempo, estas práticas se tornaram o epicentro das mais importantes e constantes críticas recebidas pela IURD onde quer que ela se faça presente. Para Edir Macedo (Tavolaro, 2007), a prática é absolutamente justificável e razoável: o fiel recebe de Deus graças na mesma proporção daquilo que ele oferece. Para pessoas muitas vezes desprovidas de recursos materiais, o ato da doação de qualquer quantia para a igreja consiste em um verdadeiro “sacrifício”. E o “sacrifício”, dentro da exegese cristã, possui uma representação enaltecida. Portanto, não há indulgência no ato de pedir, pois quanto maior for o sacrifício, maior será o retorno. Por isso, para Macedo, não há contradição alguma no ato de doar para a IURD, mesmo em se tratando do pouco que se tem: é uma questão de lógica, uma questão de fé. Também porque, para o bispo, se uma pessoa vem a um culto e é explorada, e em contrapartida não recebe nenhum benefício, ela nunca mais voltaria para ser explorada novamente. Portanto, a igreja tornou-se o império religioso-empresarial que é hoje em dia porque o fiel seria beneficiado, produzindo assim um círculo virtuoso entre instituição e adeptos. E, no caso da não obtenção dos retornos esperados, a responsabilidade do “insucesso” é creditada para o próprio fiel, que ainda não “ofereceu” ou “sacrificou-se” a contento ou ainda não cumpriu com alguma outra demanda necessária para sua prosperidade, como não ter invocado devidamente o nome de Jesus ou não ter participado de reuniões suficientes, entre outras possibilidades. Por exemplo, em um Congreso Empresarial no Templo de la Fe na Argentina o pastor pedia por doações de carros.

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Com o microfone em uma das mãos e a chave de um automóvel soerguida pela outra bradava ao público: ¿Quién quiere un cero kilómetro? ¿Quién quiere llevarse un auto nuevo, cero kilómetro, a estrenar? [Depois completou]: Para que la gracia de Dios se lo obsequie, mi amigo, usted debe primero sacrificar su auto usado. ¿Usted no cree que yo tengo un cero kilómetro esperando por usted, ah? Sí que está, mi amigo, ahí en la concesionaria, pero antes usted debe sacrificar. Si Dios no ve su sacrificio, Dios no recompensa (Seselovsky, 2011).

Não que os pedidos por ofertas se resumam a estes momentos, mas, conforme aparecem em minhas observações, os cultos são os momentos privilegiados para a obtenção das ofertas. A diferença dos cultos iurdianos para outros cultos similares é que boa parte do tempo do ritual, independente qual seja o tema, são dedicados para arrecadar doações. Para tanto, os rituais iurdianos, que duram em torno de uma hora e meia, possuem basicamente três fases, cada uma ocupando aproximadamente trinta minutos. Na primeira meia-hora, os pedidos por ofertas são relativos e costumeiramente giram em torno de auxílios para a “obra de Deus”, quer dizer, para ações assistencialistas ou evangelizadoras da igreja (contribuições para o jornal, para refeições que eventualmente são oferecidas aos carentes, e assim por diante); no período intermediário dos rituais, praticamente não são realizados pedidos. Neste momento, costuma ocorrer o ponto alto das pregações ou das práticas de exorcismo (mesmo em não se tratando das reuniões específicas para este fim) ou ainda os testemunhos das pessoas; na última meia-hora, os pedidos de ofertas são intensos e procuram sempre se coadunar aquilo que está 106

sendo tratado até aquele momento no culto (questões de saúde, cura/libertação espiritual, prosperidade material, problemas sentimentais e de relacionamentos, etc). Naturalmente, este se trata de um modelo ideal construído a partir de minhas observações, podendo apresentar diferenças em uma ou outra ocasião, mas, em geral, representam o que observei tanto no Brasil quanto na Argentina. De acordo com as construções litúrgicas e discursivas próprias da IURD, o ato de doar ou de se “sacrificar” confere prestígio ao agente da doação perante a instituição e perante os demais presentes. O conjunto das representações que consagram tal aspecto permite a construção de uma identidade evangélica particular, a de dizimista. Tal constructo somente se realiza plenamente no templo da Universal, pois é neste local que o ato pode ser visto e compartilhado pelos demais, a fim de legitimá-lo e de estimular que outras pessoas também o façam, no sentido de ampliar um sentimento de pertencimento de grupo. Por exemplo, ao contrário do que prega a doutrina do espiritismo kardecista no que se refere ao anonimato num ato de caridade, sacrifício ou doação, o mesmo princípio de anonimato não é estimulado pela IURD, ainda que, presume-se, a igreja não o conteste ou reprima se assim desejar o doador. Como em diferentes modelos de identidade social, também o dizimista deve aderir a certo sistema de prestações recíprocas que visa a própria configuração e reprodução desta identidade. Neste caso, as prestações não são necessariamente recíprocas, tanto que a lógica da reciprocidade deve aqui ser relativizada, pois nada, além das garantias do pastor, garantem que o outro agente da reciproci-dade - Deus, cumprirá com a sua parte. Ao invés da dinâmica dadivosa do

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dar-receber-retribuir (Mauss, 2003), o que se percebe muitas vezes é a constante retribuição direta da doação (muitas vezes sem a variável do recebimento), posto que a promessa da prosperidade no nível prometido (o mesmo da doação) ser relativa para o doador e, em alguns casos, inexistente. Trata-se, portanto, de uma dinâmica diferente: a do dar-retribuir. Contudo, tal dinâmica não é dadivosa. Quem deve retribuir - Deus - não é quem diretamente recebeu o objeto de troca, o benefício material. Dado que, em realidade, quem o recebe é a IURD, e não Aquele a quem compete cumprir o circuito ideal da reciprocidade. Este benefício se esvai ao ponto de tornar viável, em muitos casos, apenas a dinâmica do dar-retribuir. De acordo com o discurso da Igreja Universal, ela possui toda a legitimidade para atuar (e receber) “em nome de Deus”, como Seu instrumento, mas não de necessariamente responder por Ele quando a dinâmica ideal não se cumpre. Neste arranjo discursivo, a responsabilidade pela eficácia do sistema de reciprocidade é sempre do doador. Portanto, é inconcebível responsabilizar a Deus pela falta da prosperidade prometida pela igreja mediante a dinâmica dadivosa implícita no ato da oferta, pois este mesmo discurso oficial ensina que a dádiva ainda não atingida denota falta de comprometimento do doador, conforme mencionei. Portanto, não é por acaso que as explicações para a falta de prosperidade repousem em instâncias tão subjetivas. Mesmo os “iurdianos totais” (dizimistas), que cumprem plena e “religiosamente” com a sua parte na dinâmica são diretamente responsabilizados pelo “fracasso” desta mesma dinâmica, quando suas ofertas não garantem necessariamente a prosperidade prometida pela Universal a ser oferecida por Deus.

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Assim, o sucesso se localiza sempre em um por vir. Conquanto se esteja disposto acreditar, não há falhas no discurso. Qualquer conquista material, por menor que seja, é diretamente simbolizada como parte do cumprimento da dinâmica por Deus, mesmo que isto signifique a obtenção de um emprego “já engatilhado”, um pequeno aumento no salário ou a compra de um veículo em prestações a perder de vista, mesmo que isto comprometa a saúde financeira familiar, tanto quanto o dízimo em algumas situações. Também não surpreende o fato do júbilo provocado pelo cumprimento da dinâmica por Deus ser compartilhado pelos fiéis entre Ele e a IURD. Muitas vezes não foi necessariamente Deus quem conseguiu o trabalho ou o bem material, mas a própria igreja que atua em nome Dele, uma vez ser ela quem media tal dinâmica dadivosa, viabilizando-a. A dinâmica, por sua vez, se realizará conforme o entendimento e a significação que os doadores conferem às suas conquistas pessoais. A Teologia da Prosperidade da IURD e seu racionalismo produziram um discurso particular capaz de abarcar tanto o fracasso quanto o sucesso (ou prosperidade), e em qualquer nível que estes se façam notar. Contudo, a observável variabilidade de apreensão e de re-significação deste discurso amplia o potencial analítico, dado que ele possui considerável poder de transformação do self do convertido (especialmente do dizimista, um exemplo de conversão satisfatória), de modo a lhe fornecer subsídios para sua integração mais satisfatória na sociedade de consumo que tanto ele parece almejar, mas também no seu reordenamento moral e pessoal, importante para o restabelecimento de sua saúde e/ou organização pessoal e familiar. Não raro, o que precipita o sujeito para sua conversão dentro da IURD, tanto no

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Brasil quanto na Argentina, é a busca no campo religioso local por mecanismos simbólicos que lhe permitam restabelecer ou reordenar instâncias prejudicadas ou conflituosas de sua vida. E, ainda que isto não signifique necessariamente o enriquecimento material prometido, é inegável que muitos adeptos atinjam outras expectativas desejadas a partir de sua conversão, como parar de beber, arrumar trabalho, adequar-se dignamente à vida familiar e comunitária, não desejar mais se suicidar, etc. Doar, portanto, trata-se de um ato investido de grande prestígio, que responde a uma importante expectativa daquele que porta a identidade dizimista. O dizimista se trata do fiel que, depois de ir cantando e batendo palmas depositar a sua oferta no saco suspenso pelas mãos de algum obreiro, retorna para sua cadeira pelo corredor central ostentando, como manda o figurino dos prósperos, um semblante de orgulho e de distinção perante a platéia. Naquele momento, ninguém ali tem mais importância do que ele, dizimista. Nem mesmo o pastor, que já cumpriu com o seu papel de conduzir o rebanho até as sacolas que recebem as ofertas. E, quanto maior for a oferta, maior é o prestígio auferido, por isso os pedidos decrescentes de valores, dos milhares e centenas de pesos ou reais, até as moedas ou cartões de vales-transporte. A importância da oferta, que diretamente constrói e atribui valor à identidade dizimista, é constantemente reforçada pela igreja, que utiliza de todas as ferramentas disponíveis para difundir a matéria: suas mídias, seus rituais, etc. Por tais razões, é possível afirmar que o objetivo institucional último de seus rituais é a obtenção do maior volume possível de ofertas. Naturalmente, algo que deve ser absolutamente dissimulado durante os ritos, mesmo que os pedidos sejam

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“descarados” e permanentes. O que conta, afinal, é a forma sob a qual tais pedidos são elaborados e realizados. A IURD jamais nega o seu interesse pelo dinheiro, seja em seus rituais ou em suas mídias. Contudo, o arranjo discursivo que promove re-significa tal interesse de modo a representá-lo como o baluarte principal da Teologia da Prosperidade que necessita - e utiliza - do dinheiro dos fiéis “apenas” para promover a obra da Universal, a obra de Deus. Assim, a identidade dizimista do fiel iurdiano também se transnacionaliza, podendo ser observada em contextos estrangeiros como o argentino. E tal construção gera frutos cruciais para a igreja.

À guisa de conclusão: os espectadores do consumo Muitas pessoas que frequentam os templos iurdianos na Argentina são provenientes de camadas sociais humildes e desfavorecidas economicamente. Os templos, em grande parte cinemas e teatros restaurados, provavelmente não eram frequentados por essas pessoas quando abrigavam espetáculos teatrais ou fílmicos em tempos passados. Comumente “apartados” desses mercados culturais, atualmente cada vez mais restritos a grandes templos do consumo, como shoppings centers, locais que também não estimulam o acesso a essas populações, os templos da IURD podem se revelar verdadeiras opções de sociabilidade e de entretenimento de classe, talvez até mais econômicos do que o custo de um bilhete para o teatro ou para o cinema nas salas dos shoppings, já que o “custo das doações” pode se resumir a um par de moedas ou mesmo a nada. O espetáculo proporcionado nos 111

templos é intenso: músicas, cânticos, performances, jogos de luz, banheiros asseados, poltronas confortáveis, ar-condicionado, lojinhas, tendas com quitutes a preços módicos... Além de participar entusiasticamente do “show de Cristo”, essas pessoas ainda levam consigo todo um referencial simbólico contra a sua condição de exclusão. Neste sentido, em última instância, ainda que não consumidoras, essas pessoas podem ao menos se transformar em espectadoras do consumo, o que já significa alguma coisa em se tratando de conjuntos populacionais de países inseridos no capitalismo tardio. Oficialmente, tanto no Brasil quanto na Argentina, a IURD não conta com outro financiamento que não seja os dízimos e as ofertas, que aparecem registradas em seus exercícios contábeis como “doações”. Conforme consta nos registros contábeis apurados na época de apogeu da Universal na Argentina (baseio-me no levantamento de Seselovsky, 2011, pois não encontrei dados mais atuais), em 1998 a igreja recebeu no país doações no valor de 10,9 milhões de pesos; no ano seguinte, os valores subiram para 11,4 milhões; em 2000, registrou-se 14,3 milhões; em 2001, 18,3 milhões; finalmente, em 2002, a IURD declarou ter recebido 19,2 milhões de pesos em doações, sacrifícios e ofertas (aproximadamente, no câmbio atual, 4.67, 4.89, 6.13, 7.85 e 8.23 milhões de reais, respectivamente). Uma vez que a IURD está regularmente registrada no Registro Nacional de Cultos do país, por se tratar de uma associação religiosa, a lei argentina é semelhante à brasileira no seguinte aspecto: este tipo de arrecadação está isenta de impostos. Igualmente, é importante registrar que independente dos possíveis juízos de valor que incidam sobre essas práticas, tecnicamente o enriquecimento da IURD proveniente

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das doações não é ilegal, já que nenhum fiel é obrigado a contribuir. Todavia, nem toda legalidade supõe necessariamente uma legitimidade correlata, mesmo porque toda ideia de legitimidade é construída socialmente e pode ser demarcada historicamente, uma vez que cada época produz certas formas de consciência social que determinam critérios sobre o que seja legítimo ou não. Se, atualmente, a ideia de pedir dinheiro em nome da religião pode ser condenada por grande parte da sociedade, em outros momentos, quando a própria ideia se constituiu, talvez essa prática não fosse condenável pela maioria da população. Contudo, isto não legitima o engodo, a falsa promessa, o aliciamento emotivo que se apropria da ingenuidade, credulidade, falta de informação ou de reflexividade alheia. Não quero com isso provocar julgamentos sobre tal ou qual prática da IURD, mesmo porque não somos capazes de pensar com a cabeça de cada fiel, a contrapartida imprescindível desta equação. Não podemos correr o risco de determinar, subestimar, infantilizar ou banalizar as suas próprias escolhas. Pretendo apenas, a partir de minhas próprias observações e conceitos, provocar uma reflexão mais profunda, ainda que ela caminhe no sentido de duvidar da legitimidade, e, eventualmente, da própria legalidade de certas práticas.

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AS IMBRICAÇÕES DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS NA “RECONSTRUÇÃO NACIONAL” DE ANGOLA: DA BENEVOLÊNCIA À ALTERIDADE MUÇULMANA21 Camila A. M. Sampaio

A entrada da Igreja Universal do Reino de Deus Em Angola, desde 1987, práticas e instituições religiosas devem ser reconhecidas pelo Estado para atuar e manter templos. Os anos anteriores desde a Independência, conquistada em 1975, foram marcados por perseguições religio-

Este texto é um avanço de análises propostas em um dos capítulos de minha tese de doutoramento, na qual apresentei desdobramentos e impactos de atividades rubricadas como parte da “reconstrução nacional” de Angola (Sampaio, 2014). Seu aprimoramento foi fruto de profícuo debate de versão apresentada no Grupo de Trabalho Religiões em Movimento: transnacionalização religiosa, coordenado por Donizete Rodrigues e Ari Pedro Oro, por ocasião da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. Sou grata às sugestões e incentivos dados pelos coordenadores e colegas, especialmente Flávia Pires, Mísia Reesink e Cleonardo Maurício Júnior. 21

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sas, sob acusações de conspirações ou alienação política22. O estabelecimento de relações oficiais Estado-Igrejas está no bojo das transformações provocadas pelo fim da Guerra Fria e pela imposição, por parte das grandes potências econômicas, de políticas neoliberais que estimulassem aberturas econômicas, políticas e culturais para adequação ao regime de livre mercado. A despeito das conturbadas relações entre o Estado angolano e religiões, o contexto interno era marcado pela diversidade de instituições religiosas fundamentadas no cristianismo, segundo esparsas estimativas oficiais23. A Igreja Católica, hegemônica, dividia espaço com igrejas protestantes históricas até a década de 1990 (Pereira, 2009), quando começaram a ter visibilidade igrejas cristãs messiânicas africanas, igrejas protestantes pentecostais e neopentecostais, além do islamismo24. O contexto do período era de forte reação a elementos que pudessem ser relacionados ao poder colonial - como, por exemplo, foi a Igreja Católica durante um período - ou a poderes regionais, que ligavam identidades étnicas a religiões. Fora do contexto urbano, frequentemente entrelaçavam-se questões políticas e religiosas, em movimentos contrários à hegemonia do partido que alcançou o poder desde a Independência, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Cf. Domingos (2013) e Bittercourt (2002). 23 As estimativas oficiais de Angola sobre religiões são especulações, uma vez que ainda não tenha sido conduzido levantamento de dados sistemáticos acerca do tema. É possível apenas inferir que afirmações oficiais de que Angola seria um país predominantemente cristão relaciona-se ao poder que variantes do cristianismo exercem em sua histórica associação ao poder político. 24 Nesse sentido, cf. Pereira (2008), que recupera a história do cristianismo no que hoje constitui Angola. A autora apresenta a relação secular, iniciada no final do século XVI, entre missões católicas e a nobreza Kongo. Sobre a presença e o crescimento de Igrejas Cristãs Africanas, cf. Sarró e Blanes (2009) e Sarró, Blanes e Viegas (2008). 22

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Foi em 1991 que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) chegou a Angola, país a partir do qual expandiu-se no continente africano. A IURD obteve reconhecimento do Estado angolano no ano seguinte, quando outras 50 instituições religiosas também lograram o mesmo estatuto, no âmbito de orientações governamentais para o estabelecimento de “parcerias entre instituições religiosas e instituições públicas” (Viegas, 2008a). Inicialmente o avanço da IURD em Angola ocorreu na capital, Luanda, seguindo a tendência urbana da instituição de se instalar em áreas movimentadas e centrais. Investiu também na transmissão da Rede Record Internacional, via TV paga, e em programas de rádio AM e FM (Fonseca, 2003). Com o fim das guerras internas em 2002, o crescimento foi facilitado e em 2004 alcançaram as 18 províncias angolanas, anunciando em rede nacional os então 124 templos da denominação por todo o país (Freston, 2005). Porém, a concessão do reconhecimento jurídico não assegura condição permanente para o exercício religioso, que está condicionado a uma arena de disputas entre diferentes poderes e atores sociais, articulados em torno do ideal de reconstrução nacional do país.25 Um debate em torno da construção/reconstrução nacional tem permeado o discurso em torno da identidade nacional de Angola desde antes mesmo da Independência. Entretanto, o período aqui referido consiste na “reconstrução nacional” do pós-guerra, a partir de 2002. O uso do termo opera mais como um discurso propalado pelo governo do presidente José Eduardo dos Santos, no cargo desde 1979, do que como um marco diferenciador de uma nova forma de se fazer política. A repetição da ideia que a “reconstrução nacional” está sob o comando do Presidente colabora para a construção de sua imagem como uma figura pacificadora fundamental para o fim das guerras e para a formação de uma “Nova Angola”. 25

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A reconstrução nacional (RN) tem sido apresentada como um conjunto de ações e dispositivos utilizados pelo Estado e seus representantes diretos no delineamento de uma “Nova Angola”, cujos valores seriam “modernos”, “prósperos” e “democráticos”. A RN também é projetada em situações corriqueiras por pessoas que negociam cotidianamente para melhor transitar nas tramas da cidade. Sigo apresentando análises da presença da IURD no espaço das cidades e de casos que acompanhei durante a pesquisa de campo, nas quais demonstrarei como a IURD apresentou, em parte, coadunação às propostas da RN.

A IURD na “reconstrução nacional” Benevolência e conforto

Dentre outras instituições religiosas que chegaram (ou foram reconhecidas) em Angola na década de 1990, a Igreja Universal ganhou destaque e legitimidade. Mesmo entre aqueles que usualmente rechaçavam a participação de instituições religiosas fora do âmbito eclesiástico, parece haver um (desencantado) reconhecimento de atividades que algumas igrejas têm realizado. Um dia, ao caminhar por Luanda, encontrei um memorial relacionado ao MPLA, o partido político dominante e de maior expressividade no país. Fui recebida por um integrante “desde os tempos da luta armada” (pré-1975), a quem chamarei de Luiz26. Disse que gostaria de saber mais sobre 26

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Todos os nomes de meus interlocutores diretos foram modificados.

aquele centro cultural e ele demonstrou alegria em descrever “os tempos de antigamente”. Conversamos durante algum tempo sobre vários temas. Sem eu ter comentado sobre qualquer assunto relativo à religião ou à pesquisa que eu realizava em Angola, Luiz, que se declarou ateu, apresentou seu descontentamento com o que lhe parece o “fim da utopia”: Luiz: Nós temos buscado mobilização da sociedade civil, mas aqui é difícil... O exemplo do vosso país [Brasil], que existe sociedade civil mobilizada, deve ser seguido. Aqui ninguém quer prestar serviços às pessoas, o governo não dá atenção... Camila: E quem hoje presta serviços e mobiliza a população aqui? Luiz: São as Igrejas... Infelizmente só as Igrejas. A Católica, a Metodista e, agora, a Igreja Universal.

Esse breve diálogo, ainda que tenha uma visão parcial por não considerar as inúmeras ONGs presentes em Angola, além de outras instituições religiosas de destaque - traz um interessante aspecto a ser observado, que é o destaque dado à IURD. Abreu (2006), em tese escrita para discutir o papel da sociedade civil em Angola, indica que as entidades religiosas foram durante o período das guerras uma espécie de “porta-vozes” da população, pois eram as únicas organizações não vinculadas ao Estado. Após etapa quantitativa de sua investigação, a autora destaca também que as igrejas foram apontadas como “solucionadoras de problemas”, além de serem as mais confiáveis dentre as diferentes instituições no espaço público. A autora observa que ainda na ocasião de

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sua investigação - anos imediatamente após a instauração da “paz” - as instituições religiosas continuavam a operar como os principais representantes da população diante do Estado. Além da atuação das igrejas citadas por Luiz, algumas igrejas cristãs messiânicas africanas têm tido papel de destaque como “parceiras” do Estado, como as igrejas Kimbanguista e Tocoísta. Todavia, estas instituições associam-se à afirmação de identidades étnicas específicas (Sarro; Blanes; Viegas, 2008; Pereira, 2008). Seria por isso que Luiz não as mencionou? Talvez sim, talvez não, mas o fato é que a IURD em Angola estava mantendo um discurso que apelava a questões sobre a identidade nacional, que poderia colaborar para a afirmação de uma “angolanidade”, “de Cabinda ao Cunene”27. O apelo de Luiz apontava para uma crítica às formas de governança que não passaria pelo fortalecimento de uma “sociedade civil”, como destacado por Abreu (2006). A sensibilidade de Luiz não era derivada de um fato isolado, mas coadunada a um entendimento proferido por discursos oficiais de que as instituições religiosas reconhecidas podem e devem atuar para a diminuição das “carências” promovidas pelos anos de colonização e guerras. No pós 2002 da “reconstrução nacional” são essas as instituições conclamadas a prestar serviços de apoio à população. Nesse sentido argumento, em outro trabalho, como a IURD se coloca como uma “instituição benevolente” que adequa doações de acordo com a privação pública reconhecida em dado contexto (Mafra; Sampaio; Swatowiski, 2012). “De Cabinda ao Cunene”, expressão popular que se refere à ”integridade territorial nacional”. No Brasil, o termo equivalente seria “Do Oiapoque ao Chuí”. 27

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A ação assistencial da IURD tem sido desejável para a “reconstrução nacional” pós-guerra civil e tem sido elogiada e oficializada pelas ações governamentais que legitimam a denominação e procuram por ela para criar alianças28. Mas não é apenas em ações assistenciais que a IURD tem adquirido relevância. A visibilidade da IURD tem sido incrementada por construções de templos vistosos, seguindo a diretriz que tem sido estabelecida na “era das catedrais” (Gomes, 2004). Em tempos de RN, em que cidades por toda a Angola são verdadeiros “canteiros de obra”, símbolos e atitudes presentes nessa “era das catedrais” são mais um ícone de semelhança entre a IURD e o atual projeto de nação proposto pelo Estado. A semelhança não consiste apenas nas obras grandiosas por todo o país, mas no caráter privatizado dessas obras, espelhando um projeto de cidadania relativa. Tanto nos anos em que acompanhei a mídia eletrônica produzida pela IURD de Angola (2008-2011) quanto nos meses que passei frequentando cultos em Luanda e na província do Cunene, em 2010 e 2011, foi possível apreender a centralidade desse tema na fala institucional e entre os pastores. Geralmente ao responder o que se faz com o dinheiro arrecadado, são exaltadas as ideias de que “a obra tem que crescer” e de que “o carinho que você merece está refletido no conforto dos templos”. Uma das estratégias de legitimação da IURD tem sido atuar em obras assistenciais, realizando ampla divulgação de suas ações (Machado, 2003). No Brasil, a atividade de maior projeção é o Projeto Nordeste, voltado para populações que sofrem com a seca. Em Moçambique há intensa participação da IURD na vida pública, em campanhas similares às desenvolvidas em Angola: arrecadar e distribuir bens não-duráveis para pessoas vítimas de cheias, campanhas de doação de sangue e de prevenção de doenças infecto-contagiosas (Cruz e Silva, 2003). 28

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Há dois aspetos presentes no modelo de projeto urbano que vigora na RN em Angola. Em termos de infraestrutura, há abertura e reformas de autovias e estradas destruídas pelos anos de guerra. Já as construções para a habitação e espaço público são voltadas para a privatização deste último em condomínios fechados, redes hoteleiras, resorts, centros comerciais para os mais abastados e os negociantes que transitam pelo país. Esse parece ser o modelo de expansão urbana que inspira os projetos arquitetônicos da Igreja Universal, como apontado em Mafra e Swatowiski (2008), que demonstraram como, no Brasil, a construção das grandes catedrais da IURD remete a uma nova forma de sociabilidade urbana que interioriza dentro de espaços privados as opções de lazer oferecidas em uma cidade. Entretanto, o que é ressaltado no discurso institucional da IURD nos templos angolanos é como as obras contribuem para a valorização do entorno, em uma clara conexão da construção e reformas de templos ao revigoramento urbano pelo qual o país passa: eis a materialidade máxima da “reconstrução nacional”. Para aqueles que aderem à IURD e ocupam espaços sociais privilegiados entre elites locais, podem ter alcançadas percepções de que estão a “fazer o bem” (via obras assistenciais) ao mesmo tempo em que se conquista um “conforto” para si e um “embelezamento” para a cidade. Outro aspecto central para compor o quadro de convergências da IURD ao projeto de RN serão explicitados a seguir, ao acompanhar uma iurdiana em um culto dominical na capital da província do Cunene e um seminário sobre empreendedorismo em um dos principais templos da IURD em Luanda.

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Revelações ensinadas em uma “igreja de visionários” Ondjiva, Cunene. A província do Cunene localiza-se no extremo sul de Angola. É uma região predominantemente rural que sofreu processo de despovoamento durante os anos de guerra. Os sinais de enfraquecimento da guerra e o seu fim conduziram a intensos fluxos migratórios para a região na primeira década dos anos 200029, pois a área constitui trecho de importante rota comercial terrestre que liga Angola à África do Sul, passando pela Namíbia. Existe a indicação oficial de um templo da IURD, instalado em 1998, na localidade. Em 2010 havia outro templo em construção na capital Ondjiva, além de uma tenda na qual eram realizados cultos no povoado de Santa Clara, área fronteiriça com a Namíbia. Em um domingo, fui a um culto com Eneida, enfermeira, adepta da IURD havia dez anos. Eneida preocupou-se em explicar tudo o que achava sobre o culto. Naquele domingo, o foco temático da pregação foram doenças comuns no período do cacimbo [período do ano sem chuvas, de maio a agosto] e as necessidades de prevenir-se com boa alimentação e proteção contra feitiçaria. O Pastor, brasileiro, “mestiço”, explicou que na Universal não se pratica feitiçaria e fez uma representação teatral sobre uma jovem que buscava um feiticeiro, no qual travestiu-se de mulher, tomando emprestado o pano que estava na cabeça de uma senhora, amarrando-o na Porém, com propostas de fechamento de fronteiras e fortalecimento do mercado interno, a região tem sofrido, novamente, processo de esvaziamento. Cf. Sampaio (2014); Rodrigues (2010). 29

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cintura. Todos riram e o Pastor explicou que contra feitiço, apenas Deus. Depois, distribuiu fitilhos vermelhos protetivos, para serem amarrados nas portas das casas ou na principal árvore próxima da residência. Ao fim do culto, Eneida explicou que era importante mesmo pensar na proteção das casas e das famílias, além do que, “o feitiço anda junto com a doença. Por isso que a Universal aqui faz campanhas de saúde, de prevenção à SIDA [AIDS] e faz também campanhas de doação de sangue, que eu mesma sempre colaboro”. Depois comentou outra vez seu desagrado em relação ao pedido de ofertas: “Pregação de pastor, tens que peneirar!!” Eneida falou para que eu prestasse atenção nas roupas dos frequentadores. E completou: “Falam que aqui é Igreja de rico. Não, não é. É igreja de visionários! Enriquecer é diferente de ser limpo e de vestir boas roupas, andar arrumadinho”. O combate ao feitiço caminha junto ao combate às doenças e, por sua vez, a cada campanha, há treinamentos que qualificam os voluntários participantes. A técnica da “boa aparência” é parte de uma “igreja de visionários”, que por sua vez repercute na possibilidade de acessar, por exemplo, o mercado de trabalho formal. Eneida interpreta o “enriquecimento” e a “promessa de dinheiro” como uma ilusão. E quando pergunto o que mais gosta de sua atual Igreja, em relação à Católica, que frequentou durante quase toda a vida, respondeu: “Muito simples. Aprendi muito na Igreja Católica. Mas aqui aprendo mais coisas para minha rotina”. Aprender: essa noção traz desdobramentos fundamentais para compreender como e porque a IURD tem obtido retorno em suas atividades proselitistas em contextos bem diferentes.

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Lima (2010) destaca o empenho pedagógico da IURD para que seus fiéis alcancem a “vitória” e o “sucesso” material, mais do que outras denominações religiosas e a despeito das origens e contextos de desigualdades socioeconômicas. Nessa direção, Braga (2014) analisa o que chama de novas pedagogias - de comportamento, de aparência, de planejamento familiar e profissional - entre jovens frequentadoras de grupos femininos. Em artigo conjunto sobre o projeto pastoral de Edir Macedo, líder da IURD, defendemos que a popularização teológica de Macedo, em sua forma de intermediar e tutelar aspectos da teologia da prosperidade, são fundamentais para a capilaridade da IURD em países em desenvolvimento e em contextos pós-coloniais, nos quais as pessoas de alguma forma estão habituadas ao controle para acessar determinados lugares/bens sociais (Mafra; Sampaio; Swatowski, 2012). Retomarei um evento ocorrido em Luanda para ressaltar esse aspecto didático em questão: houve um ciclo de palestras motivacionais tomadas como solenidade, na qual o diretor da Record Angola, também pastor da IURD, estava presente e foi reverenciado. Distribuíram uma apostila com o tema do encontro: “Como gerir momentos difíceis - motivação e superação”. O pastor e diretor da Record foi quem leu a apostila, com pausas para comentários. Os pontos da apostila eram sobre: a) importância de ter confiança e não ter medo, b) ser atualizado e criativo, já que o mundo é efêmero, e c) buscar tranquilidade sem ansiedades. A cada ponto, trazia um exemplo didático e concreto, como a explicação de que em períodos de crise o segredo era pensar rápido, e que sempre um empreendedor verdadeiro deve primar pela qualidade: se o seu negócio for preparar sanduíches com duas

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salsichas, não o faça com apenas uma, mas diminua a quantidade de sanduíches para a venda. Similar a uma palestra motivacional empresarial, a diferença consistia em contrastes que os crentes teriam em relação aos não-crentes, porque são nos momentos difíceis que deve-se buscar a intimidade com Deus e desafiar a própria fé, oferecendo provas e testemunhos de fé. O final da apostila dizia: CONSELHO Acredite nos seus ideais e nos seus projectos [sic]. Publicite seu produto, marca ou projecto [sic], veja o que a concorrência está fazendo e faça melhor para atrair novos clientes e novos investimentos. Não confesse derrota e nem aceite palavras negativas. Tirar para fora, [sic] a grandeza que está dentro de você.

Os dois últimos pontos foram destacados na fala do Pastor, que mostrou como estavam relacionados. Quando alguém atinge o sucesso, o demônio sempre tentaria destruir. Muitas pessoas desejariam o que o outro alcançou, mas de forma negativa, com o desejo de que o outro deixasse de ter o que conquistou. Em todos esses momentos, o crente não poderia aceitar os que dizem palavras negativas, os que não acreditarem no seu sucesso. Era preciso, sobretudo, colocar a grandeza que trazem para fora, mostrar, confiar e apostar na vitória. E o momento da crise seria aquele no qual mais se deve crer. Assim como às vezes a fé em Deus seria colocada à prova, o mesmo ocorreria com um negócio, uma empresa. E é na crise que essa certeza pode ser abalada. Por fim, orientou: “acredite mais no momento da crise, invista, divulgue. 126

Faça uma divulgação maior, crie um site, faça um comercial na Record”. Recomendou que na semana seguinte todos estivessem no culto para aprender “Como voar sozinho”. Então, despediu-se com uma frase da apostila: “Quem quiser ter sucesso, tem que acompanhar essa evolução do mundo”!30 Palestras motivacionais gerenciais vistas sob a luz da teologia iurdiana: contra crises, deve buscar-se intimidade com Deus e o desafio à própria fé. É durante a crise que o demônio retira as forças do indivíduo para que um negócio seja completamente extirpado. Os remédios aparecem sob o ponto de vista teológico - orar mais, confiar, desafiar Deus - e sob o ponto de vista de uma ótica econômica liberal - invista, divulgue, mantenha a qualidade do produto. Tudo explicado didaticamente durante o culto-palestra. Não são apenas simples explicações, mas descrições de um modus operandi em que, de alguma maneira, a IURD se vê como intermediadora dos projetos de sucesso. A linguagem é flexível e é dirigida a pessoas que de alguma forma estejam ou se sintam excluídas, seja porque os negócios não estão bem, porque têm doenças, porque têm dificuldades em relacionamentos afetivos e familiares, porque são pobres. Com este direcionamento, a instituição se disponibiliza a um público amplo, que tenha no “sofrimento” sua motivação inicial, independente dos pertencimentos identitários do sujeito. A fórmula para garantir o fim do sofrimento é a participação nas “campanhas”, “reuniões” e/ ou “correntes” rituais da Igreja que incluem semanas consecutivas de “reuniões” em que o frequentador é convidado a Agradeço ao amigo e colega Paulo Lopes pela presença e observações sobre as palestras motivacionais da IURD de Angola. 30

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desafiar Deus para alcançar seus objetivos em troca de ofertas em dinheiro. A adesão às diferentes campanhas, de temas específicos, pode ou não gerar vínculos do sujeito com a instituição, criando o que Gomes (2004) descreve como uma estratificação entre os frequentadores da igreja. Ou seja, a IURD permite diferentes níveis de adesão, que antes de transformarem indivíduos, como no caso do pentecostalismo clássico, que tem a vida transformada na “aceitação de Jesus”, é capaz de ensinar aos indivíduos, que têm a livre escolha de aderir ou não, caminhos para uma “vida melhor”. A “guinada para uma vida melhor” está na participação nos eventos promovidos pela Igreja, seja uma reunião cotidiana seja uma campanha esporádica. É a Igreja Universal que transforma, através de ensinamentos oferecidos na prática eclesial, reavivada a cada dia de presença nos rituais, a cada oferta em bens materiais realizadas no altar. Os ensinamentos são oferecidos, em um primeiro momento, a todos que passam por necessidades, que desejam “parar de sofrer”, como anuncia uma das frases mais presentes nas fachadas dos templos. Para a transformação, é preciso se “revoltar” contra as situações de vida que colocam o sujeito em desconforto, em “humilhação” (Birman, 2012). Depois desse reconhecimento é necessário realizar um pacto com Deus para que o sucesso seja alcançado. E apenas com sacrifício, “semeado no altar”, através de ofertas, isso seria possível. Assim, ensinamentos mediados por sacrifícios, ambos institucionalmente ordenados, aproximam a governança da IURD a algo indicado por Aihwa Ong (1999) sobre especificidades do liberalismo em países do “tigre asiático”, nos quais o crescimento da economia de mercado não foram acompanhados de crescimento da sociedade civil, como nos

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casos anglo-saxões. Ao refutar teorias de mais/menos racionalidade, “propensão à subordinação cultural/política”, etc., Ong apresenta características contextuais e históricas sobre a “arte de governar” que perpassam valores e articulações próprias ao período de crescimento dos tigres asiáticos. A autora ressalta que a concepção de cidadania local relacionase a um bem público, portanto cabe ao Estado a mediação para uma transição econômica que reverbere nos cidadãos. Assim, a economia de mercado nos tigres asiáticos foi introduzida com uma mediação didática e controlada pelo Estado, que treinou, subsidiou e adaptou a população para o mercado de trabalho global e para a criação de um mercado consumidor (Ong, 1999). No caso da IURD, a mediação realizada por ensinamentos e medidas sacrificiais, entre aspectos de revelação e segredo, confere aos seus fiéis um lugar especial, e os inscreve em um circuito de “modernidade” ligado a redes transnacionais de consumo e pertencimentos. Há um longo aprendizado relativo às condutas. Aprende-se a se governar a si próprio e também estabelecer metas relativas à transformação pessoal. Constitui-se uma nova subjetividade que emerge no campo religioso e que está aliada à forma proposta de RN. Ser rápido diante de uma crise e criar novas formas de ser um empreendedor dinâmico, incorporar a noção de que a IURD é uma igreja de visionários, atentos às rápidas mudanças do mundo contemporâneo indica sua singularidade, que irradia no mundo da prosperidade a chave de acesso à cidadania, não por direitos conquistados, mas por uma fé treinada. No processo de transformação dos indivíduos na IURD, distintamente do pentecostalismo clássico, as mudanças sig-

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nificam conquistas que possam ser literalmente, na maior parte das vezes, palpáveis. O projeto de conquista se materializa externamente ao sujeito. Conquistam-se imóveis, carros, saúde, catedrais, novos países a serem evangelizados. O sucesso, atribuído ao bom uso da “fé ativa e inteligente”, que age e acredita, está no cerne dessa confissão positiva que “tudo pode” e tem na materialidade do que se logrou mais um índice de fé. Observo importantes pontos de passagem dessa perspectiva iurdiana para lidar com a vida e as consequências da crescente informalidade do mundo do trabalho e dos fluxos globais de dinheiro e pessoas. Ao exaltar o empreendedorismo pelos ensinamentos de “como usar a fé inteligente”, a IURD oferece instrumentos para que seu frequentador sinta-se integrado a uma “comunidade imaginada” (Anderson, 2008), que tem nos negócios, isto é, nos empreendimentos e em uma atitude empreendedora, o motor da realização pessoal. O sucesso de pertencer ao mundo de circulação de bens e consumo suplanta a perspectiva de experimentação da cidade via cidadania e aproxima a IURD da RN dos grandes projetos para a “Nova Angola”.

O mal está no “Outro” Oro (2007) analisou ações de intolerância religiosa conduzidas por adeptos da IURD no Brasil, que utilizam-se de características desta denominação para atacar adeptos de cultos afro-brasileiros. O ataque ocorre via recuperação de repertórios simbólicos de outras religiões em rituais de ressemantização, que tendem a demonizar aspectos do Outro ao 130

ressignificar para si a linguagem deste Outro. A ressignificação e difusão de ideias alia-se ao império midiático da IURD, tornando-se importante elemento proselitista. Em Angola, vislumbrei uma apropriação de processo acusatório similar em uma matéria da Revista Plenitude31, editada pela IURD do país. No caso, não foram questionados princípios religiosos, mas um conjunto de estrangeiros que são, em sua maioria, de religião muçulmana. Refiro-me à construção de uma reportagem de caráter xenófobo associando migrantes da África do Oeste ao comércio ilegal e “antipatriota” (Silva, 2010). Discutia-se “quem faz o comércio precário no casco urbano e nas periferias”, em que se descreve como “estrangeiros da África do Oeste” [cuja maioria é de religião muçulmana] “arrendam lojecas e praticam o comércio precário que não fortalecem uma classe empresarial patriota e saudável. São expatriados, que teriam “se apoderado do pequeno comércio nos bairros luandenses”: [...] Quem facilitou a entrada dos expatriados? [...] Despontam novas cantinas, cujos comerciantes são cidadãos da África do Oeste: Senegaleses, Malianos, Guiné Conacry, etc. [...] [que] deixam escoar entre os dedos os seus rendimentos, em coisas supérfluas e orgias, por mais boa vontade que tenham, funcionam como “cavalos sem meta”. Assim não chegarão a lugar algum. [...] ver a sua economia na mão de estrangeiros. O surgimento de uma classe empresarial “saudável” , patriota, vai libertar o Executivo de alguns compromissos supérfluos [...] (Silva, 2010: 8-11).

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Infelizmente foi a única a qual tive acesso.

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Essa reportagem destacou-se ao meu olhar por conta das associações realizadas entre a) “comércio precário”; b) estrangeiros da “África do Oeste” - do Senegal, do Mali, de Guiné Conakry, “etc”; c) orgias e gastos supérfluos, e d) como esses expatriados impedem que floresça um empresariado “saudável e patriota”. O que existe nos jornais, na TV e também nesta edição da Plenitude são alusões de que estrangeiros da “África do Oeste” não são desejados e uma série de características negativas são a eles coladas, como consta no exemplo trazido. Existem entrelinhas para a pergunta “quem faz esse comércio?” Além de “expatriados”, quem são essas pessoas? “Quem facilitou a entrada dos expatriados” parece uma alusão às redes de ajuda de religiosos muçulmanos. Seria uma “grande coincidência” o fato de serem, em sua imensa maioria, muçulmanos? Não apresento material suficiente para aprofundar em uma investigação sobre a força dessas correlações, mas as vejo como um ponto de conjunção para analisar uma face das atuais relações entre Estado e instituições religiosas em Angola. Se a IURD tem buscado articulações que a legitimam, sob que circunstâncias são mantidas? E por que existem casos de instituições religiosas que não apenas permanecem sem registro, mas são também perseguidas? As respostas a essas perguntas levam mais uma vez a um sentido específico de reconstrução nacional, ao qual a IURD tem se ajustado em diferentes frentes. Uma delas são as perspectivas relacionais com os fiéis, acomodando novas subjetividades “visionárias” às transformações em curso no país. Outra é consoante aos ideais de materialização da fé que dialogam com o novo urbanismo da reconstrução nacional. A 132

terceira, mas não menos importante, consiste em complexas articulações de posicionamentos políticos frente ao Estado. Mas este não é um quadro estável, como veremos a seguir.

Impasses e divergências: práticas religiosas ilegais O reconhecimento jurídico das religiões e a liberdade de culto

A Constituição da República de Angola de 2010 garante, em seu Artigo 41, a liberdade de consciência, crença e culto religioso (Angola, 2010, art. 41), bem como a laicidade do Estado. O dever do Estado seria reconhecer e respeitar diferentes grupos religiosos, que por sua vez teriam o direito de ser livres para organizar e realizar cultos, desde que respeite a Constituição e as demais leis. Entre acomodações da Constituição, as demais leis e as ações de representantes do Estado, encontramos o seguinte problema: quais e em que circunstâncias instituições religiosas obtém regularização? Quando a regularização não ocorre, como as pessoas praticam sua fé? Como lideranças religiosas se articulam para obter legitimidade de atuação? Que outros elementos além do componente religioso podem perpassar essa delicada relação Estado-seus representantes-religião? A obtenção do reconhecimento jurídico pode ser realizada via solicitação de grupos religiosos dirigida ao Ministério da Justiça e da Cultura, para que possam atuar livremente (Angola, 2004). O Instituto Nacional para Assuntos Religiosos (INAR), vinculado atualmente ao Ministério da

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Cultura, analisa se o grupo solicitante preenche os requisitos necessários para serem regularizados. Um dos requisitos traduz-se em uma impossibilidade lógica e matemática: o grupo religioso precisaria ter mais de 100 mil membros e estar presente em ao menos 12 das 18 províncias. Se um grupo religioso funciona de forma clandestina, como teria, institucionalmente, 100 mil membros cadastrados? Os lideres religiosos também são obrigados a fornecer informações sobre as doutrinas religiosas, estrutura organizacional e localização dos templos e locais de atuação (Angola, 2004). O INAR propõe-se a intermediar as relações entre religiões e Estado para que “parcerias sociais” sejam criadas em campos como a saúde pública, ensino e a educação moral e cívica (sic). Porém, é central considerar-se que o INAR é representante do próprio Estado e atua mais como um regulador da legitimidade das religiões do que sua proposta inicial, que em teoria seria de “(...) garantir a laicidade do Estado e assegurar um tratamento igualitário a todas as instituições religiosas” (Viegas, 2008b: 13). Na intermediação entre religiões e Estado, o INAR transita entre a atitude relativista de respeitar a diversidade religiosa/garantir às igrejas tratamento igualitário e a necessidade de um projeto pretensamente universalista que forme uma nação atuante, como afirmou em 2008 a então diretora geral: No campo religioso, operam igrejas reconhecidas, bem como igrejas, seitas e grupos de oração não reconhecidas oficialmente (...). No entanto, se algumas destas instituições são bastante construtivas e congregadoras, outras há que constituem um verdadeiro perigo para a sociedade, tendo em conta seu caráter

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destrutivo e desestabilizador (...) Freqüentemente muitas instituições fomentam a desconfiança aos tratamentos médicos, considerando, muitas vezes, a doença como o castigo divino (...). Estas atitudes (...) podem naturalmente conduzir à degradação da pessoa humana e, consequentemente, transformaremse em grande preocupação e risco para a sociedade (Viegas, 2008b: 19).

E quais seriam as religiões que constituiriam um “perigo” à sociedade por ter caráter “destrutivo e desestabilizador”? Acompanho o desenvolvimento dos casos do não-reconhecimento do Islamismo que culminou na demolição de mesquitas e da suspensão temporária da IURD durante dois meses, evidenciando as complexas relações político-institucionais que permeiam a liberdade religiosa.

Liberdade religiosa? O caso dos muçulmanos Em 2010, em uma das reuniões com integrantes do INAR, explicaram-me que o Estado não poderia reconhecer religiões baseadas em “preceitos desacordados com a Constituição”. O exemplo citado foi o Islamismo, pois esta religião “fere os princípios de dignidade da pessoa humana do sexo feminino”. Fui informada que havia 3 mesquitas em Luanda, sobre as quais não se interviria para impedir práticas de cultos, já que a liberdade de culto estaria assegurada pela Constituição (Angola, 2010, art. 7 e 10). Reunir-se para fins religiosos seria tolerável mas reconhecer quaisquer vertentes do Islamismo não mesmo, como explicitado na reunião: “estamos a ver, mas a verdade é que não será permitido 135

tornar esse tipo de religião reconhecida. Há muitos cidadãos angolanos a converter-se ao Islamismo, mas a maior parte deles é de imigrantes, muitos em situação irregular. E assim seguimos”. “Fere os princípios da dignidade humana do sexo feminino”; “maior parte é de imigrantes”. A junção dessas afirmativas remete ao artigo de Hammel (2006) ao analisar o caso de representações sobre imigrantes “árabes” e “magrebinos” por “franceses de raiz” e a implicação dessas construções no cotidiano dos grupos minoritários. Esta autora demonstra como o discurso sobre o sexismo encobre perspectivas racistas: Membros do grupo majoritário apontam, à guisa de explicação, signos culturais diferenciadores específicos a certos membros do grupo minoritário, o que permite legitimar no nível cultural essa fronteira racializada. O crime de honra, o porte do véu, a religião, aspectos que se prestam particularmente à estigmatização, fazem parte desses traços culturais diferenciadores, mesmo que não sejam partilhados por todos os membros do grupo minoritário. A superexposição na mídia lança o descrédito sobre o conjunto de sujeitos “racializados”, suspeitos de avalizar essas práticas, o que os leva a uma alteridade cultural intransponível, pois permite declará-los “não-integráveis”, uma vez que “muito diferentes”. Esse processo justifica a posteriori as discriminações e ratifica, na cultura, a idéia de uma alteridade sinônima de evidente inferioridade - para não dizer natural - dos indivíduos “racializados (Hammel, 2006: 15).

No caso desse posicionamento do representante do INAR contrário ao Islamismo, sob o uso de uma fala que essa religião seria conflitiva aos direitos humanos das mu136

lheres, qual diferença se operacionaliza? Cria-se essa alteridade cultural intransponível para todos aqueles que chegam de países africanos cuja predominância religiosa é o Islamismo. O não-reconhecimento desta religião é uma maneira de marginalizar estrangeiros provenientes da África do Oeste que são muçulmanos. A reunião no INAR já indicava possíveis acirramentos do desentendimento entre religiões e Estado, e de como o Islamismo, associado aos processos migratórios de países africanos, poderia ser violentamente confrontado. E foi! No final de 2013 controvérsias repercutiram na mídia internacional sobre um suposto encerramento forçado de templos religiosos islâmicos pelo governo angolano. Segundo o presidente da Comunidade Islâmica de Angola, David Alberto Já, mesquitas foram demolidas (Já, 2013) e cerca de 60 das 78 teriam sido fechadas até dezembro de 2013 (Mujoco, 2013). Somente as mesquitas de Luanda não teriam sido derrubadas. Segundo o representante dos muçulmanos, o fechamento dos templos ocorreu por forças policiais e sem nenhuma notificação por parte do governo. O caso teve repercussão internacional. Diante disso, o chanceler Georges Chikoti comunicou, em nome do governo, que não havia perseguição religiosa em Angola. Tratavase de um “mal-entendido” (sic). Segundo ele, os muçulmanos, assim como outros grupos religiosos, não cumpriram os requisitos legais para terem o reconhecimento jurídico, como era o caso de 194 outros grupos (Jardim, 2013). As negociações das religiões com o Estado via INAR acompanham, em parte, a questão da presença estrangeira no país. A tentativa de controle da “proliferação de igrejas” e o sutil jogo de legalização da situação de cada uma delas se 137

associa, por vezes, aos “brasileiros que estão a tentar ganhar dinheiro no país”, ou à presença de “expatriados do Oeste Africano, envolvidos em comércio precário e orgias”, que são predominantemente adeptos ao Islamismo e sofrem frequentes ações persecutórias. É o que observamos ao acompanhar a justificativa do governo angolano sobre a suspensão das atividades muçulmanas: Segundo o comunicado, cidadãos estrangeiros de confissão islâmica, em situação migratória ilegítima praticam actividades económicas ilegais em armazéns construídos sem licença das autoridades competentes, que por conveniência e para obstar a acção das autoridades de fiscalização usam tais instalações com alegados locais de culto, à margem da lei (Governo, 2013).

Para o representante da comunidade muçulmana, contudo, “Padres e bispos apareceram na televisão cobrando do Estado uma medida [contra o crescimento do Islamismo]. E a ministra da Cultura afirmou recentemente que o Islã é uma ameaça para a matriz cultural do país, que é cristã” (Jardim, 2013). Em carta aberta ao Governador da Província de Luanda, em 27 de setembro de 2013, David Alberto Já, o líder da comunidade islâmica em Angola, pretendeu negociar com o governador de Luanda um ofício enviado para que fosse demolida uma mesquita em Viana (Já, 2013). O líder retoma pontos da legislação, situações que os muçulmanos têm atravessado e reforça a integração dessa comunidade às regras e ao desenvolvimento social. Em sua carta, David Já diz que o Islamismo está presente em Luanda desde 1978 e em 2013 estava com 30 locais 138

de culto, atuantes dentro da legislação, ainda que sem personalidade jurídica. Prossegue, detalhando o caso do ofício em questão. Relata que a comunidade islâmica de Luanda conseguiu adquirir um terreno em Viana, na qual iniciou a construção de uma mesquita em 2012, cuja obra foi estimada em US$900mil. A administração de Viana multou a obra e solicitou requerimentos para a legalização. Estes jamais eram requerimentos encaminhados, pelo fato do Islamismo não ser reconhecido pelo Estado. Funcionários públicos da região de Viana alegavam que o terreno seria reserva fundiária do Estado, mas o líder muçulmano indica que ao lado havia uma igreja cristã na mesma situação de irregularidade jurídica, sobre a qual não pesava nenhum empecilho. Em agosto, a mesquita foi multada em US$3mil e em setembro recebeu um ofício para que os muçulmanos a demolissem em 72 horas. David Já retoma pontos da lei sobre liberdade religiosa, que estabelece que o é Estado laico desde que as confissões respeitem as leis. Sobre a obtenção de personalidade jurídica, explica que os muçulmanos em Angola não se colocam contrários ao ordenamento jurídico e nem se envolvem como instituição em assuntos políticos. Ressalta que são uma comunidade moral que “não incomoda os vizinhos”, pois “não cantamos nem promovemos sessões histéricas como é costume com muitas denominações cristãs”. Destaca também que contribuem para o desenvolvimento da sociedade porque a maior parte de seus fiéis se dedicam a atividades comerciais, “talvez aí está algo que alguns sectores da sociedade interpretam, com certo ciúme, como algo indesejado” (Já, 2013). Contudo, David Já sabia que a pessoa a quem ele dirigia a carta, o governador provincial de Luanda, era membro efetivo da IURD, pois a seguir apela aos sentimentos do go139

vernador de Luanda, “como humano e crente da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)” para que a orientação de demolição seja suspensa, afinal a Constituição protege locais de culto e, ainda, “segundo a Constituição, tanto os cristãos e muçulmanos podem muito bem viver em harmonia, uma vez que nascemos todos neste País e estamos condenados a viver juntos, respeitando a liberdade do outro”. Ao fim, David Já ressalta seus valores patriotas, de quem está ciente da legislação sobre estrangeiros em Angola. Diz que é um cidadão nacional, “que sempre dedicou a sua vida em prol da Pátria”, atuando como funcionário do Ministério do Interior há décadas e que já apresentou 26 cidadãos estrangeiros em situação irregular ao Serviço de Migração e Estrangeiros, “porque cada cidadão é responsável e patriota, com o dever de vigiar e defender o seu país”. Nem seus apelos a um dos mais caros temas à “integridade nacional” funcionou. A mesquita foi demolida no início de outubro. As novas alegações que fundamentaram a continuidade de demolições, feitas por representantes do Estado são de que os muçulmanos estão envolvidos em “atos terroristas” (Mukuta, 2014).

A suspensão da IURD em 2012 e as tênues relações políticoinstitucionais no campo religioso de Angola A Igreja Universal tem como uma de suas características formar multidões, principalmente em cultos públicos, alguns agendados em datas e locais especiais (Mafra, 2002). Em 31 de dezembro de 2012, como vinha realizando nos

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anos anteriores, a IURD de Angola organizou um megaevento no estádio esportivo da Cidadela: o “Dia do Fim”, cujo slogan era “venha dar um fim a todos os problemas que estão na sua vida; doença, miséria, desemprego, feitiçaria, inveja, problemas na família, separação, dívidas, etc. Traga toda a sua família”. Compareceram milhares de fiéis, mais do que o estádio pode suportar32. O evento, agendado para às 20 horas, às 18:30 já estava lotado e não se permitia a entrada de mais ninguém, exceto o portão nº 6 e o portão VIP, que permaneciam abertos. Ao ouvirem os primeiros cânticos, fiéis que ficaram do lado de fora insistiram para a abertura total das entradas e um tumulto foi iniciado, resultando na morte de 16 pessoas e no ferimento de 12033. Nos dias subsequentes ao incidente, em 3 de janeiro de 2013, iniciou-se um inquérito, sob comando de processo aberto pela Procuradoria Geral da República, para apurar as causas da tragédia. Ao fim de um mês, as conclusões parciais do inquérito foram que houve a superlotação do estádio como consequência da “publicidade enganosa e criminosa” (Executivo, 2013) e que “se aproveita das fragilidades do O estádio Cidadela foi reformado por ocasião da Taça das Nações Africanas (CAN-2010) e teve reduzida sua capacidade (de 65 mil a 30 mil pessoas). As estimativas de público no dia do evento são controversas. A imprensa estimou entre 150 e 250 mil pessoas nesse dia. 33 Ao analisar a formação de multidões da Igreja Universal, Mafra (2002) pondera a mediação de obreiros e pastores em sistemática organização dessas aglomerações promovidas por grandes eventos. Apesar disso, e mesmo com suporte rotineiramente mobilizado por agentes de segurança de Estado, a autora alerta que, diante de movimentações de significativos contingentes de pessoas para um mesmo local, há um risco inevitável de eventuais tumultos. Entretanto, para Mafra (2002), as multidões da IURD costumam portar-se ordenadamente na chegada e no retorno, restringindo a agressividade a momentos rituais durante o culto. 32

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povo angolano” (Mello, 2013). Com esta apuração, o Estado decidiu suspender as atividades da IURD, mas também A Nota dos Órgãos de Auxiliares do Presidente da República orienta que em virtude de se constatar que as Igrejas Mundial do Poder de Deus, Mundial do Reino de Deus, Mundial Internacional, Mundial da Promessa de Deus, Mundial Renovada e Igreja Evangélica Pentecostal Nova Jerusalém apesar de não estarem reconhecidas pelo Estado angolano realizam cultos religiosos e publicidade, recorrendo as mesmas práticas que as da IURD, sejam igualmente interditadas de realizar quaisquer actividade religiosas no país (Executivo, 2013).

Os desdobramentos da tragédia na Cidadela não pode ser compreendida como um fato isolado. Ainda que um episódio que ocasione a morte de 16 pessoas e o ferimento de 120 seja grave, por que outros incidentes não foram tão amplamente divulgados?34. Por que a ANGOP teria deixado de anunciar um megaevento da IURD? Teria havido algum contratempo nas articulações políticas entre IURD e Estado para tal mudança de postura? Tudo indica que sim. Em boletim, a Action for Southern Africa (ACTASA, 2013) indica que nos resultados eleitorais de 2012 o MPLA perdeu significativo número de votos em Luanda. A partir disso, o presidente José Eduardo dos Santos fez um pronunciamento que defendia uma “renovação de O namorado de Eneida, que frequenta a IURD em Luanda, contou que alguns anos antes [em 2005] houve um episódio na própria IURD, mas que não resultou em morte. Uma escada e parte da parede se partiram, gerando dezenas de feridos. Este acidente, a Agência Angola Press não noticiou. 34

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valores” no partido, bem como a necessidade de melhoria de prestação de serviços. Por isso, há interpretações relatadas nesse boletim da ACTASA de que o governo tem se aproveitado de alguns litígios em termos de conflitos religiosos para distanciar personalidades importantes do partido que são religiosas. Este é o caso de Bento Joaquim Bento, que é um dos mais influentes homens do MPLA na IURD de Angola. Entretanto, Bento Joaquim Bento continuou a ser governador da capital até setembro de 2014, quando foi exonerado do cargo, continuando a ser o primeiro secretário do MPLA de Luanda (Luanda, 2014). Já a suspensão da IURD foi levantada no dia 30 de março de 2013, apenas 63 dias após sua proibição. As demais igrejas suspensas após o episódio da Cidadela, continuam proibidas35. Não é sabido, ainda, quais jogos na esfera macropolítica foram articulados no levantamento da suspensão da IURD. O que é perceptível é que o consenso nesse âmbito não está presente36. Durante os dias de suspensão, alguns pastores foram detidos e fiéis continuaram a orar nas portas dos templos principais, que permaneceram fechados e sob vigilância policial. Foi nesse sentido que uma reportagem da Folha de São Paulo sugeriu que a medida do governo angolano tenha assegurado o “monopólio” da Igreja Universal. Cf. Mello, 2013b. 36 Em setembro de 2013, o jornal semanário Angolense publica reportagem sobre a morosidade propositada da Procuradoria Geral da República em concluir os autos do processo contra a IURD sobre o “Dia do Fim”. Em resposta, a PGR pronunciou-se exigindo retratação do semanário, reforçando que não admite que a imprensa ou qualquer órgão de comunicação social interfira em seu trabalho, declarando que mantém conduta proba e sem “pressões políticas”. 35

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A IURD de Angola promoveu uma campanha pela internet, o “Relógio de Oração” e por SMS37. Além disso, fez circular uma petição online, assinada por 836 pessoas, dirigida ao presidente na qual ponderava sobre as acusações feitas do “Dia do Fim” e, em último ponto, reforçava suas ações em território angolano: A Igreja Universal, ao levar a Palavra de Deus, tem promovido o bem estar e a paz social, ao envidar esforços no sentido de minorar a situação dos mais desfavorecidos, e das várias iniciativas de âmbito nacional destacam-se: Futebol da Solidariedade; ajuda aos mais variados tipos, desde o socorro às vítimas de calamidades, à distribuição de cestas básicas a refugiados e carentes; visitas aos doentes dos hospitais; ajuda ao leprosário; distribuição de refeições ao Lar de terceira idade (Beiral); doações de sangue campanha realizada em parceria com o Centro Nacional de Sangue (CNS); visitas em presídios, orfanatos etc.; Sem descurar que os jovens também, não são ignorados, eles merecem particular atenção, dos diversos trabalhos que são levados a cabo com os jovens com o objectivo de resgata-los dos vícios, da criminalidade para os tornar úteis para Angola. Caso para dizer a IURD é um parceiro social do estado, porque: por cada criminoso que leva a ter um encontro com Cristo é menos uma pessoa que fere a sociedade; Cada viciado que deixa seus vícios, é um benefício social; Das famílias reconstruídas, é menos um casal para as estatísticas de divórcio; Cada empresário na falência que se restabelece, gera mais empregos para a socie

Short Messages Service, mensagens de texto enviadas via celular, que era, em 2010-11, o principal meio de comunicação interpessoal à distância. 37

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dade; E cada empreendedor bem sucedido é menos um no desemprego38 [grifos meus].

Nessa petição, representantes da IURD procuram enumerar os bens sociais que tem trazido à Angola, como tentou fazer, de forma menos hábil, David Já. A diferença é que, como apontei ao longo deste capítulo, a Universal consegue apresentar seus diferentes níveis de articulação tanto com as demandas do Estado para a RN como para um grande público, mesmo entre aqueles que não são frequentadores habituais. Entre os muçulmanos, com valores que “entram em choque” com os ideais da reconstrução nacional, a posição de exercício de liberdade religiosa continua tensa e a regularização, cada vez mais distante. A suspensão da IURD não seria sustentada por um longo período. Ainda que oscilante, está em conexão ao ideal hegemônico de reconstrução nacional proposto pelo Estado. A Universal continua oferecendo instrumentos que ligam indivíduos a uma “comunidade imaginada”, no sentido proposto por Anderson (2008), em que ao mesmo tempo em que articula relações para que haja um “pertencimento nacional”, também está integrada a uma rede moderna, empreendedora, supraétnica e transnacional. A força simbólica e material que a Universal tem mantido com signos e ações para a reconstrução nacional faz ecoar um slogan dito entre fiéis dessa Igreja: “De Cabinda ao Cunene, Deus é conosco!”.

Petição online. Disponível em .Acesso em 06 fev.2014 38

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IGREJA EVANGÉLICA ENCONTROS DE FÉ DE PORTO ALEGRE: SENTIDOS E EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO EM REDES TRANSNACIONAIS Mariana Reinisch Picolotto Ari Pedro Oro

Este texto versa sobre a igreja evangélica Encontros de Fé, de Porto Alegre, fundada e liderada pelo pastor Isaías Figueiró, a qual possui uma importante participação em redes religiosas transnacionais. Após uma rápida apresentação da igreja e de seus líderes, nos ocuparemos dos significados atribuídos à participação nas redes religiosas transnacionais, com destaque para a experiência da parceria firmada com o pastor sueco Ulf Ekman, da Igreja World of Life, visando a criação de uma escola bíblica em Porto Alegre, que funcionou durante o ano de 2011.

Um breve histórico da igreja Encontros de Fé Isaías Figueiró nasceu num lar cristão. Seu pai era corretor de seguros e Isaías seguiu a profissão de seu pai. Também frequentava, com seus pais, a Comunidade Cristã, na década de 1980. Nesta época já era casado com Magda 151

Figueiró. Como não se encontrava totalmente satisfeito na Comunidade procurou outra forma de pregar o evangelho. Foi cativado pelo trabalho do evangelista argentino Carlos Annacondia, conhecido pelo seu método de “práticas de libertação de massas” (Alves, 2011: 71). Tratava-se de Campanhas de Libertação organizadas por ele, com o apoio de outras igrejas, que ocorriam debaixo de tendas. Na década de 1980, Annacondia viajava para diferentes partes da América Latina evangelizando em tendas itinerantes, cumprindo uma espécie de ritual de exorcismo onde supostamente libertava as pessoas dos males do demônio. Alguns ajudantes anotavam os nomes das pessoas libertas, seus telefones e endereços, que eram enviados para as igrejas parceiras mais próximas das campanhas de evangelização. Nesta época, pastores de várias partes do mundo vieram para a América do Sul para conhecer o trabalho de Annacondia. Isaías conheceu Annacondia pessoalmente no dia 7 de dezembro em 1986, numa campanha em Montevidéu. Ao ver de perto o seu trabalho percebeu que havia muitas semelhanças com o que percebia, preconizava e realizava em sua igreja. Daniel Alves (2011) expõe que Isaías lhe revelou ter ficado impressionado com a “forma muito sincera e pessoal” com que Annacondia se dirigia às pessoas. Relata ainda que, segundo Isaías, os cultos realizados por Annacondia nas tendas pareciam grandes “festas populares, com canções, testemunhos e mensagens evangelistas diretas”, além da “confrontação dos demônios” (Alves, 2011: 84). Após participar do primeiro encontro em Montevidéu, Isaías foi conversar com Carlos Annacondia. No ano seguinte, Isaías esteve com Annacondia durante trinta dias no Uruguai, durante uma longa cruzada. Pôde, desta forma, conhecer mais de perto o

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trabalho de Annacondia. Foi um período em que estudou a Bíblia, jejuou, aprendeu muitas coisas relacionadas à pregação e à evangelização. Durante os cultos na igreja Encontros de Fé e nas entrevistas concedidas, Isaías coloca que a sua relação com Annacondia foi e é muito importante para o seu trabalho como evangelista e pastor. Este contato veio se somar às virtudes que ele próprio trazia consigo, especialmente a sua capacidade de atrair e unir pessoas, construir relações e aproximar fiéis. Além disso, a relação estreita que manteve ao longo dos anos com Annacondia proporcionou a Isaías a possibilidade de conhecer outros pastores e de trazer para Porto Alegre importantes nomes internacionais no meio pentecostal, tais como: Luis Palau (1988), Morris Cerullo (1998), Reinhard Bonke (1994) e o próprio Carlos Annacondia, várias vezes, entre outros. Igualmente, a relação de amizade com Carlos Annacondia colaborou para Isaías Figueiró ser conhecido no amplo universo pentecostal e participar de redes religiosas transnacionais. Assim, ao longo dos anos, Isaías foi sendo convidado a visitar algumas igrejas na América Latina, na África, na Europa. Alguns lugares por intermédio de Annacondia, outros por conta própria. Em 1994, Isaías Figueiró alugou o espaço do agora desativado Cine Teatro Presidente e iniciou seu trabalho de pastor no ministério Encontros de Fé, criado por ele, neste momento. O surgimento do ministério se deu pela demanda dos fiéis que participavam das Campanhas de evangelização. Isaías começou primeiro com seu irmão Júlio Figueiró. Depois deu continuidade com o seu genro Christian Lo Iacono e com seu outro irmão, Paulo Figueiró. O ministério se de-

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senvolveu no Cine Teatro Presidente até 2007, quando, em parceria com empresários, frequentadores e simpatizantes, foi comprado o espaço de uma transportadora na Zona Norte de Porto Alegre, na Avenida Presidente Rooselvelt. Este espaço possui um grande salão capaz de abrigar duas mil cadeiras que pode duplicar esta capacidade quando há eventos grandes. Há também um espaço para uma livraria e uma lancheria, e um prédio com salas para os pastores administrarem a igreja, além de um amplo estacionamento. A Igreja Encontros de Fé teve por mais de dez anos um programa na rádio chamado “Rede Mensagem”. No primeiro momento era na frequência AM, nos últimos anos conseguiram um espaço na frequência FM. A igreja transmite também a Rede Mensagem na plataforma de rádio on-line39. Na televisão, a igreja veicula um programa no canal aberto de televisão e na Televisão paga NET. Assim como a rádio, também existe a televisão online40, a TVC. A Igreja Encontros de Fé está situada em vinte e quatro cidades no Rio Grande do Sul, predominantemente na região metropolitana, no Vale dos Sinos e na Serra Gaúcha. Em Porto Alegre existem sete igrejas. Ao total são atualmente 50 igrejas. O Ministério tem cerca de vinte e dois mil membros e quarenta pastores. Desenvolve vários projetos com a comunidade. Há programas dirigidos para as mulheres, chamado “Mulher de Fé”41, para os jovens, chamado “Encontros de Fé Teens”42, para os homens, para os casais, http://www.redemensagemfm.com.br/home.aspx http://www.tvc.org.br/ 41 http://mulherdefe.encontrosdefe.com.br/home.aspx 42 http://teen.encontrosdefe.com.br/home.aspx 39 40

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para os solteiros, para a família. Isaías está sempre envolvido com a igreja e pensando em novos programas e eventos para suprir as necessidades dos membros da igreja. A amizade que começou no Uruguai com Annacondia dura até os dias atuais. Hoje, a filha caçula de Isaías é casada com o filho caçula de Annacondia. É comum ambas as famílias tirarem férias juntas. Desde o início da trajetória de Isaías até os tempos de hoje as viagens e os projetos entre pastores foram constantes na sua vida. Hoje concentra mais as suas viagens no Brasil e na América do Sul, especialmente no Uruguai e na Argentina, embora esteja sempre atento com tudo o que ocorre no mundo no campo religioso em geral, e evangélico em particular. Todos os domingos por volta de mil pessoas se deslocam de suas casas para irem na sede da igreja para ouvirem o pastor Isaías Figueiró ministrar a palavra e contar sobre seus planos de viagens, ou relatos de viagens, ou projetos com pastores brasileiros, uruguaios, argentinos, europeus, norte-americanos. Ou seja, é comum Figueiró compartilhar com os membros da igreja suas experiências de viagens a outras igrejas e países. Conta o que viu, ouviu, experienciou durante os cultos em igrejas fora do país, discorre sobre as pessoas que conheceu. Esses relatos são muito aguardados pelos fiéis. As experiências vividas por Isaías no exterior são, também, experiências que os fiéis vivem, através das histórias contadas por ele. Assim, não somente Isaías se transnacionaliza por meio das redes transnacio-nais pentecostais; os fiéis de sua igreja se transnacionalizam junto. Semelhante ideia é sustentada por Peggy Levitt (2004, 2006) quando afirma que quando um membro familiar entra em contato

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com alguém de outro país, ele não se transnacionaliza sozinho. Sua família que permanece no país de origem também se transnacionaliza. Isaías Figueiró está constantemente conectado com o mundo e viaja, hoje, com a frequência de pelo menos uma vez ao ano para visitar igrejas de pastores conhecidos no exterior. Antigamente, costumava viajar com mais frequência. As viagens ocorrem ou por convite ou por iniciativa própria. Vários são os motivos que o levam para outros países. Pode ser por interesse em conhecer pessoalmente a igreja de um pastor ou para participar de algum evento, como as “cruzadas” e “campanhas”, ou encontro de pastores. No universo pentecostal que pesquisamos, as viagens, as relações entre pastores, aparecem como uma importante característica atual. Observamos que estar em contato com diferentes pastores é uma forma de se atualizar sobre o que está acontecendo em vários lugares do mundo, além de, também, marcar a sua presença na igreja e na rede transnacional, uma vez que a forma escolhida por Isaías Figueiró de se firmar no meio evangélico é através das redes transnacionais.

Os caminhos através das redes religiosas transnacionais Pertencer a redes religiosas transnacionais, movimentar-se nelas, este é o espaço privilegiado que permite a Isaías viajar e receber em sua igreja pastores e pregadores provenientes de outras cidades e países. Sempre que isto ocorre, numa direção ou em outra, há um momento de preparação em que é anunciado diversas vezes aos fiéis ou o destino e os motivos da viagem do pastor ou as “credenciais” do pas156

tor que a igreja local vai receber. Neste último caso, é reiterada a trajetória de vida do pastor, sua igreja local, suas andanças pelo mundo, seus carismas pessoais. Geralmente é posta muita ênfase na abertura global da igreja e dos pastores, seus vínculos internacionais. Assim, parece que neste meio religioso estar “conectado”, desenvolvendo projetos para além da igreja é tão importante quanto ter um grande templo ou muitos templos. E mais ainda, estar conectado e desenvolver projetos com outros pastores é mais interessante do que abrir templos em diferentes localidades. O pastor Isaías parece equilibrar os dois aspectos pois seu trabalho é local e global. Local, pois mantem o interesse em abrir mais templos na região, mas, também, global, pois não se descuida em manter e reforçar relações com igrejas e personagens localizados em diferentes lugares do mundo. Assim, atua e é parte integrante de “nós” (Latour, 2012), “linhas” (Ingold, 2011), de redes transnacionais. Obviamente que assim procedendo o pastor Isaías e tantos outros personagens do meio evangélico estão se internacionalizando a partir de condições favoráveis advindas da “globalização contemporânea”, apresentada por Haynes como “um fator chave (...) para encorajar atores religiosos transnacionais de todos os tipos para se envolverem em questões fronteiriças”43 (Haynes, 2012:2). O interesse de Isaías Figueiró de fortalecer redes transnacionais e de circular internacionalmente provem de sua preocupação em transcender as particularidades e individualidades e em construir um projeto coletivo de evangelização. Sozinho é difícil sair da igreja, mas em união com outros 43

Tradução do original feita por Mariana Reinisch Picolotto.

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pastores viajam pelo mundo. Cumprem seu papel de pregadores do evangelho. Aprimoram suas habilidades enquanto pastores. A constituição de redes de pastores é a palavra chave nesta relação entre pregadores que circulam internacionalmente. Eles estão unidos por um propósito: somar esforços para levar a palavra de Deus a todos os lugares. Unidos ganham força e os trabalhos se concretizam. A comunhão entre pastores, atores transnacionais, dá força ao projeto coletivo de evangelizar o mundo. Como dissemos, este projeto é facilitado pela “globalização” a qual, de acordo com Heynes (2012: 2), “teoricamente aumenta as possibilidades de espalhar a mensagem e ligá-los a outros grupos internacionais”. Esta maneira de existir, de ser pastor e evangelista, permitiu a Isaías conhecer muitos pastores no mundo, como já dissemos acima. De fato, ele conhece pastores em quase todos os continentes: América do Norte e do Sul, Europa, Ásia e África. Nas suas andanças pelo mundo vai construindo o seu ser e a sua igreja. Lembramos que para alguns autores as relações sociais vão se construindo a partir das nossas relações com outros seres (Ingold; Strathern et al. 1996). Tanto nós, assim como os fiéis, observamos as mudanças decorrentes das viagens de Isaías. Elas podem ocorrer na tonalidade da voz, na vestimenta, na atuação no púlpito, nas novas músicas tocadas durante os cultos, etc. Mas, nesta construção lenta e gradual de si vai ocorrendo também uma construção lenta e gradual dos membros, uma vez que eles compartilham das histórias de Isaías e entram em contato não só com a cultura global através de Isaías, mas, também, através do contato direto com evangelistas e pastores de outros países. Assim procedendo Isaías Figueiró procura se manter forte regionalmente e abrindo-se globalmente procura

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trabalhar em parceria com outras igrejas no seu projeto de evangelização. Neste contexto, as parcerias se constituem em “recursos estratégicos” para manter laços e redes entre pastores, evangelistas, pregadores, em suma, líderes religiosos. De acordo com Alejandro Frigerio (2013: 20), as redes transnacionais possibilitam a “troca de ideias, práticas e recursos”. Durante as entrevistas Isaías deixou claro que uma das razões para trabalhar conectado, participar de redes, é porque através delas existem trocas. Estas são importantes para dar continuidade ao seu trabalho. Isaías se preocupa em oferecer aos seus fiéis o que há de melhor dentro do campo evangélico. Ele não possui uma fórmula pronta no seu trabalho. Antes, procura se aperfeiçoar, trazer “coisas” (Ingold, 2011) novas para a igreja. Em uma entrevista ele declarou o seguinte: A igreja no Brasil, tornou-se conhecida. O evangelho é um produto conhecido. Não era tanto. A sobrevivência dele agora tem que ter qualidade. Nós vamos trabalhar nesses próximos anos a qualidade do evangelho (Entrevista com Isaías Figueiró em 28/07/2014).

Em outra entrevista diz: precisamos ter humildade e estar sempre prontos para aprender o que for preciso (...) De repente eu escuto um pai falar uma coisa que eu nunca disse, um marido falar algo que eu nunca disse, um pastor... a gente vai conhecendo e aprendendo. Viajar te ensina o todo. Até porque país como Os Estados Unidos e países da Europa, nós seremos amanhã o que eles são hoje (Entrevista com Isaías Figueiró em 06/06/2012).

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Portes, Guarnizo e Landolt, no texto “Transnationalism in Historical Perspective”, colocam que um dos aspectos que define a transnacionalização “é a falta de regularidade, envolvimento de rotina dos imigrantes, mesmo que as atividades deles reforcem os laços entre as nações” (Portes, Guarnizo e Landolt, 1999: 1). Isaías ao se transnacionalizar a partir das redes, não deixa o “local”. Este vai junto com ele quando viaja para o exterior; e quando volta do exterior traz consigo o “global”. Isaías não trabalha a partir de uma “regularidade”, uma “rotina”; ele segue o fluxo das relações, analisa, espera, não existe uma programação, um script no seu trabalho religioso. Ele se mantém atento ao que está acontecendo ao seu redor. Isaías é o que os autores acima mencionados chamam de “empresário transnacional”. Portes, Guarnizo e Landolt (1999) explicam que esses atores estão sempre viajando, sem perder contato com o país de origem, para onde sempre retornam; as suas viagens possuem a característica de serem curtas. Elas dependem das redes dos países de origem e das redes nos países em que viajam. Peggy Levitt (2004) sustenta que para entender as instituições religiosas transnacionais é importante analisar a rede e buscar compreender através da análise as suas dinâmicas. Esta análise, segundo a autora, é feita observando a “relação entre os laços e entre o individual, o nível local dos órgãos sociais, e o órgão religioso internacional”. Em sua análise, a autora observou que os laços frequentemente cruzam nós” (2004: 4). Guarnizo e Smith (1998) enfatizam que as “identidades locais” e os “sistemas de significados” não desaparecem na transnacionalização. Pelo contrário, a transnacionalização possibilita a formação de “laços transnacionais”. Os autores apontam que o fluxo da transnacionalização contemporânea possui um impacto nas sociedades 160

envolvidas, um deles, que tem a ver com o nosso estudo, está relacionado com a “expansão das redes sociais que facilitam a reprodução de migração transnacional, organização econômica e políticas...” (Guarnizo; Smith, 1998: 146). Transnacionalização é um processo multifacetado e multi-local (Portes; Guarnizo; Landolt, 1999; Levitt, 2004; Vertovec, 1999, Guarnizo; Smith, 1998). Guarnizo e Smith (1998) e Levitt (2006) chamam a atenção para o fato de que o processo de transnacionalização religiosa implica numa mudança da vida religiosa ao cruzar fronteiras ao mesmo tempo em que nos convoca a prestarmos atenção na forma como as identidades, os pertencimentos, as questões políticas e econômicas, questões de gênero, etc. estão sendo refeitas a partir desta dinâmica. Levitt (2004) coloca que os sócios das igrejas protestantes, diferentemente dos “nós” entre igrejas católicas, “negociam poder, dividem lideranças e gerenciamento financeiro”. De fato, nas relações entre Isaías e os pastores da sua rede percebe-se uma relação amistosa, onde as lideranças são dividas entre aqueles que participam dos projetos desenvolvidos juntos, incidindo mais sobre aqueles que são os centros dos projetos, ou seja, aqueles que agregam mais pessoas aos seus projetos. As questões financeiras entre eles ocorrem de diferentes formas. Mas, no geral, ocorre uma colaboração entre eles. Via de regra, os que convidam arcam também com as despesas de viagem e outros custos. Mas, também, os que são convidados podem aceitar somente parte dos auxílios e custear a outra parte com os seus próprios meios. Isaías e Christian quando questionados sobre as questões financeiras citam o apóstolo Paulo, que diz: “Não devemos ser pesados aos nossos irmãos”.

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Isaías Figueiró em toda sua trajetória esteve buscando formas de pensar e atuar o evangelho. Ele percebe o mundo como algo em movimento, dinâmico. As novas tecnologias de comunicação e de informação unem o mundo em diferentes comunidades e elas estão em diferentes partes do mundo. Haynes (2012: 8) defende que o “crescimento das interações transnacionais como resultado da globalização leva ao crescimento das trocas de ideias e informação entre grupos transnacionais”. Para Isaías, a igreja é uma só no mundo todo. As redes transnacionais operam de forma a facilitar as relações entre diferentes países. Estar conectado com esses lugares é também possibilitar a conexão da igreja como um todo. Para Isaías, não cabe mais a ideia de uma igreja fixa. O evangelho é um só, mas existem diferentes formas de interpretá-lo. Além disso, existem muitas pessoas interpretando-o da mesma maneira. Daí, segundo Isaías, a importância de estreitar laços com quem se possui maior afinidade. Segundo suas palavras: existe uma visão, um linguajar parecido no mundo todo, em alguns lugares com algumas pessoas. Então, a gente se afina, mais ou menos, com essas pessoas que a gente percebe que há um linguajar semelhante. Vai se estreitando e fortalecendo os laços (Entrevista com Isaías Figueiró, em 06/06/2012).

Dessa forma, parece que a união das pessoas que interpretam a Bíblia de forma semelhante constitui uma via de aproximação de pessoas e de estreitamento de relações sociais. É em busca desta mesma forma de pensar e de interpretar o evangelho que Isaías vai atrás. Ou seja, na sua busca

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de formação da sua igreja procura encontrar pessoas que dividam as mesmas formas de pensar e de compreender a Bíblia para juntos construírem uma igreja forte e cumprir com a missão que lhes foi outorgada, a de levar o evangelho para o mundo todo. Porém, esta forma de pensar a pastoral e a missão religiosa não é rígida e fixa. Isaías enfatiza que a aprendizagem é uma constante, para todos. Por isso mesmo, procura seguir as oportunidades que vão aparecendo no meio pentecostal transnacional. Os convites servem tanto para ele mostrar seu conhecimento da Bíblia através da administração da palavra quanto também para aprender com outros. Entretanto, reiteramos, Isaías pensa a sua igreja como local sem perder de vista o global. Ele procura encontrar através das redes transnacionais formas de aperfeiçoar o seu trabalho local. Foi a partir dos laços transnacionais que ele conseguiu preencher um espaço do seu projeto de igreja que faltava ser cumprido: a escola bíblica, como veremos a seguir. Assim, os caminhos através das redes ajudam a moldar o local. A dinâmica transnacional que engloba atores transnacionais que circulam mundialmente através de redes transnacionais aparece, no caso do pastor Isaías Figueiró, como um meio pelo qual ele pode fortalecer o local. O que percebemos ultimamente na Igreja Encontros de Fé é justamente uma preocupação com o local. Isaías Figueiró procura através das redes fortalecer o que tem em Porto Alegre. Para ele, o fortalecimento é possível de ser obtido através de ações que envolvem outros atores transnacionais. A recíproca é verdadeira. Ou seja, assim como ele vai se construindo a partir do contato com outros pastores, estes também se fortalecem na relação com esta e outras igrejas. 163

Nota-se, desta forma, que em se tratando de relações sociais estas não ocorrem numa única direção, unilateralmente; as relações são bilaterais ou multilaterais. Elas envolvem dois ou mais lados que produzem sentidos a partir do que vivenciam juntos. Guarnizo e Smith (1998: 7) argumentam que as práticas transnacionais se espalham por dois ou mais territórios porque os agentes implicados estabelecem e constroem “relações sociais”, “políticas” e “economias específicas”, de acordo com os interesses de ambos os lados. Assim, interesses e acordos asseguram a constituição de redes transnacionais que podem ser também religiosas.

A parceria sueca da Escola Bíblica Foi num domingo de agosto de 2009 que Mariana, co -autora deste texto, e toda a igreja Encontros de Fé receberam a notícia da vinda de um pastor sueco a Porto Alegre, prevista para o mês de novembro daquele ano. A novidade foi dada e recebida com grande entusiasmo por todos. Era visível a satisfação dos pastores Isaías e Christian ao falarem do pastor Ulf Ekman. O primeiro contato de Isaías com o pastor sueco Ulf Ekman ocorreu através da esposa do pastor Paulo Figueiró, irmão de Isaías. Ocorre que a sua esposa é sueca, vinda com sua família para o Brasil, cujos pais conheciam o trabalho de Ulf Ekman na Suécia e no leste europeu, o que despertou o interesse de Isaías em conhecer mais de perto aquele pastor. Assim, em 2003 participaram de uma viagem para Israel

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liderada por Ekman. No ano seguinte Christian Lo Iacono participou novamente da excursão para Israel, junto com mais cinco pessoas da igreja. Ulf Ekman percebeu o interesse de Christian e o convidou para participar da excursão trazendo todos os anos cristãos para a excursão. Na campanha para 2010, Christian trouxe o vídeo44 de Ulf Ekman fazendo a propaganda da excursão com legenda em português. A partir do contato que Christian e Isaías tiveram com Ekman na excursão para Israel, aos poucos foram se aproximando de Ulf Ekman e do seu ministério. Como dizíamos, em agosto de 2009 os elogios a Ekman eram extensos nos cultos, a sua biografia era relatada com o mesmo entusiasmo. Havia uma “dramatização” em jogo, o que, para Coleman (2004), é inerente ao pentecostalismo. Aliás, tudo o que acontece na igreja Encontros de Fé, no púlpito e fora dele, seja o ato, a performance, a fala, é carregado de “dramatização”. Assim, ao se referirem a um pastor constroem a sua fala de forma que as “palavras parecem estar incorporadas e materializadas no self e no ambiente” (Coleman, 2004: 17). Coleman explica que a identidade do crente é construída a partir de um conjunto de palavras que formam o caráter da pessoa; a biografia do pastor exposta, ou a própria autobiografia, é utilizada como ferramenta para mostrar a ligação com Deus, através de um renascimento. Ele coloca que parte do processo de ganhar identidade na congregação ou escola bíblica é o desenvolvimento e constante afiliação de relato pessoal de conversão, de como alguém nasceu de novo (...). O uso da autobio44

https://www.youtube.com/watch?v=5G-4dNeVVvQ

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grafia ilustra o ideal de um relacionamento pessoal com Deus, mas é também usado como um modo de discurso de persuasão (Coleman, 2004: 119).

Pastor, evangelista e fundador da igreja Word of Life, Ekman era na época presidente e líder da Igreja sueca Livets Ord (Word of Life). Além da igreja, tinha uma escola bíblica chamada Word of Life Bible School45, a qual fundara na mesma época da igreja, em 1983. Esta igreja possui vários programas de evangelização na Suécia. O pastor Ulf Ekman possuía, na época, quinze centros Word of Life e mais de vinte e oito células no leste europeu, sobretudo na Rússia, além das vinte e oito escolas bíblicas que haviam formado mais de 9.500 alunos. O pastor Christian tomou conhecimento da “Word of Life Bible School” numa de suas viagens para Suécia com o intuito de visitar o pastor Ulf Ekman e conhecer melhor o seu ministério. Neste período, Christian já havia se juntado ao programa de “Turismo Religioso” de Ulf Ekman voltado para a Terra Santa de Jerusalém. Este projeto, organizado e liderado por Ekman, contava com a participação de diferentes igrejas evangélicas europeias. Foi através deste projeto, como já referimos, que Christian começou a conhecer melhor o trabalho de Ekman e ele, Isaías e a igreja Encontros de Fé foram despertando interesse e curiosidade em Ekman e no seu trabalho na Suécia. Após duas viagens para Israel, Christian e Isaías foram juntos conhecer a igreja de Ekman, em Uppsala, na Suécia. Ambos fizeram ainda uma terceira e uma quarta viagem para Israel. Ao término desta última, Christian foi sozinho para a Suécia, desta vez para conhecer 45

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http://wordoflife.se/

melhor a escola Word of Life Bible School: sua estrutura, organização e sucesso tanto em Uppsala quanto em outros países. Ao conhecer melhor essa escola, um antigo projeto da Igreja Encontros de Fé ressurgiu. Ou seja, viu nesta escola sueca a oportunidade de realizar o projeto de ter uma escola bíblica em sua igreja. De fato, Isaías e Christian informaram que o desejo de levarem em frente uma escola bíblica sempre esteve em seus planos. Se não haviam ainda posto em prática é porque a oportunidade ainda não tinha surgido. Mas, agora, ao verem o sucesso da escola sueca, também vislumbraram nela a oportunidade de concretizar o projeto guardado. Poderiam, enfim, ter uma escola na própria igreja que desse um embasamento teórico para os fiéis. A Igreja Encontros de Fé já havia organizado seminários para os fiéis, mas criar uma escola poderia ser um empreendimento muito arriscado. E eles não estavam dispostos a correr este risco. Porém, agora entenderam que o momento havia chegado de firmar parceria com uma escola famosa em toda a Europa, administrada por um não menos renomado pastor sueco. Detentora de uma página na internet, todos podiam ver a escola, o número de alunos, os lugares onde ela estava localizada. Assim, os líderes da igreja Encontros de Fé estavam confiantes na parceria firmada e no êxito do empreendimento. Neste momento, a igreja Encontros de Fé contava com aproximadamente vinte mil membros. Parecia ser o momento certo para realizar este empreendimento. Assim, Christian e Isaías fizeram um convite para o pastor sueco vir ao Brasil conhecer a Igreja Encontros de Fé, já que este também havia demonstrado interesse em conhecer o Brasil e abrir novos espaços de evangelização.

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Em novembro de 2009 Ulf Ekman veio a Porto Alegre, com o objetivo maior de fechar a parceria visando a criação da Escola Sueca no Brasil. Os líderes religiosos bem como os fiéis de ambas as igrejas queriam a escola. Durante o ano de 2010 ocorreram as negociações, os planejamentos, as organizações necessárias para o início das aulas. Quando tudo isto ficou devidamente acertado, Isaías e Christian comunicaram à igreja. Para a publicidade da escola Isaías e Christian se reuniram com os pastores das igrejas Encontros de Fé de Porto Alegre e da grande Porto Alegre. Cada pastor falou na sua igreja a respeito da escola e da oportunidade que a igreja lhes estava oferecendo. O discurso sobre a escola é que ela ajudaria os fiéis a compreenderem melhor a Bíblia e lhes possibilitaria contribuir mais com a igreja a partir do seu conhecimento. Em pouco tempo a turma de 250 alunos teve suas vagas preenchidas. Na época, se falava de uma parceria que duraria um ano com a possibilidade de renovação por mais outro ano. Havia ainda uma ideia de se abrir uma faculdade de Teologia, o que não seria muito difícil, uma vez que a Escola Bíblica possui na Suécia cursos em parceria com a universidade Oral Roberts nos Estados Unidos. E não só por isso, o pastor Christian pensava em fazer uma parceria com a Universidade Luterana Brasileira (ULBRA) na época. Após um ano de muito trabalho, que implicou em múltiplos planejamentos, traduções de livros para o português, idas de Isaías e Christian para a Suécia, negociações a respeito da estrutura da escola, seleção de professores suecos e brasileiros (somente Christian e Isaías deram aula na escola), organização das disciplinas a serem lecionadas, Ekman

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veio para Porto Alegre para a aula inaugural e aproveitou para gravar um vídeo junto com Christian46, falando sobre a parceria. Christian falou sobre as suas expectativas a respeito da escola e como conseguiu em tão pouco tempo juntar um grupo tão grande de estudantes. Christian explica, neste vídeo, que as expectativas consistem em preparar mais professores e pregadores para ajudarem no trabalho da igreja. E sobre o fato de terem conseguido reunir 250 alunos para o primeiro ano, Christian respondeu que resultou de um trabalho conjunto e da união dos líderes da Igreja Encontros de Fé. Eles divulgaram a Escola Bíblica em todas as suas igrejas. O grupo de Ulf Ekman postou o vídeo na página do Facebook de Ekman47. A Word of Life Bible School foi nomeada Escola Bíblica Word of Life. Para a sua realização foi usado todo o material utilizado pela escola bíblica na Suécia e em outros países. Os livros foram todos traduzidos para o português. Apenas dois da igreja daqui foram acrescentados: um livro do pastor Isaías e outro do evangelista Carlos Annacondia. Os professores, como mencionado acima, eram majoritariamente suecos. Vieram para o Brasil oito professores suecos. Cada um lecionou uma disciplina. E cada disciplina teve a duração de duas semanas. As aulas aconteciam quatro vezes por semana. O diretor da escola era um sueco, Calle Lilja. Ele e sua esposa ficaram em Porto Alegre todo o tempo que durou a escola, ou seja, um ano. O vice-diretor da escola era o pastor Christian Lo Iacono. Este vídeo foi gravado em Porto Alegre para a campanha de Ulf Ekman. Vídeo enviado no dia 17/03/2011. Para ver o vídeo click aqui: https://www.youtube.com/watch?v=IZIVn-N67Co 47 Facebook do pastor Ulf Ekman: https://www.facebook.com/pastorulfekman/posts/190863600952900 46

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De acordo com o já exposto acima, as questões financeiras tendem a ser divididas entre as partes interessadas. Assim, os gastos da escola foram divididos entre as duas igrejas: Encontros de Fé e Word of Life. Os professores não eram pagos pela igreja Encontros de Fé, nem o diretor. A igreja Encontros de Fé, por outro lado, era responsável pelas despesas dos professores. Ela pagava os hotéis e os gastos básicos dos professores, mas não lhes pagava um salário. Assim, para os professores que ficavam pelo período de duas semanas a igreja Encontros de Fé arcava com o hotel e com outras despesas. Já para o casal Lilja, diretor da escola e sua esposa, eles alugaram um apartamento e lhes deram um carro para se locomoverem na cidade. Durante o primeiro e único ano de funcionamento da escola bíblica, muitas coisas aconteceram. Aos poucos a tão sonhada escola começou apresentar algumas complicações. Na metade do ano, já não se notava tanto entusiasmo quando se perguntava aos líderes da igreja local sobre o andamento da escola. Surgiram várias tensões entre as igrejas que resultaram da forma de administração das aulas por parte dos professores suecos, do conteúdo das disciplinas administradas no curso, das finalidades do próprio curso e do custo do curso. Em grande medida, tais tensões resultaram de diferenças de ordem cultural, advindas da mentalidade sueca dos professores e da mentalidade brasileira dos alunos. Isto, evidentemente, sem querer produzir uma perniciosa essencialização cultural. Assim mesmo, ou seja, apesar das tensões, a escola chegou ao final do primeiro ano, mas a parceria com a igreja sueca não foi renovada. Obviamente que a experiência da escola não foi sempre de tensões entre ambos os lados. Por isso mesmo, hoje a avaliação da parceria com a escola sueca, de 170

parte dos líderes da Igreja Encontros de Fé, vai no sentido de reconhecer a importância da experiência, para concluir, ademais, que eles detêm todas as condições para viabilizarem uma escola bíblica. Diz, neste sentido, Christian: Na verdade qualquer igreja que queira formar futuros líderes precisa ter uma escola. Nós sempre tivemos a mesma intenção e acho que nos faltava um pouco de preparo, até acadêmico, eu penso. Para complementar, digamos assim, tudo o que é necessário para alguém se formar como líder. E como ele (Ekman) já tinha muitos anos de experiência com a Escola Bíblica... (Entrevista com Christian Lo Iacono, 05/08/2011).

Porém, Christian e Isaías perceberam logo após o início das aulas da escola bíblica que o que eles haviam imaginado da escola não era exatamente o que estava acontecendo. Em entrevista Isaías expõe alguns pontos que fez com que eles repensassem a escola: A gente parou com a escola. Ela teve dois pontos que foram interessantes. Ela tinha muita influência do cunho cultural deles, e também da visão da igreja. Então, sempre que a gente faz uma parceria, a gente procura ter esse cuidado para não deixar a influência cultural e nem a influência da própria estrutura influenciar localmente. Isso é importante (Entrevista com Isaías Figueiró dia 28/07/2014).

Esta declaração ocorreu dois anos após a parceria com a escola sueca ter terminado. Em entrevista durante o período da Escola, Christian colocou que eles já estavam percebendo 171

a preeminência que estava assumindo as diferenças culturais que incidiam sobre o cotidiano da escola e até mesmo sobre a compreensão e interpretação do texto bíblico. Porém, apesar das diferenças existentes entre eles, a estrutura da escola foi considerada positiva pois conseguiram através dela visualizar e perceber que eles conseguiriam dar continuidade à escola, mas uma escola da própria igreja Encontros de Fé, que dê conta das demandas locais. Ou seja, fazer algo local, com professores locais e pensando no local. O global neste sentido se faz presente e é importante para constituir o local. Neste ano de 2014 a Igreja Encontros de Fé iniciou com seus fiéis um seminário bíblico, mas tendo um menor número de horas-aula, menos disciplinas do que as mantidas com a parceria com a escola sueca e todas as disciplinas são administradas por pastores da própria igreja.

Considerações Finais A Igreja Encontros de Fé, de Porto Alegre, integra um modo atual de ser evangélico que ao mesmo tempo privilegia o local e abre-se para o global. Para tanto, seus líderes integram redes religiosas transnacionais que se tornam importantes recursos estratégicos para oportunizar os fluxos e as circulações internacionais. Além disso, participar de redes religiosas transnacionais permite ao pastor Isaías, mas não somente a ele, elevar o seu status no meio evangélico local e nacional que se caracteriza por ser bastante competitivo. Em outras palavras, manter contatos internacionais e participar de redes religiosas transnacionais, especialmente europeias, constitui-se num importante espaço político de 172

fortalecimento da sua legitimidade simbólica e social além de oportunizar a possibilidade de manutenção e mesmo de aumento de fiéis (Oro, 2014). Nos últimos anos, a Igreja Encontros de Fé conseguiu realizar algo muito importante no âmbito das suas relações transnacionais. Firmou parceria com o pastor sueco Ulf Ekman visando a realização em Porto Alegre de uma escola bíblica, realizada em 2011. Desta forma, estava se concretizando um projeto alimentado no interior da igreja. Várias convergências entre as perspectivas do pastor sueco e dos líderes da igreja de Porto Alegre foram importantes para a realização da escola bíblica. Porém, ao término de um ano a parceria se desfez e as avaliações dos líderes locais vão no sentido de reconhecer o êxito da experiência, que carrega, no entanto, algumas ressalvas devidas a incompatibilidades resultantes das diferenças culturais entre a perspectiva sueca e a local. Mesmo assim, se, por um lado, pode-se perceber um relativo desencanto local em relação à experiência sueca, por outro lado, nota-se que ela foi importante para fortalecer a convicção local da possibilidade de levarem em frente uma escola bíblica, contando com a infraestrutura própria e com um grupo de professores pertencentes à própria igreja. É o que está ocorrendo no momento, com o seminário bíblico, em realização na igreja Encontros de Fé, em Porto Alegre.

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Referências Bibliográficas

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A IGREJA COMO PEDACINHO DO BRASIL: RELIGIÃO TRANSNACIONAL NA CAPITAL DO TEXAS Rodrigo Otávio Serrão Santana de Jesus Flávia Ferreira Pires

Introdução O objetivo central deste capítulo é apresentar as duas igrejas evangélicas brasileiras da cidade de Austin, Texas, a Primeira Igreja Batista Brasileira de Austin e a Assembleia de Deus Fogo Pentecostal, enfocando particularmente as dinâmicas existentes entre tais igrejas e a comunidade migrante brasileira. Estas igrejas compartilham com os fiéis (migrantes brasileiros) o que denominamos ser um “pedacinho do Brasil”. Essa idéia encapsula pelo menos três funções que as igrejas assumem: refúgio cultural, criação de redes sociais e facilitação da assimilação dos migrantes junto à sociedade acolhedora. Considerando que a religião tem um papel fundamental na vida das pessoas dispersas em contextos de diáspora e que uma das características de uma diáspora verdadeira, segundo Safran (1991) e Cohen (1997; 2009), é a retenção de uma memória coletiva e a perpetuação de um mito sobre a terra natal, entendemos que as pessoas em tais contextos vivem e celebram a terra natal a partir de suas memórias 177

compartilhadas e dos símbolos nacionais. A terra é (re)vivida a partir das festas, da comida, do idioma, da arte, etc. Em Austin, a igreja proporciona este tipo de experiência para o migrante brasileiro. Ela funciona como um refúgio cultural, um local onde aspectos tidos da cultura brasileira podem ser vivenciados. Para Carlos, 40 anos de idade e que vive há treze anos nos EUA, “a igreja tem o papel de trazer ou manter a tradição do Brasil nos EUA”. A segunda função das igrejas para migrantes brasileiros talvez seja a facilitação da criação dos mais variados tipos de redes sociais transnacionais que auxiliam e empoderam estes migrantes na localidade (Alves, 2009). Comentando sobre as redes criadas pelas mais diversas instituições religiosas da Flórida, Alves (2009, loc. 1915, ed. Kindle) diz que “Nosso campo de pesquisa revelou que congregações religiosas são um dos grupos institucionalizados de redes mais visíveis entre os migrantes brasileiros no sul da Flórida” (tradução nossa). A terceira função da igreja de migrantes refere-se à facilitação da assimilação dos migrantes junto à sociedade acolhedora, principalmente em casos de conversão ao protestantismo. Segundo Cavalcanti e Schleef (2005: 474), “entre os latinos, a conversão para protestantismo significa uma mudança em direção a uma religião culturalmente dominante, que oferece a perspectiva de adaptação cultural mais rápida, se não maior integração econômica”. Para Marcelo, 57 anos, as igrejas ajudam o migrante na assimilação da nova cultura porque elas “conseguem entender bem o sistema socioeconômico e cultural do lugar onde está localizada” e, consequentemente, facilita a vida do recém-chegado no que diz respeito ao cotidiano (como encontrar trabalho e escola, por exemplo), e à vida espiritual.

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Esse texto é um dos resultados de uma dissertação de mestrado em sociologia (Jesus, 2014), na qual o primeiro autor configurou como mestrando e a segunda autora como orientadora. Em termos metodológicos, utilizamos a observação participante por trinta dias (maio de 2013) ao participar de todas as reuniões e atividades de ambas as igrejas. Além disso, foram distribuídos questionários (60 na Batista e 21 na Assembleia), compostos de 54 perguntas fechadas e 5 perguntas abertas. Estes questionários deveriam ser respondidos apenas por pessoas acima dos dezoito anos. Utilizamos a técnica da entrevista estruturada (trinta perguntas) e semiestruturada, onde pudemos entrevistar não somente os principais líderes das igrejas mencionadas, como também outros líderes reconhecidos entre a comunidade, mas que não fazem parte de nenhuma das igrejas. Outro grupo entrevistado foi o de fiéis de ambas as igrejas. A distribuição das entrevistas foi feita da seguinte forma: cinco pastores (sendo dois que não pertencem a nenhuma das duas igrejas pesquisadas), dois acadêmicos via Skype (ensinam em uma instituição teológica, na cidade de San Antonio), oito fiéis, sendo três mulheres e cinco homens. O texto está divido em duas partes. Na primeira parte, apresentaremos as duas igrejas estudadas e traçaremos um breve perfil de seus fiéis. Na segunda parte, apresentaremos a ideia da igreja como um “pedacinho do Brasil” para os brasileiros. Aqui nossa tese central é de que em contextos diaspóricos a igreja serve como refúgio cultural, como mantenedora e criadora de redes sociais e, por fim, como facilitadora dos processos de assimilação dos migrantes à cultura local.

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As Igrejas Primeira Igreja Batista Brasileira em Austin

Segundo um de seus fundadores, a Primeira Igreja Batista Brasileira em Austin iniciou seus trabalhos em 1986, com um grupo de aproximadamente quinze brasileiros. Após oito meses frequentando a igreja, eles foram incentivados pela liderança a iniciarem estudos bíblicos em português, em uma capela dentro do prédio do templo. Neste período, a liderança do grupo estava a cargo de um brasileiro que, além de ensinar a Bíblia, também ensinava inglês. Depois de um tempo à frente da comunidade, resolveu voltar ao Brasil. Contudo, ao saber que o grupo estava sem liderança, alguns brasileiros que estudavam no colégio bíblico de Eagle Pass, cidade texana localizada na fronteira com o México, passaram a ir a Austin, todo fim de semana, para dar assistência ao grupo e sempre, após os cultos, retornavam à cidade fronteiriça. Durante dez anos, a igreja foi servida não somente pelo pessoal de Eagle Pass, mas também por pastores brasileiros das cidades vizinhas. Entre eles, um presbiteriano que tinha a intenção de levar o grupo para uma de suas igrejas. Consequentemente, aconteceu um racha na comunidade, um grupo seguiu com o pastor presbiteriano, e outro permaneceu na Igreja Batista, porém sem pastor. Com a divisão do grupo, os que permaneceram nas instalações da Igreja Batista Americana decidiram convidar um pastor brasileiro para trabalhar com eles de forma ‘full-time’, ou seja, em tempo integral. Em 1999, com a chegada do novo pastor, o grupo oficialmente passa a ser conhecido como a Primeira Igreja Batista Brasileira, em Austin. Este

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pastor, contudo, não está mais à frente da igreja. Um novo pastor foi convidado em 2005, a qual permanece até os dias de hoje.

Igreja Assembleia de Deus Fogo Pentecostal

A igreja Assembleia de Deus em Austin é bem mais nova do que a Batista. Segundo seu atual líder, a igreja foi fundada em 2009 e é ligada a Assembleia de Deus Fogo Pentecostal da Flórida. Seu início se deu com a ida de um casal de pastores da Flórida à cidade de Austin, por motivos de trabalho. Em Austin, eles foram encorajados pelo pastor da Flórida a começarem uma nova igreja. Aceitaram o desafio e começaram a reunir-se com algumas pessoas, a princípio em sua própria casa, mas depois, nas casas dos primeiros fiéis. Destes cultos nos lares, surgiu o “chá das mulheres”, um evento que, devido ao grande número de participantes, possibilitou o pagamento do aluguel de um prédio para os cultos semanais. Após dois anos à frente desta comunidade, o casal precisou retornar ao Brasil, deixando a igreja sem liderança. Foi quando os líderes da Flórida contataram o casal de pastores atuais. Atualmente a igreja se reúne no prédio em anexo a uma Igreja Batista norte-americana.

Os fiéis

Abaixo veremos um pequeno perfil dos fiéis de ambas as igrejas.

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Fonte: pesquisa conduzida pelos autores

Primeiramente, observamos o ano em que os fiéis de ambas as igrejas chegaram aos EUA. Percebemos que a Batista possui fiéis das primeiras ondas migratórias dos anos de 1970 e 1980 (Marcus, 2009, 2011; Margolis, 1994; Martes, 1999), entre Brasil e EUA. A igreja foi fundada em 1986, e parte dos fundadores ainda permanece na igreja. Os fiéis mais antigos da Assembleia chegaram aos EUA na década de 1990. Neste mesmo período, 30% dos fiéis atuais da Batista chegavam aos EUA. Porém, foi na última década que a maioria dos fiéis das duas igrejas migraram. A Assembleia tem uma pequena vantagem em relação à Batista tanto na última década, quanto nos dois últimos anos. Percebe-se que o fluxo migratório que abastece as igrejas em Austin não parou, pelo contrário, tem crescido a cada década. No Brasil, conseguir um visto, contudo, tem se tornado mais fácil. Medidas adotadas pelo governo norte-americano para países como o Brasil, China e Índia, têm desburocratizado e, consequentemente, acelerado o processo de concessão de vistos, além de aumentado o número de concessões, prin-

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cipalmente o de turismo/negócio (B1/B2). A lei conhecida como, Welcoming Business Travelers and Tourists to America Act of 201148 tem por objetivo atrair turistas e empresários para os EUA com interesses puramente econômicos. A princípio, esta pesquisa não tem como saber os efeitos desta lei nas comunidades religiosas de Austin. Contudo, percebeuse a ida de familiares que anteriormente não podiam viajar aos EUA por já terem tido o visto negado. Porém, segundo os pastores brasileiros de Austin, o fluxo migratório entre Brasil e EUA tem diminuído consideravelmente. A razão, segundo eles, é a dificuldade na obtenção da carteira de habilitação para o estrangeiro49.

Fonte: Pesquisa conduzida pelos autores

48 https://www.govtrack.us/congress/bills/112/hr3039. Acesso em: 9 jan. 2014. 49 Possuir a carteira de habilitação garante ao estrangeiro a possibilidade de trabalho em Austin. O sistema de transporte público é limitado apenas ao centro da cidade e atende a poucos usuários. Sem um automóvel e sem habilitação, o migrante perde a mobilidade necessária para trabalhar neste tipo de sociedade.

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Ambas as igrejas revelam um alto nível de escolaridade entre os fiéis. Estes dados comprovam o discurso do Pr. Pedro, antigo pastor da Batista, sobre os tipos de brasileiros nos EUA. Em entrevista, ele disse que “existem aqueles que vão aos EUA na visão de ganhar dinheiro, não importa o que façam. Ele é médico, ele é dentista, ele é advogado lá no Brasil e veio para cá, não se importando se vai entregar jornal ou se vai entregar pizza”. De fato, existem muitas pessoas com uma formação superior nas igrejas de Austin. Estes dados também comprovam que os migrantes brasileiros são, em sua maioria, provenientes da classe média brasileira e com uma boa educação formal. Esta característica se repete em outras regiões dos EUA. Dados do American Community Survey, entre 2007 a 2009, analisados por Margolis (2013), informam que 42% dos brasileiros residentes nos EUA têm entre algum tempo de universidade a um diploma universitário e que 11% possuem pós-graduação ou curso profissional. O alto nível escolar pode ser refletido no nível de inglês da comunidade religiosa brasileira de Austin. Se somarmos os níveis bom e fluente, veremos que a grande maioria de ambas as igrejas podem se comunicar com facilidade na língua inglesa. A pergunta que fica então é por que eles procuram uma igreja brasileira para congregar se eles se comunicam em inglês? Uma resposta pode ser dada utilizando-se as palavras de um migrante de Austin: “Por mais que eu possa falar inglês bem, há um certo impacto diferente quando eu escuto a pregação na minha língua. Onde há um tipo de vocabulário, referências, linguajar, onde influencia no meu raciocínio de entender a palavra. Eu posso estar muito

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bem escutando a pregação em uma igreja americana e entender 100%, mas eu não sinto no meu coração a palavra como quando eu escuto em português. Então, há essa diferença [...]. No meu ponto de vista, a igreja brasileira me prende por conta disso, falar a língua” (Carlos, 40 anos).

Esta resposta encontra ressonância na fala de um padre brasileiro no Reino Unido, citado por Sheringham (2013: 84) que explicou a importância do idioma para os brasileiros: existem três coisas que os brasileiros devem fazer em sua própria língua: “brincar, xingar e rezar”.

A Igreja como “pedacinho do Brasil” Refúgio Cultural

No questionário passado às igrejas, uma série de perguntas foi feita no intuito de saber se os fiéis também frequentavam a igreja por vê-la como uma extensão do Brasil, ou seja, como uma ilha brasileira, dentro dos EUA, onde elementos tipicamente inerentes à cultura brasileira estariam disponíveis a eles (comida, idioma, festas, amizade, etc.). Abaixo apresentamos a interpretação dos dados obtidos para o melhor entendimento da prática religiosa dos migrantes brasileiros de Austin. O Gráfico 5 nos mostra que a grande maioria das pessoas de ambas as igrejas sentem-se próximas do Brasil quando vão à igreja. É importante aqui mencionar o estudo de Marcus (2009: 486) sobre a imaginação geográfica dos migran-

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tes brasileiros em Massachusetts. Embora o seu estudo seja basicamente sobre o uso da imaginação geográfica como um dos fatores que impulsionam a migração do brasileiro aos EUA, a lógica inversa também é legítima e acontece com frequência.

Fonte: pesquisa conduzida pelos autores

Segundo Marcus (2009: 489), a imaginação geográfica pode ocorrer em duas vias. Primeiramente, inspira a migração (a partir de um desejo ou sonho), porém, pode também causar o retorno destes migrantes. A partir do entendimento de Nicholas Entrikin (1976), de que “lugar, para os humanistas, não é uma coleção de objetos e eventos empiricamente observáveis, mas um repositório de significados” (apud, Marcus, 2009: 486), Marcus conclui que, “seguindo as premissas humanistas, a imaginação geográfica na migração brasileira se torna uma projeção do conceito que o migrante tem de lugar” (Ibid, tradução nossa). Assim, este conceito subjetivo se projeta não somente para um “Estados Unidos” imaginado, mas também para um “Brasil” imaginado pelos

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migrantes50. Um Brasil idealizado. Podemos verificar esta contestação no caso dos migrantes das igrejas de Austin que, ao serem perguntados se eles estavam satisfeitos com a vida nos EUA, 95% dos Batistas e 95,2% da Assembleia disseram que sim. Porém, isto não mudou o fato de que a maioria de ambos os grupos admitiu que, às vezes, pensa em voltar a viver no Brasil (53,3% entre os Batistas e 52,4% entre os da Assembleia). Ou seja, eles estão satisfeitos com sua vida nos EUA, mas, ainda assim, a maioria pensa em voltar. Segundo um entrevistado: Muitos vieram com a intenção de ganhar dinheiro e voltar ao Brasil. Não vieram com a intenção de ficar, de estabelecer residência aqui e viver aqui para o resto da vida. Vieram para cá como sendo uma oportunidade financeira. Então não criaram raiz, não se preocuparam em se integrar na cultura, na sociedade americana. Embora estando aqui, têm dificuldade com o idioma, têm dificuldade com a cultura. Estão constantemente sempre pensando em voltar ao Brasil e voltar para a família e a cultura que deixaram lá (Renato, 50 anos).

Para muitos migrantes brasileiros nos EUA a imaginação geográfica que eles tinham antes de migrarem era de uma terra de oportunidades ou um lugar onde os sonhos financeiros se realizariam. Outros imaginavam a segurança e a estabilidade (Marcus, 2009). Uma vez nos EUA, a imaginação destes mesmos migrantes agora se volta ao Brasil. Segundo Ribeiro (1999), este novo Brasil é a imagem “exportada” pela mídia e pelos brasileiros que vivem no exterior de um país de “calor tropical, alegria, música, carnaval e sensualidade”. Como Rocha e Vasquez (2013: 2) dizem, “uma nação infundida com energia, beleza e excitação”. 50

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Percebemos, portanto, que há o desejo entre os brasileiros de retornar ao Brasil, se de forma temporária ou definitiva, os dados não revelam. Porém, muitos não o fazem por diversos motivos. Um destes motivos é o imaginário do “país em crise”51, que é espalhado por meio da imprensa “brazuca” (Sales, 1999: 24-25) ou por meio de líderes religiosos. Segundo o mesmo entrevistado, aqueles que se esquecem desse imaginário e retornam ao Brasil se arrependem: A gente conhece ‘n’ casos em que a pessoa estava aqui [...] porque a saudade é enganosa, meu amigo [...] E o cara tá aqui ele sente saudades só das coisas boas do Brasil. Ele esquece da violência, ele esquece da dificuldade financeira, esquece de tudo o que é ruim e só lembra do que é bom. Aí tá aqui e bate aquela saudade doida e o cara não se adaptou à cultura, não fala o idioma, quer saber do que, vende tudo o que tem aqui e volta para o Brasil e aí se arrepende (Renato, 50 anos).

Outro grupo que reforça a ideia do “país em crise”, entre os migrantes brasileiros em Austin, é aquele que retorna ao Brasil, mas não se adapta ao estilo de vida brasileiro e passa a falar mal do Brasil aos migrantes que permanecem nos EUA. Temos visto pessoas que vieram para cá com o sonho de levantar alguma coisa e voltar para o Brasil. Alguns conseguiram outros não. Mesmo os que conseguiram, eles tiveram dificuldade de se readaptar no Brasil. Porque o Brasil é maravilhoso, nós Sales analisa os jornais étnicos, chamados por ela de “imprensa brazuca” e conclui que são estes que mais espalham e perpetuam a ideia do Brasil “como um país em crise e cheio de problemas”. 51

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como brasileiros jamais devemos falar mal do nosso país. Mas existe uma grande diferença entre Brasil e EUA. Tem coisas aqui que funciona e a gente sabe que no Brasil não funciona. E quando a pessoa está aqui por muito tempo, quando chega no Brasil, tem um choque. E mesmo os que conseguiram levar alguma coisa tiveram vontade de retornar para cá. E a gente tem visto que pessoas que não tiveram a chance de realizar o sonho de construir algum patrimônio, e foram assim mesmo, se arrependeram, né? Não tinham condições de voltar [para os EUA]. Alguns voltaram, mas falou ‘olha,[o Brasil é] totalmente diferente (Marco, 54 anos).

Quando o imaginário do Brasil “maravilha” é colocado diante do imaginário do Brasil “em crise”, aparentemente, o imaginário do Brasil “em crise” sobressai e determina a permanência do migrante, mesmo que indocumentado, nos EUA. Para este, o risco do retorno envolve mais do que ter dinheiro para investir no Brasil. Agora, envolve também o risco da não readaptação ao modus vivendi brasileiro52, envolve o medo de inserir seus filhos em uma nova sociedade53. Em um artigo sobre o retorno dos migrantes de Governador Valadares (MG) ao Brasil, provenientes dos EUA No que nos toca particularmente, o primeiro autor experimentou um pouco deste processo de readaptação e decepção ao voltar para o Brasil definitivamente em 2009. Chegou com um mestrado profissional obtido nos EUA (na área de Teologia) e pensou que todas as portas iriam se abrir. Contudo, diferentemente dos EUA, o curso não é valorizado no Brasil. Certo dia um pastor lhe disse, “na igreja seu curso tem valor, mas na universidade não vale nada”. 53 Waldinger (2008: 24) fala sobre o sonho do retorno do migrante à sua terra natal como sendo algo difícil de acontecer, principalmente pelas raízes que são criadas na nova terra. Dessa forma, os filhos se tornam um dos principais motivos da permanência dos migrantes em terra estrangeira. 52

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e Portugal, Sueli Siqueira (2009) aponta quatro diferentes formas de retorno. Primeiro, existe aquele que retorna temporariamente. Esses vêm ao Brasil, de férias ou para festas familiares. Alguns vêm para tratamento odontológico ou médico. Estes não pensam mais em juntar dinheiro para investir no Brasil. O segundo grupo é daqueles que originalmente pensam em retornar “de vez”. Ou seja, “o emigrante volta à cidade de origem, investe e acaba por perder o seu investimento ou não consegue readaptar-se à vida no Brasil” (Siqueira, 2009: 149). Mas, por conta das perdas financeiras, este indivíduo torna a migrar ao exterior, mesmo que com a ideia de voltar ao Brasil. Margolis (2013) chama este tipo de comportamento de “migração yo-yo”. Ou seja, a “re-migração” de migrantes após eles terem dito que haviam retornado “de vez” ao Brasil. Siqueira (2009, apud Margolis, 2013, loc. 3320, ed. Kindle), diz que “o desejo de ficar [no Brasil] é forte, mas após trabalhar nos EUA, viver o ritmo de uma sociedade industrializada com acesso a bens de consumo, mesmo que na periferia desta sociedade, o migrante não consegue se readaptar, perdendo seu lugar na sua sociedade natal”. Como dito acima, são estes que reforçam o imaginário do país em crise ao terem contato com os migrantes que ainda se encontram em Austin. O terceiro tipo é o daqueles que retornam ao Brasil “de vez” e conseguem permanecer e estabelecerse novamente. Normalmente, estes conseguiram se readaptar à vida no Brasil e não alimentam planos de retornar aos EUA. Estes, de acordo com Margolis (2013, loc. 4127, ed. Kindle), conseguiram cumprir as aspirações da maioria dos migrantes brasileiros que é “viver e trabalhar em uma terra estrangeira por alguns anos para melhorar de vida na volta ao Brasil”. Por fim, o quarto grupo é o de migrantes transnacionais ou transmigrantes. Este tipo de migrante vive si190

multaneamente em duas nações (através das redes sociais e familiares estabelecidas tanto na nação de origem quanto na de destino). Uma parte do ano ele está no Brasil e outra parte no país de destino. De acordo com Siqueira (2009: 149), eles “participam ativamente na vida social de duas sociedades, transitam, têm visibilidade e são atores sociais nos dois locais”. Estar neste grupo se configura como um alvo a ser perseguido pela maioria dos migrantes das igrejas de Austin. Tornar-se transmigrante nos EUA só é possível através de green card (residência permanente) ou cidadania. Há casos de pessoas que esperaram mais de dez anos para conseguir a residência permanente para poder desfrutar de um estilo de vida transmigrante. Todavia, Margolis (2013) nos lembra que, desde os ataques de 11 de setembro de 2001, se tornou extremamente difícil para migrantes de qualquer país tornarem-se transmigrantes. Assim, para aqueles que não fizeram o percurso da volta, por qualquer que seja o motivo, ou não se tornaram transmigrantes, as igrejas se tornam um oásis, onde a sede pelo Brasil ou pelas diversas formas culturais brasileiras é saciada e onde o “melhor do Brasil” é vivenciado sem o risco da necessidade de retornar a ele. Neste sentido, a igreja brasileira funciona simbolicamente como uma embaixada. Uma embaixada é caracterizada por representar um governo de um país dentro de outro. Assim também é com a igreja brasileira em Austin, ou seja, ela representa o “Brasil” imaginado pelos migrantes. Ao pisar fora dela, os migrantes brasileiros saem deste “pedacinho do Brasil” e retornam aos EUA. Desta forma, os migrantes têm “acesso” ao “Brasil” sem terem necessariamente que lidar com o medo da readaptação ou da violência urbana que tão marcadamente caracteriza a sociedade brasileira. 191

O Gráfico 6 mostra como a igreja serve, para a maioria dos fiéis, como um local de refúgio. Elementos da cultura brasileira, principalmente o idioma, servem para aliviar a saudade que os fiéis têm, não somente do Brasil, mas em muitos casos de familiares que ficaram para trás. De acordo com um entrevistado, a razão da saudade dos brasileiros é “porque, no Brasil, eles tinham uma vida social, porque no Brasil tinham uma vida em família, no Brasil tinham amigos, tinham praia, tinham lazer e aqui não têm”. Assim, diante de tamanha escassez de laços emocionais, muitos migrantes encontram, na igreja, o lazer, a família, e os amigos que eles não têm fora dela. Segundo um entrevistado: [...] a religião transmite muito efetivamente a questão da ideia de família que o migrante não tem aqui. Foi o caso comigo onde a igreja me abraçou como comunidade. Claro que, para isto, pode acontecer de uma forma não religiosa, mas na minha própria experiência e de outros que conheço, este tipo de comunidade e suporte acontece em contextos religiosos. Isso é uma coisa muito importante (Jonas, 33 anos).

Fonte: pesquisa conduzida pelos autores

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Redes Sociais e de Apoio

Vimos que a igreja pode servir como um refúgio cultural para brasileiros nos EUA. Outra característica que encontramos nas igrejas de Austin é a de criar e manter redes sociais e de apoio ao migrante. As redes sociais podem ser descritas a partir do seguinte comentário feito pelo pesquisador Wilson Fusco (2000): Observados individualmente, cada migrante possui um conjunto limitado de conexões sociais de parentesco, amizade e origem comum, mas quando focalizamos um grupo de migrantes, podemos visualizar uma grande teia de relacionamentos que são interconectados e que ultrapassam os limites do próprio grupo, incorporando até os não migrantes (Fusco, 2000: 19-20).

Este comentário aponta para dois fatos importantes das redes sociais: 1) as conexões entre migrantes mais relevantes acontecem em contextos comunitários; 2) a incorporação dos não migrantes revela o caráter transnacional das redes sociais. Assim, Martes (2000 apud Alves e Ribeiro: 5) nos diz que “os deslocamentos (…) não são sustentados por indivíduos que isoladamente decidem emigrar, mas sim por grupos de pessoas ligadas por laços de amizade, conhecimento ou relação de parentesco”. Estas redes quando “maduras” se expandem e reduzem os custos pessoais e financeiros da migração em si, permitindo uma maior diversidade da população migrante (Margolis, 2013, loc. 1084, ed. Kindle). É importante lembrar que Austin não tem uma grande comunidade de brasileiros. Várias outras cidades americanas 193

contam com comunidades bem mais expressivas numericamente, o que, em tese, tornaria a migração mais atrativa. Mesmo assim, existe um fluxo contínuo de migrantes para Austin, provenientes do Brasil. Os dados coletados nas igrejas mostram que este fluxo se intensificou a partir dos anos 2000, e a pergunta é: por que? O que leva os brasileiros a arriscarem-se em um lugar desconhecido? Uma das respostas é: redes sociais. Abaixo segue alguns relatos de fiéis de ambas as igrejas, falando como se deu o processo inicial de suas saídas do Brasil rumo a Austin. Primeiramente, temos o relato da Rebeca, 55 anos, natural de João Pessoa. Meu irmão veio morar aqui em 1999. Um ano depois, minha irmã veio e, no final de 2000, eu vim passar as férias aqui, vim passar dois meses de férias. E quando eu cheguei aqui, eu simplesmente me apaixonei. Me apaixonei pela segurança, me apaixonei por tudo, pela facilidade que se tem de comprar as coisas. A igreja, naquela época, era muito animada, muito boa. Meu irmão era o pastor, e eu queria ajudar, queria colaborar. Mas eu voltei e pedi a Deus que, se fosse da vontade Dele, que ele abrisse as portas. E nessa época, o Banco do Estado em que eu trabalhava estava em fase de privatização. Então, era aquele medo de perder o emprego, então eu disse, “eu não vou perder esta oportunidade não. Vai que eu perco meu emprego, já estou em uma idade de quarenta e três anos”, naquela época, “não é fácil encontrar outro”, como até hoje eu tenho amigas que nunca arranjaram emprego. Então, eu aproveitei a oportunidade, e as portas se abriram, e eu vim (Rebeca, 55 anos).

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O depoimento de Rebeca revela uma tendência comum entre os migrantes brasileiros religiosos. Além das redes sociais que facilitam a transição e adaptação do migrante no início de sua estadia em outro país, a saída do Brasil também está vinculada a um sinal ou autorização divina54. Esta disposição de buscar o conselho de Deus foi notada também por Alves e Ribeiro (2002) nas igrejas do sul da Flórida. A autorização divina legitima a ida dos migrantes ao exterior, pois os auxilia a entender que a ida para os EUA faz parte do plano de Deus para suas vidas (Alves, Ribeiro, 2002: 20). No caso de Austin, este discurso é comum nas narrativas dos migrantes, mesmo entre aqueles completamente integrados à sociedade norte-americana. Outro depoimento interessante é o de Fabiano, 44 anos, natural de uma pequena cidade do Paraná. Tentei o visto em 2003, e foi negado. Depois, em 2006, meu irmão já estava aqui. Meu irmão veio para cá em 2002, [...] pra Dallas. Aí ele, em nossas conversas telefônicas, falou que me ajudaria a conseguir de novo o pagamento das taxas de consulado e tudo mais e poderia ajudar de novo a tentar o visto. Eu tentei, e também meu cunhado e minha cunhada moram aqui, em Austin, desde 2001/2002, me falaram também a mesma coisa. Disseram que a vida aqui era melhor [...] diferente, escolas, oportunidade de vida pros filhos era melhor. Então nós tentamos de novo e, graças a Deus, conseguimos o visto e viemos em menos de um mês, um mês e pouquinho já estava aqui em Austin (Fabiano, 44 anos). Para Alves e Ribeiro (2002), a justificativa religiosa é mais comum entre os migrantes “que vivem uma situação marcada pela instabilidade material e/ou emocional”. 54

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O relato de Fabiano mostra a importância das redes sociais “para o ajuste inicial do migrante” (Fusco, 2000: 89). Massey (apud Fusco, 2000: 88) diz que “família e amigos são um inestimável recurso socioeconômico para migrantes nos EUA”. Este apoio financeiro é muitas vezes determinante na decisão de migrar ao exterior. Perceba que, segundo o relato de Fabiano, a garantia do pagamento das taxas por familiares o motivou a enfrentar o processo burocrático para conseguir um visto. Em muitos casos, o acordo financeiro serve para cobrir os gastos iniciais que vão desde os custos com passaporte e visto, até as primeiras semanas de estadia no novo país. É importante ressaltar que familiares e amigos não apenas despendem recursos financeiros para ajudar o migrante a se situar na sua nova realidade, mas também investem outros recursos como, por exemplo, suporte emocional junto aos recém-chegados. Falando sobre a ajuda da igreja e de familiares em seus primeiros dias de EUA, Leonardo, 31 anos, de São Paulo, relata: “Tive aconselhamentos [por parte da igreja] e, como eu te disse, a minha irmã já estava aqui. Ela foi a pessoa que mais ajudou a gente”. Em Austin, praticamente todos os migrantes brasileiros religiosos engajam-se em algum tipo de atividade transnacional, seja de forma transmigrante, seja aquela com pouca ou nenhuma mobilidade espacial. Estas atividades variam desde o simples contato com pessoas no Brasil (por email, Facebook, telefone, Skype, etc.) até o download de vídeos e outras mídias, como música, livros, etc. religiosos ou não, produzidos no Brasil ou outro país. Até mesmo as músicas cantadas nos cultos fazem parte de um circuito transnacional onde artistas e pregadores viajam até os EUA, para apre-

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sentação em Congressos e outros eventos55. O movimento do migrante (exceto pastores) entre fronteiras nacionais (transmigração) é mais limitado devido à condição migratória irregular em que muitos se encontram. Os pastores, por outro lado, envolvem-se em vários tipos de viagens transnacionais, de lazer a negócios religiosos. O tipo mais comum são as viagens missionárias. Um dos pastores de Austin faz uma viagem missionária ao Brasil, pelo menos a cada dois anos. Primeiro, o pastor escolhe uma cidade e faz contato com várias igrejas deste lugar. Depois, as igrejas informam as várias necessidades que precisam ser atendidas, além da espiritual. De posse destas informações, o pastor Pedro organiza a compra de medicamentos, armações oculares, Bíblias, material evangelístico, etc., e mobiliza as pessoas, normalmente norte-americanos, que viajam sob sua liderança, ao Brasil. Estas viagens duram em torno de uma semana e movimentam igrejas e pessoas nos dois países de forma simultânea. Na Assembleia, até o momento da pesquisa, o pastor não podia sair dos EUA por não ter ainda recebido o green card. Todavia, pregadores da Assembleia de Deus no Brasil, principalmente da Paraíba, têm ido até Austin para participar de festividades da igreja e pregar em datas comemorativas. Portanto, as redes sociais e de apoio formadas nas igrejas de Austin se caracterizam como um “pedacinho do Brasil”, pois, elas fazem a conexão entre o país de origem e o país de destino, facilitando o fluxo de pessoas e informações do Brasil para os EUA e vice-versa. A mesma coisa acontece no espiritismo kardecista transnacional (ver Bernardo Lewgoy, 2012) - Entre herança europeia e hegemonia brasileira: notas sobre o novo kardecismo transnacional). 55

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Assimilação cultural Passemos agora para a terceira razão que faz da igreja um “pedacinho do Brasil” em Austin. A teoria que trata da assimilação cultural de estrangeiros nos EUA normalmente faz separação entre a migração europeia do início do século XX e a “nova” migração, iniciada em meados dos anos de 1960. A ideia que se tinha, ao se analisar a primeira onda migratória, era de que as pessoas migravam de um país para outro para se estabelecerem permanentemente (tornando-se imigrantes) ou para juntar dinheiro e retornar para seus países de destino (tornando-se peregrinos) (Guarnizo, Portes, Haller, 2003: 1215). Entre aqueles que permaneciam de vez no país de destino, era esperada uma assimilação aos sistemas sociocultural e econômico. Segundo Guarnizo et al (2003), a hipótese mais aceita era de quanto mais tempo o migrante permanecia na nova sociedade, mais ele era absorvido por ela. Segundo Menjívar (1999), as pesquisas sociológicas da virada do século buscavam entender a participação religiosa na assimilação do migrante na nova sociedade. Buscavam também entender a relação entre o engajamento religioso e o “sucesso socioeconômico” do migrante. Estudos da época englobavam uma gama de assuntos que iam desde as dificuldades enfrentadas pelos migrantes ao se depararem com outra tradição religiosa em suas novas igrejas até os processos de maior coesão social entre os migrantes gerados pela comunhão nas igrejas (Menjívar, 1999: 591). A partir da nova onda migratória pós 1965, os estudiosos passaram a analisar outras variáveis no processo de assimilação, principalmente devido à heterogeneidade étnica

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dos novos migrantes nos EUA, tais como participação na força de trabalho, características sociodemográficas dos novos migrantes, efeitos das políticas migratórias na vida dos migrantes e suas famílias, como também “redes sociais e relações de gênero” (Menjívar, 1999: 592). Todavia, isto não significava que a religião não era mais uma variação importante no processo de assimilação. Contudo, a questão passou a ser: a religião impede ou facilita a assimilação de migrantes na nova sociedade? (Menjívar, 1999). Por exemplo, Levitt (2003: 182), pesquisando a comunidade brasileira de Boston, conta que membros da “Igreja do Evangelho Quadrangular” (denominação pentecostal com várias igrejas no Brasil), buscaram ficar na igreja brasileira porque “reforçava as conexões com o Brasil e os protegia da imoralidade dos EUA”56. Neste caso, a igreja servia como um impedimento à assimilação dos migrantes que preferiam isolar-se em um gueto religioso como uma forma de proteção às supostas influências negativas da sociedade norte-americana. Em Austin, percebemos que existem tentativas de criar meios de integração entre a comunidade brasileira e a sociedade americana. Percebemos isto a partir do discurso dos pastores de ambas as igrejas. Contudo, aparentemente, alguns migrantes reconhecem que estas tentativas não são suficientes ou duradouras. Segundo Márcio, 54 anos, “de vez em quando, a igreja incentiva a fazer inglês com algum brasileiro que sabe ensinar inglês, mas não passa disso aí não”. Outros acham que a igreja causa um desserviço à comunidade brasileira por privar o migrante que fala inglês ou que O artigo não menciona as especificidades do termo “imoralidade dos EUA”, nem sobre o que exatamente estes brasileiros religiosos estão tentando se proteger. 56

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está aprendendo o idioma de conhecer comunidades religiosas de língua inglesa e, consequentemente, poder integrarse à cultura norte-americana. Veremos abaixo o que alguns entrevistados dizem sobre a forma como a igreja brasileira se apresenta neste contexto, principalmente no que se refere à assimilação da cultura local. Eu acho que [...] a igreja deveria facilitar a inserção do nosso povo brasileiro na cultura americana para que a gente pare de ser discriminado, marginalizado, pare de encontrar todas as dificuldades que os brasileiros aqui encontram por não dominar o idioma, por não se adaptar à cultura [...] Se a igreja estivesse mais voltada para inserir o brasileiro na comunidade americana do que em preservar a cultura brasileira, seria mais benéfico para os membros (Renato, 50 anos). A missão da igreja imigrante é uma missão transicional. Estávamos conversando sobre o desserviço que as igrejas evangélicas fazem na assimilação cultural do brasileiro e imigrante geral. Então, é uma faca de dois gumes [...]. Você cria esta comunidade fechada onde você tem um grande senso de família e de unidade, mas, ao mesmo tempo, você perde essa necessidade de engajar a cultura como um todo. Eu me sinto meio ambíguo quanto a isso [...]. Eu vejo o idioma como uma barreira. Isto é indiscutível. Mas, eu acho que existe determinada falta de iniciativa das igrejas brasileiras às vezes de fazer com que essa barreira desapareça. Essa barreira é o que cria dependência desses imigrantes a estas instituições. Então seria contraprodutivo fazer com que essa assimilação aconteça (Jonas, 33 anos).

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Ugba (apud Sheringham, 2013) escreve acerca de igrejas pentecostais africanas, fixadas na Irlanda, que faziam um trabalho de solidariedade e de apoio aos migrantes oriundos da África. Porém, ao mesmo tempo em que as igrejas serviam e envolviam a comunidade africana, também construíam um “universo moral e sociocultural que conflitava com a cultura e a sociedade dominante” (Ugba apud Sheringham, 2013: 1687). Em Austin, as igrejas brasileiras parecem seguir o mesmo caminho. Como visto acima, a igreja brasileira oferece aos brasileiros aquilo que eles mais sentem saudades do Brasil que é a língua, a comida, as festas, o lazer e em alguns casos até uma família (simbolicamente). Por tudo isso, há acusações de acomodação. Como me disse um dos entrevistados, “os brasileiros se acomodam” e não querem sair daquele grupo, em busca de uma maior assimilação da cultura local. O que é destacado pelos migrantes, contudo, é o papel da igreja no processo de assimilação cultural do brasileiro no país acolhedor. Para os entrevistados acima, a igreja deveria servir mais àqueles recém-chegados do que àqueles que já estão há muitos anos nos EUA. Neste sentido, a igreja seria como uma ponte entre o migrante e a cultura local. Porém, o que eles veem é, ao invés de uma ponte que liga origem e destino, uma ilha sem ponte alguma que facilite a travessia cultural. Uma vez nesta ilha, os migrantes perdem, por assim dizer, o contato com o “continente” e acabam acostumados a um estilo de vida limitado a relacionamentos com a comunidade religiosa de migrantes, apenas. Ressalta-se que integração não significa abrir mão das raízes culturais. A busca pelo equilíbrio entre a manutenção das raízes culturais, a partir do envolvimento com igrejas

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para migrantes, e uma atitude proativa na troca mútua de valores culturais (entre a cultura do migrante e a cultura local) parece ser o ideal buscado. Isto não apenas mantém a possibilidade de um estilo de vida transnacional como também favorece a assimilação. Falando da experiência de brasileiros religiosos na Inglaterra, a irmã Rosita diz que: Manter a sua própria cultura e religião é parte desta cultura [Britânica], e não é oposto à integração. Pelo contrário, é uma necessidade e, além disso, é enriquecedor. Pode até ter um efeito positivo na integração se os migrantes estiverem conscientes de que ser parte da comunidade brasileira pode oferecer à comunidade local enriquecimento mútuo (apud Sheringham, 2013: 85, tradução nossa).

Rosita, contudo, reconhece que, “se um migrante se isola da sociedade de acolhimento, ou se recusa a aprender sobre as realidades da sociedade local, frequentando uma igreja com um culto e pregação em Português - pode representar uma fuga da sociedade e isso teria consequências para a sua integração” (apud Sheringham, 2013: 86).

Considerações Finais Apresentamos neste artigo as três características que compõem a igreja como “pedacinho do Brasil”. Como refúgio cultural, destacamos o imaginário construído entre os migrantes do “melhor do Brasil” e do “país em crise”. Vimos que estes imaginários, quando perpetuados, tendem a criar

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uma situação favorável ao retorno para o Brasil (imaginário do “melhor do Brasil”) ou à permanência nos EUA (imaginário do “país em crise”). Aqueles que permanecem nos EUA encontram na igreja aquilo de que mais sentem falta do Brasil (com exceção da natureza), como, por exemplo, a comida, o idioma, as festas, o acolhimento emocional, etc. Em relação às redes sociais, nosso foco foi tanto nas redes de apoio, quanto nos aspectos transnacionais da vida do migrante religioso brasileiro. Vimos a importância de tais redes para manter o fluxo contínuo e a importância dos aspectos transnacionais no intercâmbio de bens religiosos do Brasil para os EUA. Por fim, vimos as questões de assimilação, como aspectos importantes da igreja brasileira em Austin. Nesta parte, observamos que, diferentemente dos estudos sobre religião e assimilação da primeira onda migratória do início do século XX, que via a religião como parte fundamental no processo de integração do migrante na nova sociedade, esta nova onda pós 1965 não considera este aspecto da religião automaticamente. Antes, cada caso deve ser considerado separadamente. Com tudo isso, à guisa de conclusão, observamos que as igrejas pentecostais brasileiras em Austin podem ser entendidas como um “pedacinho do Brasil”, avivando “o que faz o brasil, Brasil” (DaMatta, 1986) em solo estrangeiro.

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O PROCESSO DE TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA AO SUL DA AMÉRICA DO SUL: RECONSTRUINDO PERCURSOS E NARRATIVAS MÍTICAS Mauro Meirelles

Introdução O que o Uruguai, a Argentina e o Brasil têm de similar e de diferente no que se refere às representações acerca do político e do religioso? Em que medida essas duas instâncias se aproximam e se separam? Em que medida fatores históricos e mítico-narrativos incidem sobre as representações existentes nestes três países? É fundamentalmente na tentativa de responder a essas três questões que nos deteremos neste texto. No que se refere à pesquisa de campo, ela foi realizada nas cidades de Porto Alegre, Buenos Aires e Montevidéu, nos anos de 2007, 2008 e 2009. Entre esses anos, estivemos nestas três capitais platinas e, ao longo de vários meses, acompanhamos as eleições realizadas tanto no Uruguai quanto na Argentina. Neste sentido, a amplitude dos dados obtidos nos três anos de pesquisa implicou na realização de um recorte do material, a partir do qual, buscamos trabalhar sobre dois planos: um que envolve as percepções mais gené207

ricas detectadas no conjunto da população de cada uma destas cidades, e outro onde, a partir da etnografia, procuramos trabalhar as especificidades do campo político e religioso em cada um dos países. Neste sentido, também buscamos problematizar o nosso papel em campo e pensar o momento da nossa saída da invisibilidade, como diria Geertz (1989). Como o momento em que nos tornamos um elemento importante no imaginário nativo, na medida em que havíamos resolvido nos inserir em um partido pequeno ao invés de um grande e que, segundo eles, estávamos escrevendo um livro sobre eles. E não foram poucas as vezes que nos diziam, “anota isso...”, “isso é importante...”, “estamos fazendo história...”, ou ainda, quando nos chamavam para participarmos de eventos com vistas a dar maior legitimidade ao trabalho que estava sendo desenvolvido dentro do partido e mostrar a todos que estavam sendo observados, que chamavam a atenção. Foi assim que, muitas vezes, fomos apresentados aos correligionários de Cláudio Getúlio Vargas, presidente metropolitano, à época, do Partido Social Cristão (PSC). Pensar esse lugar é, portanto, pensar o lugar que ocupávamos e ocupamos no imaginário dos nossos informantes, e como foi importante o fato de interagirmos com eles, de orarmos com eles, no início e no fim das reuniões, quando todos se davam as mãos e faziam uma oração conduzida por Cláudio Getúlio Vargas, então presidente da Seccional Metropolitana do PSC. Ou, ainda, no momento pós-eleitoral de 2008, quando, em uma noite fria, na esquina da Rua Câncio Gomes com a Avenida Farrapos, acompanhamos o resultado final do Tribunal Regional Eleitoral e fomos convocados por Cláudio Getúlio Vargas, sem aviso prévio, para fazermos uma análise dos resultados, do que deu certo e do que deu 208

errado, para os seus correligionários, sem ao menos sermos filiados ao partido. Ou, quando mais adiante fomos convidados a compor sua equipe de trabalho e acompanharmos todo o processo de (re)estruturação do partido com vistas às eleições de 2010. E foi nessa relação de reciprocidade com nossos informantes que adentramos na rede de contatos e interações de Cláudio Getúlio Vargas, delineando novos rumos para a pesquisa a partir de contatos travados com novos informantes a ele ligados, como Luiz Bazerque, da Igreja Batista Renovada de Porto Alegre (BRASA), Olmir Alves, da Igreja Batista de Montevidéu e Isaías Figueiró, da Igreja Encontros de Fé, entre outros. É, portanto, a partir deste lugar privilegiado, destes caminhos vicinais e da rede de contatos, que chegamos a pastores e igrejas, políticos e partidos na Argentina, como veremos no decorrer do presente texto. Já o nosso contato com pais e mães-de-santo argentinos aconteceu, sobretudo, em Porto Alegre na casa da mãe Ieda de Ogum e do pai Cleón de Oxalá, para onde acorriam os argentinos quando da realização de atividades e compromissos religiosos ligados à sua religião. Por isso mesmo, a pesquisa de campo realizada nos dois meses em que estivemos em Buenos Aires foi, fundamentalmente, em torno das redes de afro-religiosos e de evangélicos associadas aos agentes brasileiros. No que se refere especificamente ao Uruguai, onde estivemos por dois meses, entre os dias 28 de setembro e 16 de outubro de 2008 e entre os dias 28 de abril e 28 de maio de 2009, o contato com os pastores evangélicos que lá atuam se deu de forma mais direta, a partir das redes de relações de Cláudio Getúlio Vargas, da Igreja Betel, e de Luiz Bazerque, da Igreja Batista Renovada, ambas sediadas em Porto Alegre. No caso dos afro-brasileiros, acompanhamos, sobre209

tudo, o trabalho desenvolvido pela mãe-de-santo Susana e pelo pai-de-santo Julio Kronberg em Montevidéu, aos quais fomos apresentados pelo doutorando brasileiro e pesquisador naquele país, Daniel Francisco de Bem. Já com relação à Argentina, onde também estivemos por cerca de dois meses, entre os dias 28 de maio e 30 de junho de 2008 e, no ano seguinte, entre os dias 27 de setembro e 4 de outubro de 2009, mantivemos contato com pastores e candidatos evangélicos que lá atuam, mais especificamente, a candidata Anabella Schiaffino, ligada ao movimento Accíon Ciudadana, composto por membros de diversas igrejas e, outros, ligados ao Movimento Socialista de Trabalhadores. O ponto que une as etnografias com os dois segmentos religiosos são as redes interpessoais de pastores e pais-desanto que atuam e interagem nos três países supracitados e a forma como estes se inserem no campo político a partir de diferentes contextos sociopolíticos, ainda mais, no que se refere as suas narrativas míticas. Sobretudo, relativamente à questão que norteia esse estudo, busca-se perceber de que forma, a que tempo e, a partir de quais referenciais, se dá a inserção de diferentes lideranças religiosas no campo político dos três países, em especial, o peso que possui, neste contexto, o contato com redes de pastores e pais-de-santo brasileiros que desenvolvem atividades naqueles países. Observamos, ainda, em que sentido o seu trabalho religioso acaba, também, por socializar entre seus fiéis e os filhos-desanto formas típicas de ser e estar na política, que são referenciadas em histórias e narrativas míticas que remetem aos modelos de organização e estruturação presentes no Brasil, tanto entre os evangélicos quanto entre os afro-brasileiros. Sendo assim, o presente texto está dividido em três partes distintas. A primeira, de natureza teórico-metodológica, 210

onde apresentamos ao leitor os antecedentes da pesquisa e alguns conceitos-chave que utilizaremos no decorrer do texto para o entendimento do objeto da presente pesquisa. Já na segunda parte, de natureza histórica, realizamos uma digressão sobre a forma como, ao longo do tempo, foram sendo tecidas as relações entre o campo religioso e o político nos três países supracitados. A estes dois itens, segue-se outro de natureza etnográfica em que nos ocupamos da realidade de cada um dos três países onde realizamos a pesquisa e da forma como se dão as relações entre o político e o religioso, sobretudo, no que tange às representações e imaginários que se fazem presentes em suas narrativas mítico-político-religiosas.

Marco teórico conceitual A presente pesquisa se insere nos estudos da antropologia da religião e têm como mote de análise as relações que este campo estabelece com o campo político. Seu objeto de análise se situa na imbricação entre os dois campos e se ocupa, especificamente, do modo como diferentes imaginários políticos e religiosos são produzidos e elaborados no interior de diversas matrizes religiosas por ocasião da sua entrada no campo político. Neste sentido, se como apregoa Halbwachs (2006), a memória é formada por experiências e vivências que são para o indivíduo testemunhos vivos de algo que passou, tem-se então, que de alguma forma, esta deverá se fazer presente no quotidiano dos indivíduos que a evocam, ora para corroborar com algo que tendem a ter como certo, ora para questionar certezas que de outra forma estariam dadas. 211

A essa lembrança - testemunho de um tempo passado que se faz presente em nosso pensar como juris defendis da experiência, como senhor da verdade inconteste, que julga os fatos e os coloca em uma teia de sentidos, associando-os a outros referentes, ressemantizando-os e dando-lhes novos significados e interpretações a partir do seu contato com novos excertos do real - damos o nome de memória. A esse “eu” que testemunha a partir daquilo que viu, viveu e experienciou, denominamos de memória individual. Contudo, esse não é o único caminho de que podemos nos servir para “reforçar” ou “enfraquecer” um argumento, uma vez que podemos, a priori, a partir do relato que nos é trazido por outras pessoas através de experiências por elas vividas, e/ou, da existência de um manancial comum de conhecimentos que são anteriores, se pode selecionar qual decisão deve ser tomada. Assim, a essa multiplicidade de vozes que são parte do ser e que servem ao “eu sensível”, que é compartilhado com os diferentes grupos sociais com os quais interage quotidianamente, damos o nome de memória coletiva. Entretanto, as lembranças a que se refere Halbwachs não são esporádicas e atemporais, como pode parecer à primeira vista, uma vez que envolvem, em sua gênese, uma extensa teia de relações e significados que é acionada no momento em que esta nos “salta à mente”. Nesta teia de significados, para usar a terminologia de Geertz (1989), tais lembranças são dotadas de sentido no interior da cultura na qual o indivíduo está inserido, e é através destas relações tecidas por elas que o indivíduo irá enxergar o seu mundo, a partir de esquemas simbólicos que lhe são comuns e que orientam sua práxis quotidiana a partir de algumas afinidades que lhe são eletivas (Weber, 2002). 212

Depreende-se disto, duas considerações importantes para este trabalho. A primeira delas diz respeito à relação “eu-todo”, uma vez que quanto mais distante o sujeito se encontra do grupo de origem, mais difícil fica restaurar em sua totalidade determinadas “entradas mentais” – ou “lembranças” para utilizar a terminologia de Halbwachs – fora da teia de significados que lhe originou e que adota de sentido, ou seja, o “eu” como parte do “todo”. A segunda diz respeito ao cumprimento do caminho inverso, onde, mesmo longe desta memória coletiva original, somos capazes de reproduzir grande parte do manancial de informações disponíveis, mas não sua totalidade. Eis, então, um primeiro pressuposto a ser considerado, de que apesar da memória individual ser parte constituinte da memória coletiva de um grupo, a primeira não detém a totalidade daquela que ajuda a constituir. E disto deriva um segundo pressuposto, que tem seu assento na formulação durkheimiana clássica, a qual postula a relação entre a parte e o todo, ou seja, que o todo não é a simples soma das partes, mas sim, o resultado de um conjunto de relações que são construídas a partir de diferentes redes de significados. Neste sentido, torna-se impossível evitar que esses dois campos, o político e o religioso, mesmo que não estejam diretamente relacionados, não interajam entre si na produção de um “intertexto”, ou, de uma memória que é o resultado das posições que estes dois campos possuem nas redes de significado que subjazem aos diferentes esquemas simbólicos que produzimos a partir das nossas experiências vividas. Importa destacar ainda, que é nessa mesma teia de significados, na qual estão inseridas tanto as representações individuais quanto coletivas, que estas serão dotadas de um sentido latente e imanente e encontrarão assento em nosso imaginário. 213

Se, em primeiro lugar, aceitarmos o exposto por Halbwachs, de que jamais estamos sozinhos, na medida em que trazemos conosco nossas lembranças e memórias, que podem ser, ao mesmo tempo, individuais (ligadas à nossa experiência sensível) e coletivas (ligadas a um dado grupo com o qual convivemos), e, em segundo lugar, que essas lembranças e memórias servem de suporte para a produção e a elaboração de diferentes representações acerca do mundo e de si, na medida em que fornecem tanto ao indivíduo quanto à sociedade um manancial de conhecimento, crenças e valores que lhes são anteriores, então a memória é, por definição, o locus privilegiado sobre o qual construímos as representações. Todavia, muitos são os caminhos pelos quais poderíamos incursionar para entendermos a forma como diferentes pessoas, em diferentes lugares, se colocam no mundo. Neste sentido, optamos pela ideia de imaginário utilizada por André Corten, uma vez que esta nos permite completarmos o círculo de produção/elaboração das representações sociais. Segundo Corten (2006), para além da memória, há todo um mundo a ser descoberto, um mundo de fantasias, mitos e heróis que adentram no sistema através de narrativas e fragmentos que são amarrados aos campos de contingência específicos. Estes campos de contingência, por sua vez, são dados por certo conjunto de representações presentes em um determinado meio social, os quais são amarrados a partir de diferentes significantes. Tais significantes são o que denominamos, a partir de Ernesto Laclau, de pontos nodais. Todavia, não negamos com isto, que haja, no interior de uma mesma sociedade, diferentes representações e formas como a realidade é percebida e trabalhada em função de variantes endógenas e exógenas ao meio social onde deter214

minado imaginário ou apreensão da realidade se faz presente. Porém, importa destacar que entendemos o termo como sendo uma categoria substantiva que pode ser adjetivada e exige um objeto que lhe informe o campo de contingência. Dito de outra forma, quando falamos em imaginário religioso e político, estamos inscrevendo-o sobre um conjunto de práticas sociais que adjetivam, e/ou, qualificam determinada percepção em termos de interesses ou valores diversos, e que este, pode ser ainda, objetivado, acrescendo-se um predicativo como, por exemplo, pentecostal, católico, indigenista, etc. Ainda nesta direção, tem-se que, tais campos de contingência que qualificam e predicam a “categoria substantiva imaginário”, variam em nível de abstração em função do grau de adjetivação e predicação que lhe é imposta a partir de um recorte feito por aquele que dele se ocupa. Existem, assim, no mínimo, dois consensos acerca da forma como diferentes correntes teóricas apreendem a noção de imaginário. A primeira, de cunho mais filosófico, lhe dá um caráter de virtualidade e o enseja em uma relação dicotômica com o real, não sendo ele, portanto, uma simples reprodução do real, mas sim, uma interpretação que temos a partir daquilo que vivemos e experienciamos. Neste sentido, importa destacar a importância que cumpre nessa construção a memória daquilo que passou e das interações que tivemos com outras pessoas e grupos, que nos são externos, mas que nos ajudam, como coloca Halbwachs, ora a corroborar algo que tendemos a ter como certo, ora a questionar certezas que de outra forma estariam dadas. Já a segunda ideia de imaginário atribui a este um caráter eminentemente social, uma fabricação do mundo, seja através da ficção, da própria história das crenças e daquilo que nos é reiterado a todo o momento pelos rituais cívicos 215

e religiosos, pelos símbolos e heróis nacionais, pela música, pela literatura, entre outros tipos de manifestações culturais existentes e aqui não arroladas. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que qualquer tipo de produção histórico-cultural só é capaz de ser percebida, se aqueles que recebem a mensagem detêm receptáculos semânticos capazes de processarem e interpretarem tal informação, qual seja, daquilo que é, ou não, compartilhado e valorizado no âmbito de um determinado grupo social. Neste sentido, importa destacar que no âmbito dos estudos de Antropologia da Religião, em especial no que se refere às relações do religioso com o político, a noção de imaginário - entendido como um conceito substantivo que pode ser adjetivado e predicado - permite-nos perceber uma série de inflexões que se fazem presentes no contexto latino -americano, sobretudo, no que se refere ao papel e lugar que historicamente a religião tem ocupado tanto no Brasil como na Argentina e no Uruguai, como veremos na segunda parte deste texto.

Religião e política no contexto platino: Brasil, Uruguai e Argentina Embora Brasil, Uruguai e Argentina possuam situações muito díspares acerca da forma como o Estado e os partidos políticos se relacionam com as diferentes religiões, seja atual ou historicamente, no mínimo duas recorrências são observadas nos três países. Uma que aponta para a existência de diferentes formas de se relacionar com o político e o religioso em cada um destes países. Outra que revela certa recorrência no que tange à forma como tanto os afro-brasileiros 216

quanto os ligados às igrejas pentecostais e neopentecostais se relacionam com o político e o religioso nas três capitais platinas, a saber: Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires. Ainda nesta direção, se referindo ao campo religioso dos três países, Semán (2006) aponta que há, no Brasil, uma maior diversidade religiosa do que aquela observada nos outros dois países platinos. De fato, dados constantes no censo de 2000, realizado no Brasil, e naqueles compilados pelo CONICET (2008), relativos à Argentina e à Grande Buenos Aires (GBA), assim como em outros, relativos ao Uruguai e a Montevidéu, apresentados pelo Instituto Nacional de Estadística (ENHA 2006), asseguram o acerto da afirmação feita por Semán, como se pode ver na tabela a seguir. Tabela 1: Distribuição percentual das religiões no Brasil, Argentina e Uruguai Religião Brasil Católicos 73,8 Evangélicos Históricos 4,91 Evangélicos Pentecostais 10,4 Outras igrejas evangélicas sem vínculo 0,62 institucional Outras religiosidades evangélicas 0,34 Espírita 1,33 Outras Cristãs 0,91 Umbanda 0,23 Budismo 0,13 Outras religiões orientais 0,09 Candomblé 0,08 Judaísmo 0,05 Outras religiões 0,9 Sem religião 7,36 Sem declaração 0,23 Não determinadas 0,21

POA Argentina BsAs Uruguai MVD 74,4 76,5 69,1 47,1 43,1 4,93 7,38 11,1 8,2 9,0 9,1 0,67 0,22 2,54 0,03 1,71 0,08 0,09 0,18 0,18 0,9 5,86 0,15 0,17

0 2,1

0 1,4

1,2

2,3

11,3 0 0

18 0 0

23,2 0 0 0,6 0 0 0 0,3 0,4 17,2 0 0

23,3 0 0 1 0 0 0 0,7 0,4 23,7 0 0

Fonte: www.ibge.gov.br; ENHA 2006; CONICET 2008 Compilação dos dados: Mauro Meirelles

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Segundo a Tabela 1, o que se observa é que, em termos percentuais, a Argentina é o país que apresenta o maior número de católicos, com 76,5%, seguido do Brasil e do Uruguai, com 73,8% e 47,1%, respectivamente. Contudo, em termos absolutos, o número de católicos é maior no Brasil, dado o contingente populacional de cada um dos três países . No que refere-se ao segmento evangélico – excluindo no caso dos três países, as chamadas outras religiosidades evangélicas, uma vez que não são definidas claramente, tanto do ponto de vista da sua teologia quanto da sua filiação denominacional nos instrumentos de coleta dos dados utilizados nos três países supracitados – os dados apresentados mostram que, em termos percentuais, é no Brasil que se observam os maiores valores (16,03%), aos quais se segue o Uruguai (11,1%) e a Argentina (9%). Contudo, se considerarmos somente os números absolutos de fiéis deste segmento religioso, Uruguai e Argentina trocam de posição, passando este último ao segundo lugar no ranking. Entre os afro-brasileiros, a situação não parece ser muito diferente e segue o observado nos dois segmentos anteriores. Outro dado interessante a se destacar é o fato de que, à exceção de Porto Alegre, nas outras duas capitais platinas, o que observamos é uma pequena redução percentual no número de católicos e um pequeno acréscimo no número de evangélicos no caso de Buenos Aires. Contudo, se considerarmos somente os números absolutos, será, novamente, Buenos Aires a cidade que deterá o maior número absoluto de fiéis católicos e evangélicos, em função da população total de cada uma destas cidades. Posto isto, e dado o atual contexto religioso dos três países no que se refere à expansão das religiões de matriz pentecostal e africana e os fluxos existentes entre eles, o que se observa é um avanço crescente 218

das mesmas, que partem do Brasil em direção aos seus vizinhos latino-americanos, como já observado por Oro (1999), no que tange às religiões de matriz africana e afro-brasileira, e por Meirelles (2009), no que tange aos pentecostais ligados à Igreja Batista Renovada (BRASA) e Deus é Amor (DA). Neste sentido, importa observar a forma como estes diferentes estados nacionais se relacionam com o religioso, na medida em que, no Brasil, a relação entre esses dois campos opera em termos de uma certa compatibilização entre diferentes crenças que conseguem interagir de forma mais ou menos tranquila, ocupando cada uma, o espaço a ela reservado. Movimento este, semelhante ao que observamos no Uruguai, nos dias 28 e 29 de abril de 2009, quando se reuniram no anexo do Senado, em razão do evento promovido pelo Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), as lideranças de quase todos os segmentos religiosos montevideanos que buscaram, nesses dois dias, sistematizarem propostas de redução da intolerância religiosa e fornecerem ao Estado uruguaio algumas diretrizes e valores que permitam a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos. Isto, de certa forma, diverge do que ocorre no caso argentino, em que o Estado se declara constitucionalmente católico, conforme assegura o Artigo 2º da sua Constituição, onde se lê: “El Gobierno Federal sostiene el culto católico apostólico romano”. Disto decorre a necessidade de retomarmos o debate sobre a secularização, malgrado o caráter profundamente polissêmico que tal noção evoca, em função de diferentes escolas teóricas que pressupõem a presença da religião no espaço público como sendo ora uma anormalidade histórica, ora um processo que num momento tende à expansão e, em outro, à retração. Neste sentido, nos filiamos à segunda posição, 219

a qual entende a secularização como um processo que nos permite pensarmos a relação entre religião e política em termos de uma arena pública mobilizada por atores e motivos religiosos, como coloca Semán (2006: 10). Assim, entendida enquanto um processo (Sanchis, 2001), a ideia de secularização envolve, antes de tudo, um conjunto de elementos que vinculam, em diferentes escalas, o político e o religioso. No plano mais amplo, temos a totalidade social e a forma como o político e o religioso se relacionam no âmbito daquilo que comumente chamamos de esfera pública e que, nos dias atuais, tem como ponto de partida principal, a questão da laicidade do Estado. Em um plano intermediário, tal relação constitutiva do social é vista como externa ao seu duplo, de modo que, tanto o religioso quanto o político, no plano ideal, estariam separados e sua incidência sobre o conjunto da vida social estaria ligada à forma como diferentes grupos, portadores de determinados valores a eles relacionados, operam com ele e dele fazem uso enquanto um marco interpretativo do real que conduz/significa a sua ação. É o caso, por exemplo, da entrada de diferentes atores sociais ligados ao campo religioso na esfera pública em razão dos interesses ligados a determinados segmentos religiosos que, neste espaço, tradicionalmente tido como secular, acabam por encantá-lo através de formações discursivas e modos de ser e estar no político tributários a uma identidade religiosa que lhe é anterior (Meirelles, 2009; 2011). Disto, decorre um terceiro movimento que, a partir dessa racionalização e autonomização das esferas política e religiosa, enfraquece os vínculos que os indivíduos possuem com instituições tanto políticas quanto religiosas, a tal pon-

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to que, em ambos os casos, o que se observa é uma recomposição de diferentes crenças e formas de estar no mundo a partir de múltiplos referenciais. O religioso se profaniza deixando cada vez mais de lado as coisas do espírito e aderindo à lógica do mercado, segmentando-se e se tornando especialista na venda/oferecimento de diferentes serviços espirituais. O político, a exemplo do seu duplo, se encanta e é cada vez maior a presença de candidaturas e pessoas que, para além dos interesses de toda a sociedade, transformam o palanque político em púlpito de predicação de valores religiosos, de intolerância e de defesa de interesses ligados ao seu grupo religioso de origem. Isto tudo dá margem para que, nos dias atuais, observemos o surgimento de movimentos políticos que cada vez mais se fundamentam em motivos religiosos do que em propostas políticas de transformação e intervenção na vida social. É o caso, por exemplo, de uma série de movimentos religiosos pentecostais e neopentecostais que adentram a cena pública através da compra de canais de TV, de emissoras de rádio e jornais de grande circulação, e que, mais recentemente, aglutinam-se no interior de diferentes partidos políticos, como é o caso tanto do Partido Social Cristão (PSC) quanto do Partido Republicano Brasileiro (PRB) no Brasil, como constatou Salas (2008). Posto isto, e aceitando-se a proposição interpretativa que é oferecida por Semán (2006) e Pierucci (1998), que hoje chamamos de secularização/dessecularização enquanto um processo não acabado, observamos que tanto no âmbito teórico quanto naquele que emerge da observação da realidade empírica, alguns aspectos relacionados à sua própria ontologia e à forma como sobre ele nos debruçamos, teoricamente, devem ser retidos.

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O primeiro deles é o fato de que esse processo ocorre no tempo e no espaço. No tempo, na medida em que sempre há um momento de onde partimos, de onde começamos a observar. No espaço, na medida em que envolve um contexto social específico e que, desde o surgimento do primeiro Leviatã, já nos é possível circunscrevê-lo a uma determinada área de influência. Da conjunção destes dois aspectos emerge um outro: a singularidade da sua ocorrência. Singularidade na medida em que sua ocorrência está sempre vinculada a um determinado contexto espaço-temporal específico, à história constitutiva de uma nação, às relações existentes entre o Estado e a igreja desde tempos outros, ao lugar que a religião e a política ocupam na vida das pessoas, etc. O segundo é aquele que sentencia o eterno porvir de uma morte anunciada. Finitude que nunca chega por completo, uma vez que, enquanto processo, ele nunca se encerra em si, oscilando entre dois polos distintos, o secular e o não secular. Neste sentido, tal processo estará sempre inacabado, mesmo em contextos nacionais específicos, onde se operou uma separação entre os campos político e religioso. É o caso, por exemplo, dos três países que aqui nos propomos a estudar, os quais, do ponto de vista das teorias da secularização, operaram, a partir de dispositivos constitucionais específicos, uma separação ou aproximação entre o religioso e o político. Contudo, os caminhos pelos quais se operou essa cisão ou aproximação constitucional entre os referidos campos não foram os mesmos e estiveram vinculados a contextos nacionais específicos. E um terceiro elemento, e não menos importante, que vincula esse processo à modernidade e à emergência de um ser humano autonomizado e racional que opera à margem dos dois polos. Um indivíduo que, no âmbito privado, pro222

fessa uma fé e assume posições, de certa forma, incoerentes com o modelo social no qual está inserido, mas que, na cena pública, opera sobre outra lógica, a partir dos operadores e das estruturas estruturadas existentes no campo no qual está inserido, para usar a terminologia empregada por Bourdieu (2007). Neste sentido, deriva do exposto, conforme coloca Semán, que a secularização no campo das instituições políticas e do Estado, nem sempre é acompanhada pela secularização das ideologias políticas e, muito menos, pela secularização dos eleitores, de modo que, no plano individual, estes podem manter certa sensibilidade encantada no plano político, de maneira que, com isso, são mais receptivos a discursos políticos e político-eleitorais em que se mobilizam as “crenças mágicas” ou a incorruptibilidade suposta que assiste aos que, de diversas formas, podem se considerar ou serem considerados “homens de Deus” (Semán, 2006: 20). Ou, ainda, a responder tanto aos apelos que sublinham a santidade do candidato quanto à possibilidade de ele ser metaforizado ou referido diretamente como um “homem de Deus”. Constatação esta que implica em compreendermos que na maioria dos casos, em especial daqueles ligados a um eleitorado mais popular e “não moderno”, existe a presença quase estrutural de uma visão cosmológica que associa o “homem de Deus” à imagem de um bom pai, e/ou mãe de família. Portanto, seria ingenuidade crer que a separação entre Igreja e Estado se dá plenamente, como preconizam as teses laicistas. Disto deriva, também, que precisamos ter sempre em conta que a relação entre o político e o religioso, entendida enquanto um processo, resulta de uma relação de forças que operam no interior do Estado onde se fazem presentes, no caso do Brasil, Uruguai e Argentina, pelo menos três movi223

mentos. Na Argentina, o de se esvaziar o político de qualquer conteúdo ou valor religioso ligado ao catolicismo, tido até pouco tempo, como o elemento constituinte da identidade argentina (Semán; Martin, 2006). No Uruguai, o de levar para o político elementos e bandeiras de luta provenientes do campo religioso, de se misturar ao político e adentrar na cena pública sem, contudo, violar a laicidade. E no Brasil, o de uma crescente confessionalização do político, onde cresce cada vez mais o número de candidatos ligados as mais diferentes denominações religiosas, ao mesmo tempo em que o religioso aparece como co-constituinte do político, desde os tempos do Império. É de olho nestas diferenças que devemos destacar no mínimo três características que, de certa forma, diferenciam a forma como o político e o religioso se relacionam nestes três países. A primeira delas se refere à força que essas diferentes identidades políticas assumem em cada um destes países, na conformação de um padrão de comportamento político mais consistente no Uruguai e na Argentina do que no Brasil. No caso da Argentina, o que se observa é uma imposição de valores, oriundos do catolicismo, tanto aos votantes como aos dirigentes políticos de modo que, tal imposição se dá fora do campo político e do momento eleitoral em específico. Já no Uruguai, observa-se algo semelhante ao já constatado na Argentina, de forma que, entre os uruguaios, o que se observa é a existência de identidades políticas bem estáveis que se caracterizam por distinções políticas e ideológicas, explicitamente laicas, que demarcam de forma clara, uma oposição entre um projeto iluminista radical e outro ligado a valores religiosos católicos. No Brasil, por sua vez, a situação parece ser um pouco diferente e é preciso considerar dois fatores em particular. O 224

primeiro de que há, no Brasil, uma influência muito maior do que Semán denomina de confessionalização política. E, em segundo lugar, que tal particularidade é fruto muito mais de um sistema eleitoral menos exigente do que de condicionantes históricos específicos, uma vez que, em termos comparativos, a quantidade de votos exigida para a eleição de um senador, deputado federal, deputado estadual ou vereador, é muito menor e pouco depende do seu grau de articulação política.

Para além das fronteiras nacionais: novos mundos, velhos paradigmas A partir do exposto e visando sistematizar algumas constatações feitas nos três países estudados, apontamos a seguir, algumas considerações gerais acerca da forma como diferentes grupos religiosos se colocam na cena pública e na política, em função dos diferentes marcos interpretativos do real, dos diferentes percursos e narrativas míticas. Em primeiro lugar, relativamente aos segmentos evangélicos, há no mínimo três posições assumidas nos três países em relação à forma como o político e o religioso são percebidos e trabalhados: a) uma que concebe política e religião como instâncias separadas, cabendo-lhes se ocuparem somente do religioso. Situam-se, assim, fora das coisas do mundo e, consequentemente, da política; b) outra, que entende existir uma proximidade entre as duas instâncias. Colocam-se, consequentemente, como agentes proativos que entram na política em função dos interesses específicos da sua instituição, e/ou segmento; e, c) uma terceira, situada 225

num ponto médio entre a primeira e a segunda, para a qual o político e o religioso podem se relacionar e interagir, desde que o púlpito e o palanque não se misturem, e/ou, sejam confundidos no que tange às finalidades a que cada um se destina. Em segundo lugar que, apesar das especificidades históricas que condicionaram tanto a consolidação do campo evangélico quanto o afro-brasileiro, há nas três cidades estudadas algumas recorrências. Uma delas refere-se aos contatos que diferentes pastores e pais-de-santo ensaiaram ao longo dos últimos anos. É o caso, por exemplo, da entrada de Anabella Schiaffino na política como candidata ao parlamento argentino a partir do contato que teve com o missionário R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, conforme relatado em entrevista realizada, ou da forma como, tanto a Deus é Amor quanto a Igreja Universal, se colocam na esfera pública, seguindo, para além das suas fronteiras nacionais de origem, as diretrizes da matriz brasileira, tanto no caso uruguaio quanto argentino. No campo afro-religioso uruguaio, é exemplar o caso da mãe Susana de Andrade, que atua ativamente no âmbito político institucional montevideano, visando à defesa da sua religião contra a intolerância religiosa, expressa especialmente, pela Igreja Universal, seguindo, assim, o procedimento que é levado a efeito no Brasil pelo mesmo grupo religioso contra a mesma igreja evangélica. Porém, as recorrências podem ser parciais, como se verifica quando se observa como ocorreu à passagem do neopentecostalismo mass-media, para o que muitos autores denominam de pós-denominacionalismo nos países mencionados. Igualmente, tanto na Argentina quanto no Uruguai, a pre-

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sença do segmento evangélico na mídia televisiva e radiofônica, no contexto de um neopentecostalismo mass-media, foi muito menor do que no Brasil, apesar de algumas igrejas possuírem, nestes dois países, alguns programas, e/ou emissoras de sinal televisivo e radiofônico. Por outro lado, dada à pluralidade dos novos ministérios, apostolados, comunidades e denominações de pequeno porte que escapam ao jugo das megaigrejas, tornou-se difícil, pelo menos no caso argentino, que certa unidade de posicionamento fosse construída e que, estes, conseguissem lidar com as próprias tensões inerentes ao campo e à forma como o segmento evangélico têm crescido nos últimos anos. Já no Uruguai, apesar de os evangélicos estarem menos inseridos no que tange à emergência de um campo religioso pós-denominacional, estes parecem deter certa unidade de posição. Todavia, tal unidade se mostra muito mais fundada em redes interpessoais de pastores do que em entidades representativas deste segmento, uma vez que a tendência à unidade não se restringe ao campo evangélico, devido ao lugar menor e desqualificado que historicamente se reservou ao religioso, como é o caso, por exemplo, do evento realizado pelo Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), no anexo do Senado, em Montevidéu, nos dias 28 e 29 de abril de 2009. Quanto às dinâmicas de expansão religiosa (evangélica e afro) nos países estudados, nota-se duas tendências: a internacionalização e a transnacionalização, ambas vinculadas a modelos organizacionais distintos, um do tipo empresarial (entre elas: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Deus é Amor, etc.), e outro do tipo congregacional, que envolve ministérios que contam

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no máximo com 20.000 membros (entre elas: Igreja Batista Renovada, Encontros de Fé, Igreja MANAIM, etc.). No primeiro modelo, o empresarial, o que prevalece é uma estrutura fortemente hierarquizada com pouco espaço para o trabalho pastoral autônomo, de modo que, neste modelo, grande parte do poder de decisão e de gestão econômica da empresa religiosa já está dada, a priori, a partir do riso dissimulado dos bispos, como diria Bourdieu (1996). Deste modo, não estaríamos falando em transnacionalização, mas sim, de uma internacionalização do seu mercado de fiéis e uma adaptação do seu produto à realidade local, uma vez que há um fluxo unidirecional de informações que muito pouco interage e se deixa influenciar por ruídos externos diversos daqueles que provêm de sua matriz denominacional. Já no caso do modelo congregacional, temos uma maior prevalência dos interesses da comunidade e certa especialização no que tange aos serviços espirituais oferecidos por estas congregações, de modo que, é muito comum o trânsito de fiéis entre essas diferentes religiões especializadas com vistas à resolução de problemas específicos. E, de fato, tal reconhecimento deste outro permite que indivíduos e pessoas de grande prestígio no meio evangélico transitem no interior destas comunidades através dos megaeventos destinados a esse público e/ou a suas lideranças. Todavia, nestes casos, prevalecem as redes interpessoais e os contatos que suas lideranças possuem com outros ministérios e/ou congregações, atendendo ao desejo que elas possuem de trocar experiências e renovar, no plano imagético-simbólico-ritual, vivências e experiências religiosas eficazes. E, deste modo, dada a complexidade das relações, interações e intercâmbios existentes no interior do universo

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pesquisado, composto destas três metrópoles situadas ao Sul da América Latina, de uma maneira geral, é possível perceber semelhanças e diferenças entre os distintos segmentos religiosos e as formas pelas quais eles interagem com o campo político em específico. Assim, é evidente, por um lado, que as especificidades históricas de cada região e país não possam ser desprezadas. Mas, por outro lado, a densidade histórica comum, sedimentada ao longo das décadas e séculos de colonização cristã ibero-americana, tem o seu peso na conformação de imaginários compartilhados na região, especialmente no que diz respeito ao lugar ocupado pela religião na construção da pessoa e na organização geral da sociedade. Além disso, as distinções dos campos, religioso e político, que implicam na separação entre Igreja e Estado não se detêm na região estudada, a mesma pertinência encontrada em outras regiões do mundo, tidas como secularizadas ou laicizadas. E, portanto, a partir deste ponto de vista em específico, que encerramos o presente texto apresentado com algumas considerações.

Considerações Finais Do ponto de vista das representações e imaginários que se fazem presentes nos três segmentos religiosos estudados, em todos eles, temos a figura de um outro ao qual se contrapõem em diferentes momentos e de diferentes maneiras. Os católicos, contra determinadas posturas assumidas pelo Estado, tais como aquelas relativas à legalização do aborto ou ao uso de métodos contraceptivos não naturais. Os evangélicos, além de algumas posições comuns aos católicos, também 229

colocam na linha de frente das suas bandeiras a luta contra a corrupção e às mazelas sociais, sem esquecer, é claro, da sua histórica oposição às religiões afro-brasileiras. Os afro-brasileiros, contra os pentecostais e o uso que fazem da sua cosmogonia nos cultos e pregações, além de assumirem a frente contra o Estado no que tange aos direitos das minorias. Outro aspecto a ser tratado se refere aos imaginários que se fazem presentes entre católicos, evangélicos e afro-brasileiros, relativos tanto ao campo político quanto ao campo religioso. No caso dos primeiros, o que se observa é um modo de perceber o mundo que transcende ao próprio indivíduo e recai sobre o ethos secular da instituição, de modo que, diferentemente dos evangélicos e dos afro-brasileiros, o catolicismo não é uma religião que se caracteriza por uma postura imanente diante do mundo, mas sim, de um eterno porvir. Já no que se refere aos outros dois segmentos supracitados, ambos se caracterizam por serem religiões imanentes, do aqui e agora, que privilegiam a atenção efetiva às situações concretas vividas pelas pessoas. Do ponto de vista prático, tal forma de perceber o mundo incide de forma diferente na maneira como estes se colocam tanto no campo religioso quanto no campo político. Os católicos, à exceção dos carismáticos, relegam ao eterno porvir a busca de graças ou milagres que são obtidos nesta ou em outra vida, fazendo com que ser católico remeta a uma relação muito mais frouxa com a própria religião e com o divino. Tal constatação implica na construção de uma identidade religiosa muito mais fluída e porosa que permite múltiplos acoplamentos em função de diferentes graus de pertencimento religioso. Assim sendo, o que se constata no campo político é que, dada essa relação de pertencimento e

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identidade caracterizada por vínculos mais tênues, em momentos eleitorais, onde essa identidade é acionada por algum candidato, é bem menor a incidência dessa matriz de pertencimento e identidade, se comparada com outras religiões, em especial no que se refere a determinadas igrejas evangélicas. Quanto aos evangélicos, exceto a parte significativa do segmento histórico, seu imaginário e construção identitária se fazem sempre presentes num ideário de luta contra as forças do mal. No campo religioso, tais vínculos se mostram bem mais fortes e a exigência de contrapartidas por parte do fiel é bem maior do que aquela exigida pelo catolicismo, dado seu caráter imanente de ser uma religião que se caracteriza por uma relação direta com o divino, expressa na figura do Espírito Santo. Neste sentido, ser evangélico exige dos fiéis um grau maior de vinculação com o religioso, na medida em que a frequência aos cultos é exigida como contrapartida para a obtenção de graças divinas e/ou a resolução de problemas. Consequentemente, no âmbito do político, tal identidade e vínculo fortemente construído com a instituição religiosa se fazem presentes com maior força no momento em que candidatos ligados a diferentes congregações e/ou denominações, acionam seu pertencimento religioso como forma de angariar votos entre os fiéis. Já no tocante aos afro-brasileiros, o que se observa é uma tendência à construção de um imaginário político e religioso, onde a descendência e a filiação-de-santo se misturam com bandeiras de luta e disputas locais, as quais se sobrepõem tanto no que se refere ao campo político quanto ao religioso. Do ponto de vista prático, o que se observa nos momentos eleitorais é que, devido à pulverização de terreiros e associações representativas ligadas a diferentes pais-de-san-

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to, pouca é a incidência dessa matriz identitária enquanto um componente decisivo na obtenção de votos ligados a esse segmento específico, uma vez que estes tendem a se agruparem em torno da sua descendência-de-santo, como já exposto por Meirelles (2008; 2010). Destes esquemas simbólicos, emerge um conjunto de representações comuns a esses segmentos que lhes fornecem um modus operandi: a sua prática quotidiana que separa as coisas do mundo das coisas de Deus, a qual conforma sua atuação e sua forma de estar no mundo no tempo presente. Tributária a tais representações, ainda temos a noção de imaginário e a forma como são construídos os esquemas imagéticos que ganham vida a partir da realidade e daquilo que se espera do tempo presente – o porvir. Tal relação entre presente, passado e futuro, ou entre aquilo que é lembrado, representado, narrado e imaginado, conforma uma matriz cultural comum que é socializada via redes de pastores e pais-de-santo, ou, ainda, via documentos e encontros episcopais, entre católicos e em suas redes sociorreligiosas. Desta forma, dadas as relações que essas redes produzem e o modo como formas de ser e estar no político transitam entre os diferentes meios sociorreligiosos nos países do Cone Sul, partilhamos com Ángel Rama a constatação da existência de uma matriz cultural (cis)platina que compartilha, por meio da construção de diferentes campos de contingência do real, diferentes esquemas simbólicos e culturais, de maneira que, em tempos de globalização e de transnacionalização religiosa, podemos dizer que é cada vez mais comum que determinados esquemas simbólicos sejam compartilhados por diferentes pessoas em diferentes lugares.

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Contudo, a força que esses esquemas simbólicos exercerão – essa matriz compartilhada de conhecimentos, narrativas e práticas religiosas – dependerá dos receptáculos existentes na cultura local e de quão densa é a rede de significados formada por memórias, representações e imaginários que se fazem presentes nas suas narrativas e são partilhadas no interior dessas redes de pessoas que interagem em eventos destinados à troca de experiências e/ou pessoas que nessas redes transitam, socializando novas formas de se relacionarem, tanto com o campo político quanto com o campo religioso.

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MINHA LÍNGUA, MINHA FÉ, MINHA IGREJA: SER CATÓLICO ESTRANGEIRO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA HOLANDA Mísia Lins Reesink

Introdução A migração religiosa transnacional de fiéis católicos tem sido pouco estudada na literatura antropológica, comparativamente ao volume já grande de estudos relacionados ao movimento pentecostal. Este capítulo pretende contribuir, portanto, para avançar nas discussões etnográficas sobre sujeitos católicos em situação de imigração transnacional57. O campo de pesquisa é o de comunidades58 católicas A pesquisa de campo teve até agora duas fases: a primeira se refere às iniciais incursões ao campo entre dez/2009 e jan/2010, e entre dez/2010 e jan/2011. A segunda fase desenvolveu-se no período de janeiro a dezembro de 2012, contando agora com a uma bolsa posdoc da Capes (desenvolvido na VU-Amsterdam, dentro do Programa de Cooperação Internacional Paulo Freire, entre UFPE e VU-Amsterdam) e com financiamento de pesquisa do CNPq/Edital Universal; uma terceira fase será realizada entre dezembro de 2014 e janeiro de 2015. Agradeço a Andrea D. Martins por ter me introduzido no campo e por compartilhar dados de seu campo comigo. Agradeço ainda o apoio e as críticas de E. Reesink. 58 Comunidade de língua portuguesa, é o termo nativo. São três essas comunidade (Haia, Rotterdam e Amsterdam), porém, os dados para este artigo serão prioridariamente os da de Haia, e secundariamente da de Rotterdam, ficando os dados que se referem a de Amsterdam para outra oportunidade. 57

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de imigrantes de língua portuguesa na Holanda, que se reúnem em três paróquias da igreja católica naquele país: em Amsterdam, Haia (Den Haag) e Rotterdam. Essas comunidades são compostas, etnicamente de maneira desigual, por sujeitos oriundos de Portugal, Brasil, e dos países africanos que compõem os PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa): Cabo-Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe59. A composição étnica dessas comunidades muda de paróquia para paróquia, em Amsterdam há uma maioria brasileira; em Rotterdam uma maioria cabo-verdiana e em Haia há uma ligeira maioria portuguesa. Nesse contexto, questões como integração e autonomia das comunidades em relação à instituição e a sociedade envolvente estão na ordem do dia; assim como as tensões internas relativas tanto às práticas católicas diferenciadas, quando a pergunta que algumas dessas comunidades se fazem de como manter e reproduzir essa comunidade no contexto de imigração. Neste trabalho, o meu objetivo particular é o de refletir sobre as interconexões (possíveis) entre Holanda, imigrantes de língua portuguesa (especialmente africanos), migração e religião católica. Para isso, na primeira parte do texto, e tendo em vista o tema migração, discutirei brevemente as minhas opções conceituais na análise deste fenômeno, em

59 Segundo a Secretaria Central de Estatística (CBS) da Holanda, havia em 2011, mais de 20 mil imigrantes portugueses; pouco mais de 18 mil brasileiros. Entre os oriundos dos PALOP, por ordem de maior para menor número de imigrantes: Cabo-Verde 21.210; Angola 8.849; Moçambique 862; Guiné-Bissau 367 e São Tomé e Príncipe 267. Para uma discussão detalhada sobre a questão da imigração na Holanda ver M. Reesink (2014).

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que opto pelo uso do termo migração60 (designação geral do fenômeno) e seus derivados e classificadores: imigração, emigração, transnacional, refugiados/asielzoekers (usos específicos). Na segunda parte, adotarei um ponto de vista mais etnográfico para considerar as comunidades católicas de língua portuguesa na Holanda e os imigrantes oriundos do PALOP. Na última parte, busco refletir sobre o que mais me interessa etnograficamente: as interconexões entre situação de migração, a fé católica e a língua portuguesa, tomando como ponto de análise a trajetória de duas mulheres, uma angolana e outra guineense.

Sobre os conceitos61 Parece necessário, nos trabalhos sobre migração, de alguma forma deixar claro quais os conceitos, e seus sentidos, aplicados na reflexão sobre o fenômeno, tanto mais necessário que se trata de um campo de pesquisa que produz facilmente polissemia. Nesse momento da minha pesquisa e análise, portanto, tendo a ser conservadora na escolha dos termos, no sentido em que os utilizo e nas suas aplicações. Assim, uso o termo migração para a designação geral do fenômeno, e seus derivados e classificadores para designações específicas. Migração aqui é entendida na sua acepção clássica para designar os fenômenos mais gerais de desloO outro termo concorrente seria “diáspora”. Para minha crítica ao uso desse termo como conceito analítico, ver M. Reesink (2014). 61 Nessa parte, apresento um resumo das discussões elaboradas em M. Reesink (2014). 60

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camentos humanos (temporários, permanentes, alternados, rotativos). Para tratar dos aspectos específicos, adoto a seguinte terminologia: imigração/imigrante do ponto de vista da sociedade de acolhimento e emigração/emigrante do ponto de vista do lugar de origem; migração local e migração internacional, do ponto de vista das fronteiras nacionais; imigrantes de primeira e de segunda geração, distinção importante para melhor compreender a dinâmica da migração na sociedade de acolhimento. Levo em conta ainda as classificações nativas, como a diferenciação holandesa já citada entre asielzoekers e imigrantes, e analítico-etnográficas, como tipos-ideais de imigração que elaborei a partir das minhas observações etnográficas: a) “modelo português-caboverdiano”, diz respeito a aparentemente clássica migração coletiva, através de redes de parentesco ou vizinhança e que tendem a “reproduzir” a comunidade de origem na localidade de destino, fechada e com pouca inclinação à integração com a sociedade hospedeira; nesse modelo, há uma tendência a um baixo índice de casamentos interétnicos, ao menos entre os da primeira geração; b) “modelo brasileiro”: referente à migração individualizada, com característica crescentemente feminina, baseada, sobretudo, em casamento entre imigrantes do sexo feminino e holandeses, parecendo ser esse o caso típico da migração brasileira à Europa (Piscitelli, 2009). Por fim, gostaria de me deter sobre o uso do termo “imigração transnacional”, que em menor medida, tendo a adotar. Apesar de, no meu ponto de vista particular, entender que a idéia de fluxos (em diversos sentidos62), mobilidade e Outra redundância que parece necessária, mesmo se a idéia de fluxos - no plural - implica diferentes tipos, direções e dinâmicas desses fluxos, parece que se tende a conceber um sentido único desses fluxos. 62

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trocas é intrínseca ao fenômeno de migração - quer local ou internacional - parece que o adjetivo transnacional funciona bem, ou mesmo se impõe, na contemporaneidade para explicitar esse caráter de flexibilidade, trocas, fluxos diversos dos fenômenos migratórios internacionais, especialmente, quando se procura entender a dinâmica dos fenômenos religiosos nesse contexto. Como já observaram diversos autores, contudo, o conceito de transnacionalismo, e conseqüentemente de transnacionalismo religioso, é bastante polissêmico e problemático, em particular, por ser difícil a sua elaboração de um ponto de vista mais consensual (p. ex. Oro, 2004, Baia, 1999, Levitt, 2003, Theije, 2008; e, especialmente, Levitt e Jaworsky, 2007, Cadge e Ecklund, 2007). Nesse sentido, e como já discutiu Theije (2008), é Levitt quem parece fornecer uma definição mais adequada sobre migração religiosa transnacional. Assim, Levitt (2003) faz uma distinção entre: a) religião transnacional - que estaria relacionada à dimensão institucional de religiões de vocação global (como o catolicismo), mas que não teria relação direta com migração; e b) práticas religiosas de migrantes transnacionais, adotando aqui uma perspectiva mais (trans)culturalista e com implicações etnográficas; sem com isso implicar que não haveria interconexões entre essas duas esferas. Como salienta Theije (2008), a distinção é uma questão de foco: mais macrossociológico ou mais microssociológico. Fundamental na elaboração de Levitt é a sua concepção de social remittances, em que (Levitt 1998: 76) “[s]ocial remittances are the ideas, practices, identities, and social capital that flow from receiving to sending-country communities”. Entretanto, e como já notou Baia (1999), há uma tendência nessa abordagem a privilegiar a dimensão vertical do fenômeno, o que acentuaria certo re-

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forço na manutenção de identidades (religiosas e/ou comunitárias). Importante, assim, é ampliar o campo de observação adotando também uma perspectiva mais horizontal, em que as transformações e os fluxos podem produzir modelos com diferentes níveis de integração à sociedade acolhedora ou mesmo na construção de identificações63 ou comunidades64 supra-étnicas65. No que se refere aos fenômenos religiosos, portanto, trabalho com a idéia de religião em contexto de migração transnacional, procurando assim melhor compreender a dinâmica entre dinâmicas verticais e horizontais, provisoriamente adotando o termo “transnacional” como um qualificador com função heurística.

Aqui adoto a abordagem de Brubaker e Cooper (2000) de pensar “identidade” como categoria da prática, tendo como colorário a adoção da concepção de “identificação”. Acredito, assim, que “identificação” ao mesmo tempo em que explora dimensões políticas, afetivas e de pertencimento, esvaziando uma possível condição essencialista (ou primordialista) que a noção de “identidade” agrega - independente das vontades dos cientistas sociais - acentua o seu aspecto de transitoriedade, mobilidade, diversidade e de inacabado, o que se revela muito mais interessante para refletir o contexto etnográfico de religião e práticas religiosas em contextos de imigração transnacional. 64 Estou aqui bastante consciente da mise-en-garde de Olwig (2009) sobre “comunidades migrantes”, em que há o perigo de se tomar essas comunidades como auto-evidentes ou bem estabelecidas. Segundo a autora, comunidades devem ser demonstradas etnograficamente, sendo as performances rituais locais privilegiados para compreender as diferentes densidades de pertencimento comunitário e os possíveis limites que demarcam diferentemente esses níveis de pertencimento, e conseqüentemente, de comunitarismo. 65 Refiro-me a comunidades formadas a partir de diferentes etnias, as quais do ponto de vista interno da comunidade tem relações inter-étnicas, e que do ponto de vista da sociedade hospedeira conseguem se articular de maneira supra-étnica. 63

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Comunidades Católicas de Língua Portuguesa Com a encíclica papal Exsul Família, publicada por Pio XII em 1952 - que sustenta o direito de migrar; a encíclica papal Mater et Magistra, publicada por João XXIII em 1961 que reafirma o direito de emigração dos migrantes; e a carta apostólica Pastoralis Migration Cura, publicada por Paulo VI em 1969, como chamamento para a atuação e cuidados pastorais entre migrantes, entre outros documentos, o Vaticano definiu - progressivamente e fortemente - os processos de mobilidade humana (migração) como uma de suas prioridades e preocupações. Nesse sentido, a Igreja Católica Holandesa, que desde a década de 1920 já se inquietava com os católicos imigrantes, vai paulatinamente reforçando essa sua preocupação em direção a criação de pastorais de migração, na década de 1960; isto se firmando com a fundação do Nederlandse Katholieke Migratie Stichting, em 1965, e se fortalecendo com a criação, em 1975, da Cura Migratorium e do Allochtonen Zielzorg (Van Oers, 2001). Atendendo as demandas dos imigrantes que desejavam ter missas em sua própria língua, houve a implementação, então, de paróquias que congregam comunidades imigrantes, e que estavam sob a jurisdição da Cura Migratorium66. A posição oficial do Vaticano, desde 1969, é que as paróquias de imigrantes sejam formadas a partir da língua em comum, e não a partir da origem étnica (Laarman, 2007), sendo na Holanda as paróquias de língua espanhola e portuguesa, respectivamente, as que congregam o maior número de integrantes. No que se refere às paróquias lusófonas, na prática, em princípio estas eram marcadamente portuguesas, e a medida que migrantes das ex-colônias portuguesas

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foram migrando também para a Holanda, os católicos portugueses tiveram que se submeter, de um lado, a demanda desses novos migrantes; de outro as decisões da hierarquia católica em aplicar na Europa o critério da língua para a constituição de uma paróquia de imigrante, submetendo as diferenças étnicas ao mesmo tempo à unidade católica e ao comunitarismo linguístico67. Segundo Laarman (2007) e Martins (2012), a Igreja Católica Holandesa decidiu extinguir a Cura Migratorium e inserir as paróquias imigrantes, a partir de janeiro de 2005, nas paróquias holandesas regulares. Isto significou para a 66

Paralelamente a movimentação holandesa, e dentro do espírito maior da Igreja Católica em geral, a Igreja Católica Portuguesa funda, em 1962, a Obra Católica Portuguesa de Migração (OCPM), organismo executivo da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana (Conferência Episcopal Portuguesa), que tinha como preocupação prioritária apoio aos migrantes portugueses em outros países, mas também aos migrantes de outras nacionalidades em Portugal A OCPM, a partir de várias demandas de imigrantes não portugueses, mas falantes de português, ampliou os seus objetivos no apoio para migrantes lusófonos no estrangeiro; entretanto, essa ampliação se dá de forma ambígua e, em certo sentido, reticente, dependendo e muito da atuação das paróquias de imigrantes lusófonos junto à própria OCPM, que se esforçam em ampliar e transformar a OCPM em uma organização não de imigrantes portugueses, mas de falantes de língua portuguesa. A OCPM está institucionalmente ligada a Comissão Episcopal da Mobilidade Humana, da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), mas também está filiada as seguintes organizações: Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes (Vaticano), Comissão Católica Internacional de Migrações (Suíça), Conselho das Conferências Episcopais Européias (CCEE). 67 À semelhança do que acontece com os imigrantes católicos de diferentes países da América Latina nos EUA, que são “transformados” em latinos pela igreja (Baia, 1999). Entretanto, até onde pude observar, essa ação da igreja na instituição de comunidade supra-étnicas parece menos conflituoso com relação aos imigrantes lusófonos na Holanda do que o descrito por Baia para o caso dos “latinos” nos EUA. 66

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paróquia lusófona de Haia a sua inserção na Paróquia de Sint Willibrord - que conta ainda com a francesa, surinamesa e inglesa. Todas essas deixam de funcionar como paróquias e passam a ser comunidades, ou “capelas” da Matriz de Sint Willibrord68. No caso da de Rotterdam, esta conseguiu guardar o caráter especial de “paróquia pessoal”, com o nome de Migrante Parochie Onze Lieve Vrouw van de Vrede (Paróquia de Migrantes Nossa Senhora da Paz), ou simplesmente Migrante Parochie voor Portugeessprekenden (Paróquia Migrante para Falantes de Português. Em termos de jurisdição, as paróquias de Haia e Rotterdam pertencem a Diocese de Rotterdam, e são submetidas, portanto, as decisões da instituição católica (Martins, 2009). A paróquia de Rotterdam, segundo o que é contato pelos seus próprios integrantes, em um de seus folhetos escrito em holandês e português, teve a seguinte origem: Na região de Roterdão - Rijnmond existe um grande grupo de católicos de língua e expressão portuguesa, na sua maioria de origem cabo-verdiana. Desde a sua chegada à Holanda procuraram uma igreja, de forma a poderem professar a sua profunda fé. Em meados dos anos 70 este grupo juntou-se a uma paróquia para celebrar a eucaristia. E foi assim que começou a paróquia de emigrantes em Roterdão (Folder da paróquia de migrantes de Rotterdam).

Primeiramente dominada pelos portugueses, não foi sem poucas tensões que a comunidade cabo-verdiana passou a ter A paróquia de Sint Willibrord situa-se em um bairro de baixa renda de Haia, com 90% de sua população de imigrantes, composto majoritariamente de muçulmanos, seguidos de cristãos e de hindus. 68

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o controle da paróquia (Laarman, 2007). Hoje a comissão paroquial é formada apenas pelo padre holandês e por cabo-verdianos; além disso, é perceptível nas suas missas que a maioria dos presentes é cabo-verdiana69, constituindo-se esta paróquia quase como se definido a partir dessa origem étnica. O impedimento da sua transformação completa em paróquia étnica é derivado, de um lado, da manutenção do português; do outro, das regras da própria instituição católica, o que implica em dizer que, se houver no futuro grandes transformações na comunidade - quer pela integração na sociedade holandesa, quer pela mudança da origem dos imigrantes, o “domínio” cabo-verdiano se dissolve sem dificuldades estruturais. É em Rotterdam ainda que as missas são as mais concorridas, ocorrendo duas por domingo (10 e 12 horas), com cerca de 300 participantes cada, e mais quatro celebrações de eucaristia durante a semana. Apesar da tendência observada por Laarman (2007) e Beijers (2005) de uma introdução cada vez maior do crioulo em substituição do português durante a missa, pela minha observação, esta tendência não se confirmou, bem ao contrário. Durante a missa, a língua hegemônica e priorizada é o português, seguida pelo holandês. As falas livres durante esse ritual são em português, enquanto que toda leitura de textos bíblicos é feita, primeiramente, em português e depois em holandês, sendo concluído com “Palavra do Senhor!” pelo dirigente, e respondido com “Glória a Deus” pelo grupo, em português. A pregação do padre é feita em português, seguida por um resumo em O que não é de se estranhar sendo os caboverdianos em Rotterdam mais de 18 mil pessoas. Enquanto os portugueses são maioria em Amsterdam, assim como os brasileiros (CBS, 2011). 69

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holandês. Os cânticos são: em português, nos momentos específicos dedicados às músicas; em crioulo, quando do momento do recolhimento das ofertas e da comunhão, sendo estes os únicos momentos em que o crioulo é usado na missa. Ainda o português e tradução em holandês surge quando da leitura do salmo responsorial, entretanto, quando da leitura em holandês, a congregação responde em português70. Nos momentos cruciais da missa: eucaristia, Pai Nosso, o ritual do desejar-se a paz e a benção final, apenas o português é usado. Parece-me haver aqui uma hierarquização clara das línguas, que funcionam como marcadores importantes da paróquia enquanto supra-étnica (português) e, ao mesmo tempo étnico (português/crioulo), e ainda a “soberania” da instituição. Para além disso, indica os processos de assimilação das segundas e terceiras gerações à sociedade maior (holandês), em que isto poderia por em risco a “comunidade de fala portuguesa”, se não houvesse uma renovação constante de imigrantes de primeira geração. Em comparação à Rotterdam, a comunidade de língua portuguesa em Haia é bem menor (Martins, 2012), sendo uma das suas preocupações constantes a sua permanência e continuidade. Isto reaparece regularmente nas discussões das suas assembléias e nas pregações dos padres, com chamamentos para uma maior implicação na comunidade e com discussões de estratégias da sua reprodução. Atualmente a comunidade é majoritariamente portuguesa, sendo os brasiSegundo os informantes, há traduções em holandês porque crianças e adolescentes tendem a só entender ou falar o holandês. Nesse sentido, creio que quando do salmo responsarial em holandês esses respondam também nesta língua, mas eu particulamente só entendi o português nesse momento. 70

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leiros o segundo maior grupo71; uma minoria bastante ativa se constitui de angolanos, guineenses e cabo-verdianos, que em parte costumam também frequentar missas em Rotterdam. Em Haia, são três missas que ocorrem por mês, a partir do segundo domingo de cada mês, as 11 horas. Normalmente após o encerramento da primeira e terceira missa, os congregados costumam se reunir na sacristia para “socializar” com café, chá, bolos e biscoitos portugueses. É ainda nesse local, e após as missas que também ocorrem assembleias ou reuniões. A comunidade de língua portuguesa nessa paróquia teve início nos anos sessenta com o começo da migração portuguesa para a Holanda, dentro do contexto de atender as demandas e as necessidades dos migrantes católicos. Como descreve Martins (Martins 2012: 4): Assim, no mês de dezembro de 1965, formou-se a “comunidade católica portuguesa” que, ao longo dos 47 anos de sua existência, mudou várias vezes de local para dar continuidade às missas e atividades em português. Passaram por ela diversos padres que presidiram a comunidade. Houve também períodos sem a presença de um pároco, na qual a comunidade esteve sob a liderança da comissão paroquial ou de um leigo coordenador da pastoral, funcionário do órgão responsável pelo cuidado das igrejas imigrantes na Holanda.

71 Na paróquia de Amsterdam é onde se encontra o maior número de brasileiros, sendo logicamente aí que se encontra a sua maior comunidade. Dois terços do seus membros são brasileiros, e há ainda um forte grupo de carismáticos.

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Esse grupo de católicos, portanto, permaneceu durante muitos anos com um forte caráter comunitário e português, tendo que fazer concessões, como já dito, à medida que outros grupos de imigrantes de fala portuguesa passaram a chegar e a se integrar à paróquia, sobretudo, a partir da década de oitenta do século passado. Nesse sentido, a comunidade viuse forçada a ampliar seu caráter de imigrantes portugueses para imigrantes de língua portuguesa, processo esse que não foi sem tensões de fundo étnico. Por outro lado, como ressalta Martins (2012), estes mesmos fundadores colocam nos novos imigrantes das ex-colônias a esperança de continuidade da comunidade. Isto em parte se deve ao envelhecimento dos portugueses, em que poucos são os novos migrantes de primeira geração; em parte, ou porque uns abandonaram o catolicismo, ou porque os portugueses de segunda e terceira geração tendem a ser assimilados às paróquias holandesas. Como disse Flora, uma portuguesa bastante ativa na comunidade, que imigrou com os pais quando ainda tinha menos de 3 anos, em uma assembleia que se discutia o futuro da comunidade e se chamava os paroquianos às suas responsabilidades: Para mim tanto faz português ou holandês. Eu estou integrada na Holanda. Posso ir para minha paróquia em holandês. Venho aqui por causa da minha mãe, que não entende o holandês, e essa comunidade é importante para ela (Flora, portuguesa).

Por outro lado, há uma consciência clara e dolorosa dos portugueses de que sua “comunidade é muito fechada” e que, portanto, “vai morrer”. Fechamento este percebido por parte dos brasileiros, que tendem a se sentir discriminados pelos 249

portugueses, sobretudo, pela dificuldade que os imigrantes das ex-colonias em geral tem em lidar com os maneirismos sociais dos portugueses, considerados por muitos como ríspidos e muito diretos. De qualquer forma, há um esforço considerável nos últimos anos em constituir relações mais equilibradas entre esses imigrantes; em termos de organização, tende-se a manter uma orientação de equilíbrio. Por exemplo, a comissão paroquial (que coordena as atividades de catequese, crisma, matrimônio da comunidade e que, portanto, tem um capital simbólico considerável diante do grupo) costuma ser composta equitativamente por portugueses, brasileiros e imigrantes dos PALOP. Porém, a comunidade tem tido dificuldade nos últimos tempos em formar uma nova comissão, particularmente de se conseguir um coordenador (deste que o último – um diácono holandês falante de português – deve que deixar o cargo), pois de uma maneira geral há muita reticência em se assumir as responsabilidade que o cargo requer, inclusive o de movimentar as atividades da comunidade para além das missas. Uma nova luz parece se fazer entre os congregados, com a chegada de um novo padre congolês, que fala bem o português, para assumir as atividades de coordenador. Nesse contexto etnográfico, o que surge com força, é que, além da “fé católica”, o que une esses integrantes da chamada de comunidade de língua portuguesa, é a língua, ou melhor dizendo, o seu conjunto: a prática da religião católica em português. E é exatamente o maior ou menor grau de integração ou assimilação dos imigrantes à sociedade holandesa que vai dizer do futuro e continuidade destas

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comunidades72, particularmente, no caso de Haia. Isto pode ser percebido na tensão que se estabeleceu em uma assembléia, que contava com um diácono holandês da paróquia de Willibrord, e falante só de holandês73, em que no calor do debate, começou-se a se exprimir apenas em holandês. Nesse momento, Alma, uma brasileira ativa na comunidade e que costuma integrar as comissões pastorais, interveio e iniciou o seguinte diálogo: – Olha, vamos lembrar que aqui tem pessoas que podem não entender o que é dito em holandês, sim? (Alma, brasileira) – Mas, eu estou falando em holandês para explicar ao René... (Rosa, portuguesa) – A assembleia... Estamos aqui não em benefício de René, mas da nossa comunidade que é de língua portuguesa (Alma, Brasileira)

A intervenção de Alma foi vista positivamente pelos presentes. Isto parece confirmar minha sugestão de que o que une essas pessoas, em primeiro lugar, é a religião católica, em segundo lugar, a língua portuguesa; caso esta última perca o seu valor e significado, perde-se com ela o sentido A relação entre migração e língua é intrínseca a integração em um contexto de imigração internacional multilinguistico. Como observou Esser (2006), se as condições de integração podem variar segundo o gênero, a formação escolar, origem étnica, religiosa, níveis e tipos profissionais, o certo é que quanto menor o domínio e a capacidade de performance na nova língua, menor a possibilidade de integração, e vice-versa. 73 Sempre que este diácono se encontra presente, há uma preocupação de se fazer a tradução do que é dito em português para ele; quando necessário, se traduz para o português o que ele diz. 72

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da comunidade, sujeito particularmente sensível no contexto da comunidade de língua portuguesa da paróquia de Sint Willibrord, em Haia.

Católicos e Língua Portuguesa Como lembra Keane (2006), poucos são ainda os estudos na área de religião que tratam especificamente da língua religiosa ou de religião e língua74. Menos ainda, surpreendentemente, em contexto de imigração (p. ex.: Levitt, 2007; Baia, 1999; Laarman, 2007; Hagan e Ebaugh, 2003; Menjívar, 2003). É certo que a questão da língua aí está posta, mas ela vem como um a priori, como um elemento auto-evidente e auto-explicativo. Neste sentido, a formação e manutenção de comunidades religiosas se explica pelo interesse dos imigrantes de darem continuidade a sua religião, “sua própria língua e própria cultura” (Laarman, 2007: 121). Mas, o porquê desse interesse, o porquê é importante “sua própria língua”, isto nunca é perguntado, ou pelo menos não é problematizado75. Entretanto, creio que esta pergunta é cada vez mais relevante para se pensar religião em situação de imigração transnacional, comunidade supra-étnica e língua portuguesa. 74 Linguistas também se perguntam do porquê sua área de pesquisa não se interessa pela relação entre língua e religião, tendo em vista, por exemplo, que é a religião um dos principais meios de expansão e contato entre línguas (Spolsky, 2003). 75 Pelo menos, não que conheço, nem mesmo nas recensões sobre religião e migração. De qualquer forma, nos tempos que correm, grandes são as chances de que algum pesquisador, em algum lugar, tenha se debruçado sobre isto.

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É certo que esta questão não surgiu para mim por geração espontânea. Foi no campo, e talvez porque seja particularmente no contexto holandês, que ela apareceu. Assim, conversando informalmente com Vanessa (brasileira, casada com um holandês autochtoon76) após a missa, em janeiro de 2011, perguntei a ela porque freqüentava a comunidade de língua portuguesa, meio que esperando já uma resposta que confirmasse o que era muito recorrente na literatura (acolhimento, ajuda, solidão, desconhecimento, etc.). Ela me deu, porém, uma resposta surpreendente: – Ah, essa comunidade é muito importante para mim! – Por quê? – Porque é outra coisa rezar em sua própria língua? (Vanessa, brasileira).

Comecei a me perguntar, então, se não haveria aí uma relação fundamental entre fé e língua, tanto em termos de prática, quanto em termos de crença. Nesse sentido, uma segunda questão se apresenta: o que move, assim, imigrantes oriundos dos PALOP a frequentar uma comunidade supra-étnica, em que angolanos, cabo-verdianos, guineenses e moçambicanos, juntos, formam uma minoria mínima, menor ainda que a de brasileiros? A resposta, até onde pude observar, não se encontra nem em um desejo em manter a sua lín-

Termo nativo para identificar um holandês considerado autóctone. Entretanto, essa classificação, assim como o seu contrário, allochtoon (que quer dizer de fora) é bastante complexa e, mesmo, polissêmica. Para uma maior discussão ver M. Reesink (2014). 76

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gua, nem sua cultura e muito menos a sua própria religião77. Como muitos me disseram, o catolicismo é um só, a missa católica é a mesma em qualquer língua. Tampouco me parece que eles estão preocupadas em perder a sua língua materna, sentida como constitutiva dos sujeitos. Suponho, então, que é a conjunção entre a “própria língua” e o “catolicismo” que deve ser fundamental, particularmente, para as minorias étnicas dentro de um contexto supra-étnico. Tentando entender, então, este ponto, discutirei rapidamente aqui a trajetória, de duas mulheres78, uma angolana e outra guineense, procurando observar até que ponto elas compartilham do expressado pela brasileira Vanessa. Márcia, angolana que há dezoito anos vive na Holanda, e Isadora, guineense que aí vive há 22 anos, ambas com mais de quarenta anos de idade, têm elementos que as aproximam e as afastam em suas trajetórias de vida. Márcia é uma mulher com um temperamento exuberante e alegre, que expressa um permanente bom humor; enquanto Isadora tem um jeito mais suave e discreto. Todas as duas são bastante ativas na comunidade católica, Márcia aí chegando há mais de 10 anos e Isadora por volta de seis anos; em diferentes momentos, ambas já fizeram parte da comissão paroquial, e estão bastante concernidas com o problema da manutenção e continuidade da comunidade de língua portuguesa. As di77 Para isto há as organizações seculares, pode-se dizer. Os portugueses, por exemplo, têm “A Casa Portuguesa” em Haia. Não quero dizer, porém, que em outros contextos as comunidades religiosas não possam ter essas funções. 78 Apesar de tratar aqui de mulheres, não estou, agora, interessada em elaborar a discussão a partir da categoria “gênero”. Porém, como visto por Eckert e McConnell-Ginet (1992), a relação entre gênero e língua não é neutra.

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ferenças mais marcantes entre as duas, além do fato de serem de países diferentes, começa com o próprio processo e motivação de migração para a Holanda. Nascida em M’banga-Kongo, capital da província do Zaire, cujo dialeto79 é o kikongo, desde muito pequena Márcia migrou com a família católica para Luanda, se considerando assim mais luandense. Ali, estudou e frequentava a igreja católica ativamente aos sábados e domingos. Segundo ela, “quando não íamos a missa sentíamos até uma falta no corpo”. Ela vê muita diferença entre a prática católica na Holanda e aquela em Luanda: igreja sempre cheia, com mais entusiasmo. Em casa, os pais falavam o dialeto da província, mas ela e os irmãos respondiam em português. A emigração para a Europa se deu não muito tempo depois de seu casamento. Na primeira metade dos anos noventa, devido a divergências com a família do marido (que envolvia também questões políticas), o casal decidiu emigrar, primeiro para Portugal, e quando a situação neste país não era o que esperavam, seguiram para a Holanda. Diferentemente da grande maioria dos seus compatriotas, não precisaram solicitar asilo, pois tiveram melhores condições de saída de Angola. Por exemplo, quando nós saímos meu marido teve condições de tratar uma bolsa.... Consegues tratar uma bolsa e não vens para estudar, vens para ficar assim, tás a ver o país... (Márcia, angolana).

Com situação regular, o marido pode conseguir trabalho, bom o suficiente para que a família (duas filhas e um Termo usado pela informante. Segundo ela, há em Angola a língua portuguesa e cada província tem seu dialeto. 79

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filho, os dois últimos nascidos na Holanda) não precisassem nunca do serviço social holandês, fato este sublinhado com força por Márcia, que trabalha normalmente como babysitter. Márcia se aproxima, portanto, mais do modelo de migração comunitária, morando no bairro de migrantes de Haia e sendo menos assimilada à sociedade holandesa, apesar de ter competência no holandês e os filhos terem a “mentalidade holandesa”, como diz. Isadora nasceu na praça de Farim, em Guiné-Bissau, em uma família católica. Esta possui uma empresa de comércio; seu pai, quando vivo, tinha certa influência na sociedade guineense, particularmente pelas suas relações com a igreja católica, e ainda um de seus irmãos é juiz na Guiné-Bissau. Ela se classifica etnicamente como crioula e bilíngue: “eu sou bilíngue, em crioulo e português. Eu me sinto muito bem falando as duas línguas”; com a mãe fala em crioulo e português, com os irmãos em português. Aos dez anos de idade, Isadora foi estudar em um colégio de freiras em Coimbra, retornando após terminar os estudos. Foi na Guiné-Bissau que conheceu e aí casou com o seu primeiro marido, um holandês autochtoon, e tendo por isso migrado para a Holanda, “se não nunca teria vindo para a Holanda, devo dizer [risos]”. A sua migração se aproxima, então, do “modelo brasileiro” de imigração individualizada e afetiva. Na Holanda, Isadora teve dois filhos, uma moça e um rapaz, separou-se e casouse novamente com outro holandês autochtoon. Talvez pelo seu tipo de imigração e seu capital cultural, parece-me que Isadora está melhor integrada à sociedade holandesa, morando em um bairro de classe média, com amigos holandeses autochtonen, com uma boa inserção no mercado de trabalho qualificado, sobretudo, na área de educação. Atualmente,

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termina um curso de licenciatura em língua holandesa, que permite ensinar nas escolas holandesas comuns. O primeiro contato com a comunidade de língua portuguesa se deu de forma diferente para as duas. No caso de Márcia, que já há algum tempo procurava por missas realizadas em português, só concretizou isto quando da morte de um vizinho muito católico de São Tomé e Príncipe. Desejando fazer uma missa fúnebre em português, finalmente conseguiu informações sobre a comunidade. Já Isadora foi apresentada à comunidade por uma amiga brasileira, que convidou-a para assistir a missa de Nossa Senhora Aparecida80, que ocorre em outubro, desde então passando a participar ativamente da paróquia. Essas pinceladas no esboço dessas trajetórias podem funcionar aqui como um pano de fundo para alguns pontos de convergência, que pretendo ressaltar, entre essas duas imigrantes católicas, ao mesmo tempo em que espero guardar suas diferenças, tanto em termos de personalidade quanto de histórias de vida, no contexto da imigração. São quatro as principais convergências que pude perceber, e que ponho sob os seguintes temas: África, holandesa, culpa, língua-catolicismo. O primeiro tema, “África”, surgiu de maneira casual na minha entrevista com Isadora. Assim, tentando saciar a sua curiosidade sobre a minha pesquisa, falei para ela que a achava importante porque no Brasil se conhecia pouco sobre a África. Então, rindo, ela me disse:

Para uma descrição e discussão sobre o papel dessa missa na comunidade, particularmente, na relação entre brasileiros e portugueses, ver Martins (2012). 80

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Vá lá, os brasileiros com quem tenho … nem todos, mas uma boa parte deles, mas quase que tinha que dar uma lição sobre o que é a África, quer dizer ‘ai, a mãe áfrica’ quer dizer, é assim, ou um romantismo muito vago ou... Quer dizer, são dois polos extremos: ou são uns selvagens, ou a mãe África, enfim... [risos] que acolhe os filhos [risos] quer dizer, pertencemos a todos uma grande família [risos]. Nem é uma coisa, nem outra. E a África, quer dizer, a África é um continente, e muitas vezes a única coisa em comum que temos é a cor [risos]. Até estou a me referir a África subsaariana... Porque se fores a ver um africano, da África Ocidental, da África Austral ou da África Oriental tem diferenças bem marcantes (Isadora, guineense).

E quando introduzi a questão “África” na entrevista com Márcia, esta adiantou: É diferente, não vais comparar. Não vais comparar a Holanda com a França, é a mesma coisa... Não vais comparar o Brasil com Cuba, com Colômbia, é a mesma coisa. Cada país tem a sua cultura, sua língua, tradição. A África é um continente muito grande (Márcia, angolana).

Primeiramente, mais do que explícito é a consciência dessas duas mulheres de serem reduzidas a um único denominador comum: africano. Nesse sentido, percebe-se a sua negação em aceitar esse tipo de movimento, em que a imensa diversidade interna de um continente é reduzida ou a um rótulo “África”, ou a um cor da pele (e como chamou a atenção Isadora, mesmo aqui havendo gradações). É ainda a recusa legítima em aceitar que se faça com o continente

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africano, aquilo que não se faz em outros lugares: não se reduz a Holanda à França, não se reduz o Brasil à Colômbia. Por fim, é uma recusa também de um certo olhar que produz outra redução, ao construir a imagem essencializada de uma “selvageria” ou de uma “irmandade” eternalizadas, em que o continente africano “real”, se podemos assim dizer, nunca é visto ou percebido. O fundamental aqui é a revelação da consciência aguda que essas informantes tem dessas reduções, assim como sua recusa a elas. Fundamental, ainda, porque é exatamente nos trabalhos sobre imigração africana, que essas reduções tendem a ser mais recorrentes, implícita ou explicitamente. O segundo tema, “holandesa”, surgiu quando das questões relativas às identificações nacionais, à dupla nacionalidade. Ambas informantes são holandesas naturalizadas, mas o que se tem aí é a construção de uma relação mais prática com esta cidadania. Tenho a nacionalidade holandesa, mas me considero angolana, não me considero holandesa não (Márcia, angolana). Eu sou naturalizada holandesa. Mas, devo dizer que não me sinto holandesa, eu me sinto mesmo guineense (Isadora, guineense).

O pragmatismo para com a aquisição da segunda nacionalidade parece ser algo recorrente, em que a naturalização é importante na aquisição de direitos e facilidades diante das instituições holandesas e europeias, como sublinhou Márcia. Isto parece apontar para uma menor probabilidade de que entre a primeira geração de imigrantes surja grandes

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questionamentos sobre identificações étnicas ou nacionais81. O mesmo não pode ser dito para a segunda geração, pois é onde parece surgir com maior freqüência conflitos e “inseguranças” em termos de lealdades e identificações étnicas (Carling, 2008). No contexto da Holanda, talvez essa visão mais pragmática da cidadania holandesa seja construída dialeticamente com a percepção de que se é recusado e indesejado, que se é allochtoon, e, particularmente, pelas diferentes experiências de discriminação sofrida. Se hoje em dia me derem uma boa possibilidade de voltar para o meu país, eu volto. Sim, porque já estou cansada de viver na Holanda. Não tenho vontade de viver aqui, não, porque na rua sou discriminada... Eu entendo isso normal, porque não é o meu país (Márcia, angolana). Integrada na Holanda? Essa foi a pergunta mais difícil que achei até agora [risos]... Eles não dizem isso claramente, mas você sente... Eles não querem mais imigrantes (Isadora, guineense).

O que se vê é a percepção de que por mais integrada que se seja, nunca se é o bastante, porque sempre allochtoon, implicado isto na rejeição. Por outro lado, ao mesmo tempo em que expressam a experiência, ou de recusa ou de discriminação, tanto Márcia quanto Isadora afirmaram que essas são questões que não se restringem apenas à Holanda, mas Para uma análise profunda e complexa das diferentes relações dos imigrantes de primeira geração com o país de acolhimento e seus sentimentos e níveis de pertença, lealdades, cosmopolitanismo, ver Levitt (2007). 81

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que seria mesmo um fenômeno geral nas relações entre nacionais e não-nacionais, em qualquer país. De qualquer forma, esses experiências são agudamente sentidas por essas imigrantes, que traduzem por um cansaço da sua condição de imigrante. O terceiro tema é o da “culpa”. Apesar das experiências negativas, parece-me claro que essas informantes também tendem a considerar que a emigração tem um saldo positivo, que de certa maneira as condições e oportunidades sócio-econômicas no contexto de imigração são melhores do que no seu país de origem. Mesmo se Márcia gosta de reafirmar que agora Angola “é um país rico”, só com condições equivalentes a sua situação atual é que ela retornaria ao país. Mas, é exatamente por essa avaliação do saldo positivo que surge, para essas informantes, a questão da culpa. Eu não sei se ficarei aqui. Eu gostaria de voltar e, sei lá, fazer alguma coisa... Não digo viver sempre pra lá, mas ir pra lá e fazer, que eu gostaria imenso de, vá lá, do expertise que eu tenho, de por também ao serviço do país... Eu pelo menos sinto às vezes um pouco de remorso de não pôr esse conhecimento à disposição do país (Isadora, guineense). - Mas eu fico arrependida por estar aqui, eu e meu marido... Passamos o tempo aqui, enquanto em Angola está todo mundo a construir, todo mundo está bem... E eu fico muito arrependida por estar aqui na Holanda e fazer aqui a minha família. É tipo um de pecado que nós cometemos, por estar a viver aqui... - Como assim, pecado? - É um pecado porque estamos aqui e tudo que fazemos, pagamos impostos, fica aqui na Holanda e nada não vai para Angola (Márcia, angolana).

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O que se tem, portanto, é ao mesmo tempo o desejo de, de alguma forma, voltar e contribuir para o país de origem, ao mesmo tempo em que se culpabiliza por não o fazer, implicando ainda uma percepção de que em geral a situação de imigrante é, no fundo, uma condição privilegiada em relação as realidades sócio-econômicas dos países de origem. Por fim, o quarto tema, e o que me interessa mais de perto, é a relação entre “língua portuguesa e religião católica”. Esse tema é central aqui, como já avancei, pelo próprio contexto de imigração e porque (Duranti, 2006: 452) “through linguistic communication, we display our attitudes, feelings, beliefs, and wishes”. Refletindo um pouco mais sobre religião e língua ou linguagem, na literatura sobre esta relação nem sempre é clara a distinção entre língua e linguagem religiosa, na maior parte das vezes se considerando as religiosidades como tendo uma linguagem própria, independente da língua usada, mesmo se leva em consideração suas propriedades linguísticas (gênero e/ou gramática). Porém, há nessa literatura, segundo Keane (1997a: 49), um “common denominator among many varieties of religious language, the problem raised by interaction with invisible beings”; em que se sobressai a questão da exterioridade da língua e suas implicações no interior dos sujeitos que falam (Keanne, 1997b), questão esta que está obrigatoriamente ligada aquela da crença. Em conexão com o acima dito, Mitchell (1997) argumenta que “belief is based upon three differents modes of cognition: the semiotic, which relates to language, or to language-like phenomena; the practical, which relates to forms of embodied knowledge; and the emotional, which relates to people’s feelings” (Mitchell 1997: 79-80). Porém, essa discussão de Mitchell é interessante apenas se considerarmos: 262

a) a separação destes três modos de cognição como exercício analítico, e b) que a capacidade cognitiva do ser humano não é isolada dos seus condicionantes afetivos e biológicos (Toren, 1993). O que pretendo sublinhar, dessa forma, é o fato dos processos cognitivos serem também afetivos. Decorrente disto, é necessário relativizar a distinção entre “semiótico” e “emotional”, distinção esta que revela a tendência que se tem, nos estudos em contextos religiosos, de separar a língua-linguagem dos afetos, mesmo quando se discute questões como interioridade, subjetividade, sentimentos (p. ex. Keane, 1997b e 2006). O meu argumento, portanto, é que, na “interação com os seres invisíveis”, o que faz a diferença, o que aí é fundamental, é exatamente a capacidade cognitiva-afetiva da língua. – Por que é importante uma missa em português? Porque para ler uma bíblia uma palavra religiosa é preciso entender com sua própria língua. Sim porque eu não posso ler uma bíblia holandesa, porque eu não entendo nada, o mais importante é eu entender a palavra de Deus na língua que eu entendo mais melhor. Porque eu cresci com o português, além disso eu tenho meu próprio dialeto em Angola, nós temos o dialeto, mas como eu não cresci muito com aquele dialeto e entendo muito pouco, é melhor eu fazer a missa em português que entendo mais melhor... – Tem muita diferença de uma missa em holandês? – Sim tem muita diferença. Só não vou sentir muita diferença, por exemplo, a missa católica a pessoa pode entender em toda língua porque a liturgia, vamos fazer o Pai Nosso, a pessoa entende logo o acompanhamento da missa. Mas, ao falar … por exemplo, eu não sei ler o Pai Nosso em holandês, isso já é uma grande diferença pra mim. Por exem-

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plo, quando vamos fazer a oração da comunhão, eu já sei o que estamos a fazer, o que estamos a falar, eu como não sei falar em holandês, embaixo do coração eu falo em português (Márcia, angolana). Rezo em português... Eu costumava ir a uma missa holandesa, em Voorburg, que naturalmente era boa também, mas não sentia que tinha assim aquela …. Sentia falta de qualquer coisa. Sentia falta de qualquer coisa. E então quando comecei a frequentar, vá lá, através dela, a igreja de língua portuguesa, é! Porque estou muito mais habituada, quer dizer aprendi em português, a liturgia em português. Quer dizer, tá muito mais arraigada em mim, vá lá, toda a liturgia em português do que em holandês, não? ... O significado emocional das palavras é diferente. … Portanto, eu acho que essa diferença é que faz com que, e fez com que, vá lá, deixei de ir a igreja holandesa e optei pela portuguesa (Isadora, guineense).

Um primeiro elemento que chama a atenção é a insistência de Márcia em dizer que ela não sabe ler a Bíblia e nem rezar o Pai-Nosso em holandês, apesar de ter competência nessa língua, quase como se houvesse um impedimento cognitivo para a aquisição de uma competência linguística quando a questão é a da prática reli-giosa. É assim que surge o “embaixo do coração, eu falo em português”, ou o “sentia falta de qualquer coisa” porque o “significado emocional das palavras é diferente”. Neste sentido, essas informantes realizam um distinção entre entendimento puramente cognitivo e um entendimento cognitivo-afetivo, em que é a língua que carrega essas duas dimensões e é através dela que se pode expressar religiosamente. Parece-me assim que os processos de construção do sujeito religioso é dependente, não só de uma linguagem religiosa, mas também da língua em que 264

essa linguagem é expressa. Isso fica mais do que evidente em um contexto multilingüístico, não só na migração, mas nas sociedades de origem que são multilíngues, como Angola e Guiné-Bissau, onde a língua católica é o português, ou o português e crioulo, no caso de Isadora. A competência e performance, porém, da língua religiosa não é puramente “lingüística”, se posso assim me expressar, mas afetiva82, afetividade esta que dá um sentido de realidade, de presença, de comunicação, envolvimento e completude: é necessário a língua adequada para que a prática religiosa seja sentida e percebida como tendo eficácia na comunicação entre o visível e o invisível; pois, nesse contexto, e numa analogia a versão fraca da hipótese Sapir-Whorf, a “tradução” para uma outra língua nunca é completa, porque não traduz as dimensões cognitivo-afetivas corporificadas na língua católica de origem. Ao que tudo indica, então, a prática católica em outra língua introduz algo como um détachement entre o sujeito que fala e o sujeito que sente, podendo-se comparar isto metaforicamente com a idéia de breakthrough de Hymes (1981). Nesse contexto, se pode avançar que se instaura aí algum tipo de julgamento em que se avalia o grau de engajamento, envolvimento e sinceridade. Considero, no entanto, que não basta esses três elementos estarem presentes na prática religiosa, eles precisam ser “sentidos” e “agidos” para poder atingir o seu grau pleno e, portanto, a sua eficácia máxima: mas a condição primeira para isto é que o meio adequado esteja disponível, e no caso dessas católicas, esse meio é a Não estou querendo dizer com isto que a afetividade só é possível através da ou de uma das línguas maternas, ao contrário. Por exemplo, a língua de comunicação entre Isadora e seus filhos é apenas o holandês. 82

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língua portuguesa. Nesse sentido, o que argumento é a possibilidade de que a construção de um sujeito religioso é dependente de uma língua-linguagem, e que isto implica em processos cognitivos-afetivos que são corporificados pelos sujeitos e que passam a ser constitutivos de seu ser religioso, e ainda que este ser religioso católico é função (no sentido levistraussiano) da sua interação com as divindades católicocristãs.

Considerações Finais No contexto holandês de imigração, a língua surge como uma variável importante para entender a realidade dos imigrantes católicos de língua portuguesa. A partir de uma política organizativa e de diretrizes da Igreja Católica - que desde a década de 60 do século passado vem tratando da questão da imigração, as diferenças étnicas e as diferenças de práticas e crenças católicas locais ou nacionais dos imigrantes são submetidas a universalidade da mesma língua falada, numa reprodução na língua da ideia de uma Igreja universal. Com isso, cria-se contextos propícios para conflitos inter-étnicos (entre as diferentes etnias que compõem a comunidade de língua portuguesa) e supra-étnicos (entre os imigrantes de língua portuguesa e as demandas da sociedade e igreja católica holandesas). Entretanto, há um esforço visível dos integrantes das comunidades estudadas em procurar reduzir as tensões para manter viva as suas comunidades, reforçando as convergências em torno da fé católica e da língua portuguesa. Mas, fica evidente que o sucesso dessa empreitada depende da capacidade dessas comunidades em renovar os seus membros a partir da chegada de imigrantes de primeira geração. 266

Das duas trajetórias aqui esboçadas, o que sobressai é que esses sujeitos, na sua condição de imigrantes, sem se perturbarem por questionamentos sobre suas identificações étnicas, por causa disso ou apesar disso, elaboram um sentimento de culpa em relação aos seus países de origem, pois explícita ou implicitamente consideram um privilégio ser emigrados, ao mesmo tempo em que sentem a rejeição/ discriminação na sociedade de acolhimento. Mas, o mais impactante, foi a sua recusa consciente de ser reduzida, quer através da sua identificação com/redução a “África”, ou a uma cor de pele, ou ainda a uma imagem idealizada (positiva ou negativa). O que esses sujeitos esperam, assim, é serem vistos, ouvidos e reconhecidos nas suas diversidades e complexidades. Considerando mais de perto a questão católicos-migrantes, parece-me que a comunidade de língua portuguesa em Haia é particularmente interessante e importante exatamente porque, pelo fato de ela estar se confrontando há algum tempo com a sua própria capacidade de existir/se reproduzir, é que as relevantes questões sobre a “condição de estar na imigração”, as “relações supra-étnicas e interétnicas”, e “qual o valor e o significado da própria comunidade”, ficam mais evidentes. É, então, diante deste quadro que o valor do português, como “língua-linguagem católica” para esses sujeitos, parece se impor. Essas discussões, entretanto, sobre língua-migração-catolicismo no contexto da comunidade de língua portuguesa, não se encerram aqui, obviamente. Primeiramente, porque esses são os insights iniciais que surgiram no campo de pesquisa; segundo, porque este mesmo campo é um campo in progress. Dessa forma, outros sujeitos e temáticas precisam ser (melhor) articulados ao aqui sugerido. 267

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MISSIONÁRIOS DO FIM DO MUNDO: MISSIONÁRIOS E MISSÕES CATÓLICAS BRASILEIRAS ALÉMFRONTEIRAS EM TEMPOS DE TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA Antônio Mendes da Costa Braga

Nos estudos de missiologia e na literatura das ciências sociais das religiões vem sendo utilizado o termo “missão reversa” (reverse mission) para identificar a inversão vetorial no campo das ações missionárias, que ocorre de forma acentuada neste início do século XXI e implica numa mudança de direção nos deslocamentos que tradicionalmente marcaram os movimentos das missões cristãs entre a Europa e os países da América Latina, África e Ásia. O argumento é o de que se ao longo dos séculos as missões religiosas cristãs usualmente partiram do Velho Mundo em direção a outras partes do planeta, desde as últimas décadas do século XX vem aumentando o número dos deslocamentos que se dão numa direção reversa: começam a serem expressivas as missões que partem de países como o Brasil em direção a países europeus. A Europa, outrora exportadora, passa a ser também uma importadora de missões religiosas. Daí o termo que considera como “invertidas” (reversas) as missões que se destinam àquele continente. 273

Essas missões reversas não são um fator estranho às transformações mais amplas pelas quais vem passando as religiões no mundo atual. Podemos considerar que elas dizem respeito a algo mais significativo, relacionado aos processos de globalização que marcam a contemporaneidade (Velho, 1995; 1997) e, de forma mais direta, aos processos de transnacionalizações religiosas (Csordas, 2009; Oro, Steil, Rickli, 2012) que, como propõem Rocha e Vásquez (2014: 22), implicam no surgimento de uma cartografia policêntrica da globalização religiosa, marcada por vários pontos de injunção. Há uma nova geografia global do sagrado onde proliferam fluxos religiosos e redes multidirecionais e multiescalares onde se incluem formas, movimentos e deslocamentos que não existiam outrora, uma geografia na qual novos atores ganham mais espaço, peso e relevância. Esse é justamente o caso de muitas religiões, igrejas e religiosidades brasileiras (Rocha e Vásquez, 2013; Oro, Steil e Rickli, 2012; Freston, 2001), a partir de suas inserções no contexto mais amplo de um mundo marcado pelos processos de globalização. Ao considerar o caso específico do Brasil vamos ver que são muitos os elementos passiveis de justificar sua presença e seu peso dentro do contexto religioso transnacional contemporâneo. Há um “imaginário transnacional” (Rocha e Vásquez, 2014: 19), dentro do qual o Brasil ocupa um lugar privilegiado, onde supostamente o sagrado não teria sido erradicado pela modernidade. Acrescentem-se os fortes elementos sincréticos passiveis de serem encontrados no universo religioso brasileiro (Ferretti, 2008) e que estão em consonância com as dinâmicas de fluxos e hibridismos (Hannerz, 1997) que marcam o mundo contemporâneo. Também encontramos no caso brasileiro aqueles quatro fatores que o antropólogo Thomas Csordas (2009: 5) identifica como im274

pulsionadores de uma “transnational transcendence” (transcendência transnacional): os fenômenos das missões, dos fluxos migratórios, da mobilidade e da mediação virtual. Temos então que nas diferentes combinações desses aspectos vislumbra-se a emergência da relevância do Brasil dentro dessa nova cartografia global da religião (Rocha e Vásquez, 2014). As inserções e lugares ocupados pelo Brasil dentro desta nova cartografia não são, contudo, sempre os mesmos. Se há policentrismo, igualmente há polimorfias, polifonias, diferentes atores, diferentes contextos (de lá e de cá, de cá e de lá, num lá e cá pouco estático). Alguns atores e contextos mais abertos, outros menos, a inserções e combinações de atores, crenças e práticas. Em suma, remeter-se à questão da transnacionalização religiosa contemporânea e do(s) lugare(s) do Brasil, suas religiões e religiosidades é ter de encarar a diversidade e complexidade que lhes diz respeito, buscando desviar-se de um continuo risco de reducionismos. Uma estratégia viável para fugir dos reducionismos é abordar o todo nas suas particularidades, ou melhor, a partir dos casos particulares (que de alguma forma nos ajudam a compreender dinâmicas correlacionadas ao todo). É assim que optamos por nos aproximar desses fenômenos anteriormente citados a partir do caso particular do catolicismo e da Igreja Católica do Brasil dentro do contexto de transnacionalização religiosa contemporânea, chamando a atenção para o fenômeno das missões religiosas além-fronteiras83, O termo “além fronteira” pode ser considerado como uma expressão emica do universo missionário católico. É inclusive assim que organismos como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) se referem à atuação de missionários católicos brasileiros em outros países. Optamos, portanto, em usar a expressão “além-fronteiras” justamente por seu caráter êmico. 83

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mais especificamente missionários católicos pertencentes a grupos religiosos autóctones do Brasil, isto é, que efetivamente nasceram no Brasil. Com esta proposta de recorte no mapeamento do campo missionário católico brasileiro chegamos às missões vinculadas ao Movimento de Renovação Carismática Católica. Chamar a atenção para as missões carismáticas católicas brasileiras atuando além-fronteiras não é aleatório, como justificaremos adiante. Consideramos que este tipo de missão é aquele que melhor nos ajuda a compreender a inserção que o catolicismo do Brasil vem tendo dentro da nova cartografia global da religião e algumas das principais demandas do contexto contemporâneo neste campo. A escolha do universo católico também não é aleatória, mas se justifica por ser este universo revelador de uma dinâmica que o diferencia das outras formas de inserção de atores e religiosidades brasileiras no cenário global (pentecostais, afro-religiosos, espíritas, dentre outros). Soma-se a isso certas especificidades do universo católico, notadamente o peso da instituição religiosa Igreja Católica na configuração do catolicismo e suas diferentes modalidades no contexto global, no qual vigoram inspirações universais e universalizantes. Aqui se torna particularmente relevante falarmos de “missões reversas” no contexto católico. Isto porque o termo “reverso” remete-se ao fato de que essas missões seguem uma lógica vetorial distinta daquela que resultou na chegada, propagação, incorporação e tradução do cristianismo e catolicismo em países como o Brasil, a partir da Europa (Pompa, 2003; Montero, 2006). No caso brasileiro o fenômeno das missões cristãs que partiam do continente europeu para o Brasil teve início já no século XVI, atravessou a época

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colonial, passou pelo processo de romanização do catolicismo brasileiro (que se deu entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX), assumindo diferentes formas e intensidades ao longo do século XX. Contudo, esses deslocamentos missionários sempre obedeceram a um mesmo vetor: as missões - quase que de maneira absoluta - ocorreriam numa mesma direção de deslocamento, num mesmo sentido vetorial, movendo-se da Europa em direção ao Brasil ou outras terras de missão. A mudança começa a ocorrer nas últimas décadas do século passado, quando países como o Brasil foram deixando de ser apenas receptores de missões e missionários, para serem também exportadores dos mesmos, seja no contexto católico, seja no contexto evangélico (Mariz, 2009; Freston, 1999, 2010; Rodrigues e Silva, 2012; Silva, Medeiros e Rodrigues, 2013). Se considerarmos especificamente o contexto católico, que está sendo abordado neste artigo, é possível perceber que nas primeiras décadas do século XXI surgem características novas nos empreendimentos católicos missionários brasileiros no exterior como as missões formadas por grupos religiosos católicos nascidos especificamente no Brasil e o fato de continente europeu passar a ser um importante foco de ação desses empreendimentos. Neste estudo nos interessa de forma particular o fenômeno recente da existência de missões além-fronteiras nacionais vinculadas a grupos religiosos católicos nascidos no Brasil, sendo precisamente esta origem brasileira aquilo que pode ser considerado uma novidade. Desta forma podemos considerar - na ausência de uma expressão melhor e numa relação de contraste com a origem européia das maiorias das missões católicas além-fronteiras - que estamos tratando de algo como que a “exportação de um catolicismo brasileiro”. 277

Pode-se argumentar que falar de um “catolicismo brasileiro” é simplificar algo muito complexo, tanto porque é temerário falar de “um catolicismo brasileiro”, quando de fato existem muitos “catolicismos brasileiros”, com diversidade de configurações internas, quanto porque não é prudente falar de catolicismo brasileiro negligenciando o contexto sincrético no qual ele está inserido (Ferretti, 2008): os muitos são muitos em diversos sentidos e diferentes formas de composição. Também porque falar de “um catolicismo brasileiro”, “um catolicismo europeu”, “latino americano”, qual seja, é algo problemático num contexto global onde temos de dar conta de diferentes formas de fluidez, das mais diversas imprecisões de fronteiras (culturais, étnicas, dentre outras), dos distintos hibridismos e sincretismos (Hannerz, 1997) e todo um leque de características que marcam a contemporaneidade e que vão justamente à contramão desses termos, formas ou fórmulas essencializantes. Entretanto, sem ter a intenção de essencializar algo que efetivamente não pode ser negligentemente substancializado - o(s) catolicismo(s) -, há um fato concreto que não pode ser descuidado e que tem, no mínimo, implicações para aquela que ainda é a principal instituição religiosa que temos no mundo e cuja abrangência é literalmente global, a Igreja Católica Apostólica Romana. O fato é que começa a ganhar vulto e volume o número de missões e missionários vinculados a grupos religiosos católicos nascidos na periferia da Igreja Católica, sendo que o termo periferia é aqui utilizado a partir da percepção de que o catolicismo e particularmente a Igreja Católica têm um centro de origem e desenvolvimento e um centro institucional, respectivamente a Europa e Roma (a Santa Sé).

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Podemos considerar que pensar em termos de centro e periferia(s) contém em si o problema de usarmos terminações dicotômicas que não dão conta das relações complexas que existem entre aquilo que no meio católico é conhecido como Igreja Universal e Igrejas Particulares. Igualmente podemos avaliar que esses dois termos minimizam as relações complexas entre as diferentes formas de catolicismo. Contudo não podemos desconsiderar que a idéia de centro - seja como origem, fato, percepção eclesial e eclesiástica e como principal forma da Igreja Católica se organizar, mover-se e agir - ainda é algo que existe e faz sentido. Isto pode nos ajudar a entender algumas mudanças que vem ocorrendo dentro do campo da ação missionária católica e como isso tem implicações nos movimentos internos e externos de expansão e mudanças do catolicismo e da Igreja Católica na atualidade. Vejamos isso um pouco mais de perto em relação à questão missionária católica: Quando observamos os empreendimentos missionários católicos até mais ou menos o terceiro quartel do século XX fica evidente o peso da Europa Católica como matriz dos empreendimentos missionários. Sejam Ordens ou Congregações Religiosas, sejam Movimentos Católicos ou Sociedades de Vida Apostólica, fato é que a Europa sempre foi um ponto de partida e de formação dos agentes da ação missionária católica, ocupando países como o Brasil o papel de receptores. A partir de meados do século XX o Brasil começou a ser visto como “celeiro de missionários” em movimento que foi se acentuando com o passar do tempo, mesmo se esses missionários brasileiros recebiam uma formação de matriz européia, conforme seu pertencimento a uma Ordem, Congregação ou Movimento Católico. O caso

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de sacerdotes diocesanos, sem pertencimento a essas entidades, não era tão diferente, como podemos perceber, por exemplo, a partir do papel que o Pontifício Colégio Pio Brasileiro (inaugurado em 1934 e sediado em Roma) teve sempre na formação direta ou indireta do clero católico brasileiro. Ainda que o Brasil a algumas décadas tenha se tornado um “celeiro de missionários”, não é absurdo considerar que a grande maioria desses missionários - direta ou indiretamente - tenha tido uma formação missionária católica européia. Pode-se contra-argumentar, a partir de um debate intrínseco ao universo missionário católico, que a formação missionária em muitos contextos foi “inculturada”. Neste caso estamos falando de um termo muito usado no universo teológico, eclesiológico e missiológico católico - “inculturação” - que converge significados e conhecimentos desde a Teologia até a Antropologia Social, buscando apontar para o fato de que muito das verdades universais do cristianismo e catolicismo já estavam e estão presentes nas realidades locais, particulares, aonde o cristianismo e catolicismo chegou através das missões cujo ponto de partida foi justamente a Europa. Um dos fundamentos teológicos do conceito de “inculturação” é o de que nas realidades particulares “pagãs” (não cristianizadas) já podem estar presentes as “Sementes do Verbo” (a “Verdade de Deus Revelada”). Não na sua plenitude, mas enquanto partes, enquanto fragmentos dessa “Verdade” (com “V” maiúsculo). Este texto não tem a intenção de tratar a fundo a discussão conceitual e as implicações teológicas, filosóficas e cientificas da “inculturação”. Isto nos desviaria dos seus objetivos. Mas sem ter a intenção de minimizar ou desconsiderar a relevância de tal termo e suas implicações, vejamos algumas questões que de certa forma também estão em jogo: (1) a 280

idéia de que, de certa maneira, existe em algum lugar uma “Verdade” maior e que existem espalhadas em outros lugares, em outras culturas, pequenas “verdades” que já contém em si fragmentos dessa Verdade maior (como “Sementes”); (2) a hipótese de que esta leitura se aproxime de alguma forma da ideia de que existe um centro onde essa Verdade foi revelada; (3) a questão sobre quem vai reconhecer e como vão ser reconhecidos os pequenos fragmentos dessa Verdade que estariam espalhados por ai; (4) a dúvida sobre como e através de quem essa Verdade chega a esses lugares onde ela ainda não se manifestou em sua plenitude; (5) e a pergunta sobre como e por meio de quem esses fragmentos da Verdade podem ser reconhecidos como “Sementes do Verbo”. Ora, em se tratando de Igreja Católica e Catolicismo, e apreendendo-os numa perspectiva histórica e organizacional-espacial, vamos nos deparar de alguma forma justamente com a relação centro-periferia. E, subsequentemente, nos deparar com a importância que os empreendimentos missionários tiveram e continuam tendo para a propagação do Catolicismo e da Verdade que os sustentam e que dão lugar e lugares à sua existência no mundo. De forma muito direta podemos dizer que se o cristianismo católico chegou aonde chegou e tem o tamanho e importância que tem nos dias de hoje, isso se deve, com grandes méritos, ao trabalho missionário. Foi e é através das missões que o cristianismo católico se expandiu e vem se expandindo e os empreendimentos missionários continuam tendo um papel importantíssimo na construção dos lugares do catolicismo e da Igreja Católica no mundo. Feitas essas consideração, o que queremos destacar é precisamente que os lugares de origem e de partida das missões católicas exercem um grande peso em relação a como 281

o catolicismo e a Igreja Católica vão tomando formas e se transformando, como definem e redefinem seus lugares no mundo, como interpretam e reinterpretam suas “Verdades da Fé”, suas doutrinas, práticas, crenças. Neste sentido, se durante quase toda sua existência o catolicismo - e, por conseguinte, suas missões - surgiram e se desenvolveram a partir de um centro europeu e agora começam a ganhar volume missões e missionários católicos surgidos nas periferias da Igreja Católica, julgamos que tal fenômeno se reflete e tem impacto em relação às direções, aos tipos de mudanças e reconfigurações pelas quais essa religião e essa instituição religiosa milenar vêm passando ao longo das últimas décadas. Uma das intenções deste texto é justamente chamar a atenção para o fato de que fenômenos como os das “missões reversas” dentro do catolicismo e da Igreja Católica devem ser vistos não apenas como forma de expansão ou pelo modo como se movem no mundo. Diante dos desafios que o catolicismo e a Igreja Católica têm de enfrentar numa nova cartografia global da religião, o que está em jogo e que deve ser observado não é apenas o papel de propagação e conversão cristã realizado pelos empreendimentos missionários católicos. Devemos dedicar nossa atenção também para o fato de que nessas reconfigurações do missionário católico - de onde surgem e quem são, para onde vão e onde atuam os missionários católicos e suas missões no mundo hoje? - estão igualmente sendo operadas, se realizando e se revelando uma série de mudanças internas que já há algum tempo vem ocorrendo no catolicismo e na Igreja Católica. Uma dessas mudanças em curso é, por exemplo, o lugar da Europa e do(s) catolicismo(s) europeu(s) dentro dos processos de reconfiguração do catolicismo, dos seus preceitos doutrinários e morais, dos seus rituais litúrgicos, de suas configurações 282

hierocráticas (rearranjos nas posições eclesiásticas) e suas conformações eclesiais, isto é, as formas e lugares das diferentes comunidades, organizações e grupos católicos nessa sua Igreja. Enfim, as alterações que vêm ocorrendo no universo missionário católico atual têm importante relação com processos de mudanças mais amplos pelos quais vem passando o catolicismo e a Igreja Católica Apostólica Romana. Dito de outra forma, pensamos que uma observação mais atenta sobre o universo missionário católico atual nos ajuda a compreender como e por onde vai se transformando essa instituição religiosa (e sua religião), aparentemente tão pouco afeita a mudanças. Mas que, como atesta sua sobrevivência milenar, continua a existir e a encontrar seu lugar no mundo. Existência que só foi e é possível também porque ela continuamente se transforma e se atualiza. Pode-se observar que ela muda ao seu modo, no seu ritmo. Mas nos parece incontestável que essas mudanças não ocorrem de forma alienada aos contextos sociais e históricos mais amplos onde ela se insere. Nesses contextos mais amplos é que encontramos as origens de muitas de suas mudanças internas e externas, aquelas que dizem respeito justamente ao seu relacionamento com as realidades sociais e históricas mais extensas. Não podemos negligenciar, contudo, que o catolicismo e Igreja Católica são realidades muito complexas. Logo, se desejamos compreender melhor como ambos se transformam e se atualizam é necessário analisá-los sem perder de vista esta complexidade. Uma estratégia metodológica para realizar isto é analisar as partes, sem a pretensão de produzir respostas sobre o todo, ou para o todo. Trata-se, em suma, de reconhecer que se uma explicação com pretensões totali-

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zantes é ingênua, buscar compreender contextos específicos onde as mudanças estão ocorrendo pode ser algo bastante revelador. É partindo deste postulado que nos interessa o fenômeno das “missões reversas” no contexto católico. Nesse sentido, nos parece que uma boa pista para nos aproximarmos da questão é o fato de que uma frase como “os missionários foram para a Europa” vem se tornando tão comum (ou mais comum que) quanto a frase “os missionários vieram da Europa”. Parece-nos que estamos nos aproximando de algo cuja implicação não é só relativa ao próprio ir e vir das missões católicas e seus escopos, mas também de conjuntos de rearranjos e mudanças mais amplas no catolicismo e Igreja Católica. Como é o caso, por exemplo, das seculares relações entre centro e as periferias do mundo católico e seus processos de reconfiguração na contemporaneidade. Seguindo esta linha de raciocínio, julgamos que voltar nosso olhar para o caso do missionarismo católico brasileiro pode ser bastante revelador. Tratando do caso específico do catolicismo e Igreja Católica no Brasil, um primeiro fenômeno a chamar a atenção é o fato de que desde meados do século passado foram aumentando o número de missionários católicos brasileiros a atuar além-fronteiras, como afirmamos anteriormente e que diz respeito ao fato de o Brasil ter se tornado um “celeiro de missionários”. Esse fenômeno foi se acentuando a tal ponto que chamou a atenção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no final do século XX, levando-a solicitar a um de seus órgãos internos, o Conselho Missionário Nacional (COMINA), uma pesquisa sobre os missionários brasileiros que estariam atuando além-fronteiras, que se realizou em 2001.

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Alguns dados desta pesquisa nos chamam a atenção, como o de apontar para o fato de que o catolicismo brasileiro adentra no século XXI já deixando de ser apenas um receptor de missões e missionários (as) estrangeiros e passando a ser um exportador de missionários (as). Entre os 1556 missionários e missionárias brasileiros atuando fora do Brasil, 652 deles pertenciam a ordens ou congregações religiosas identificadas, enquanto que 904 missionários (as) foram classificados como pertencentes a “outras”. Analisando mais detidamente este universo de 652 missionários (as) identificados vemos que as ordens e congregações identificadas são do tipo “ordens ou congregações” que, na ausência de um termo melhor, denominaremos de “modelo tradicional”, componentes na sua maioria daqueles grupos que a Igreja Católica denomina de Ordens, Congregações ou Sociedades de Vida Apostólica. Aqui o termo “modelo tradicional” também é usado para diferenciá-los de grupos religiosos como os Novos Movimentos Eclesiais Católicos (Maues, 2012) e as Novas Comunidades Católicas (Carranza, Camurça, Mariz, 2009). Chama atenção o fato de que dessas ordens e congregações identificadas, vinte entidades, apenas cinco nasceram no Brasil, sendo a estas pertencentes 218 entre os missionários (as) brasileiros (as) que atuam fora do Brasil. Ou seja, dentro daquele universo de 652 missionários temos dois terços vinculados a ordens ou congregações estrangeiras. Desta forma, considerando a pesquisa do COMINA (e alertando para as limitações que temos em termos de acesso sobre como ela foi feita e aos seus resultados) temos que uma boa parte desses missionários (as) brasileiros (as) que estavam atuando fora do Brasil na passagem do século XX para XXI vin-

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culava-se a congregações ou ordens religiosas estrangeiras. Ou seja, eram missionários brasileiros a princípio formados num modelo originalmente europeu. Como já sinalizado anteriormente, buscamos chamar a atenção para um segundo tipo de movimento relativo à “exportação de missionários brasileiros”: são cada vez mais comuns neste início de século XXI ações missionárias católicas brasileiras além-fronteiras serem empreendidas por grupos religiosos surgidos especificamente no Brasil. São missões e missionários (as) posicionando-se em contexto estrangeiros como “missões e missionários (as) católicos (as) do Brasil”, sendo que boa parte dessas missões estão ligadas às chamadas “Novas Comunidades Católicas”, em sua maioria surgidas a partir do Movimento de Renovação Carismática Católica (RCC). Parece-nos que essa pertença a Novas Comunidades é uma variável importante no tipo de lógica emergente que rege a importação e exportação de missionários (as) e missões católicas para o Brasil e do Brasil, sendo ainda mais significativo que seu campo principal de atuação seja a Europa (Gabriel, 2009). Voltando à questão do “modelo tradicional” nosso argumento é o de que se veio ocorrendo, desde o Século XX, um aumento no número de missionários (as) brasileiros atuando além fronteiras, isso teve implicações até certo ponto limitadas na relação centro-periferia. Podemos considerar que esse modelo de formação missionária ainda está marcado por parâmetros de um catolicismo de paradigma europeu, dado que não se pode subtrair a gênese e formação das ordens e congregações religiosas à qual estão vinculados esses missionários, que é européia.

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Não se nega aqui a complexidade das relações e tensões em jogo. Toda atuação missionária católica além-fronteiras tende a ocorrer nevralgicamente vinculada a um movimento que é ao mesmo tempo institucional e religioso, respectivamente Igreja Católica e catolicismo, que dificilmente é uma via de mão única. O que implica que devemos considerar que o cristianismo católico é - principalmente quando o comparamos com as grandes religiões mundiais - aquela religião em que sua estrutura institucional (e os diferentes agentes e grupo de agentes que nela operam) mais dificilmente pode ser pensada em separado de sua dimensão religiosa. Por outro lado devemos levar em conta que - tendo em vista o contexto missionário - o “catolicismo de lá” termina por interferir e em alguma medida modificar o “catolicismo de cá”. E vice-versa84. Ou seja, não se pode perder de vista que uma ação missionária é também uma ação de fluxo, em fluxo, onde não só os missionários, mas igualmente crenças, práticas e coisas vão e vem, vêm e vão. Desta forma, nesses movimentos, tanto o “lá” como o “aqui” se alteram. Seguindo esta linha de raciocínio, podemos considerar que tanto atuações de missionários europeus em países como o Brasil alteram suas próprias percepções a ações e, por conseguinte, provocam alterações em suas próprias ordens e congregações, quanto a atuação de missionários brasileiros nos contextos de origem de suas ordens, ou outros contextos além-fronteiras, também provocam mudanças neles, em seus contextos e ordens. O que implica dizer que não é, portanto (nem apenas), um dos lados que se altera. Sejam ou estejam Ao usarmos a expressões como “lá” e “cá”, “aqui” e “lá”, não estamos definindo um lugar específico. Trata-se de uma perspectiva, tendo em vista posições que podem se alternar conforme o agente em questão se posiciona e se põe a observar. 84

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nesses lados missionários ou lugares ou outras pessoas envolvidas e que lá e cá estão. Daí porque estamos acentuando que as alterações se dão “lá” e “cá”. Buscando um caso concreto, voltemos nossa atenção para a configuração do contexto missionário católico brasileiro a partir de sua dimensão mais institucional. Usemos como ponto de partida a atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e seu principal ponto de referência em relação à questão missionária, a Comissão Episcopal para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial, à qual são vinculados o já citado COMINA, o CIMI (Conselho Indígena Missionário), o CCM (Centro Cultural Missionário), a Pastoral dos Brasileiros no Exterior e estão relacionadas as POM (Pontifícias Obras Missionárias), organismo vinculado à Santa Sé. No que tange à temática deste capítulo, aquele que desempenha um dos papéis mais relevantes, entre os que compõem a Comissão para a Ação Missionária, é o Centro Cultural Missionário (CCM), que realiza um papel fundamental na formação e no suporte à grande maioria dos missionários católicos nacionais e estrangeiros que chegam ao Brasil, assim como auxilia um bom número de missionários brasileiros que vão atuar além-fronteiras. Do ponto de vista institucional católico brasileiro, o CCM funciona como o mais importante “hub”85 para a ação missionária da Igreja Católica no Brasil. Localizado em Brasília, o Centro Cultural Missionário (http://www.ccm.org.br/) foi oficialmente criado em 1982, a partir da junção do Centro de Formação Intercultural (CENFI), nascido em 1960, e do Serviço de Colaboração Apostólica Internacional (SCAI), nascido em 1964, sendo

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que nele também está incluído o Centro de Animação e Estudos Missionários (CAEM). Muitos missionários católicos estrangeiros que chegaram e ainda chegam ao Brasil têm no CCM os seus primeiros cursos de formação no país, onde são abordados temas tais como missiologia, teologia, espiritualidade, realidade sócio-religiosa e cultural brasileira, assim como tem nele vários serviços de apoio em seu processo de inserção na realidade brasileira. O CCM oferece cursos de formação para missionários brasileiros que vão atuar no país ou no exterior, promove eventos e meios de troca de experiências missionárias, assim como estudos sobre missiologia e a articulação de redes de apoio e contato.85 No que se refere ao perfil mais geral do tipo de missionário atendido pelo CCM é possível perceber que muitos deles são vinculados a Ordens, Congregações Religiosas ou Sociedades de Vida Apostólica e, eventualmente, num grau bem menor, podem ser encontrados missionários ligados a algum Movimento Eclesial Ca-tólico (MECs). Por sua vez é importante ressaltar que é muito difícil encontrar ali missionário pertencente a alguma Nova Comunidade Católica. Neste sentido consideramos que o perfil dos missionários que passam pelo CCM remete-se aos dos missionários daqueles grupos que denominamos anteriormente de “modeO uso do termo “hub” (“pivô” em inglês) é muito comum na área de informática e de aviação comercial. No caso da área da informática um “hub” costuma ser um aparelho que funciona como concentrador cuja finalidade é realizar o processo pelo qual se transmite ou difunde determinada informação, tendo, como principal característica, que a mesma informação está sendo enviada para muitos receptores ao mesmo tempo (broadcast). No caso da aviação comercial, os “hubs” são os centros de conexão, que são as designações dadas ao aeroporto utilizado por uma companhia aérea como ponto de conexão para transferir seus passageiros para o destino pretendido. 85

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lo tradicional”. E aqui podemos citar exemplos de ordens e congregações tais como a Congregação dos Scalabrianos, das Irmãs Missionárias da Consolata, Congregação das Missionárias de Santo Antônio Maria Claret, Ordem dos Frades Menores, Pia Sociedade Filhas de São Paulo, Orionitas e muitas outras. Outro aspecto que chama a atenção na atuação do CCM se refere ao tipo de formação dada. Trata-se de uma formação ampla e abrangente onde é possível perceber que uma acentuada atenção também é dada no sentido de que essa formação sensibilize os missionários a uma evangelização voltada para o suporte material e espiritual aos mais pobres, aos mais necessitados. Nesse sentido podemos considerar que o CCM demonstra ter bastante proximidade com uma concepção de Igreja Católica que emergiu e se desenvolveu na América Latina na segunda metade do século XX e cujo fundamento é uma “opção preferencial pelos pobres”. Esta concepção de uma Igreja que opta preferencialmente pelos pobres ganhou forma e volume a partir da atuação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM, criado em 1955) e tem como dois importantes pontos de referencia a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Medellín, Colômbia, 1968) e a III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Puebla, México, 1979). Dois fatos que podem ser tomados como essenciais a essa opção foram a criação da CNBB (1952) e CELAM (1955). Essas entidades são fundamentais na definição do papel e do lugar que a Igreja Católica brasileira e latino-americana passa a ocupar dentro do campo eclesial e eclesiástico católico global e se tornaram, no âmbito nacional e continental, respectivamente, referência e instrumento de articulação da

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Igreja Católica do Brasil e da América Latina. Igualmente estamos tratando de formas de ação mais articuladas por parte do episcopado e clero brasileiro e latino-americano, algo muito relevante numa organização profundamente hierocrática como a Igreja Católica. Esse novo papel, força e posição ocupada pela Igreja Católica brasileira e latino-americana dentro do campo eclesiástico católico mais universal é muito significativo nesse meio bastante complexo, que tem a Santa Sé (com a Cúria Romana) no seu centro, mas no qual também estão presentes, agindo, se movendo e entrando em disputas os mais diversos tipos de grupos e organizações sociais e religiosas, que expressam os mais diversos interesses e concepções de mundo acerca do catolicismo e sua Igreja. O destaque que estamos dando aqui ao surgimento do CELAM e CNBB decorre do fato de que eles são fundamentais para a viabilização e subseqüente ação de uma Igreja Católica latino-america e brasileira. Ambos forjam um “rosto” (dão visibilidade), produzem discursos mais articulados, criam condições para uma ação mais conjunta por parte do que vem a ser a Igreja Católica no Brasil e America Latina, com seus agentes e grupos constitutivos. É possível considerar como expressão maior de um “rosto, voz e ação” dessas Igrejas Católicas latino-americanas e brasileiras os desdobramentos das Conferências de Medelín e Puebla quando elas decidem que a Igreja Católica nesse continente deve fazer uma “opção preferencial pelos pobres”. Esta postura dá uma grande visibilidade e peso à Igreja Católica tanto no continente quanto e principalmente dentro do contexto católico universal. Uma das consequências dessa “opção pelos pobres” foi terem se transformado países latino-americanos, como o Brasil, em importantes centros de atração de missionários (as) católicos (as) sensíveis às questões sociais e que 291

desejavam atuar para além das fronteiras de seus países de origem, notadamente da Europa. Observemos um detalhe desse movimento missionário: num primeiro momento temos missionários europeus vindo para o Brasil, mas pela primeira vez de forma evidente, missionários europeus chegando à America Latina e no Brasil e encontrando uma Igreja Católica local mais articulada. Isso se dá, pari passu, com a emergência e peso das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação. Ou seja, há uma percepção/leitura de que existe “uma Igreja Católica Latino-Americana”. O segundo movimento desse fenômeno é o surgimento de missionários brasileiros formados nesse contexto e que irão atuar além-fronteiras. Sendo que grande parte das e dos missionários católicos brasileiros das últimas décadas do século XX é marcada pelas características desse período, onde converge um modelo mais tradicional, somado às concepções de uma Igreja Católica de perfil latino-americano. Nas primeiras décadas do século XXI, contudo, começou a ganhar espaço um novo tipo de missionário e de missão no catolicismo brasileiro. Tratam-se dos missionários e missões vinculadas aos novos movimentos eclesiais católicos, mais especificamente ao Movimento de Renovação Carismática Católica (RCC) e, de forma ainda mais particular, ligados às Novas Comunidades Católicas (Carranza, Camurça, Mariz, 2009). Essas missões e esses missionários são em número cada vez maior e seguem um caminho de formação e ação muito diferente do modelo que sinalizamos anteriormente. Usualmente são formados pelas suas próprias comunidades (é muito difícil, quase impossível, encontrar algum deles no Centro Cultural Missionário, por exemplo), entende como

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sua missão propagar o carisma específico de sua própria Nova Comunidade, uma grande parte tem vínculos fortes com o pentecostalismo católico, são geralmente leigos, formam comunidades mistas (com homens e mulheres), podendo ser elencada uma série de características que os diferem do modelo de missionário e missionarismo mais tradicional da Igreja Católica. O perfil daqueles que serão atingidos pelo trabalho de missão também muda em relação ao modelo que apresentamos acima. Por exemplo, nas novas agendas dessas missões das Novas Comunidades o “pobre” a ser atingido pelo trabalho missionário não é mais (ou apenas) aquele que é vitima das injustiças e desequilíbrios sociais que atinge a América Latina. Não são tão somente aqueles que estão sendo exploradas, vítimas das injustiças sociais. Não são propriamente os “excluídos” gerados pelas contradições da sociedade capitalista, conforme a linguagem dos muitos grupos sensíveis a este tipo de questão. Cabe salientar que a expressão “excluído” tornou-se muito comum dentro do universo da Igreja Católica nos dias de hoje, sendo consagrada pelo atual Papa Francisco. O termo “exclusão” pode estar se referindo não apenas a exclusões de natureza socioeconômicas, mas também a “exclusões” de outras ordens. São os casos, por exemplo, dos emigrantes brasileiros que se deslocaram para países desenvolvidos em busca de oportunidades, onde começaram a formar comunidades de diáspora. Muitas dessas comunidades de certa maneira também são comunidades de “excluídos”, particularmente no que diz respeito aos limites impostos a sua integração na sociedade receptora. Há casos entre esses missionários e essas missões além-fronteiras em que estes

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vão atuar junto desses migrantes, conforme o tipo de presença da Igreja Católica nos locais onde eles se encontram (Martins, 2012). Há também aqueles missionários que entendem que sua missão está voltada para as “exclusões espirituais”. Isto é, não aquelas de ordem mais material, decorrentes de algum tipo de desigualdade social, mas aquelas que são entendidas como típicas de sociedades que estão sendo marcadas pelos processos de secularização, desarranjos familiares, hedonismo, individualismo. Em suma, estamos falando de interpretações católicas sobre formas específicas de “exclusão”. Estamos tratando das leituras e diagnósticos que esses grupos produzem sobre vários dos problemas e desafios que são típicos de um mundo globalizado. É nesse contexto que se insere e vem ganhando força esse novo tipo de ação missionária católica brasileira, de tipo reverso, cada vez mais presente no continente europeu. São missões que entendem caber também a elas o empenho de “re-evangelizarem” o continente europeu, que estaria já há algumas décadas sendo marcado por uma cultura secular em contínua expansão. Este é sem dúvidas um dos pontos principais a animar esse novo tipo de agenda missionária católica, próprio do missionarismo além-fronteiras dessas Novas Comunidades Católicas. Uma agenda missionária que vem se ampliando através dessas missões reversas. Pensando isso a partir da relação centro-periferia típica da configuração eclesiástica católica, trata-se de algo que deve ser observado com atenção. É como se estivéssemos num momento de um jogo de cartas onde algumas delas estão sendo embaralhadas, onde podem estar surgindo coisas novas coisas, novas variáveis dentro do jogo. Como esse é

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um jogo dentro de um jogo maior onde catolicismo e Igreja Católica não jogam sozinhos, é possível que o fenômeno aqui colocado em evidência seja bastante útil para compreendermos alguns dos novos movimentos e lugares que vem sendo assumidos pela Igreja Católica e o catolicismo nesse grande jogo. O jogo onde estão em disputa tanto o lugar do religioso nas sociedades contemporâneas, quanto o lugar das religiões nessas sociedades. Estamos tratando dos movimentos mais amplos de transnacionalização religiosa (Oro, Steil, Rickli, 2012), onde há intensos fluxos e movimentos de religiões, atores e agentes religiosos que se movem com seus objetos, seus valores e visões de mundo, suas práticas e crenças, deslocando-se e assumindo novos significados e formas de ser. Movimentos estes que atingem grupos, sociedades, contextos completamente novos que não estavam no horizonte dos empreendimentos missionários de algumas décadas atrás, inclusive e notadamente dos católicos. Não podemos, portanto, negligenciar como isto vem se dando dentro do universo religioso brasileiro. É nesse sentido que nos são úteis os estudos sobre os novos tipos de missões cristãs e novas formas de ser missionário que vem se ampliando e ganhando relevância. Missões cristãs brasileiras essas, católicas e evangélicas (Mariz, 2009; Freston, 2010) que, frisa-se, apresentam características que estão em sintonia com os fenômenos mais atuais de transnacionalização. Por fim, um último comentário sobre o título deste capítulo: no dia 13 de março de 2013 o Cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito o novo líder da Igreja Católica, tornando-se o Papa Francisco. Em suas primeiras palavras diante da multidão que o festejava na Praça São Pedro afir-

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mou: “Foram buscar um Papa no fim do mundo!”. Bergoglio era o primeiro papa não europeu. O primeiro Papa latino-americano. A imagem de “fim de mundo”, bastante simbólico, sinalizava uma inversão de sentidos: o Papa vinha da periferia da Igreja Católica. Se pensarmos no aumento no número de missões católicas na Europa, originárias de países como o Brasil, não há como negar que não é só o Papa que está vindo do “fim do mundo”.

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A “CONSTRUÇÃO” DA IDENTIDADE AFRO-RELIGIOSA NA FRONTEIRA BRASIL, PERU E COLÔMBIA Reginaldo Conceição da Silva

O negro na tríplice fronteira Brasil, Perú e Colômbia: “breves considerações do lado de cá” A localização geográfica da tríplice fronteira86 “amazônica”, que configura a junção politica-administrativa dos países: Brasil, o Perú e a Colômbia, é uma das regiões de fronteira mais dinâmicas do País, graças ao processo de mobilidade que faz das cidades de Tabatinga - no Alto Solimões, em terras brasileiras e a cidade de Letícia - no Departamento da Amazonía, localizada na Colômbia, enquanto cidades gêmeas são interligadas via terra. A separação com a cidade de Santa Rosa - no Departamento de Loreto, no Perú, faz-se via Rio Solimões. Uma boa referência acerca da constituição política desta tríplice fronteira foi apresentada pelo pesquisador, Edgar Niño, ao discorrer sobre a integração regional escreve: Entendo que a “tríplice fronteira” é uma porção geográfica que limita a ação jurídica e política de uma Nação, onde as relações de natureza econômica e cultural são passíveis de fluidez vinculada às ações anteriormente citadas, porém a identidade de sua população é acondicionada ao modo de vida e uso/acionamento dos elementos geográficos e culturais que permeia a abrangência da tríplice fronteira. 86

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A Tríplice Fronteira foi criada depois da guerra entre a Colômbia e o Perú em 1932, por meio da ratificação do Tratado Salomón-Lazano de 1922 entre o Peru e a Colômbia. Os limites de Colômbia com o Brasil já estavam definidos por meio do Tratado García Ortiz-Mangabeira, de 1928, e entre o Brasil e o Peru com o Tratado de Comercio, Navegação e Limites de 1851 e com o Tratado de Demarcação, Comércio e Navegação de 1909 (Niño, 2012).

Quanto à ocupação da porção brasileira, estes Tratados e Acordos possibilitaram a tomada de medidas que fizessem jus ao processo de ocupação efetiva por parte do Governo brasileiro. Neste sentido, uma das medidas fora facilitar a entrada na Amazônia, região que durante muito tempo, ficara “esquecida” pelas iniciativas governamentais de ocupação. A extração de látex no século XIX e início do século XX foi um dos marcos no processo migratório interno. Nesta ocasião, milhares de nordestinos se dirigiram à Amazônia, convocados pelo governo brasileiro, em busca de novas oportunidades. Muitos destes eram negros, onde levaram consigo elementos de sua tradição religiosa. A cidade de Belém (no estado do Pará) e Manaus, no estado do Amazonas, receberam um fluxo maior dos negros que saíram do Maranhão, localizado entre a divisa das regiões Norte e Nordeste87. A este respeito, Bastide (2006: 219) conta: “Uma migração mais intensa entre o Maranhão e o Pará, na Amazônia. Diversos autores se encarregaram em descrever e analisar a presença e permanência dos negros na região Nordeste. Entretanto, sobre a religiosidade, Nina Rodrigues e Edison Carneiro são alguns dos mais citados nas atuais literaturas estudadas. 87

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Belém do Pará, que contava apenas com 400 mil habitantes em 1960, conta com 570 mil em 1970”, o que possibilitou uma maior integração cultural entre os indígenas que ali habitavam e os negros, recém chegados. Contudo, Eduardo Galvão, em pesquisa realizada no Baixo Amazonas, já apontava para a composição da população na região, ao etnografar a vida religiosa da população de uma pequena comunidade, denominada de Itá por Charley Wagley, que também fizera estudos nesta localidade, neste caso, escreve Galvão (1955: 1): O equilíbrio variável entre as três principais correntes étnicas, o ameríndio, o europeu e o africano, que foram formar nossa nacionalidade, a par de circunstancias históricas que atuaram diversamente na extrema faixa territorial, resultaram nessas variantes regionais da cultura brasileira.

Em Itá, a devoção a São Benedito, é um dos elementos em que a miscigenação cultural, traz um viés direcionado ao povo negro, dentro da perspectiva da religião ocidental, mesmo não sendo reconhecida e aceita pela Igreja Católica. Tendo ai, um pequeno recorte da religiosidade na Amazônia.

A Religião Afro-brasileira na Amazônia: um processo de consolidação e difusão Afro-religiosa A religião, enquanto prática sócio cultural, é hoje um dos objetos de estudos dos diversos campos acadêmicos, das ciências sociais, políticas, saúde e humanas. Por outro lado,

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na condição de estrutura organizacional de uma sociedade, na tríplice fronteira estudada, originalmente havia a Pajelança, que sofreu a interferência da Religião Católica e mais recentemente, vivenciara a Religião Messiânica, pelo “Irmão José”88. É muito comum também a presença de igrejas evangélicas, com predominância na porção brasileira. Das religiões de matriz africana, a Umbanda é a que primeiro chegou, com os militares do nordeste, na década de 1960, apenas no início do ano 2000, chegou o Tambor de Mina por meio de um ex-praticante da Umbanda que morou na cidade. A formação da afro-religiosidade, aconteceu com o passar do tempo, quando as relações sociais estabelecidas entre os indígenas e os africanos, frente à relação com o patronato amazonense, foi sendo ajustada conforme a legislação vigente em território nacional. Graças à semelhança da situação vivida por estes grupos étnicos, alianças comuns foram empreendidas para garantia de sobrevivência étnica e cultural da população que iniciava uma nova fase da história do Amazonas. Schwartz (2003), sobre o aspecto da religiosidade afro -brasileira no Amazonas, escreve: Nas numerosas religiões afro-brasileiras - espalhadas do Amazonas e Maranhão até Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro - os espíritos dos índios ou caboclos aparecem junto com entidades tradicionais Movimento sócio religioso de um líder que se dizia “messias”, que pregou e edificou igrejas pela região do Alto Solimões, na porção brasileira, na Colômbia e no Peru, entre as décadas de 1960 e 1980, foram muitos vistos em comunidades indígenas. Na literatura acadêmica, temos o professor Ari Pedro Oro como um dos mais importantes pesquisadores deste tipo messiânico na Amazônia. 88

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da África Ocidental. Igualmente, no interior de vários dos mais tradicionais terreiros nagôs da Bahia, o caboclo é reverenciado junto com os orixás. No sincrético culto de umbanda, a maior entidade é o caboclo, representando o indígena como símbolo da liberdade, assim como da caça e da defesa do terreiro, o espaço da devoção. Justamente nisso se verifica a possibilidade de integração dos espíritos indígenas na religião afro-brasileira, que efetivamente terminou resultando na criação do chamado ‘candomblé de caboclo’.

O que se percebe, na verdade, é que ocorreu uma consolidação de uma sociedade, antes minoritária e desprovida da assistência governamental, como a religião “aceita” - a católica - desde o tempo do Brasil Colônia. O contato inter -racial no interior da Amazônia possibilitou um processo se assimilação religiosa para ambos os lados. A permissibilidade, das manifestações afro-religiosas89, ainda neste momento histórico é estudada por Harris (1967), e citada por Figueiredo (1976: 8), da seguinte forma: O efeito do plantation sobre as sobrevivências dos elementos religiosos é de interesse todo especial... Uma vez que os cultos africanos constavam principalmente de danças rítmicas, de música e de cantorias em suas fases públicas, é provável que os senhores de engenho não apenas permitissem como até mesmo encorajassem esses vestígios africanos. Certamente quando trabalhavam no campo podiam os escravos cantar e marcar o ritmo, mantendo a produção do Como já citado anteriormente, Roger Bastide e Edison Carneiro apresentam uma visão antropológica aprofundada sobre esta questão. 89

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trabalho. Ao cair da noite, a dança com o acompanhamento de tambores era permitida e encorajada como diversão que ajudava a levantar o moral dos escravos. Enquanto os escravos faziam tentativas de associar o panteão africano ao panteão católico, seus senhores não ficavam particularmente interessados com tais atividades pagãs.

Esta situação fez surgir uma estrutura organizativa distinta religiosamente, a partir da Igreja Católica e da Pajelança90, fontes dos elementos sincréticos, por pressão do dominador, frente aos povos dominados. Contudo, as práticas religiosas antes distintas entre si, necessitou passar por um processo de estruturação e organização interna. Figueiredo (1976: 8) afirma ainda que: Assim, o mundo sobrenatural e as instituições religiosas existentes no interior da Amazônia são a resultante, como a própria subcultura amazônica de integração dos elementos culturais, de que eram portadores os que participaram do processo de colonização da região e as mudanças culturais hoje encontradas são decorrentes da transformação de uma sociedade colonial de índios, portugueses, africanos e mestiços, na atual sociedade amazônica.

Monique Augras (2008: 30), sobre a formação do Candomblé de Caboclo, escreve: “Nas regiões onde dominava a Figueiredo narra um processo de assimilação pela Pajelança de prática de magia negra, atribuída aos cultos africanos, nos anos de 1930. Outras passagens no tocante à incorporação coletiva, entidades que se denominam negra, e seus feitios, direcionam nossa discussão para o efeito do contato inter-religioso e sua posterior adaptação ao novo. 90

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influencia indígena, como Norte e Nordeste, o culto de espíritos dos caboclos e seus deuses (encantados), concorreu para a mistura de crenças”, e sobre a Umbanda, com base em Roger Bastide [1971], complementa, “A macumba está sofrendo atualmente um forte processo de transformação. Passou a integrar uma nova religião que congrega elementos africanos, indígenas, católicos, espíritas, ocultistas”. Estas transformações praticamente se fazem presentes em todas as regiões onde o contato inter-étnico ocorreu, como também salienta a autora. Durante muito tempo, e até o século passado, o Estado Nação, não “permitia” o livre exercício afro-religioso, por motivos de “ordem e saúde pública”, por não ser a religião “oficial” da Nação, os sacerdotes das religiões de matrizes africanas91 eram obrigados a se cadastrarem nas instituições policiais dos respectivos estados92. Isto porque, por mais que os senhores de escravos tentassem mudar a estrutura social dos escravos, estes buscavam meios de se adequar aos moldes de vida, da religiosidade, da língua, etc, do seu senhor e, assim, poder resistir, Insere-se neste contexto: Tambor de Mina, Candomblé, Terecô, Batuque, Macumba que, praticadas em diferentes regiões do Brasil, demostram sua relação com povos africanos. E, em muitos casos, a Umbanda. Esta, apesar de ter sua origem em terra brasileira, na década de 1920, absorveu muitos elementos dos cultos de origem africana. Por esta razão, incluiremos a Umbanda como religião de matriz africana. 92 A este respeito, Brígida Malandrino (2006) e Monique Augras (2008) dissertam muito bem. Ambas direcionam seus trabalhos à questão da Saúde, sobretudo no aspecto da Psicologia. Destaco a esta passagem de Brígida (2006: 45): “Todas as religiões são repositórios da experiência transpessoal e de imagens arquétipas e, por isso, o propósito original das cerimônias religiosas de todos os tipos é propiciar ao indivíduo a experiência de um relacionamento significativo com essas categorias de natureza transpessoal”. 91

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preservando sua própria cultura, formando comunidades, irmandades e em casos de fuga, os quilombos. Segundo Santos (2012: 310), “o próprio sistema escravista encarregava-se de modificar profundamente as relações sociais e culturais dos indivíduos escravizados”. Esta situação fora descrita por Teixeira (1993), citado por Lima e Fonseca (2011:12): Para que os terreiros funcionassem, era preciso que se registrassem na delegacia de jogos e diversões e, para realizar certos eventos ligados as suas práticas religiosas, tinham que pedir permissão ao poder judiciário e, obtida a licença, podiam funcionar até determinado horário, muitas vezes monitorados pelas forças policiais.

Mesma situação descrita por Figueiredo (1976: 10): Constata-se, igualmente, a existência de um grande número de casas de culto, sem filiação associativa e sem registro policial, disseminadas pela cidade, dos subúrbios mais distantes aos modernos edifícios de apartamentos no centro urbano, que funcionam como cultos domésticos ou familiares, reunindo parentes e amigos mais chegados em determinados dias da semana, para a realização do cerimonial.

Em sequência, Figueiredo (1976: 11), descreve ainda que, os Terreiros de Candomblés, tinham como “clientela que frequenta essas casas de culto (associadas ou não) encontram-se representadas todas as classes sociais da cidade: o proletariado urbano, a classe média-baixa; a classe médiamédia; a classe média-alta e a classe alta”. 306

Isto, de uma forma indireta, colocava o sacerdote e demais membros afro-religiosos em situação de aceitação, mesmo que às escondidas, do sistema religioso e médico oficialmente reconhecidos por parte da sociedade (elite), mas não oferece aos praticantes da religião de matriz africana, plenos direitos de civis, aptos a gozarem de uma cidadania, já em expansão desde o século XVIII. Não se trata de um trânsito religioso, como analisado por Malandrino (2006: 51) em seu trabalho, Umbanda: mudanças e permanências. Uma análise simbólica, onde justifica: o trânsito de pertença religiosa, ocasionado pela mudança de pertença religiosa, em que o sujeito religioso muda de confissão religiosa, adotando dogmas e doutrinas de uma nova religião, embora no caso dos afro-religiosos da cidade de Tabatinga, possa também existir tal situação, da qual chamaria de reestruturação do fazer afro-religioso, diante das adversidades, como práticas de resistências de natureza identitária93. Os países da tríplice fronteira tem por matriz religiosa o catolicismo. No entanto, a pesquisa de campo identificou aproximadamente sete terreiros de Culto aos Orixás e Umbanda, prestando serviços mágicos religiosos a “clientes” de nacionalidade peruana e colombiana. Na fronteira com os países vizinhos existem entraves culturais que retardam a implantação de terreiros em seu território, fazendo com que o Brasil sedie Terreiros. Este fato não impede que, no Peru e na Colômbia, encontremos pessoas que praticam a pajelança com práticas de Esta questão está sendo levantada no trabalho de pesquisa para a produção da Dissertação de mestrado do Autor, junto a Universidade Estadual do Maranhão. 93

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incorporação e entidades semelhantes às cultuadas na Umbanda. Fato semelhante ao que estudou Figueiredo em 2008, na sua obra A cidade dos Encantados: Pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileira na Amazônia 1870 a 195094.

A “construção” da identidade afro-religiosa na fronteira Brasil, Peru e Colômbia Como vimos anteriormente, a Amazônia possuía em comum nestes três países - Brasil, Peru e Colômbia, as características físicas e naturais. Quanto à população, encontrava-se aí os indígenas da etnia Tikuna95, que ainda hoje habitam boa parte do Alto Solimões. Politicamente os povos de origem hispânica e portuguesa, após definirem suas fronteiras e marcarem assentamentos, desencadearam um processo de mistura sociocultural da qual a religião seria uma das expressões que perpassaria as gerações. O contexto locacional do campo de pesquisa, possibilita uma série de indagações que se articulam a “construção” de Em um excelente trabalho, a pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, Camila do Valle, escrevera uma obra denominada cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará, e contou com a participação de Sacerdotes das diversas denominações religiosas de matriz africana nesta cidade. Através desta obra, publicada em 2012, o leitor terá um registo das origens das “Casas” estudadas e suas origens no momento em que a atividade afro religiosa de Tabatinga ainda era incipiente. 95 Indica-se o nome do pesquisador João Pacheco de Oliveira como o maior pesquisador dos povos indígenas Tikunas da atualidade. Não é do nosso interesse aprofundar a questão religiosa destes indígenas que, como falamos, em parte está presente em obras de Ari Pero Oro. 94

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uma identidade afro-religiosa, em consonância a identidade étnica ou nacionalista, que nos permite refletir sobre: quais abordagens sobre a fronteira estão em jogo? Quem são os afro-religiosos que vivem após os marcos de divisa entre o Brasil do Peru e da Colômbia? Até que ponto a religião afro -brasileira influencia as práticas e modos de vida religiosa ameríndia nos países vizinhos? E de que forma as práticas e modos de vida religiosa ameríndia influenciam as religiões de matrizes africanas no Brasil? Saindo da classificação inerente ao “geografismo”, ao qual combate o pesquisador Alfredo Wagner, em Antropologia dos Archivos da Amazônia, podemos conceber a fronteira enquanto espaço de vida subjetiva, onde nos deparamos com elementos culturais distintos da soberania identitária de um indivíduo ou de sua coletividade. Ao longo de três meses, participei de atividades públi96 cas em sete Casas de culto aos Orixás e/ou Umbandas. Nestas ocasiões, os Orixás Omolú e Ogun, cultuados em uma Casa cada, enquanto os Caboclos e Exús em três casas alternadamente, e em duas casas as atividades eram mistas, ou seja, as celebrações eram para os Encantados e Exus. Sobre os cultos mistos com Voduns, Orixás e Caboclos na Amazônia, Bastide (2006: 232) já escrevia que “migrantes negros vindos do Maranhão transportam esses cultos para a Amazônia, onde tiveram forte difusão: a população nativa, na qual domina o sangue indígena, aceitou-os, mas combinando-os naturalmente com suas antigas religiões populares”. São celebrações abertas ao público em geral, onde se pode conversar com as Entidades Encantadas, com os Caboclos, Exus, Pretos Velhos e Erês. Tais celebrações fecham alguns ciclos de rituais internos de iniciação ou podem ser “festas” dedicadas a agradecer à divindade ou patrono daquele Terreiro. 96

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Como se percebe, os cultos mistos, neste sentido, possibilitaram “o casamento dos deuses africanos com os espíritos ameríndios é o reflexo ou a expressão no nível da consciência religiosa das massas”97, assegura Bastide (2006: 233). A que caracteriza a natureza deste estudo é uma Casa de Umbanda, liderada pelo “Pai Jairo”, um jovem de aproximadamente 27 anos, que está à frente do Terreiro há três anos. Com aproximadamente 6x4 de área, com estrutura de madeira, é um Terreiro de uso consorciado com sua Filha de Santo, Dona Lúcia. Uma das afro-religiosas mais antigas da cidade e que não possui filhos de santo. Na parte interna, há cinco espaços consagrados em forma de altares. No centro, sob uma bancada, os Santos da Igreja Católica sob este, um pequeno altar contendo uma quartinha e uma tigela, como símbolos da religião afro. À direita deste os tambores e à esquerda imagens de Índios. Ao lado direito da porta, imagens de Exus e do lado esquerdo os Pretos e Pretas Velhas. É um salão de culto onde seu uso é específico as atividades festivas. As atividades religiosas propriamente ditas são feitas em sua residência.

Recomendo para conhecimento, Santos (2012), “religiões de matriz africana no Pará: entre a política e o ritual”, onde a autora aponta os primórdios das religiões afro-brasileira naquele estado. Sua contribuição maior é apresentar um panorama que envolve estas religiões, as expressões políticas e como elas contribuíram para a identidade dos praticantes da Mina Nagô e do Candomblé paraense, com as práticas de Pajelança. Neste trabalho em questão, Cordovil finaliza: “Atualmente, as religiões de matriz africana passam por um importante momento na sua trajetória de conquistas de direitos, suas lideranças aprendem novas gramáticas políticas e sua mística e ritual refazem-se a cada dia nos novos contextos de pluralismo religioso da sociedade contemporânea” (Santos, 2012: 71). 97

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Apesar de novo, “Pai Jairo” tem cerca de dezoito “filhos de santo”, muitos dos quais com idade superior a dele. Percebe-se que há um fluxo nas participações dos filhos do “Pai Jairo” em outros terreiros, porém sob sua supervisão. Durante os três meses de acompanhamento, nas atividades públicas das casas de Matriz Afro-brasileira em Tabatinga, percebi que há uma interatividade entre os praticantes da Umbanda com os de Tambor de Mina. Chegamos a contabilizar vinte e cinco pessoas nas “giras” - alusão ao movimento circular que é feito durante os cânticos e posteriores incorporações - a maior parte formada por jovens do sexo masculino. Dois possuem dupla cidadania: brasileira e peruana. Os demais são brasileiros e nascidos na região de fronteira. As mulheres são mais velhas e têm mais idade e já possuíam outro Pai de Santo. Duas são peruanas e uma tem laços familiares com indígena da etnia Tikuna. A média dos visitantes, também chamados de assistência, é de dez a quinze pessoas. A maioria é composta por mulheres e de adolescentes, com faixa etária média de quinze a quarenta anos. Quanto à origem, são peruanos, colombianos e brasileiros, que vão a estas cerimonias em busca de contato com entidades para suprir as diversas necessidades, como afirma Malandrino (2006: 44): “É possível supor que a busca de novos credos ou mesmo a construção individual da religiosidade estão intimamente ligadas à necessidade do indivíduo de dar sentido a sua vida”. Neste sentido, o processo de “construção da identidade” destes praticantes da religião de matriz africana, no interior da Amazônia e em confluência de três países, é mais dinâmico quando se refere às atividades mágico-religiosas e de

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práticas divinatórias do que as atividades públicas por mim acompanhadas. Thiago dos Santos, em um artigo intitulado “História e Construção da Identidade religiosa afro-brasileira”, aponta a contribuição dos fatores históricos em que os negros viveram, desde o continente africano até em terras brasileiras, no processo de contínuas mobilizações sociais e políticas em tempos de escravidão. Neste aspecto, aponta ele, o papel das lideranças de terreiros, as Ialorixás, na década de 1980, nos primeiros ensaios da identidade afro-religiosa no Brasil. Sobre identidade religiosa escreve Thiago: “que a Identidade é fruto de uma tomada de posição e esta e feita levando em consideração momentos passados, que contribuem para uma definição identitária seja ela qual for”. Malandrino (2006: 43) por sua vez considera que: “O indivíduo constrói sua identidade religiosa apropriando-se dos elementos necessários à satisfação de suas necessidades em termos de comunicação emântica e religiosa, havendo assim um intercâmbio crescente de atitudes, práticas e conceitos religiosos”. Retomo o conceito de identidade, aferido por Manuel Castells, (2012: 22), em O poder da Identidade. Para ele a “identidade é a fonte de significado e experiência de um povo”. Nesta perspectiva, diversas fontes de significados podem ser incorporadas pela vivência do ator social, seja individualizado ou coletivizado na tríplice fronteira. Dialogando com Malandrino (2006: 44), “O indivíduo pensa em mudar a si mesmo ou em realizar o mais amplamente possível suas potencialidades. A religião deixa de ser dominada pela tradição de um povo ou uma comunidade para se tornar objeto de escolhas e gostos do individuo”.

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Considerações Finais Os fatores históricos de natureza religiosa no Estado do Amazonas e na mesorregião do Alto Solimões, na porção brasileira da Tríplice Fronteira, e nas divisas entre o Peru e a Colômbia, serviram para atribuir uma única característica matricial com fortes impactos sobre os povos indígenas e a população não indígena que vivem neste espaço. Aos poucos, a Tríplice Fronteira vivenciou movimentos reli-giosos contemporâneos como o Messianismo e Evangelismo, cada um com sua estrutura de persuasão, apresentando-se como “nova” pelo seu fazer religioso, agariando simpatizantes, alguns não convertidos da Igreja Católica. Neste aspecto, não se pode afirmar que ocorreu uma espécie de “afroreligiosismo” na Tríplice Fronteira. A presença da religião Afro-brasileira - Umbanda e Tambor Mina - na cidade de Tabatinga, com a constante participação e procura por parte de peruanos e colombianos, desde os primeiros terreiros (1975) já fechados, e mais recente (2000), registra sete Terreiros, com aproximadamente cinquenta fiéis, estão construindo uma nova identidade social, cujo elo se faz pelo culto aos Orixás, Voduns, Encantados, Caboclos, Exus, Pretos e Pretas Velhas. O uso do termo “construir”, aliado a identidade, de modo relativizado, faz alusão à forma que os líderes e seus seguidores vêm empreendendo o exercício afro-religioso que se caracteriza uma “comunidade” tradicional em contexto de “resistência” de diversas naturezas. Acredito que a continuidade nas pesquisas com estes agentes sociais pode garantir uma melhor visibilidade deste processo de “construção” de identidade em andamento. 313

As estratégias adotadas para a difusão da Umbanda e do Tambor de Mina, além da fronteira brasileira, são aceitas pela população que procura os serviços mágico-religiosos e eventualmente os festivos, algo que constatamos ao longo do desenvolvimento deste estudo.

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A DESCOBERTA DE PUTAMAGAL PELO CABOCLO PENA DOURADA Joana Bahia

Introdução Este texto aborda a transnacionalização das religiões afro-brasileiras e de que modo nas práticas cotidianas dos terreiros de candomblé, analisados no trabalho de campo realizado em Portugal, temos metáforas sobre os processos pós-coloniais, especialmente na circularidade de ideias do chamado Atlântico Negro. Analisa os conflitos presentes na linguagem religiosa e em especial as representações e imagens ambíguas construídas sobre as relações entre Brasil e Portugal. “Corpo Como um mapa sagrado, Em ti desenho o pecado. Escrevo o mundo no meu Corpo Com um toque divino, Faço da pele o destino. Sente nas mãos este meu Corpo Uma estátua ardente, E a cada toque teu…

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Leva o meu Corpo Por um momento eterno, Fazes-me a vida um inferno. Escondo um louco no meu Corpo, Um infinito prazer.”98

Brasil e Portugal: uma frágil irmandade Na década de 1990, a crescente imigração brasileira para Portugal, somada à exibição de novelas brasileiras pela mídia portuguesa, levou a uma sensação de invasão brasileira, o que se agravou recentemente no auge da crise no país, em que se acirra a disputa pelo frágil mercado de trabalho entre brasileiros e portugueses. Início meu trabalho de campo em Lisboa em meio a uma crise política em março de 2011 e aos dias que antecedem à demissão do primeiro-ministro José Sócrates (em 23 de março), bem como às reverberações em torno da visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - na ocasião condecorado como doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra - e da presidenta Dilma Rouseff, em 30 de março99. Música Diabo no corpo, cantada em dueto por Pedro Abrunhosa e Lenine. Considero significativa das relações corporais como metáforas pós-coloniais a ideia de que o corpo é inscrito nessas relações, tendo um mapa construído pela presença de um outro. 99 Agradeço o suporte institucional do Instituto de Ciências Sociais e financeiro da Fundação Gulbenkian/Portugal que me permitiu realizar trabalho de campo nos terreiros de candomblé da região norte do país, buscando verificar como se dá a transnacionalização da religião afro-brasileira em Portugal. 98

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Agenda de greves de transportes dos partidos de esquerda e manifestações de várias ordens são praticamente diárias na Grande Lisboa. Havia um temor no ar de que novamente as relações no plano internacional se invertessem. Se, nos anos 1980 (Feldman-Bianco, 2010: 65), o Brasil deixa de ser uma nação historicamente de imigrantes e passa a ser de emigrantes, por sua vez, Portugal, após a dissolução de seu império e a entrada no bloco europeu, torna-se receptor das migrações de suas ex-colônias, em especial dos brasileiros. Agora temos um novo posicionamento do Brasil no plano econômico e político internacional e o questionamento da posição geopolítica semiperiférica de Portugal diante da crise europeia e da atual emigração de portugueses para suas ex-colônias. Com a visita dos presidentes brasileiros, o orgulho dos portugueses nas ruas, especialmente das gerações mais antigas, estava decididamente abalado com os comentários pouco sutis da imprensa portuguesa diante da possibilidade de Portugal se tornar credor do Brasil. Por que pedir dinheiro aos brasileiros? A ideia de a metrópo-le “virar colônia” foi uma das tônicas nas vielas de Lisboa a Caparica (área de grande concentração de brasileiros). Enquanto isso, os brasileiros pensavam no retorno. Seria viável voltar depois de tantos anos ao Brasil? Para uma economia que sempre nos traiu? E para onde? Para uma cidade perdida no meio de Rondônia? Lembrando que muitos brasileiros saem de cidades que pouco se veem nos mapas brasileiros e que se encantam pela “metrópole” Lisboa. Aos poucos, reconstroem o difícil retorno, e outros repensam o que de libertário houve no próprio movimento de migrar. Assim, talvez não valha a pena voltar, principalmente pela liberdade de ser outro brasileiro, com outra religião, novas opções sexuais e liberdades 323

e direitos que talvez não tivessem no Brasil. Migrar não se trata de um reflexo de cunho econômico, mas um fenômeno complexo, que reúne várias facetas, incluindo a de ordem afetiva e pessoal. Essas questões fizeram parte de minhas primeiras semanas como imigrante e também como pesquisadora das migrações e religiões. Dessa vez, as questões estavam conjugadas no tempo presente. E novamente emergem inversões nas relações entre os dois países, em que as representações negativas apresentam Portugal como “país” mais atrasado que o Brasil, este mais à frente que a “antiga metrópole”. Imagens que evocam preconceitos mútuos. A ambiguidade das relações entre brasileiros e portugueses envolve diferentes conflitos e negociações vividos na comunidade portuguesa no Brasil e na brasileira em Portugal, algo que perpassa longa história. “Estar de costas ou de frente para o Atlântico”, aparente dúvida do Estado português, significa também uma solução encontrada para a internacionalização da economia portuguesa, que se volta para seus antigos espaços coloniais, considerando os “territórios supranacionais da língua portuguesa” (Feldman-Bianco, 2010). Não obstante as telenovelas fazerem muito sucesso no país, somadas às propagandas turísticas, corroboram a ideia de que no Brasil a licenciosidade sexual é regra, implicando uma espécie de vale-tudo nas relações pessoais, o que reforçaria a ideia de malandragem como parte das estratégias de ascensão usadas no plano tanto pessoal quanto profissional. Piadas de que no Brasil só há prostitutas e jogadores de futebol são frequentes no país (Machado, 2009). Nesse sentido, os portugueses interpretam os brasileiros a partir do binômio sexo-malandragem. No cotidiano,

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esses estereótipos seriam tão importantes que significariam não apenas a delimitação de espaços de trabalho reservado aos brasileiros, mas também se estenderiam para outros planos da vida social. A noção presente no senso comum português de que a alegria e a simpatia fazem parte da essência do ser brasileiro, “naturalmente” adequado ao atendimento ao público, lhes reserva no mercado de trabalho o serviço em hotéis, bares e casas noturnas (Machado, 2009). E também na prostituição. “Vagabundos” e “mulatinhas”, “horda de negros e macaquinhos”, são expressões usadas na descrição dos brasileiros entre a Independência e a Primeira República (Ribeiro, 2010), sendo retomadas na competição pelo mercado de trabalho em Portugal. E os estereótipos de gênero entram na forma como serão classificados os brasileiros; transformam os(as) “brasucas” em “mulatos(as) tropicais”, em especial em 1981, momento em que Portugal entra na Comunidade Europeia, “mais branca e civilizada”. Por exemplo: em 1993, o então primeiro-ministro Cavaco Silva relacionou, em público, os brasileiros, em especial os travestis, com a criminalidade que o país buscava combater. Paralelo a essas construções estereotipadas dos brasileiros permanece um discurso no imaginário português de que estes são imunes ao racismo, seguindo sua vocação ecumênica e predisposição de bom convívio com vários povos (Castelo, 1999). Já o modo “português de estar no mundo” foi construído pelos intelectuais portugueses, ao se apropriarem, a partir dos anos 1950, da ideia de luso-tropicalismo, de Gilberto Freyre, para revisarem a ideologia colonial portuguesa (Thomaz, 2002).

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Mas em que momento, nesses jogos identitários, somos o mesmo ou o outro? A retórica da irmandade, segundo a qual os portugueses são “fraternos com seus irmãos latino-americanos”, fazendo referência à extensa relação histórica que possuem com o Brasil, às redes de parentesco e casamento entre inúmeras gerações e aos fluxos migratórios (Gomes, 1998; FeldmanBianco, 2010), promove a ideia de homogeneidade e proximidade em momentos de crise econômica e política, o que torna ainda mais complexas as fronteiras culturais entre os dois países. Ser portuga ou português de alma brasileira, ser brasuca ou luso-brasileiro podem depender muito das circunstâncias sociais e políticas e em que medida se identifica ou se é identificado como um igual ou não.

Novos mapas pós-coloniais McClintock (1995) mostra, no romance As minas do rei Salomão, de Henry Rider Haggard, um mapa imaginário desenhado por um português morto nas montanhas da África do Sul. O desenho representa não apenas de que modo o mapa é parte recorrente nas narrativas coloniais, mas também como seus traços são sexualizados. A terra é a mulher, sendo ocupada pelos líquidos do corpo masculino, investido com autoridade em um “patrimônio” que será herdado por seus descendentes, condizente com a ideia de este ser guardião de um “tesouro sagrado”.

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No romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, vislumbra-se a reprodução da imagem do português “sanguessuga”, explorador do corpo colonizado da mulher brasileira, passível de se subjugar à vontade do colonizador. Mas será que o sexo pode ser reduzido a esse tipo de dominação, ou teremos no sexo do/ou com o outro imagens de novos perigos? Em um único gesto, desenham-se três dos temas do imperialismo ocidental (McClintock, 1995): a transmissão do poder do homem branco por meio do controle da mulher colonizada, a emergência de uma nova ordem global do conhecimento cultural e o comando imperial do capital. Entretanto, o mapa contém um paradoxo. Se, por um lado, se vê o caminho que homens têm de trilhar para chegar às minas, por outro, ao ser visto de cabeça para baixo, observamos o desenho do corpo feminino. No mapa, a genitália feminina é chamada de “as três bruxas”. Estas sinalizam a presença dos poderes femininos alternativos e, paralelamente, as noções africanas de tempo e conhecimento, elementos que desafiam o poder imperial, que os negam pela inversão e controle. Mas será que são negados? Ou será que também desejam ser ocupados, inscrevendo em seus corpos novos mapas? Como essas questões se apresentam na esfera religiosa? A presença das entidades é apenas real para os religiosos e irreal para os pesquisadores. Isso mostra que, não obstante os espíritos serem parte da pessoa, não são parte da realidade descrita. Baseando-me nos trabalhos de Hayes (2011), Boyer (1993) e Wafer (1991), realizo uma “etnografia dos espíritos”; tomo como ponto de observação os efeitos e

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os produtos da possessão para seus praticantes100 e também busco entender como se dão as práticas rituais, a fim de identificar não apenas apropriações e sincretismos, mas de que modo na linguagem religiosa há metáforas pós-coloniais que envolvem as representações sobre a circularidade de símbolos no chamado Atlântico Negro (Gilroy, 2001). Segui, então, o espírito do caboclo Pena Dourada, a fim de perceber as circularidades de algumas práticas religiosas em ambos os países. Lembramos que os espíritos da umbanda falam um português arcaico, especialmente os caboclos, espíritos dos índios brasileiros, considerados os primeiros habitantes do Brasil, que falavam tupi e guarani antes da chegada dos portugueses. No candomblé, os caboclos são considerados os filhos dos orixás, e estes, quando incorporados, a eles assim se referem, afirmando que foi o pai ou a mãe que os mandou. Filhos de Xangô têm caboclos de Xangô, e cada caboclo se refere aos atributos do orixá. No caso aqui analisado, o caboclo é relacionado com Iansã. Portugal é chamado pelo caboclo de Putamagal, uma alusão à ideia de que ele veio antes dos putamagaleses, em uma fina ironia de quem migrou juntamente com seu cavalo (aquele que o incorpora), que denota a visão de um índio brasileiro em terras lusitanas. E, por sua vez, seu cavalo tinha um avô português. Em sua prática ritual, carrega a bandeira do Brasil nas costas, com o peso de quem não apenas carrega a nação e a identidade, mas também desconstrói sua história, ressemantizando os trânsitos coloniais pelo uso da ironia. Concordo com Birman (2005) quando afirma que valorizar o ponto de vista do médium permite a melhor compreensão das relações de gênero e o espaço concedido à sexualidade, tema que desenvolvi em campo e em artigo que se encontra ainda no prelo. 100

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Nesse sentido, o uso da ironia pelo caboclo é uma crítica ao excesso de conceitualização da realidade social, criando novas alternativas de sentido (Jeudy, 2001). Mais do que simples desencanto do mundo, o uso da ironia implica o prazer de jogar com os sentidos, zombando dos modelos de interpretação e dos códigos de compreensão. A ironia também pode ser compreendida como um projeto político distinto, juntamente com o humor, passíveis de provocar o debate. A ironia contrapõe o poder ao poder. Qual a realidade que o caboclo fabrica? Polissêmicos e irônicos, os caboclos também são os donos da terra, primeiros habitantes da floresta e das matas brasileiras (Santos, 1995). Primeiramente, vindo de Aruanda, localizada no Congo, que, quando destruída, provocou sua migração para Angola, uma nova Aruanda. Mas também habitantes do Brasil, onde, juntamente com os pretos-velhos, plantaram o axé. Depois chegaram os putamagaleses. Não obstante a ideia inicial de um sentimento nacionalista utópico, vemos uma infinidade de caboclos e uma possibilidade, por que não dizer, de incorporar elementos estrangeiros; isto é, de Aruanda ou Congo, no Brasil ou em Putamagal. No caso aqui estudado, lidamos com as representações do espírito de um caboclo incorporado em um brasileiro que vive em terras lusitanas e com o modo como esse poder colonial é subvertido na fala do espírito, que em Portugal seria descoberto pelos brasileiros e teria um nome que faria alusão à prostituição, estigma reservado na sociedade portuguesa aos brasileiros, em especial às brasileiras. Contudo, na lógica do caboclo, Portugal teria um nome atualizado e ressignificado pela imigração brasileira: Putamagal, como já dito.

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Seriam os putos101 portugueses transformados em putas? Se, por um lado, os portugueses reclamam que a maioria dos brasileiros são prostitutos, homossexuais e putas que teriam invadido sua terra, por outro são esses mesmos brasileiros que, com seus fluidos, invadem o mapa português (e o invertem?), transformando-os em “veados”. Parte de meus informantes, trabalhadores do mercado do sexo, afirmam serem os portugueses bastante “hipócritas”, pois em sua grande maioria são putos que, “graças aos brasileiros, se transformam em verdadeiras putas e veados”. Se todos os brasileiros são estereotipados como “veados” e as brasileiras como “putas”, esperam que estes lhes dominem os corpos para que tal transformação se dê, pois aguardam que os “veados e as putas lhes comam até o rabo”102. Nesse sentido, a inversão do mapa faz com que os brasileiros pensem ter descoberto Portugal. No candomblé, a possessão, ao se apresentar às pessoas do gênero masculino, constitui sem dúvida uma dimensão transgressora (Birman, 1995). Esta se insinua no candomblé 101 Na origem da palavra, em latim, putta é menina. Por mais paradoxal que seja, de sinônimo de ingênua passou a ter a conotação atual, sem uma explicação precisa. Em português de Portugal, significa menino, e no Brasil, prostituto ou filho da puta, sendo uma palavra considerada chula e pejorativa. No caso de rapariga, significa moça para os portugueses, e no Brasil seria a prostituta. O uso jocoso dessas palavras no cotidiano leva à repetição dos estereótipos ao evocar os conflitos identitários provocados pelo uso da língua portuguesa, sendo o modo como os brasileiros falam considerado, para os portugueses, “errado, chulo, verdadeira aberração da língua mãe”, como se as mais de 274 línguas existentes no Brasil não pudessem ter interferido na constituição histórica desse mercado linguístico. Lembro que, pelo censo do IBGE de 2010, somente 274 línguas existentes no Brasil são indígenas. 102 Muitos dos termos são falas de informantes coletadas no decorrer do trabalho de campo.

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praticado por homens articulando sexualidades desviantes, possessão e competência estética e ritual. De pessoas estigmatizadas no plano social, os homossexuais passam a desfrutar de um lugar social de prestígio vinculado ao culto. Mulheres, homossexuais e travestis são categorias associadas à incorporação dos orixás, passíveis de ser montados e penetrados, e essa disposição se aproximaria do conceito do iorubá de possessão espiritual (Matory, 1998). A possessão seria, assim, um modo de delegar autoridade, originando-se no céu e descendo por uma hierarquia de parentesco e poder divino. A centralidade do gênero e a ideia de montaria são equivalentes, pois, da mesma forma que o orixá possui a cabeça (ori), um homem “monta o parceiro”. Os iniciados são os cavalos, montados pelos “orixás”, deuses considerados parentes sobrenaturais ou estrangeiros de seus cultuadores. Nesse sentido, se, no ato de migrar e entrar para o candomblé, alguns brasileiros viram a folha103, então por que não os portugueses? Vários brasileiros, no momento da migração, vivenciam novas escolhas longe da família consanguínea, construindo novas redes e novas famílias, com novos pais e mães, e com estes criando uma identificação. Ser do santo tem várias nuanças identitárias, pois, além de compartilharem novos valores e linguagem, passam a ter uma De acordo com Barros e Teixeira (2000), a nomenclatura das folhas tem uma riqueza no que se refere à expressão do corpo e da sexualidade. Em que medida sem folha não tem candomblé trata-se de uma metáfora boa que nos faz pensar sobre as sexualidades míticas e sociais que fazem parte da religião? Lembro que as trocas conjugais, a paquera e as demais formas de aproximação são parte também da vida religiosa. Muitos, além de buscarem soluções para seus problemas afetivos, também circulam nos terreiros para catar folha, isto é, namorar. Ou em muitos casos viram a folha (tornam-se homossexuais). 103

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nova rede de parentesco e amizade. Se os portugueses viram caboclos, exus, pombagiras e outros espíritos (Pordeus Jr., 2009), a possessão lhes facultaria essa transformação, podendo eles, de algum modo, viver outras sexualidades e ser “tão desviantes” quanto consideram os brasileiros. Se todos são irmãos na religião, podem confraternizar uma mesma linguagem sexual, sendo todos passíveis de ser montados por seus orixás. Brasileiro, o espírito do caboclo paradoxalmente usa o estigma para transformar os portugueses também em putas e veados, respondendo em metáforas à interpretação que têm de uma realidade nada mítica. O estigma vem de longa data, sendo reavivado juntamente com os estereótipos que os brasileiros fazem dos portugueses no momento em que cresce o número de migrantes brasileiros e que se agrava com a situação econômica de Portugal na crise europeia104. Ressalto que, ainda no século XIX, os conflitos identitários entre os chamados portugueses de Portugal e os portugueses do Brasil (como se chamavam tanto portugueses quanto brasileiros natos) eram comuns, pois o período da Independência e da passagem da Monarquia para a República é o ideal para observar o jogo político que transformava portugueses de Portugal em apenas portugueses (Ribeiro, Pordeus Jr. (2009) mostra a existência de espíritos portugueses, como o famoso Marinheiro Agostinho. Em alguns casos, pretos-velhos e caboclos podem ser de entidades portuguesas “escondidas”, isto é, se passam por brasileiras para ser aceitas e inseridas no culto. Incorporar um espírito brasileiro confere certa legitimidade e autenticidade à prática religiosa, pois muitos veem com descrença (especialmente alguns dos pais de santo brasileiros) o fato de se ter incorporado outra “nacionalidade”. Coincidentemente ou não, em meu trabalho de campo encontrei vários marinheiros portugueses. Parece-me que a ótica colonial prevalece e também povoa o mundos dos espíritos. 104

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2010). A troca de acusações entre os impressos lusitanos e os escritos nativos mostrava que se, por um lado, o Brasil era uma “terra de macacos e negrinhos”, por outro Portugal era uma terra de “lobos, galegos e raposas”, em que “animais astutos”, verdadeiros “nobres parasitas” disputavam o mercado de trabalho com nativos e africanos (Ribeiro, 2010). Era “gente sem caráter”, “exploradores de mulheres”, e que na República se tornaram o bode expiatório para todos os males da nação. Lembro que, inicialmente, os primeiros contingentes que chegaram a Portugal eram de profissionais altamente qualificados, partícipes de projetos de infraestrutura, que foram ajudar os portugueses a ingressar na Comunidade Europeia. Mas, posteriormente, dos anos 1990 em diante, chegaram os brasileiros “indesejáveis”, pertencentes às camadas mais baixas e também às redes de tráfico de drogas e prostituição. Estes últimos sofrem o estigma no plano cotidiano por parte tanto dos portugueses, com quem convivem no trabalho e em casa, quanto daqueles que praticam a religião em comum. Muitos pais de santo de origem portuguesa, mesmo sendo homossexuais, não assumem a condição em público, mantendo uma pretensa diferenciação com os brasileiros e mais ainda com aqueles considerados mais transgressores, cidadãos de segunda categoria, como prostitutos(as), homossexuais e travestis. Isso na realidade da religião em Portugal, pois nas casas de santo em que foram feitos no Brasil são obrigados a conviver com todo esse espectro de diferenças, não obstante os preconceitos. Estão em uma religião em que a linguagem sexual é parte da própria linguagem religiosa. Há uma valorização do candomblé como forma de

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expressão sexual que relaciona os significados sexuais como matriz básica do dialeto do santo. Nesse sentido, a associação entre sexualidade, identidade religiosa e competência religiosa é um segredo (Teixeira, 1978: 178), seu duplo sentido sendo uma narrativa secreta, pois se faz entre iniciados na referência sexual, o que exclui os não iniciados em um duplo sentido: na linguagem do santo e nas narrativas sexuais produzidas nesse domínio. A linguagem oral é polissêmica e repleta de imagens sexualizadas. Estas podem ser tanto pensadas como parte do domínio religioso quanto acionadas como linguagem com implicações sexuais. Na linguagem diária dos travestis e michês, muitos termos são do candomblé, ou seja, não deixa de ser uma linguagem para iniciados. E muitas de suas relações afetivas compreendem esse universo. Perlongher (2008) mostra que a linguagem do candomblé se faz presente nas sexualidades desviantes, lembrando que a incidência negra do michê se manifesta no nível semântico, ou seja, nos termos de raiz afro, provindos do candomblé ou da umbanda. A presença desse fenômeno no candomblé, que alia segmentos marginalizados, não é nova. O que tornaria o candomblé singular seria o fato de que todos os seus adeptos podem exercer algum tipo de cargo sacerdotal. E ninguém precisa esconder ou disfarçar suas preferências sexuais. Mas será que a diversidade da migração brasileira faz com que mesmo os brasileiros que praticam a religião aceitem aqueles conterrâneos estigmatizados na sociedade portuguesa? Muitos pais de santo atendem esse público, mas o preconceito contra ele é grande em muitos terreiros, e, mesmo 334

relevando o aspecto espiritual, alguns não gostam de atender prostitutas, apesar do convívio com elas em giras e sessões. Em um depoimento, um pai de santo brasileiro afirma que, […] apesar de ser casado com um homem e ser gay, evita atender brasileiros, pois a grande maioria lhe causou problemas em sua vida. Teve péssimas experiências com brasileiros. Tem um filho de Oxum e outro de Oxóssi que são gays, mas não gosta de que desmunhequem em público e que tenham um comportamento excessivamente feminino. Não pretende ter um “axé-bicha (um axé que tem pinga lacraia105)”. Não atende prostitutas, elas até vêm em sua loja, compram mezinhas, mas ele não joga para elas e não gosta. Não quer se misturar a este tipo de brasileiro. Gosta também que os gays de seu terreiro tenham atitude de homem e mesmo em público não gosta de que comportem como bichinhas. E nem quer reproduzir esse tipo de imagem para a religião.

A ideia de ser um candomblé de meninas compreende o epíteto feminino não somente como inferiorização da figura feminina, mas no sentido de o macho feminizar o outro macho para se mostrar mais macho e poder concorrer mais e melhor nos planos social e sexual. A diferenciação interna presente em qualquer fluxo migratório também aparece em vários depoimentos de brasileiros. Além dessa diferenciação, temos vários modos de percepção e de construção da homossexualidade dentro de Linguagem usada por alguns terreiros cariocas para aqueles homossexuais excessivamente feminilizados e que tentam impor isso às atitudes corporais diárias, nas danças, nas roupas e no modo de falar. 105

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alguns padrões mais aceitáveis, fato também recorrente nos terreiros cariocas, em que alguns dos mais aceitáveis não têm tanto pinga lacraia, composto por senhoras ou por homossexuais que são mais homens, e não meninas. Homossexuais com mais atitude. Alguns adeptos se identificam na medida em que faziam o mesmo ofício antes de assumir cargos na religião e por perceberem a prostituição como trabalho, bem como por sofrerem muito com a discriminação no plano tanto religioso quanto social. Poucos terreiros aceitam travestis em cargos como pai e mãe de santo, e muitos filhos jamais aceitariam um líder que considerassem ser o próprio estigma106. Muitos pais de santo tratam do tema com mais sutileza e lembram a origem humilde da religião, tanto da umbanda, que começou em uma área tradicionalmente considerada periférica, como São Gonçalo, quanto do candomblé, que começou na Gamboa e em várias áreas periféricas da Baixada Fluminense carioca. Nesse sentido, evocam a ideia de que tanto pais e mães de santo quanto seus filhos, antes de se firmarem na religião, trabalharam em funções consideradas menores, como costureiras, cabeleireiros, manicures. Assim, o conhecimento dessas funções os auxilia no manejo de várias tarefas do cotidiano do terreiro e na circulação em vários grupos sociais. Lembram que aos poucos as camadas Sendo o candomblé uma religião de corpo e alma, temos a construção do estigma relacionado com um corpo transformado e mutilado, que perdeu, digamos, seus atributos naturais. Essa acusação é usada pelos pais de santo portugueses para deslegitimar a eficácia simbólica da recepção dos orixás pelos corpos transformados dos brasileiros no concorrido mercado religioso português. Aqueles que sofrem o estigma se baseiam na ideia de que o orixá vê o ei, o eu, a essência, e não o corpo ou materialidade. 106

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médias da população foram se inserindo na religião, e que, não obstante não adentrarem o candomblé, muitos clientes de classe média e alta frequentavam as festas e se consultavam. Ou seja, o sarcasmo de João do Rio (1976) ainda nos brinda com detalhes imprecisos, mas fascinantes, sobre a dinâmica religiosa e também social. Um pai de santo entrevistado que tem filhos de santo em Portugal lembra que a religião deve se responsabilizar pelas pessoas desde o momento em que nascem, não importando qual opção sexual é a sua. Para ratificar seu discurso, lembra a militância da Mãe Beata pela aceitação de homossexuais como parte de uma ideia de responsabilidade social de que muitas vezes a própria sociedade se exime. Ao mesmo pai de santo pergunto como lida com a prostituição: “Se é algo que não se pode evitar, pedimos que cuidem mais de si mesmos”. Lidar com essa parcela da imigração que se situa nas margens não é apenas difícil para os próprios brasileiros, que buscam não ser identificados com ela, mas para alguns dos portugueses, que, mesmo considerando o lado espiritual, não se identificam com os hábitos e os modos daqueles que estão sem lugar tanto no plano laboral formal (prática da prostituição) quanto no sexual (travestis)107. Mesmo entre os portugueses, há uma diferenciação grande que abrange não apenas aqueles que nasceram em Portugal, os nascidos na África ou no Brasil ou que migra“As travestis brasileiras têm se integrado nesse mercado transnacional, fazendo de seus corpos textos capazes de provocar desejos coloniais em que se associa hibridismo a uma natureza selvagem, o que [as] torna uma das nacionalidades mais favorecidas na economia transnacional do sexo” (Pelúcio, 2010: 211). 107

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ram para suas antigas áreas coloniais, tendo ou não retornado a Portugal, mas também diferenças geracionais e de outras ordens. Aqueles nascidos na África são mais impuros aos olhos dos portugueses nascidos em Portugal, “considerados menos portugueses” e mais afeitos à religião afro-brasileira, que os aproximaria de sua origem étnica, e mais próximos do feitiço como elemento marcador de identidade. Muitos se identificam com o lado mais feiticeiro e próximo do candomblé - sentir o prazer da transgressão nas práticas mágicas os aproximaria de algum modo de sua “África de origem”. Aqueles inicialmente mais católicos, mesmo pertencentes ao candomblé, se identificam mais com as giras de umbanda, mais próximas do modo como se veem como portugueses e, consequentemente, pela maior relação desta com o universo católico. E, mesmo entre aqueles feitos no candomblé, muitos preferem a umbanda, e, quando buscam encaminhar seus filhos de santo que têm de ser feitos no candomblé, buscam o auxílio do pai de santo. A nova palavra (Putamagal108), soma da mitologia romana com o aramaico, provoca uma ideia de cidade dos deuses, pois Puta, deusa da agricultura e da fertilidade, era poda. E Magal, antigo nome para Israel. Será Portugal um lugar sagrado, das putas e “putos”? Um lugar descoberto pelos brasileiros, que, com seu sagrado, tornam Portugal mais fértil, com uma mitologia “africana”, e fazem com que a nação seja lida sob o olhar do candomblé. Na realidade mítica, a Uma versão popular da origem da palavra, sobretudo na Espanha, trata da deusa Puta, uma das divindades agrícolas romanas, responsável pela poda (putta, em latim). No dia em que podavam as árvores, as sacerdotisas exerciam a prostituição sagrada em honra à deusa. Com o passar do tempo, o nome da deusa virou sinônimo de prostituta. 108

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ironia subverte e transforma tudo o que toca, de modo que o Portugal descoberto pelo caboclo brasileiro pode ser, em sua mais completa tradução, mais ambivalente e ambíguo do que aparenta ser. Como uma terceira margem, Portugal poderia ser, na intertextualidade, um terceiro sujeito de uma história por vir, criando um novo espaço nessa relação eu-outro. O ouro da sociabilidade é valioso para muitos, sobretudo para os migrantes; em particular para refazerem laços religiosos e, consequentemente, familiares. Mas cabe lembrar que os portugueses (em especial os nascidos na África) se deliciam com as transgressões e a possibilidade de vivenciá -las na possessão e nas práticas corporais. Ser outro também lhes possibilita novas identidades. O caráter transgressor, até mesmo dos sacrifícios e das oferendas, potencializa, para muitos, o sentido que ganha a religião109. “Nós dependemos do feitiço”, diria João do Rio (1976) sobre a presença do candomblé no Rio de Janeiro. Isso se revela pela fluidez e circulação dos tipos humanos que compunham a cidade no início do século XX, e, nesse sentido, não apenas os africanos e brasileiros, mas nem mesmo os portugueses escapam do feitiço desse Atlântico Negro: […] os nossos ascendentes acreditavam no arsenal complicado da magia na Idade Média, na pompa de uma ciência que levava à forca e às fogueiras sábios estranhos, derramando a loucura pelos campos: os A própria noção de estrangeiro potencializa a ideia de transgressão e, evidentemente, confere mais poder às coisas e pessoas. Na própria bibliografia sobre o estrangeiro nos estudos migratórios enfatiza-se o caráter de metamorfose e de alteridade poderosa que o migrante tem e que também é tratado de modo sutil por Monique Augras em seus textos sobre candomblé. 109

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nossos avós, portugueses de boa fibra, tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entre diamantes e esmeraldas. Nós continuamos fetiches no fundo, como dizia o filósofo, mas rojando de medo diante do feitiço africano, do feitiço importado com os escravos, e indo buscar trêmulos a sorte nos antros […] (Rio, 1976: 34).

E mais uma vez João do Rio nos lembra que, não obstante distâncias históricas e territoriais, certos processos sociais se mantêm. Assim, aos poucos temos nos terreiros portugueses essa circulação de gentes, tipos e nacionalidades. Em que medida várias cidades portuguesas e suas gentes não escapam do fetiche e do feitiço indo buscar a sorte nos outros?

Caboclo transnacional Se os migrantes circulam levando suas histórias, seus espíritos também. Lembramos a ideia de que a transnacionalização religiosa considera as adaptações das práticas importadas em um contexto bem determinado, seus modos de se “tornarem locais” e a incorporação de novos sistemas de crença (Appadurai, 2004). Assim, os espíritos também são transmigrantes. Isto é, são migrantes cujas experiências transcendem os limites dos Estados nacionais e que desenvolvem e mantêm múltiplas relações que expandem essas fronteiras (Basch; Schiller; Blanc, 1995: 684). O caboclo Pena Dourada comemora em Portugal o dia 13 de maio (libertação dos escravos no calendário oficial bra340

sileiro, dia de gira das almas e dos pretos-velhos, considerados os espíritos dos escravos no Brasil), seguindo em geral as festas de que pais, mães e filhos de santo participavam em seus ilês ou naqueles de sua família de santo. O mesmo caboclo chamou a atenção de seu cavalo para que nessas giras fizessem feijoada como prato principal. Não apenas esse caboclo nesse terreiro, mas muitos fazem como prato principal a feijoada (chamada de feijoada da vovó ou do espírito do vovô110), prato considerado representativo do que é a nação brasileira como constituída por uma nação de negros escravos (Fry, 1982: 47-53). Conforme diz o caboclo: muitos negros (e seus espíritos de pretos-velhos) comiam feijoada no engenho. E muitos, aconselhados por seus espíritos, também fazem bacalhau, pois, conforme relata um pai de santo entrevistado (aconselhado pelo espírito do caboclo Pena Dourada), “tendo os espíritos (eguns) migrado para outro continente, temos também que homenagear os espíritos dos outros”. Os outros também são almas que circularam nesse Atlântico Negro, e suas comidas homenageiam essa história que, contada pelo caboclo, lhe reivindica sua ancestralidade, pois os putamagaleses chegaram depois, e agora o mesmo caboclo volta a Portugal, terra do avó de seu cavalo (aquele que o incorpora e que de algum modo também o transporta entre o Novo e o Velho Mundo). Os brasileiros e seus espíritos levam um pouco do axé que ficou no Brasil, mas que agoMuitos pais de santo, em especial os cariocas, brincam com a ideia da feijoada que faz tanto sucesso nos terreiros em Portugal do mesmo modo que as promovidas pelas escolas de samba do Rio de Janeiro. E muitos dizem que qualquer dia fazem uma camiseta (tal qual nas escolas de samba): “Eu fui à feijoada da vovó”. 110

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ra circula. De fato, já circulava há muito tempo, nas histórias de seus cavalos e espíritos. A ironia do caboclo anula as distinções do tipo centro -periferia e outros binarismos enraizados no colonialismo (Dirlik, 1997), sendo fonte de hibridismos e podendo sinalizar que talvez Portugal não olhe para si próprio somente pela narrativa da expansão. Ou será que pode olhar para a mesma história pelos olhos do outro? E por que não sob o olhar de Iemanjá111? Muitas vezes, as mensagens religiosas dos imortais (Oliveira Filho, 1999: 49) correm por fora das estruturas políticas cotidianas. E são essas mesmas mensagens e seus mensageiros que anunciam movimentos migratórios, reorganizações políticas e reforma dos costumes. Muitas vezes, busca-se na imagem do estrangeiro o veículo para resolver assuntos sociais polêmicos (Simmel, 1950). Essa imagem do poder mágico do estrangeiro, do “ser liminar”, é recorrente na literatura sobre bruxaria (Bahia, 2011; Schmitt, 1999; Favret-Saada, 1977; Le Goff, 1994; Ginzburg, 1991; Maluf, 1993; Mauss; Hubert, 1974; Turner, 1974; Douglas, 1970). Ressalto que a condição de exterioridade e diferença em relação à comunidade, no caso da bruxaria, é manifesta no Constato o enorme sucesso que Iemanjá faz na crença dos portugueses ao refletir sobre o crescimento do mercado religioso: além de compor a vitrine de boa parte das lojas esotéricas, está presente entre os santos de qualquer comércio mais católico, sendo ainda fabricada e vendida na cidade de Fátima. Em uma das lojas mais conhecidas de Lisboa (e responsável pelo envio de material religioso para toda a Europa), não obstante seu dono afirmar que “só que vender”, sempre se percebem lógicas mágicas associadas a trocas comerciais. Tudo pode ser vendido na loja, menos a Iemanjá da vitrine, pois se trata de um assentamento. Não obstante a loja se chamar Armazém de Xangô, quem manda no comércio desse “cético comerciante” alemão, casado com uma mãe de santo brasileira, é Iemanjá. 111

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fato de o bruxo morar em outro lugar, ou por ser representante de outra cultura, ou por ocupar o lugar do sexo, algo subversor na narrativa dos mapas coloniais (McClintock, 1995). Contudo, o fato de estar situada à margem, nos limites da cultura, lhe garante maior legitimidade e acúmulo de poder para lidar com um caso mais “forte” de bruxaria (Bahia, 2011). A condição especial de estrangeiro representada em várias sociedades é daquele que se predispõe a ter poderes diferentes, especiais e, portanto, mágicos (Mauss; Hubert, 1974). Entre os séculos XIV e XVIII, o medo no Ocidente estava também relacionado com o feminino, tropo do perigo e da subversão social, sendo relacionada com uma religiosidade profana (Delumeau, 2009). Não obstante serem estrangeiros, na religião afro-brasileira, brasileiros, portugueses e pessoas de outras nacionalidades podem partilhar de um mesmo campo semântico, sujeito, obviamente, a ressemantizações, traduções e mal-entendidos culturais (Capone, 2011: 34), acredito que mesmo entre falantes supostamente de uma mesma língua, no caso portugueses e brasileiros112. Apesar de as trocas e intercâmbios serem mais antigos com Portugal e possibilitarem a reprodução das religiConcordo com Mia Couto quando aborda de modo sutil Moçambique, afirmando que o país é e não é um país de língua portuguesa, “pois são poucos os moçambicanos que falam, escrevem, sonham, amam na língua portuguesa. E não são menos moçambicanos por isso, nem os outros mais moçambicanos pelas outras línguas que usam”. Ver sua entrevista em: http://gloriainacselsis.wordpress.com/2008/07/10/ mia-couto-e-a-lusofonia/>. Também percebo essa ambiguidade no que se refere ao Brasil. Mesmo sendo o português a língua em que muitos sonham, não é a mesma que percebemos na chamada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Essa ambiguidade é também parte da circularidade linguística, que cria improvisos, hibridismos e se situa além das particularidades nacionais, pois tangenciam relações mais amplas. 112

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ões afro-brasileiras, em especial o candomblé, considerado o mais difícil de se reproduzir no exterior (Guillot, 2009), há uma situação paradoxal, em que se fala e não se fala a mesma língua. Não obstante pertencerem ao mesmo campo semântico, muitas vezes não se fala a mesma língua. E, mesmo quando se fala, esta está sujeita aos hibridismos e a seu poder transgressivo, o que produz sentidos inesperados, novos, presentes também no que Bakhtin chama de polifônico em sua análise do romance. A alteridade é pensada no eixo de uma relação constitutiva do sujeito na e pela linguagem, o que significa que temos de passar pela consciência do outro para nos constituir (Oliveira, 2009). Nesse sentido, a alteridade como algo inerente à constituição do “eu” possibilita duas formas, complementares e interdependentes, de estudar essa relação. Uma delas é o estudo do processo de apropriação e transmissão da palavra do outro. A segunda é o movimento do eu em direção à singularidade do outro, que lhe é diferente, desigual, estranho, enfim, das múltiplas maneiras de como o “eu” percebe e se refere ao outro, à sua cultura. A concepção dialógica da linguagem se dá na alteridade, e, muitas vezes, por mais que a palavra possibilite sua apropriação de forma mais flexível, não significa que esse processo esteja isento de tensões, contradições entre os discursos apropriados e aquele que deles se apropria. A ideia da linguagem rompe com a ideia de que o sujeito está sempre condicionado ao outro, que o constituiria discursivamente. Isto é, a entrada da palavra alheia no discurso do “eu” não se faz de forma automática ou ingênua, nem se reduz a uma mera transposição de estruturas ou a seu reconhecimento e identificação. O eu é constituído por um mun-

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do de palavras e se apropria de modo atuante e, muitas vezes, desafiador em sua apreensão desse outro, reinterpretando-o de acordo com um contexto próprio. De que modo o sexo do outro nos conduziria a outra interpretação de Portugal? Os mercados do sexo contemporâneos constituem um importante tema de análise para a crítica pós-colonial, que trata do caráter transnacional desses mercados (Piscitelli, 2013). Muitas vezes produto de uma divisão internacional do trabalho, na qual pessoas, sobretudo mulheres, das regiões pobres do mundo conformam uma força de trabalho extremamente desprotegida. Essa crítica aponta para as noções de exotismo ancoradas no passado colonial que permeiam os movimentos de atravessar as fronteiras para consumir ou vender sexo (Kempadoo, 2000); a subalternização dessas mulheres e suas possibilidades de agência/agency (McKlintock, 1993); e o caráter dos discursos feministas que analisam esses mercados (Kempadoo e Doezema, 1998; Kempadoo, 2005; Doezema, 2001) (Piscitelli, 2013).

Se, na vida social, homossexuais, prostitutas e travestis não têm tanto controle e prestígio, muitas vezes se fazem de “frágeis” e utilizam o poder mágico para reverter o jogo. Mas será que para esses brasileiros não interessa ser exótico em alguns momentos, transformando o estereótipo em uma estratégia para converter formas de subordinação em afirmação (Irigaray, 1985)? Um cinto, por exemplo, sinal de masculinidade, objeto que legitima “seu homem” no vestuário para o trabalho e o ganho de dinheiro, é o mesmo que uma prostituta usa para amarrá-lo em suas teias amorosas e prendê-lo em seu jogo

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de trocas. Certas ervas e até mesmo bebida, como champanhe, são usadas nos rituais de banho em alusão às chances e ganhos que podem obter no uso do corpo, aumentando as chances no mercado sexual e estabilidade no plano das relações afetivas. Fluidos e objetos são também parte do feitiço, pois enterrados, embebidos, costurados podem amarrar/desamarrar uma pessoa em nossa vida, nos proteger de situações e melhorar nosso lugar no mundo, negociando o controle sobre certa impotência social. McClintock (2003: 20) mostra que ver as mulheres como “vítimas não ambíguas, tendência que iguala atuação e contexto, corpo e situação, anulando assim a possibilidade de recusa estratégica”, acaba por recair em explicações baseadas nos velhos binarismos colonialistas do tipo dominado e dominante, metrópole e colônia. Fazer feitiço para obter o que se quer no plano social, como um visto, um passaporte, uma vida mais estável, pode ser estratégico e oferecer alternativas a um mercado de trabalho precário e em crise, possibilitando novas moedas de trocas. Muitas vezes, nos rituais de pombagira, uma mãe de santo entrevistada não associava esse espírito ao da prostituta, mas ao da mulher moderna, que trabalha e constrói sua autonomia no mundo, uma figura de poder, que se vale de inúmeras estratégias e de uma sabedoria próxima à que se pode aprender com os espíritos. Em vez de descrever a pombagira como prostituta, apresentava-a como uma mulher trabalhadora, pois para ela, no plano social, a prostituição é um trabalho. Ser montado é uma condição para estar na religião (Matory, 1998), e nesse sentido os homens estariam mais “fora” dessa lógica, que privilegiaria mulheres, homossexuais e tra-

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vestis. Então, o caboclo se perguntaria: e por que os portugueses não se deixam montar? O Brasil conservou uma religião que é cara aos portugueses, sendo por meio dos brasileiros que ganha legitimidade em Portugal, em que pais e mães de santos exibem suas genealogias nascidas na Bahia, lugar primevo da construção da tradição da religião. Se, por um lado, os brasileiros são estigmatizados, por outro lembram aos portugueses que “ser montado pelo orixá” é parte da lógica religiosa e que faria todo sentido se Portugal se transformasse em Putamagal.

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TRANSNACIONALIZAÇÃO RELIGIOSA E CONVERSÃO: UM DIÁLOGO SOBRE O BUDISMO DA SOKA GAKKAI NO BRASIL Suzana Ramos Coutinho

Introdução A Soka Gakkai Internacional (‘Sociedade de Criação de Valores’ ou também SGI) é uma organização budista leiga que foi fundada no Japão e que hoje é considerada um dos movimentos religiosos japoneses mais bem sucedidos no país (Clarke, 2000: 326). O grupo iniciou suas atividades em 1937 como uma associação leiga de Nichiren Shoshu, uma das muitas denominações que remetem suas origens a Nitiren (1222-1282). Apesar do budismo de Nichiren ser datado do século treze, a Soka Gakkai é um grupo religioso contemporâneo. Tsunesaburo Makiguti (1871-1944) fundou a organização, em 1930, como parte de um movimento de reforma do sistema educacional japonês. Depois da Segunda Guerra, Josei Toda, que era discípulo de Makiguti e segundo presidente da organização, reconstruiu o grupo. Toda iniciou um intenso esforço para disseminar os ensinamentos de Nitiren Daishonin para a população leiga, mas foi através de Daisaku Ikeda (1928- ) que o movimento continuou a expandir. Ikeda sucedeu Josei Toda em 1960 como o terceiro presidente da Soka Gakkai e desde então tem se dedicado à expansão do 353

grupo, através de viagens internacionais para estimular os membros espalhados por diversos países, e também através de aparições públicas com políticos, artistas e celebridades. O primeiro distrito da Soka Gakkai estabelecido fora do Japão foi inaugurado na cidade de São Paulo, em outubro de 1960. Nesta época, a associação contava com menos de 150 membros, todos de origem japonesa. Apesar deste início tímido, o grupo ao longo dos anos se transformou em um grupo budista com filiais em quase todas as regiões brasileiras. De acordo com informações cedidas, em maio de 2006, pela sede nacional da Soka Gakkai em São Paulo, há hoje no Brasil aproximadamente 160.000 membros. Vale ressaltar que 90% dos membros hoje não possuem ascendência japonesa. No Brasil, a história do budismo é particularmente relacionada à história da imigração japonesa. Com a chegada dos primeiros imigrantes, em 1908, chegou também o budismo. Clarke (2000: 197) nota que, apesar da presença do budismo no Brasil datar o início dos anos 20, somente em 1960 é que diferentes novos movimentos religiosos ultrapassaram as fronteiras das comunidades de imigrantes japoneses. E foi somente em 1980, com a imigração de grupos chineses e tibetanos, que o número de diferentes grupos budistas aumentaram consideravelmente na sociedade brasileira.

Contexto brasileiro: a Soka Gakkai nos dias atuais As dificuldades que os membros da Brasil Soka Gakkai Internacional (ou também BSGI) enfrentam todos os dias para divulgarem a sua fé se dá parcialmente pela forte influência do cristianismo sobre a maior parte da população 354

brasileira. Este é um tema constante para o grupo, e tanto os membros quanto a Organização estão comprometidos em um projeto que engaja noções e valores da Soka Gakkai em uma tentativa de expandir os valores budistas para a sociedade brasileira. É pensando neste processo de expansão da Soka Gakkai no sul do Brasil que este texto foi elaborado. Resultado de uma pesquisa de campo antropológica113, realizada prioritariamente no Sul do Brasil, este material oferece uma perspectiva que busca o entendimento do modo como a Soka Gakkai cria estratégias de inserção específicas em determinados contextos, que reflete em grande medida o processo de conversão dos membros. Apesar de muitos estudos sobre a Soka Gakkai terem sido realizados em diferentes países (Murata, 1969; Métraux, 1988; 1994; 1996; Hurst, 1992; Snow 1993; Wilson & Dobbelaere, 1994; Hammond & Machaceck, 1999; Seager, 2006), há pouco material sobre o grupo no Brasil (Maranhão, 1999; Pereira, 2001) e menos ainda no sul do Brasil (Bornholdt, 2009), sendo que a sua presença em certas partes do país sequer foi pesquisada. Apesar do Brasil acomodar a maior comunidade japonesa fora do Japão - estimando-se um número superior a 1.5 milhão de pessoas - a maior concentração em proporções mais significativas de imigrantes japoneses e seus descendentes no Brasil está concentrada especialmente nos estados do Paraná e São Paulo. A principal motivação para realizar a pesquisa na região Sul é suprir a escassez de literatura na área e contribuir para a compreensão dos processos de conversão do budismo 113

Para mais, ver Bornholdt, 2009.

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em um contexto diferente daquele em que fora estudado até então, a saber, uma parte do Brasil que não recebeu um expressivo fluxo de imigrantes japoneses. O resultado disto é que o budismo no Brasil hoje é representado por um amplo e variado número de grupos (Shoji, 2004) e a Soka Gakkai tem competido e dedicado esforços para se manter no mesmo mercado religioso - não apenas com outros grupos budistas mas também com protestantes, católicos, espíritas e grupo afro-brasileiros. Apesar de não ser considerado um grupo religioso numericamente significante no Brasil, tem chamado a atenção por diferentes razões. A principal delas reside no fato de que a BSGI tem apresentado um acelerado avanço nas últimas décadas, mesmo em regiões do Brasil onde o contexto sócio-histórico não inclui uma expressiva imigração japonesa. Tendo este fato em mente, analiso aqui a atual situação da Soka Gakkai, buscando não somente refletir sobre o processo de conversão do membro, como também pensar as estratégias que são criadas como forma de atração de novos fiéis.

Do ‘sincretismo’ à conversão O tema sobre conversão religiosa tem interessado pesquisadores há mais de um século, mas um foco mais academicamente expressivo se desenvolveu apenas nas últimas décadas. Muitos estudos têm explorado o papel da conversão no avanço da expansão do poder colonial ocidental (Whitehead, 1987; Hefner, 1993; Viswanathan, 1998), mas muitos deles não trazem “o detalhe etnográfico que permite uma exploração das diferenças, bem como as características comuns de 356

conversão em diferentes culturas” (Buckser; Glazier, 2003: xiii). Embora o conceito de conversão levante algumas polêmicas e tenha sido discutido por muitos acadêmicos (Rambo, 1982; Snow; Machaleck, 1984; Coleman, 2003; Partridge; Reid, 2006), o termo ainda desafia os estudiosos para uma definição adequada. Minha intenção para a discussão aqui desenvolvida é focar no processo de conversão dos membros da Soka Gakkai, que pode ser entendida como um processo de familiarização com as práticas, rituais, gestualidade e todo o escopo religioso que pertence ao grupo. Ao entender este processo, seremos capazes de compreender mais sobre o discurso e a prática dicotomizada da Soka Gakkai no Brasil. Devido ao contexto na qual a Soka Gakkai está estabelecida e às suas estratégias de conversão, a práxis do grupo no Brasil pode ser entendida como “sincrética”. Este capítulo visa mostrar como as experiências que envolvem uma mudança pessoal radical - levando à conversão - não necessariamente denota uma prática sincrética, mas sim um processo de familiarização do novo membro com o novo universo do discurso e da prática do grupo. Sugiro que o caso da Soka Gakkai no Brasil é peculiar e variado, apresentando diferentes características dependendo da região do país onde estão estabelecidas. De acordo com a especificidade de cada contexto sócio-histórico, a Soka Gakkai no Brasil vai revelar que o sincretismo do grupo não é de fato uma postura sincrética, mas sim um sincretismo aparente; uma estratégia missionária que necessariamente leva a uma demanda exclusiva de participação dos membros. Uma série de fatores moveu o grupo a repensar suas estratégias de atuação (tanto nacionalmente quanto regionalmente) no sentido de atrair e contextualizar os ensina-

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mentos do grupo. No caso específico do Rio Grande do Sul, o grupo desenvolveu duas esferas de atuação - interna e externa - e que aqui vou chamar de “faces”. A expressão escolhida - sobre as “faces” da Soka Gakkai - está bem longe de ser uma afirmação que indica uma possível manipulação por parte do grupo. Enquanto instrumento metodológico, esta expressão busca revelar que, diante de um cenário plural (religioso, social, político, econômico, etc) tão complexo, a Soka Gakkai no Rio Grande do Sul acaba por flexibilizar - ainda que temporariamente - alguns aspectos de seu corpo doutrinário para atender as diferentes demandas. Essa flexibilização, veremos, reflete diretamente no processo de conversão dos membros. Ao me referir à face externa do grupo, sugiro um pluralismo aparente por parte dos membros e uma relativa aceitação, ainda que temporária, por parte da Organização. Este comportamento englobador (que aqui vou me referir ora como sincretismo, ora como pluralismo) vai se revelar não como tal, mas sim como uma estratégia missionária da Organização que necessariamente mais adiante no processo de conversão vai demandar exclusividade e comprometimento por parte dos membros. Já a face interna do grupo vai revelar as especificidades do grupo na relação com o membro e com o contexto onde está inserido: a inclusão de um discurso que visa a solução de conflitos, respostas à necessidades cotidianas e a demanda pela exclusividade da prática religiosa do membro. O exercício de reflexão sobre o processo de conversão dos membros é, em grande parte, resultado do próprio processo de familiarização do pesquisador com o tema observado. O que aqui vou chamar de o “primeiro momento” do trabalho de campo foram, na verdade, os primeiros quatro

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meses iniciais de minha pesquisa, quando havia ainda a percepção de que Soka Gakkai era um grupo pluralista, mais inclusivo e com menos oposição à outras formas de religiosidade. Essa percepção inicial - que se revelará em grande medida equivocada, particularmente dentro daquele contexto específico - foi também influenciada com base em pesquisas acadêmicas de diferentes autores especialistas no assunto. Clarke (2005; 2008), por exemplo, afirmou que a BSGI mudou para uma abordagem mais inclusiva, em particular com relação ao cristianismo. Ele sugeriu que o que o grupo desenvolveu para o contexto brasileiro é “mais do que mera coexistência” (Clarke, 2005: 123), e sim um meio mais relevante para pensar e interagir com outras religiões. O autor afirmou que a Soka Gakkai, ao mesmo tempo em que proporcionou meios eficazes de crenças para transformação do mundo, não rejeitou outros meios de religiosidade. “A cultura de experimentação tem gradualmente tomado o lugar de uma ênfase exclusiva no único mérito da própria tecnologia espiritual do movimento para trazer a revolução humana desejada” (Clarke, 2005: 123). A ideia do autor de um “sincretismo reflexivo” tem sido encorajada pelo grupo no Brasil, buscando “encontrar paralelos entre essas crenças e as da Soka Gakkai” (Clarke, 2005: 124). O que é preciso levar em conta, porém, é que a análise de Clarke dizia respeito à uma região específica do país (sudeste e nordeste). Dois contextos diferentes que, obviamente, refletiria na forma como a Organização desenvolveu idéias específicas. O fato de Clarke ter encontrado uma realidade diferente da Soka Gakkai em outras partes do país incentivou-me a acreditar que não havia tal especificidade no Rio Grande do Sul e que seriam relevantes para uma discussão mais ampla sobre a área. 359

Antes de continuar, no entanto, é necessário estabelecer os limites para o conceito de sincretismo. O sincretismo religioso é um processo cultural que pode ser entendido como uma parte do processo mais amplo de difusão cultural - ideia essa reconhecidamente compartilhada por historiadores da religião e por antropólogos culturais (Colpe, 1977; Grayson, 1992). O sincretismo religioso é colocado diretamente dentro de um contexto histórico, cultural e político. Colpe (1987) descreve o sincretismo como: 1) uma condição ou um processo no qual a religião ou o missionário ou a religião indígena predomina, ou 2) um estado no qual um equilíbrio mútuo entre duas tradições religiosas é alcançado. Pyle (1984) aponta que o sincretismo pode ocorrer como resultado espontâneo e natural de contato intercultural, ou como o resultado de algum plano, que pode ter dimensões religiosas e/ou política também. Para Pyle, nem todo sincretismo é planejado ou aleatório. O autor afirma que é importante entender esse processo cultural do sincretismo religioso, a fim de compreender a ascensão das religiões do mundo histórico e o surgimento de vários novos movimentos religiosos que têm surgido recentemente (Pyle, 1984: 317). Empréstimo cultural e interpenetração são hoje vistos como parte da própria natureza das culturas (Rosaldo, 1990: xv). No entanto, dentro da Antropologia, onde as noções de “pureza” não são vistos com credibilidade (Stewart; Shaw, 1994), o sincretismo tem sido descrito com um significado neutro. Embora os processos sincréticos sejam amplamente presentes em textos acadêmicos, os termos atuais que têm expressado a cultura como sincrética são “colagens, crioulizado, e ou fragmentado” (Stewart; Shaw 1994: 02). A inquietação sobre o sincretismo na Antropologia contemporânea

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pode ser devido ao fato de que, esta, evoca conotações negativas, sendo cuidadosamente evitada por especialistas em mudança cultural e inovações religiosas, apesar do interesse atual na “crioulização” da cultura e da “invenção da tradição” (Masquelier, 1997). Como antropóloga, e principalmente por causa da realidade encontrada durante a pesquisa, tenho defendido (Bornholdt 2004) uma abordagem mais eclética do sincretismo (Droogers, 1989; Stewart; Shaw, 1994; Greenfield; Droogers, 2001). Compartilho particularmente com Droogers (2005) a perspectiva de que o sincretismo (embora não consciente) muitas vezes sirva como um meio prático de solucionar problemas e que pode estimular as pessoas a recorrerem a outras formas de sincretismo. Mas meu foco principal continua sendo buscar a percepção das formas pelas quais as pessoas negociam e redefinem os limites de suas idéias e práticas. Esta redefinição constante, como veremos a seguir, é parte importante no processo de conversão dos membros da Soka Gakkai.

A face externa da BSGI Devido ao contexto em que a Soka Gakkai está estabelecida, a práxis do grupo no Rio Grande do Sul pode, por vezes, ser entendida como sincrética. Porém, as experiências que envolvem mudança pessoal não necessariamente denotam uma prática sincrética, mas indicam um processo de familiarização do novo membro com novos universos de discurso e prática.

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É possível afirmar que a BSGI desempenha um papel regulador nas crenças, atividades e, mais importante, na atração dos possíveis membros. A pesquisa de campo revelou que são os recém convertidos que acabam por trazer elementos de outras religiões para o interior do grupo. Atraídos por um discurso que promete respostas às necessidades específicas (que são partilhados pela grande maioria), tais como problemas com dinheiro, saúde e família, os novos membros são atraídos por um grupo que aparentemente envolve e aceita discursos totalmente diferentes. Durante a pesquisa notei que muitos dos recém-convertidos eram atraídos pela Soka Gakkai em consequência de uma atitude da organização que “acolhe” o melhor de várias religiões, ao mesmo tempo em que busca (dentro do campo religioso brasileiro) o que é mais apropriado e mais eficaz. Do mesmo modo, o grupo investe fortemente em uma propaganda bem elaborada, que divulga eficiência e eficácia quando recitado o mantra corretamente. Inúmeras vezes, ouvi líderes ‘desafiarem’ membros recém-convertidos a recitarem o mantra a fim de buscarem benefícios pessoais em primeiro lugar; e somente depois, em um segundo momento, conhecerem a nova religião mais a fundo. Isso explica, em parte, as razões porque um simpatizante ou membro recentemente convertido passa a se envolver no grupo mas traz, ao mesmo tempo, elementos específicos de sua religião antiga e/ou crença. A ênfase dada à busca de benefícios ‘terrenos’ em detrimento da dedicação ao estudo dos aspectos doutrinários, embora seja um comportamento aceito de modo temporário, permite por exemplo que o membro acredite que esta nova religião oferece muito mais benefícios mundanos e soluções imediatas do que qualquer

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outra coisa. Por isso, em um primeiro momento, não há necessidade de mudar nada em seu escopo de crenças, já a nova religião, aparentemente, não exige exclusividade. Este caráter inclusivo e de ênfase nos benefícios ‘terrenos’ nos ajuda a focar no argumento de que a prática dos membros revela um processo inicial de adaptação/acomodação/mistura de diferentes elementos - geralmente influenciado pela antiga filiação religiosa - e a maneira como essas práticas dão forma ao encontro com a nova religião. E isso pode ser explicado, em parte, devido à abordagem utilizada pela Soka Gakkai. Sugiro que o grupo desenvolve uma imagem pública específica por meio de estratégias pontuais - argumento que é reforçado por Clarke (2005), que afirma ser uma abordagem “politicamente correta”. Embora Clarke esteja se referindo aos resultados de sua pesquisa em Salvador e São Paulo, muitos de seus resultados são aplicáveis, no entanto, para a realidade que encontrei no Rio Grande do Sul. Clarke afirma que esta abordagem politicamente correta da BSGI é evidente em suas publicações semanais, o jornal Brasil Seikyo, que geralmente traz artigos sobre o modo como os membros devem se portar diante de outras religiões. Segundo Clarke (2005: 13), muitos artigos giram em torno da legitimidade e autenticidade do budismo, mas também do modo como deveria ser propagado: “com convicção e energia, mas sem depreciar outras religiões” (2005: 133). A realidade descrita por Clarke pode ser confirmada para o caso do Rio Grande do Sul, e suas percepções corroboram minha experiência vivida com o grupo do sul do país. A BSGI adotou uma abordagem pública politicamente correta com relação ao catolicismo, “reconhecendo que se

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constituía parte integral da vida religiosa e cultural brasileira” (Clarke 2005: 133). A principal distinção, no entanto, é baseada na afirmação de Clarke que em Salvador e São Paulo a sensibilidade para a cultura e sentimento católicos foram motivados mais do que apenas por pragmatismo (2005: 133). Clarke acredita que foi também com base na convicção do poder eficaz da prática de recitação do mantra que o grupo acredita conseguir “proteger” os seus membros de quaisquer influências do catolicismo ou de outro grupo religioso. Esta confiança diante do “outro” que Clarke (2005: 134) iden-tificou nos grupos da BSGI em Salvador e São Paulo, definitivamente não é a mesma confiança que a BSGI do Rio Grande do Sul manifesta. No caso do sul do país, este aparente pluralismo é um processo temporário que visa atrair e manter novos membros. Não há concessões feitas para esse fim, no entanto. Após algum tempo de convivência com o grupo no Rio Grande do Sul, era claro identificar que nenhum dos dogmas e práticas eram flexíveis ou negociáveis (como descrito por Clarke para o caso de São Paulo e Salvador). O desafio ainda é o de (não apenas) atrair novos membros, mas também de mantê-los. A BSGI no Rio Grande do Sul se esforça para criar estruturas de plausibilidade que permitam que o novo membro viva “no mundo”, mas, ao mesmo tempo, ainda esteja comprometido com a nova fé. Há aqui, acredito, uma certa ambiguidade. Ao mesmo tempo em que o grupo busca uma imagem e uma atitude mais inclusiva, cria também limites para o quanto de elementos “externos” está preparado para aceitar. Além das divergências sobre a prática em diferentes partes do país, mesmo Clarke (2005; 2008) sugere a existência de uma certa ambiguidade na forma da Soka Gakkai negocia os limites de aceitação das crenças externas. 364

A face interna da BSGI Ao me referir à “cultura da experimentação” (Clarke, 2005) nos parágrafos anteriores, não afirmo que a Soka Gakkai possua uma atitude sincrética no Brasil. É possível afirmar sim que a sua prática é, na verdade, uma estratégia missionária e uma forma eficiente de se tornar mais atraente e com um apelo que seja mais aceitável e inclusivo para a maioria dos brasileiros. Essa postura, consequentemente, se reflete na vida dos membros, normalmente recém-convertidos que são atraídos pelo discurso divulgado pelo grupo. A estratégia missionária vai ao encontro das estratégias de conversão dos principais e mais expressivos grupos religiosos do Sul do Brasil, que inclui em seus discursos promessas de resolução de conflitos e atendimento de necessidades imediatas, tais como saúde, dinheiro e status social. Mas apesar da Soka Gakkai divulgar uma imagem de “eficiência” muito similar aos grupos pentecostais, por exemplo, o processo de conversão de membros em potencial é o que revela as noções e idéias que pertencem à Soka Gakkai e o modo como eles usam, aceitam e negociam (até certo ponto) elementos externos. Para que o recém-convertido seja incluído e considerado pelo restante do grupo como um membro efetivamente, é necessário tempo para familiarizar-se. Em várias entrevistas pessoais que fiz durante a pesquisa de campo - neste caso especificamente com recém-convertidos pude notar “resquícios” de comportamentos e linguagens de suas filiações religiosas anteriores. Por várias vezes escutei a expressão “invocar” o mantra e não “rezar”, como os membros costumam dizer. A expressão invocar é amplamente utilizado

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pelos espíritas (que invocam os espíritos durante as sessões de possessão) e que os membros da Soka Gakkai no Brasil não utilizam. Expressões que se referiam a Deus eram também bastante utilizadas pelos recém convertidos - “Oh, meu Deus!”, “Deus me livre!”, “Graças a Deus” - refletindo deste modo não apenas elementos de sua antiga filiação religiosa, mas também a onipresença dessas expressões no vocabulário cotidiano brasileiro. A utilização de termos que eram entendidos pelo restante do grupo como “errados” revelavam não apenas o passado religioso do recém-convertido, mas também o fato destes não estarem totalmente familiarizados com os jargões da nova religião. É importante notar que a familiaridade com as práticas budistas é revelada através de, entre muitas outras coisas, o uso correto da corporalidade gestual e pronúncia das expressões em japonês. A Soka Gakkai no Rio Grande do Sul utiliza diferentes espaços sociais e esferas para expandir o seu trabalho. Eles não negam - publicamente - nenhuma prática presente na vida social brasileira para reforçar suas crenças entre os membros. Mais, parecem não agir de modo preconceituoso quando se utilizam temporariamente de algumas dessas práticas e valores como parte de seu escopo religioso. Mas quando afirmo que o grupo possui uma “face interna” significa dizer que este comportamento inclusivo se dá apenas no primeiro contato do novo membro com o escopo doutrinário da nova religião. Uma vez familiarizado e já parte da dinâmica interna do grupo, o novo membro é instruído a utilizar exclusivamente os elementos doutrinários da Soka Gakkai. O desafio da BSGI no Rio Grande do Sul é diferente do que em outras partes do país. Há uma batalha declarada, no sentido de limitar os membros a seguirem o caminho da SGI e não voltarem às suas antigas crenças. Eles lutam e tentam 366

construir estruturas de plausibilidade para reforçar as crenças e construírem uma imagem pública de envolvimento e não preconceito quanto às crenças locais. Apesar do membro recém-convertido ser de fato mais suscetível à misturar diferentes elementos religiosos e ser responsável por trazer para o grupo elementos de outras doutrinas religiosas, é possível afirmar que a Organização temporariamente aceita a inclusão de alguns destes elementos e é também parcialmente responsável por criar esse apelo pluralista inicial. O fato é que, mesmo se o recém-convertido não tivesse vindo de alguma tradição religiosa específica, este novo membro traz com ele os elementos da tradição católica que estão inquestionavelmente presentes no campo sócio-religioso brasileiro e que pode ser considerado muito mais como uma herança cultural do que religiosa. Os membros passam por um processo de interiorização e socialização de um conjunto específico de valores que são reforçados pelos membros da BSGI, e o grupo serve para reforçar este conjunto de valores que, entre vários aspectos, demandam exclusividade. A Soka Gakkai ainda está se adaptando à realidade brasileira, utilizando em seu âmbito, por exemplo, expressões atuais e conhecidas de outras tradições religiosas. No entanto, o que parece estar claro é que usa elementos de outros grupos religiosos (como o catolicismo e o pentecostalismo, por exemplo) para expressar a “estética” do sagrado, mas não o sagrado das religiões. O âmbito das crenças e da estrutura da fé permanece o mesmo, embora não possamos considerar a Soka Gakkai (ou qualquer outro grupo religioso) “pura” e sem ter recebido qualquer influência de qualquer outra esfera social.

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Diante de uma esfera brasileira sócio-religiosa muito particular - embutida de imagens, promessas e a prática de petições a um ser divino, externo e detentor do poder do universo - são valores compartilhados e muito familiares para grande parte dos brasileiros, e a Soka Gakkai não se opõe a este repertório. O que parece é que o grupo negocia o acesso e utilização desses elementos só até certo ponto; num segundo momento, eles criam um repertório próprio mais preciso e mais específico e que vai exigir disciplina e comprometimento por parte de seus membros.

Considerações Finais A realidade sócio-econômica que a Soka Gakkai encontrou no Rio Grande do Sul não é muito diferente de outras regiões do país (Pereira, 2001; Clarke, 2005). No entanto, o grupo teve que se adaptar a uma realidade de forte identidade regional associada a uma realidade cultural que difere do resto do Brasil. Além disso, teve que lidar com a forte influência religiosa dos protestantes, (neo) pentecostais, grupos afro-brasileiros e também os católicos. Em textos anteriores (Bornholdt, 2009) argumentei que muitas das especificidades do Rio Grande do Sul são refletidas na comunidade local. Ao contrário de outras partes do país e também por causa da história e formação do Estado, a BSGI no Rio Grande do Sul tem de lidar não somente com expressivos grupos religiosos, mas também com as experiências pessoais que os novos membros trazem para dentro do grupo. Quando o contexto local sócio-religioso é levado em consideração, 368

percebemos que a Soka Gakkai aparece no cenário religioso brasileiro como uma possível solução entre inúmeras possibilidades. Se a reflexão de Droogers (2005) está correta, a prática de um possível “sincretismo” surge então como um meio para resolver problemas, estimulando as pessoas a adquirirem uma postura pluralista. A disponibilidade de inúmeras opções cria uma demanda para os grupos religiosos, que elaboram diferentes estratégias de atração a fim de aumentar o número de adeptos. Entre as variadas estratégias disponíveis para a Soka Gakkai, a primeira delas é aceitar os diferentes elementos trazidos das religiões anteriores de seus novos e recém-convertidos membros. Esta prática inclui, por exemplo, a aceitação das relações estabelecidas entre o cristianismo e o budismo (como a associação entre o mantra nam-myoho-rengue-kyo e Deus, ou a personificação do presidente Daisaku Ikeda como um deus, ou o Gohonzon114 como uma imagem de devoção), e o incentivo de busca por benefícios terrenos. A ênfase dada a estes aspectos permite que o membro acredite que não haja necessidade de mudança no seu escopo de crenças já que a nova religião, aparentemente, não exige exclusividade. Mas à medida em que o membro se envolve nas atividades do grupo, torna-se claro que a BSGI utiliza uma abordagem “politicamente correta” (Clarke, 2005) - ou, como eu sugeri, “faces” - que em muitos aspectos são extremamente ambíguas: uma é face exterior, onde a organização Objeto de devoção onde estão inscritas das palavras do mantra nam -myoho-renge-kyo. Representação visual do estado de Buda inscritos por Nichiren Daishonin. Os membros da Soka Gakkai realizam a prática de recitação do mantra em frente ao Gohonzon. 114

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é mais inclusiva, aceitando publicamente elementos da filiação religiosa anterior dos membros, permitindo que eles “colecionem” o melhor de todas as religiões. A outra face é a face interna, onde a Organização reforça valores específicos, exigindo um compromisso exclusivo no que concerne às doutrinas budistas. Está comprometida em reforçar aos membros o que significa ser um “genuíno” membro da Soka Gakkai, fazendo esforços no sentido de estabelecer fronteiras entre o que é “verdadeiro” para o grupo e o que não é; e desta forma, limitando as diferentes doutrinas e práticas que o membro pode fazer uso. É no processo de estabelecimento dos limites dessas doutrinas que é possível compreender a importância da conversão. Entendida aqui não como uma questão de trazer ou eliminar elementos de sua religião anterior (mas sim como um processo gradual de familiarização com as doutrinas e valores do novo grupo), a conversão de um membro da Soka Gakkai é o resultado de uma interação dinâmica e multifacetada entre os membros, os líderes do grupo e os novos membros recém-convertidos, que por meio deste relacionamento desfrutam de apoio no processo de “transformação” e integração na estrutura de plausibilidade do grupo. A flexibilidade doutrinária tem um limite, e no seu escopo há uma clara fronteira de negociação no que diz respeito ao quanto o grupo está disposto a aceitar - ainda que temporariamente - a inclusão de novos elementos doutrinários. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, isso não é necessariamente um problema para a Soka Gakkai. Quando confrontados com perguntas e percepções “equivocadas” acerca de Deus e da relação entre o cristianismo e o budismo, apresenta uma nova (e em um certo sentido, revolucionária)

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perspectiva: a de que qualquer indivíduo tem dentro de si mesmo uma força ilimitada, tão poderosa quanto a do Deus dos cristãos, e uma “força que depende da pessoa para que se manifeste e que lhe dá o poder de transformar seu próprio destino”, como um informante mencionou. É através desta perspectiva que a Soka Gakkai não somente oferece o potencial novo membro um argumento eficaz, mas também estabelece total exclusividade sobre as crenças dos membros, apresentando-se como uma organização religiosa de valores não negociáveis.

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Resenhas Biográficas ORGANIZADORES Donizete Rodrigues Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Coimbra, atualmente é Professor Associado com Agregação (Livre-Docência) do Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior e Pesquisador do Center for Research in Anthropology (CRIA-Lisboa). Foi Professor Titular convidado (1995-2011) da Universidade de Salamanca (Espanha) e Professor-visitante em várias universidades estrangeiras (Inglaterra, França, Suécia, Itália, Romênia, Índia, Brasil, Canadá, Letônia e Polônia). Foi Visiting-Fellow (2009-2010) na Columbia University (New York) e Pesquisador-associado (2010-2014) do Center for the Study of Latin American Pentecostalism (EUA). Com vasta experiência na área da Antropologia/Sociologia da religião, tem publicado artigos em revistas e em enciclopédias internacionais (Routledge), capítulos e livros em editoras de grande prestígio (Amazon, Indiana University Press, Ashgate). Ari Pedro Oro Doutor pela Universidade de Paris, Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador do CNPq e membro do Núcleo de Estudos da Religião (NER/UFRGS). Tem colaborado como professor-visitante em universidades da França, Suíça, Itália, Argentina e Uruguai. É autor de vários livros e de mais de uma centena de artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Tem participado de vários projetos de pesquisa internacionais no campo das Ciências Sociais da Religião. Atualmente, coordena o projeto “A Religião no Espaço Público: Brasil e Itália”, firmado entre a UFRGS e a Università di Roma Tre. Pesquisa as relações entre religião e política no Brasil e na América Latina e a transnacionalizacao religiosa, especialmente de igrejas e líderes evangélicos brasileiros para a Europa.

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COLABORADORES Antônio Braga Doutor em Antropologia Social, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP-Marília, SP. Pesquisa na área de Antropologia da religião, com particular interesse em religiosidade popular e devoções, assim como transformações nos contextos religiosos e das religiões no mundo contemporâneo (atualmente desenvolve pesquisa sobre missionarismo católico transnacional). Camila Sampaio Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desde 2003 realiza pesquisas junto a evangélicos em espaços urbanos, com experiências de trabalho de campo no Brasil e em Angola. Seus principais temas de interesse são formas de segregação urbana, condições identitárias, marcadores sociais da diferença e religiosidades. Cleonardo Mauricio Junior Doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É mestre em Antropologia pelo mesmo programa e licenciado em Ciências Sociais também pela UFPE. Publicou artigos e resenhas em revistas como Mana, Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE) e Religião & Sociedade. Desde seu trabalho de conclusão do curso de Graduação vem desenvolvendo pesquisa sobre liderança carismática pentecostal. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a presença do pentecostalismo na esfera pública brasileira e sobre a atuação de missionários pentecostais brasileiros no exterior. Daniel Alves Possui graduação em Ciências Sociais (2001), mestrado (2004) e doutorado (2011) em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto da Unidade Acadêmica Especial de História e Ciências Sociais da Universidade Federal

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de Goiás. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: religiosidade popular, aparições de Nossa Senhora, budismo no Brasil, neopentecostalismo, transnacionalização. Coordenador de pesquisa sobre religião e consumo na microrregião de Catalão (GO), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico Brasileiro (CNPq). Tem ainda atuado no diálogo de concepções e práticas agroecológicas, realizando extensão, diagnósticos e pesquisa participante. Flávia Ferreira Pires Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil; Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPB) e Programa de Pós-Graduação em Antropologia (UFPB), Mestre e Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Pós-Doutora pela Sheffield University, Inglaterra e Museu Nacional (UFRJ). Pesquisadora do CNPq. Temas de pesquisa: religião, crianças, infâncias, metodologia e teoria antropológicas. Área etnográfica semi -áridonordestino brasileiro. Autora do livro “Quem tem medo de mal -assombro? Religião e Infância no Semi-árido Nordestino” e de vários artigos em periódicos das áreas de Antropologia, Sociologia e Novos Estudos da Infância tais com Revista Brasileira de Ciências Sociais, Mana e Childhood.  Joana Bahia Doutorada em Antropologia Social pelo Museu Nacional/PPGAS/ UFRJ. Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Identidades, Representações e Migrações (UERJ). Pesquisadora Associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM-IPPUR/UFRJ). Desenvolve projeto sobre a transnacionalização das religiões afro-brasileiras na Europa financiado pela Faperj/RJ e Fundação Calouste Gulbenkian/ Portugal. É autora do livro O Tiro da Bruxa: identidade, magia e religião na imigração alemã (2011).

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Marcelo Tadvald Doutor em Antropologia Social pela UFRGS-Brasil, pós-doutorando Capes PNPD, docente e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Religião (NER-PPGAS-UFRGS) e aos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Antropologia e Direitos Humanos e Transnacionalização evangélica brasileira para a Europa. Tem experiência na área das Ciências Humanas, com ênfase em Antropologia da religião, política e direitos humanos, além de pesquisar grupos terapêuticos e de ajuda-mútua, temas os quais tem contribuído com a participação em eventos científicos e publicações em livros e revistas nacionais e internacionais. Atualmente, também desenvolve pesquisa sobre a imbricação dos campos religioso e político no Brasil e na América Latina. Marcos de Araújo Silva Doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo sido Pesquisador Visitante na Università di Roma La Sapienza, na Urbaniana University, na Universitat de Barcelona e na Universitat Rovira i Virgili. É Pesquisador de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, desenvolvendo investigação no NESG (Núcleo sobre Epistemologias do Sul Global). Possui artigos, livros e capítulos de livros publicados na Argentina, no Brasil e na Europa. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Globalização e Relações Internacionais, atuando principalmente nos seguintes temas: Migrações; União Europeia; Saúde, Gênero e Sexualidade; Transnacionalismo Religioso; Patrimônio Cultural na região do Mediterrâneo. Mariana Reinisch Picolotto Aluna de mestrado do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisa a transnacionalização evangélica brasileira para a Europa, sobretudo a igreja Encontros de Fé de Porto Alegre e suas relações com igrejas suecas.

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Mauro Meirelles Doutor em Antropologia Social, Mestre em Educação e Licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS. É professor do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unilasalle. Atua na área de Educação e Antropologia e dedicase, sobretudo, à estudos que vinculam-se a Antropologia, as Ciências Sociais e a Educação. Atualmente coordena projeto de pesquisa financiado pelo Cnpq através do Edital Universal 14/2014 sobre “A tangibilidade da noção de Patrimônio, Meio Ambiente e Políticas Públicas e suas interfaces com a Educação e a Religião”. Paralelamente, desenvolve atividades ligadas ao Núcleo de Estudos da Religião e ao Laboratório Virtual e Interativo de Ensino de Ciências Sociais da UFRGS. Mísia Lins Reesink Doutora em Antropologia Social pela EHESS-Paris. Professora do Departamento de Antropologia e Museologia e da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Tem realizado pesquisas e publicações nas áreas de Antropologia da Religião, Antropologia da Morte, Antropologia das Imigrações e Histórida da Antropologia. Reginaldo Conceição da Silva Professor de Geografia Humana da Universidade do Estado do Amazonas, Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, localizada em Tabatinga. Atualmente cursa mestrado em Cartografia Social e Política da Amazônia, pela Universidade Estadual do Maranhão. Tem experiência em Formação de Professores, Ensino de Geografia e Geografia Humana. Na pesquisa atua junto a Povos Tradicionais indígenas; agro-extrativistas e Povos Tradicionais de Terreiro. Roberta Bivar Carneiro Campos PhD em Antropologia Social pela University of St. Andrews - Escócia (2001). Pesquisadora do CNPq e professora do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE e do PPGA da mesma universidade. Membro de Conselho Editorial das revistas Interface-UNESP, Vivência e AntHropológicas. É autora de livros e capítulos de livros em diversas coletâneas e artigos em diversos periódicos nacionais e

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internacionais. Desenvolve pesquisas na área de antropologia da religião, com foco em rituais, emoções, corpo, família, gênero e crianças e pesquisas sobre história e teoria antropológica. Rodrigo Otávio Serrão Santana de Jesus Doutorando e assistente de pesquisa do Departamento de Sociologia da University of South Florida, EUA. Atualmente pesquisa as religiões brasileiras nos EUA e sua relação com as comunidades de migrantes brasileiros. Tem artigos publicados em periódicos do Brasil sobre migrações, religião e transnacionalismo. Suzana Ramos Coutinho É Ph.D. em Religious Studies pela Lancaster University, Inglaterra. Pós-doutora pela University of Cambridge, é antropóloga e fotógrafa. Atua como professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

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ÍNDICE REMISSIVO A

África 57, 68, 69, 79, 80, 119, 120, 124, 129, 141, 145, 184, 237, 238, 245, 251, 278, 298, 308, 309 América Latina 46, 57, 58, 68, 69, 79, 80, 140, 141, 211, 225, 251, 266, 267, 268, 269

C

Campo religioso 26, 48, 100, 118, 122, 142, 194, 200, 204, 207, 210, 212, 213, 215, 331 Carisma 20, 21, 29, 30, 31, 33, 37, 38, 144, 268 Catolicismo 46, 50, 207, 212, 213, 222, 229, 234, 246, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 263, 267, 268, 270, 283, 332, 333, 336 Cidadania 74, 75, 110, 117, 118, 175, 238, 239, 282, 286 Comunidades 19, 24, 27, 28, 29, 49, 53, 66, 93, 95, 124, 126, 127, 139, 142, 148, 163, 165, 166, 167, 168, 169, 176, 177, 178, 183, 184, 185, 186, 209, 211, 219, 220, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 245, 246, 260, 268, 269, 277, 278, 281, 287, 288, 296, 312, 324, 325, 337 Consumo 43, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 74, 75, 100, 101, 102, 117, 118, 175 Cura 60, 75, 88, 89, 90, 97, 224

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D

Desterritorialização 19, 22, 23, 24, 25, 29, 37, 50, 52 Diáspora 21, 24, 25, 26, 27, 58, 60, 63, 68, 79, 163, 220, 269 Europa 57, 58, 60, 61, 63, 64, 68, 76, 77, 79, 80, 141, 145, 146, 153, 222, 225, 235, 251, 254, 256, 257, 259, 261, 263, 267, 271, 312 Evangelização 58, 63, 64, 80, 88, 89, 93, 140, 141, 145, 146, 152, 154, 266

F

Fronteira 21, 23, 26, 28, 53, 112, 124, 148, 166, 181, 209, 221, 253, 255, 261, 262, 263, 264, 267, 268, 269, 270, 275, 276, 277, 283, 284, 286, 287, 288, 297, 310, 314, 324, 338

G

Globalização 22, 24, 25, 26, 27, 43, 50, 51, 52, 53, 144, 145, 148, 215, 252

I

Identidade 26, 27, 31, 45, 48, 66, 75, 79, 80, 86, 87, 91, 95, 97, 98, 100, 101, 105, 107, 109, 147, 148, 152, 204, 207, 213, 223, 275, 284, 285, 286, 287, 288, 300, 304, 308, 309, 337 Imaginário 85, 87, 88, 91, 92, 173, 174, 175, 186, 192, 195, 197, 198, 199, 211, 212, 213, 214, 215, 252, 297, 298 Imigrantes 24, 35, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 73, 76, 77, 78, 79, 80, 123, 147, 182, 184, 219, 220, 221, 222, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 237, 239, 240, 241, 245, 295, 324, 325 Indigenização 21, 23, 24, 25, 29, 61

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Islamismo 79, 106, 123, 124, 125, 126 IURD 58, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 74, 75, 76, 77, 78, 80, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 106, 107, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 123, 127, 128, 129, 130, 131, 132

L

Libertação 86, 87, 89, 93, 97, 140 Linguagem 116, 119, 241, 242, 243, 244, 246, 269, 293, 299, 302, 304, 305, 313, 314 Liturgia 60, 61, 88, 242, 243

M

Memória 26, 27, 163, 195, 196, 197, 198, 215 Mídia 43, 50, 51, 53, 100, 101, 110, 124, 172, 181, 209, 294 Missionários 20, 29, 32, 36, 57, 59, 65, 68, 69, 80, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 261, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 271 Missões 36, 106, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 268, 269, 270, 271 Modernidade 61, 62, 117, 206, 252

N

Neopentecostalismo 57, 58, 63, 209

385

P

Pertencimento 29, 51, 53, 95, 98, 116, 117, 132, 148, 213, 214, 223, 257 Política 51, 59, 62, 75, 80, 105, 106, 107, 117, 129, 130, 147, 148, 150, 183, 194, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 223, 235, 275, 277, 285, 287, 294, 295, 297, 312, 329, 332 Prosperidade 59, 74, 86, 87, 89, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 101, 114, 118

R

Redes 20, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 32, 38, 50, 52, 111, 117, 120, 139, 141, 143, 144, 145, 146, 147, 149, 150, 158, 163, 164, 165, 175, 177, 178, 179, 180, 181, 183, 186, 193, 194, 197, 210, 211, 214, 215, 222, 252, 265, 297, 302, 304 Religião Afro-brasileira 278, 284, 285, 288, 294, 308, 313 Religião de matriz africana 281, 282, 286 Rituais 49, 60, 71, 72, 86, 87, 89, 90, 91, 92, 94, 97, 100, 101, 116, 119, 128, 199, 223, 260, 284, 299, 315, 316, 326

S

Secularização 48, 49, 50, 58, 203, 205, 206, 212, 269 Simbólico 23, 48, 51, 62, 65, 80, 100, 102, 119, 196, 197, 211, 214, 215, 230, 271 Sincretismo 255, 299, 326, 327, 328, 329, 330, 337 Socialização 44, 49, 52, 336

386

T

Territorialização 23, 37, 50, 52 Território 23, 58, 61, 64, 65, 67, 79, 131, 150, 278, 283 Tradição 50, 51, 86, 94, 164, 182, 238, 276, 287, 316, 330, 335 Transnacional 22, 27, 28, 29, 31, 33, 80, 86, 87, 132, 143, 147, 149, 150, 178, 180, 181, 185, 219, 220, 222, 223, 224, 233, 252, 307, 314 Transnacionalização 20, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 31, 38, 86, 105, 147, 148, 210, 215, 253, 270, 271, 293, 294, 310

V

Vocação 22, 31, 33, 37, 222, 297

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