Como apalpar o impalpável? Leitura intertextual do conto kafkiano “A Pousada”, de Agustina Bessa-Luís

May 23, 2017 | Autor: V. Revista da Ass... | Categoria: Literatura Portuguesa, Letras (Língua Portuguesa e Literatura Brasileira)
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VEREDAS 22 (Santiago de Compostela, 2014), p. 49-60

Como apalpar o impalpável? Leitura intertextual do conto kafkiano “A Pousada”, de Agustina Bessa-Luís MARCELO PACHECO SOARES

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (Brasil)

“Na obra de Agustina Bessa-Luís, tudo é mistério (...).” Catherine Dumas “Kafka era inimitável: permanecia no horizonte como uma eterna tentação.” Jean-Paul Sartre

Resumo: Este artigo estuda o diálogo do pouco conhecido conto “A pousada”, de Agustina Bessa-Luís, produzido no início de sua carreira, com a obra de Franz Kafka O Castelo, evidenciando a influência kafkiana sobre a produção literária dessa escritora portuguesa desde a sua gênese. Palavras-chave: Agustina Bessa-Luís; Franz Kafka; Literatura Fantástica do Século XX; Intertextualidade.

Abstract: This article studies the dialogue of the little-known story “A pousada”, by Agustina Bessa-Luís, written early in her career, with Franz Kafka's The Castle, evidencing the influence of Kafka on the literary production of this Portuguese writer since its genesis. Keywords: Agustina Bessa-Luís; Franz Kafka; Fantastic Literature of the Twentieth Century; Intertextuality.

Data de receção: 03/01/2014 Data de aceitação: 19/12/2014

A ânsia do ser humano por saber o faz buscar, por vezes de modo inadvertido, a compreensão total dos fatos, não o permitindo admitir a existência do incompreensível ou a possibilidade de que algo se esquive indefinidamente da sagacidade do pensamento que nossa prepotência cuida infalível. Talvez resida neste desafio sem solução o fascínio exercido por obras de arte em que a inescrutabilidade chegue próxima às vias de fato: quadros de Salvador Dalí, filmes de Luis Buñel, notas musicais de Jocelyn Pook. Queremos entender, queremos sempre entender, queremos o controle veementemente negado.

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Mesmo reconhecendo o nosso iminente insucesso, assumimos tal risco frente ao conto “A Pousada”, da escritora portuguesa novecentista Agustina Bessa-Luís, publicado no volume Contos impopulares. Somos guiados pela sede infindável da descoberta, pelo desejo de desvendamento do enigma apresentado pelo texto-esfinge como desafio para que a hermética passagem se nos abra, porque do contrário nos sentimos violentamente devorados. Agimos apenas como humanos que somos e, exatamente por sermos humanos, não poderíamos agir de modo outro. Ignoramos, ou fingimos ignorar, que talvez a obra em questão não se sujeite a este ensaio de revelação, não su porte que o insólito seja arranjado de modo a ganhar (ou forjar) algum sentido. Mas é possível que diminua as nossas chances de derrota (aquela inevitável e satisfatória derrota a que, diante da inesgotável fonte de significados que é a arte, estamos continuamente destinados) buscar, a princípio, não uma leitura impressionista do conto de Agustina, mas a alternativa de partirmos de uma comparação com outra obra, de significação não menos fugidia, com que “A Pousada” estabeleça inequívocos sinais de familiaridade: referimo-nos ao romance O Castelo, do autor tcheco das primeiras décadas do século XX Franz Kafka, em que se narra a história de K., agrimensor cujos serviços foram contratados pela administração de um impenetrável Castelo mas cuja demanda na aldeia, que está sob o jugo do contratante, inexiste. Comparando O Castelo com o conto de Agustina, talvez possamos, ao invés de entender cartesianamente “A Pousada” (o que parece impraticável, como, aliás, cremos que o próprio conto metalinguisticamente demonstra), reconhecer o que quiçá seja igualmente insondável à razão neste conto e no romance de Kafka. Não há portas n’O Castelo (?!) Será um pequeno trecho da narrativa tcheca — em que o protagonista do romance dialoga com Gardena, dona da estalagem da aldeia na qual o agrimensor se hospedara — o que nos servirá de mola propulsora para a análise que empreenderemos. Observemo-la: (...) posso eu certamente penetrar seus pensamentos, senhor agrimensor, esses pensamentos que aqui entre nós carecem de sentido e que no estrangeiro, de onde o senhor vem, talvez sejam válidos. (KAFkA, 1969, p. 109)

O excerto revela o que poderia ser uma suposta chave para uma das muitas trancas que vedam a (conjecturada) porta a qual conduz ao (ou encerra o) mítico entendimento da obra de Franz Kafka (e pedimos perdão por tamanha falta de confiança na capacidade de análise da crítica literária diante do escritor tcheco)1. Ainda assim, giremos essa chave dentro da tranca e tentemos levantar-lhe o bedelho: se, apesar da existência de um narrador em terceira pessoa, a narrativa de O Castelo (como acontece via de regra nos textos do autor como em O processo ou A metamorfose ou mesmo América) se realiza sob a ótica do protagonista da trama, será com K. que o leitor se identi ficará. Portanto, esse espaço estrangeiro de onde o agrimensor viera e a que a estalajadeira faz alusão, aquele em que a ordem difere da que rege os acontecimentos na aldeia, identificar-se-á precisa mente com o mundo empírico do leitor. Rudolf M. Stock reconhece que o herói de O Castelo “chega a saber de início que tudo o que é natural para os habitantes da aldeia lhe é estranho” (StoCk, 1973, p. 95). No entanto, nessa altura, a fala de Gardena promove interessante inversão, revelan1

Longe de sermos os únicos a olhar com ateísmo para a ciência da literatura quando o assunto é Kafka, vale citar Leo Gilson Ribeiro: “As histórias de Kafka são líquidas na sua contextura, querer delimitá-las é como querer capturar uma nuvem, evanescente e fugidia na sua essência de vapor e de água.” (1967, p. 35).

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do afinal o ponto de vista que não pertence ao protagonista; nela se desvenda que o mundo de K. (e, por extensão, o mundo empírico do leitor) é que parece absurdo (já que seus pensamentos aqui entre nós carecem de sentido), relação que já poderia até ser dedutível, mas sintomaticamente surge de forma explícita no texto, opção narrativa do autor não deve ser despicienda. Destarte, as palavras da estalajadeira sustentam a tese de que o absurdo em verdade reside não no espaço mesmo da narrativa, mas na própria atmosfera em que se processa a experiência real do leitor, da qual, todavia, a Literatura será nada menos do que uma reprodução, ainda que imprecisa. Sob esse complexo jogo — cuja regra é demonstrar que a narrativa supostamente insólita é em última instância uma representação, em algum grau, mimética do real —, a obra de Kafka ganha contornos de um peculiar realismo, apesar do seu a princípio contraditório aspecto pretensamente fantástico.2 Assim, Filipe Furtado será um dos estudiosos desse gênero literário a reconhecer que “torna-se difícil supor, por exemplo, uma abordagem integralmente fantástica de Die verwandlung de Kafka, muito embora a narrativa encene uma óbvia transgressão do real” (1980, p. 79). Pois essa dubiedade é o elemento que coloca o autor tcheco na posição de um divisor de águas no processo de desenvolvimento desta literatura classificada como fantástica, conforme defendem dois importantes críticos: Tzvetan Todorov, autor daquela que é provavelmente a mais famosa investigação teórica a respeito do assunto, e Jean-Paul Sartre, que em artigo se debruçou de modo mais detido sobre o fantástico pós-Kafka. Sartre, no seu “Aminabad, ou o fantástico considerado como uma linguagem”, estabelece oposição entre as literaturas fantásticas dos séculos XIX e XX, nomeando-as respectivamente tradicional e contemporânea. Esta, na qual o existencialista francês atém sua apreciação, em meio a outros traços distintivos, caracteriza-se pela ausência do espanto (sensação, do personagem e/ou do leitor, que o linguista búlgaro Tzvetan Todorov, definindo sob o termo hesitação, consideraria fundamental para a sustentação de uma narrativa fantástica), espanto ou hesitação que não tem sustentabilidade porque a existência de qualquer elemento fantástico num determinado espaço, segundo Sartre, requer que este espaço inteiro seja necessariamente de mesma natureza, ou seja, fantástico igualmente: Se estou no avesso de um mundo pelo avesso, tudo me parece direito. Portanto, se eu habitasse, eu mesmo fantástico, um mundo fantástico, não poderia de modo algum considerá-lo fantástico (...). (2005, p. 144-145)

Conclui então Sartre que “o fantástico só pode existir como universo” (2005, p. 144), e será esse universo fantástico o que abrigará a estalajadeira Gardena e os demais personagens de O Cas2

São relativamente mais recentes, mas não necessariamente incomuns, as pesquisas que defendem o realismo kafkiano, conforme Michael Löwi demonstra: “Nem Adorno, nem Benjamin, nem Karel Kosik — muito menos André Breton! — puseram questões sobre o realismo em Kafka. É um tema que não mobilizou a atenção dos marxistas críticos. Em compensação, no movimento comunista 'pós-stalinista', o debate concentrou-se essencialmente sobre esta grave interrogação: o autor de O processo era ou não um escritor 'realista'?” (2005, p. 187). José Hildebrando Dacanal, por exemplo, analisa: Em O processo e O Castelo não temos a realidade perdida de Proust, a realidade “massificada” e vulgarizada de James Joyce, a realidade polivalente, vista sempre de vários ângulos, que aparece em Virginia Woolf e Henry James ou a realidade simplesmente, mas em crise, de Thomas Mann. Em Kafka, neste primeiro nível, temos, como já disse, o romance real-naturalista. Mas é ao eliminar a relação sóciohistórica de forma radical, absoluta, total, que Kafka cria o seu mundo do absurdo familiar, como o chamo. (1973, p. 61)

E Jean-Paulo Sartre é categórico ao afirmar sobre Kafka que “seu universo é ao mesmo tempo fantástico e rigoro samente verdadeiro” (2005, p. 147).

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telo, não integrando todavia da mesma maneira o forasteiro K., cuja busca pela adesão ao meio social em que ora transita estará condenada ao fracasso precisamente porque ele não habita, ele mesmo fantástico, este mundo fantástico. Por fim, em decorrência do ponto de vista sartriano, a literatura fantástica dita contemporânea dispensaria a hesitação que Todorov, pouco após a divulgação das considerações do filósofo, defenderia como primordial à construção do fantástico tradicional oitocentista, o qual ele se dispõe a estudar no emérito Introdução à literatura fantástica. Ora, se por agora expomos as teorizações desses dois pesquisadores, é porque para ambos a ficção de Kafka pode ser eleita fronteira simbólica entre as duas vertentes de literatura fantástica que se expuseram. Sartre considerara o escritor tcheco o expoente inaugural da literatura fantástica contemporânea, no tempo que à proposta teórica de Todorov já não caberá a faculdade de compreender escrita dessa natureza, conforme o próprio crítico confessará: A narrativa kafkiana3 abandona aquilo que tínhamos designado como a segunda condição do fantástico: a hesitação representada no interior do texto, e que caracteriza especialmente os exemplos do século XIX. (1975, p. 181)

Ora, as indagações teóricas que circundam o problema da relação entre a poética de Kafka e as definições quanto aos limites do gênero fantástico já foram exaustivamente levantadas e são mes mo um (quase obrigatório) lugar-comum nas pesquisas acadêmicas acerca do assunto. Para ilustrarmos tal reincidência, citemos a exposição de José Paulo Paes: Dificilmente se poderia falar aqui [em Kafka] em hesitação por parte do leitor ou em recusa sua às in terpretações poéticas: a ele não resta outra alternativa que não seja a de aceitar em si e por si esse fantástico universo ficcional, sem mais se preocupar em cotejá-lo com o universo real. O mesmo vale, em maior ou menor grau, para os textos de outros ficcionistas da mesma linhagem, como Borges ou Cortázar. Com razão observou Todorov que a obra de Kafka nos põe diante de “um fantástico generalizado; o mundo inteiro do livro e o próprio leitor estão incluídos”. Mas o mesmo Todorov não consegue encaixar bem a ficção kafkiana na sua definição restrita de fantástico, pelo que opta por excluí-la, desterrando-a para as áreas circunvizinhas do maravilhoso e do estranho, áreas das quais (...) ele timbra em diferenciar o fantástico propriamente dito. No entanto, Jean-Paul Sartre, referindo-se à identificação total com o absurdo a que os textos de Kafka implicitamente obrigam o leitor, diz: “E nossa razão 3

Vale destacar que o adjetivo “kafkiano”, em função das características muito particulares da obra do escritor tcheco, está carregado de significados que ultrapassam os sentidos imediatos fornecidos pelos dicionários, como “rela tivo a Kafka” ou “aquele que é admirador de Kafka ou conhecedor de sua obra”, por exemplo. Sobre o assunto, Edson Passetti explica: Com Kafka apareceu a palavra kafkiano, uma designação para os excessos de racionalidades impessoais nas funções, cargos e procedimentos que orientam a produtividade moderna, suas construções de verdades amparadas em realidades e sonhos, envolvendo gentes e animais, surpreendentes instantes onde se espera o previsível. (2004, p. 10)

E Durval Muniz de Albuquerque Júnior também reflete: Kafka foi muitas vezes acusado de desenhar estruturas, pensar mundos dos quais suas personagens não poderiam escapar, em que são apenas objetos passivos e não sujeitos ativos. Foi cunhado, inclusive, o adjetivo kafkiano para se referir a estes mundos que parecem nascidos de pesadelos, que parecem absurdos por discreparem do mundo cotidiano e rotineiro, por nascerem de uma ruptura inesperada com a ordem, por serem excepcionais, bizarros, grotescos, por mergulharem suas personagens em sucessivas situações das quais não conhecem as motivações, que não conseguem explicar racionalmente e das quais não conseguem escapar, embora elas possuam uma lógica própria, difícil de dominar. (2004, p. 17)

Por fim, Ricardo Piglia, em suas famosas “Teses sobre o conto”, teoriza: O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço dessa narração cifrada. Como contar uma história enquanto se conta outra? (...) Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta, e narra sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o “kafkiano”. (2004, p. 91-92)

Mais do que, atidos ao plano da ação, encontrar semelhanças entre o conto de Agustina e O Castelo, objetivamos descobrir em “A Pousada” algumas das circunstâncias adjetivadas, nos termos expostos, como kafkianas.

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que devia endireitar o mundo posto ao contrário, arrastada por esse pesadelo, torna-se ela própria fantástica”. (1985, p. 188-189)

Uma vez que a obra de Franz Kafka representa uma viragem actancial no percurso histórico da produção de textos fantásticos, compreender o seu legado ficcional já seria então mister para mais bem conhecer esses seus predecessores textos de outros ficcionistas da mesma linhagem aos quais se refere José Paulo Paes4 — dentre os quais, deparamo-nos com a Agustina Bessa-Luís do volume dos Contos impopulares (de onde extraímos “A Pousada”), escritos num momento em que Kafka exercia importante ação sobre os seus temas5. É correto dizer que a influência kafkiana estará para além desses escritos do início de sua car reira, o que leva Massaud Moisés a observar que na obra de Agustina “processa-se a obnubilação dos pontos de referência com a realidade convencional, e uma sondagem no mais-além, no obscuro, que lembra Proust e o seu mergulho no tempo, e Kafka e a sua teologia do absurdo” (2008, p. 518). Quanto a isso, Georges Güntert, muito a propósito, citará o autor de O Castelo quando confessar admirar na autora lusitana sua “impressionante erudição literária: Sthendal, Büchner, Kafka, Proust, os grandes portugueses, principalmente Camilo, e até os mitos antigos, estão sem pre nela presentes” (1991, p. 101). E provavelmente caberá aqui acrescentar os nomes eméritos de Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, poetas que inspiram a criação dos personagens do romance O susto. Contudo, autentica mais precisamente a questão defendida em nosso ensaio a declaração de José Manuel Heleno, que reconhece exatamente no conto “A Pousada” “um tom eminentemente kafkiano” (1997, p. 141). Assim sendo, extrapolando todo o expediente de que a poética kafkiana já nos municiaria naturalmente no processo de leitura dos contos de Agustina Bessa-Luís e de maneira especial no que concerne às histórias contadas neste específico livro de Contos impopulares, potencializa a necessidade de contemplar particularmente “A Pousada” sob a ótica dos estudos realizados a respeito do autor tcheco a percepção de que a sua estrutura narrativa deveras se assemelha à consagrada por Franz Kafka em seus próprios escritos, fator que, particularmente 4

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Se Paes falara de Borges e de Cortázar, temos ainda outros críticos a identificar novos ramos desta árvore genealó gica, como Daniel Piza a lembrar Italo Calvino, Leo Gilson Ribeiro a recordar Lewis Carrol, o próprio Jean-Paul Sartre a basear o seu artigo em um conto de Blanchot e, por último e mais humildemente, nós a nos arriscarmos a citar, especificamente no âmbito da Literatura Portuguesa, os (quase contemporâneos de Kafka) Mário de Sá-Carneiro e José de Almada-Negreiros, o contista Branquinho da Fonseca e suas narrativas de cunho fantástico e lin guagem todavia denotativa (como a novela O Barão e outros textos mais curtos), José Osório de Oliveira e o Tempo de exílio em que segundo António Quadros “vamos encontrar os mais fortes parentescos com os contos de Franz Kafka” (1964, p. 126), algumas (antigas e novas ) andanças demoníacas de Jorge de Sena, a leitura ficcional que Alfredo Margarido realiza de A metamorfose com o seu A centopéia (já após ter encontrado Kafka No fundo deste canal ), Álvaro Guerra e seu instigante conto “O cavalo branco” (também com clara inspiração em A metamorfose ), Os amantes e outros contos de um duplamente fantástico David Mourão-Ferreira, os Casos do Beco das Sardinheiras de Mário de Carvalho, o célebre José Saramago (especialmente o das narrativas breves de Objecto quase mas também notadamente o de romances como A jangada de pedra e, já nos anos de 1990, Ensaio sobre a cegueira , por exemplo) e ainda, mais contemporaneamente, Isabel Cristina Pires e os textos de A casa em espiral e as narrativas curtas de A casa do fim, de José Riço Direitinho, entre outros. Consta anonimamente na contracapa da edição da Guimarães Editores para este livro de Agustina: Os Contos im populares significaram na carreira de Agustina um contacto com o dramático produzido pelas associações que a própria história do escritor pôs a claro. Kafka teve, nessa época, profunda influência nos temas de Agustina BessaLuís. É relevante ainda informar que no volume intitulado A Brusca , onde se recolhem contos agustinianos tornados públicos por veículos diversos entre 1958 e 1970, a influência kafkiana também se faz sentir, como em “O convida do debaixo da mesa”, por exemplo.

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para nós, ganha contornos peremptórios em função da existência de mais do que manifestas rela ções a se instituírem entre o enredo do conto em análise e o do citado romance O Castelo. Não há quartos n’“A Pousada” (?!) No conto da autora portuguesa, o protagonista, nomeado exclusivamente por uma letra inicial (L.), chega, num dia chuvoso (como K. alcança os arredores do Castelo sob uma nevasca), a certa aldeia onde acontece anualmente uma feira, instituição antiga e cuja origem, ligada decerto à disposição tipográfica da vila, ninguém sabia mais. Com o auxílio de uma jovem aldeã, L. busca, em vão, hospedar-se na Pousada, estabelecimento localizado no ponto mais alto da aldeia (assim como o Castelo ficava no alto da montanha), que recebe aqueles que chegam ao lugar com a finalidade de participar do evento comercial. Assim, boa parte do conto se desenvolve a partir das tentativas do herói de conseguir uma vaga para se instalar na hospedaria. Estas brevíssimas linhas resumitivas são suficientes para alinhavarmos as primeiras analogias entre o texto escrito por Agustina e o romance de Kafka, a começar, aliás, pelos títulos — o castelo, a pousada — em que os dois lugares impenetráveis das narrativas são selecionados como seus res pectivos temas centrais e, por isso, como suas unidades mínimas de significação. Ademais, não bastasse o fato de os seus protagonistas levantarem esforços para alcançarem uma meta comum (penetrarem em uma estrutura, o que pode representar intenções de adesão a um determinado meio social — conforme, a propósito, dão conta algumas leituras de O Castelo6), é curioso notar que, em ambos os casos, este objetivo torna aquela que seria a finalidade inicial da viagem (para K., prestar serviço de agrimensor; para L., participar da feira) irrelevante e marginal, num proces so que anula os fins em favor dos meios. Ora, em sua citada análise a respeito das narrativas fantásticas contemporâneas, Sartre afirma que nelas o meio absorveu o fim como o mata-borrão absorve a tinta, explicando sob tal frase de efeito que esta nova modalidade do oitocentista gênero literário funcionava como a revolta dos meios contra os fins, seja que o objeto considerado se afirme ruidosamente como meio e nos mascare seu fim pela própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este a um outro e assim por diante até o infinito, sem que jamais possamos descobrir o fim supremo, seja ainda que alguma interferência de meios pertencentes a séries independentes nos deixe entrever uma imagem compósita e embaralhada de fins contraditórios. (2005, p. 140)

Em “A Pousada”, este recurso se torna ainda mais evidente quando se espreita o próprio funci onamento do (único) estabelecimento da aldeia destinado a receber como hóspedes aqueles que participam da feira: (...) havia só a Pousada. Era uma branca mansão embonecada, com reixas abauladas ao rés-do-chão, e destinava-se a albergar como hóspede de honra todo aquele que contribuísse para o esplendor e a so brevivência da feira. Apesar de a lotação da Pousada se manter esgotada e um bom número de personalidades cirandarem pelos seus corredores e abancarem no refeitório com uma pontualidade imperturbável, a feira nem por isso estava mais brilhante, e nela menos que nunca abundavam os produtos originais ou de sensação. (BeSSA-LUíS, 2004, p. 29) 6

A análise de Leo Gilson Ribeiro, embora de cunho demasiado biografista, é-nos por agora adequada: “Alguns críticos consideram O Castelo como o relato simbólico da impossibilidade de Kafka de assimilar-se na estrutura cultural do seu país e de integrar-se numa comunidade cristã. Por isso ao personagem central, K., é negado o acesso ao Castelo e só quando ele já se encontra sem forças e no leito de morte lhe é concedida a permissão de se estabele cer na aldeia ou, como dizem estes seus críticos, só demasiado tarde seria permitido a Kafka integrar-se na hierarquia ordenada da sociedade humana”. (1967, p. 31)

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Em suma: a finalidade da Pousada (o pleno desenvolvimento da feira, que consiste, como a narração esclarece, em instituição do forasteiro, tornando a hospedaria sumariamente necessária), embora não se concretize, não provoca o fechamento da própria Pousada, uma vez que agora ela existe de si para si, como meio que se tornou fim, transmudando-se em seu próprio escopo. Do mesmo modo, em análise de O Castelo, Michael Löwy constata que “o objetivo do protocolo é o protocolo, o objetivo da ordem é a ordem, o objetivo da administração é a administração” (2005, p. 165). Sintomaticamente, o aspecto externo da Pousada — cujo esplendor contrasta com a aparência de destruição e abandono da vila, que mantinha uma certa atmosfera de estacionamento, de pausa, vizinha da decadência, com a suas pedras de armas sobre arruinados portões, o coreto ao centro do jardim público, com os suportes de ferro das partituras caídos contra a balaustrada e da própria feira, reduzida agora a um mercado de géneros comezinhos e medíocres — não impunha qualquer aparência de actividade. E esta, digamos, inutilidade da Pousada será simbolicamente sugerida na resposta que, quanto às suas intenções de hospedagem, L. ouvirá textualmente do balconista: Não há quarto, informou o funcionário, para logo depois reiterar que não temos um só quarto. Ora, a ambiguidade do discurso é digna de uma apreciação isenta de qualquer ingenuidade: seu significado pri meiro faria sim referência metonímica a uma ausência de vagas, conforme o próprio funcionário chega a, por assim dizer, traduzir, em termos mais denotativos — Não há um só aposento disponível, não. Porém, a mesma frase pode ser tomada literalmente. O fim da explicação do empregado sinaliza a existência de um contraste entre estas duas possibilidades de leitura: “Eu sei que a lista não o indica como hóspede presumível; que não consta aqui quarto reservado para o senhor. Pode verificar o senhor mesmo. Além do que não há quartos. Pode verificar.” (BeSSA-LUíS, 2004, p. 34). A locução além do que coteja as duas interpretações possíveis da ambígua frase — não consta aqui quarto reservado para o senhor vs. não há quartos — como informações distintas e igualmente verdadeiras. Assim, dados todas as circunstâncias e todos os signos que cercam a Pousada, não seria terminantemente estranho que pudéssemos tomar a assertiva (cuja insistente repetição não deve ser mesmo casual) ao rigor da letra e concluíssemos que a missão de L. é efetivamente impraticável porque nesta hospedaria, cujo funcionamento se mantém não obstante a falta dos proventos objetivados, não existiriam quartos.7 Tudo isso explica porque a Pousada é marcada por traços semânticos que indiciam artificialidade, expressados, por exemplo, nas inúmeras chaminés que não fumegavam enquanto no seu interior havia aquelas brasas fingidas na lareira de tijolo, brilhando sobre a grelha limpa e ao lado dos ati çadores sem uso ou no empregado de cortesia estereotipada a quem a profissão obriga a lidar com filas de anónimos que de tão imóvel, parecia subitamente falecido, inclinado sobre o livro de registos ou ainda em outro funcionário de voz singularmente pomposa e atitudes cheias duma nobre reserva, como acontece com actores de segunda ordem na interpretação de mordomos e diplomatas. E essas recorrências ilustram “o mesmo cerimonial afetado, extravagante” que Sartre (2005, p. 136) distinguira em Kafka e Blanchot. A necessidade de conservar-se aberta mesmo que não perdurem as finalidade iniciais de sua edificação condena a Pousada a este aspecto factício, infundido por es tratagemas baseados na necessidade de mascarar uma condição falsa, que viverá sempre sob o im7

O procedimento se repete em outras passagens do conto, o que corrobora a nossa análise. Por exemplo: no trecho Desde o começo, o secretário que os atendeu pareceu encantado , em virtude da atmosfera insólita que já se desenvolvera, o adjetivo encantado tanto pode denotar o falso entusiasmo do funcionário no atendimento quanto pode sugerir o efetivo aspecto fantástico que rege as atitudes do empregado.

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perativo de se impor descaradamente como verdadeira — no que, contrariando todavia as expectativas, a empresa obtém fácil sucesso. E se de fato a experiência de se hospedar na Pousada representaria, metafórica e metonimica mente, os anseios do homem em ser aceito na sociedade (e referimo-nos aqui ao organismo abstrato que a palavra sociedade representa ao compor um Estado regido por pactos), sociedade esta cuja perfeição do funcionamento deve ser inquestionável, a frustração desta possibilidade de ade são se justifica pela inconstância e/ou pela inconsistência, características tão concretas quanto humanas, que marcam tanto o personagem L. quanto a sua companheira de jornada. A forma como o protagonista é batizado, tão somente por uma inicial 8, é o primeiro signo do grande mistério que o rodeará e logo uma de suas primeiras descrições, olhando dum lado ao outro a rua, a gola levantada até meia face, remonta a um estereótipo do homem misterioso dos romances policiais noir americanos da primeira metade do século XX. O lugar de origem de L., nas profundidades inescrutáveis, na terra imutável e sombria, potencializam este efeito. Mas a bagagem que o herói carrega equivalerá à grande insígnia do seu aspecto enigmático. Levava consigo uma velha maleta de fibra que, pelo modo como ele a carregava, julgar-se-ia vazia, diz o narrador, usando sugestivamente o futuro do pretérito em sua função condicional. As precauções que tomava para abrigar a sua pobre maleta pareciam tão comoventes quanto inúteis, reitera adiante a narração, valendo-se do mesmo recurso. Entretanto, L. deixa a aldeia sem que ninguém o abordasse na passagem, para perguntar o conteúdo da sua bagagem; nem sua companheira de campanha, nem outros personagens, nem mesmo em última instância o leitor aceitam as, por assim dizer, provocações do narrador para atiçar a curiosidade sobre o que há na maleta (se há) e parecemos todos saber desde o início que em verdade o herói não se dará a conhecer de fato em momento algum. Tanto por isso, L., durante a narrativa, mantinha-se inescrutável. Ou, em palavras que reforçam esse hermetismo: seu coração permanecia incomunicável e fechado. Quanto à jovem que o ajuda logo que ele chega à aldeia, é perceptível que também sua personalidade será esboçada imprecisamente pela narração e, embora por sua vez ganhe um nome, este, cuja simplicidade não é fortuita, nada mais é do que uma alcunha hipotética duvidosa: Chamava-se talvez Maria.9 — e assim ela será reconhecida no decorrer de todo o conto. 8

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A opção da autora coincide com a de Kafka em O Castelo, inclusive pelo fato de se tratar curiosamente das iniciais do seu sobrenome — o “L” usado no texto de Bessa-Luís poderia gerar significado semelhante ao que a letra “K” promove, no romance tcheco, parecendo sempre gritar “Kafka”. É pertinente ainda dizer que tanto Kafka quanto Agustina usam o mesmo estratagema em outras narrativas. Os personagens kafkianos vão gradativamente sofrendo um esvaziamento de identidade, já que o “K” é apenas uma alusão a Kafka em Karl Rossmann, se torna sugesti vamente mudo em Joseph K. (mantendo, contudo, um primeiro nome a individualizar o personagem) e se torna absoluto como única referência nominativa no romance em análise. Talvez por isso Leo Gilson Ribeiro adote a ci tada envergadura biografista em sua leitura e afirme então que Kafka “é, ele próprio, o personagem mais profun damente kafkiano de seus livros, encarnando os seus personagens envoltos em mistério e enigma insondáveis” (1967, p. 20). Já a forma nominativa L. eleita por Agustina será também usada em diferente (ou o mesmo?) perso nagem de outro conto impopular , “Míscaros”, em que o herói vive também uma situação kafikiana, necessitando pagar mais de uma vez pela mesma travessia de barco em função da dificuldade de comprovar o pagamento ante rior. E, ainda que fosse uma coincidência impertinente a ser levantada, talvez devamos nos arriscar a dizer que no romance de Bessa-Luís Ordens menores , por exemplo, um dos personagens chama-se justamente Luís (Matias do Barral), o que poderia até indiciar certa tendência autoral de Agustina de fazer poeticamente menção a si própria através da forma como nomeia suas criações, conforme parte considerável da crítica defende que Kafka fizera. E a teoria de que Agustina faria com o uso da inicial L. uma auto-referência poética ganha força sob o batismo da personagem feminina, já que o nome completo da autora era Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa-Luís. O nome, aliás, também reincidirá em outras obras, como em A Sibila (em que nomeia Maria da Encarnação, mãe da protagonista Quina) e ainda em Os incuráveis , por exemplo.

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Finalmente, o olhar que um personagem lançará sobre o outro e as diversas reações que isso implica auxiliarão o narrador a compor as multifacetas de L. e Maria, porque a instabilidade de suas descrições passam em verdade pela volubilidade como um percebe o outro. Para o protagonista — cuja narração (in)define como um rapaz de aspecto não muito optimista, tímido ou talvez obcecado a ponto de parecer extravagante — ora a rapariga, também referida na narrativa como criança e adolescente, sem ser bela, exprimia certo tipo de harmonia exótica que pode impressionar até a fascinação, ora o faz experimentar um insidioso sentimento de desdém. Ela, por sua vez, ora seguiao aparentemente de má vontade, ora se mantinha à parte sem qualquer indício de parcialidade, ora erguia para L. os olhos cheios de um ânimo afectuoso e quase tentador, ora novamente não escondia o desencanto que lhe causava L., ora era infatigável, duma actividade toda resoluta e até inconsciente, ora sonhava e esperava, a todo instante, o advento de alguma coisa definitiva, deslumbrante. Esta indefinição que assinala as características psicológicas de L. e Maria10 entra em franco contraste com a artificial precisão que limita as descrições da Pousada, o que, afinal, pode ser a grande causa da impossibilidade de adequação dos dois personagens à sociedade hipócrita (e pretensamente exata) na qual almejam em vão penetrar. Mas esta incapacidade de penetração parece refletir a própria relação que se funda entre L. e Maria. L. não penetra a Pousada assim como Maria (ou mesmo nós, leitores) não penetra o incomunicável coração do protagonista e assim como também não há a consumação da evidente tensão sexual criada entre os dois no decorrer da narrativa. L. e Maria são mais um exemplo do que Eduar do Prado Coelho constatou ao dizer que “em Agustina não há nunca amor que não seja amor do ódio ou ódio do amor — isto é, uma relação de proximidade que se faz através do obstáculo, do distanciamento, da incomodidade” (1988, p. 163-164). Talvez não fosse difícil até mesmo imaginar a presença de Maria como decisiva para o fracasso de L., uma vez que, em oportunidades outras, supõe-se que sua tentativa de adesão não fora fracassada, conforme nos permite deduzir os rótulos das hospedarias que conhecera no caminho que estão colados em sua maleta. Deste modo, L., ao pedir ajuda a Maria, teria cometido equívoco semelhante ao de K. em O Castelo. No romance de Kafka, o agrimensor inicia seu romance com Frieda, amante de um funcionário do governo local, crendo (todavia, segundo ele próprio, não por esse motivo) que o vínculo lhe poderia abrir as por tas do Castelo, mas o noivado lhe causa mais dificuldades e impedimentos do que benefícios. Por outro lado, sem indícios concretos, fazer julgamentos desta natureza sobre Maria ultrapassaria os limites impostos pelas letras do conto. Pertinente mesmo será descobrir no seio das semelhanças entre os dois casais a diferença decisiva: ambos os protagonistas se aproximam de uma aldeã e de ambas esperam algum auxílio para alcançar seus desígnios, mas “o corpo miúdo [de Frieda] ardeu sob as mãos de K.” ( KAFkA, 1969, p. 62), enquanto o mesmo não ocorrerá com Maria e L.. Verifica Catherine Dumas: “O amor sen sual, o amor consumado, é um pacto jamais concluído. Encontramos numerosos exemplos de anticasais na obra agustiniana.” (2002, p. 23). Assim, o contato físico mais íntimo que se alcança entre os personagens do conto em estudo ocorre, em via de mão única, em um abraço de despedida, cujos resultados são, além de tudo, improfícuos no tocante à reação de L.: 10 Analisando os personagens agustinianos, António Quadros constata que esta característica lhes é bastante peculi ar: Atribuir-lhes uma substância fixa, um caráter, “uma psicologia”, como fazem geralmente os romancistas, eis o que não pode esta “contadora de histórias”, possessa daquilo mesmo que escapa à introspecção, as ilusórias inclinações em que o ser se perde, ou as fugitivas intuições em que se reencontra. (1964, p. 171-172)

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MARCeLo PACheCo SoAReS (...) entregando-se a uma expansão de ternura e de piedade, ela abraçou L. e ficou a soluçar brandamente sobre o seu peito. Ele tocou-lhe nos cabelos, que eram como penas negras e frisadas, e nem por um instante sentiu que se evadia da sua solidão. (BeSSA-LUíS, 2004, p. 43)

A consequência é o silêncio. Daí por diante o texto não poderá prosseguir a não ser por uma menção às palavras que não foram ditas, quando muito pensadas: Maria também nada lhe perguntara. Acompanhara-o, vivera a sua mesma adversidade e compreendera a sua angústia, vendo-o perdido e sem amigos nessa terra estranha e no turbilhão da feira. Mas não lhe dissera — “Qual é o segredo da tua vida? Foi longo o teu caminho, deves estar cansado, amargurado porque a Pousada te repeliu, e é inutilmente que estás aqui. Mas podes falar-me das raras e novas coisas que decerto trouxeste contigo.” Mas ela, com a monstruosa indiferença de todos os mais, nada lhe perguntara. Sentia contra o seu peito a ressonância dos soluços de Maria, e isso não o impedia de pensar: “Amanhã, ela voltará à Pousada.” Aquilo magoava-o e, ao mesmo tempo, era-lhe grato. Faziao experimentar uma espécie de alívio, porque assim sabia que poderia definitivamente tornar pelos caminhos abruptos e solitários, e descer a montanha. Ela não o seguiria. (BeSSA-LUíS, 2004, p. 44)

A incapacidade de se relacionar (socialmente, amorosamente.) parece-nos a temática central de “A Pousada” e a mais marcante característica do protagonista, cujo desejo de liberdade, cuja sensação de inadaptação às convenções sócio-humanas, o condenam ao isolamento. Por isso, no momento em que precipitava sua partida, nada mais aspirava que romper ainda mais os débeis laços da curiosidade, do interesse, do medo; nada mais desejava, para estar livre, que descer a montanha; por isso também, nas linhas finais da narrativa, já portanto após partir, o seu coração, antes definido como incomunicável e fechado, é finalmente adjetivado em termos apreciativos: livre e cordial. E, logo após o desenlace com Maria, torna-se visível que a única e singular possibilidade de relação que L. pode constituir é egocêntrica, porque a resposta que recebe aos cumprimentos que arrisca emitir aos passantes no caminho de descida da montanha é a do eco de sua própria voz, provocando um (mono)diálogo consigo mesmo: L. descia a montanha. Saudava as gentes, de longe, com um brado arrogante e jovial, e o eco devolvialhe os gritos em tom velado e misterioso. Pôs-se então a desafiar o eco, inteiramente absorto nessa espécie de jogo, distraído da terra que despertava para um novo dia de feira, para a eterna ronda à Pou sada. (BeSSA-LUíS, 2004, p. 44-45)

Quanto à postura pedante e a ideia superior que faz de si próprio (marca, muito a propósito, reconhecida em todos os protagonistas kafkianos), sinalizados pelo brado arrogante, este já se manifestara no decorrer do conto, diante da recusa da Pousada em hospedá-lo, quando ele contestara a alegação do balconista de que oficialmente nenhuma vaga lhe havia sido prometida: Isso é resposta? Então a própria organização da Pousada, criada exclusivamente para casos como o meu, não é já um compromisso formal? Como posso cuidar outra coisa senão que me aceitem, que me recebam aqui e que a minha presença não corresponde a outra coisa que não seja o cumprimento da lei da própria Pousada? (BeSSA-LUíS, 2004, p. 33)

A circunstância vivida por L., aliás, encontra par na primeira dificuldade encontrada por K. no romance O Castelo, no momento em que tenta se hospedar na estalagem, quando ouve a seguinte resposta primeira do seu administrador: “Provavelmente estais admirado de tão exígua hospitali dade — disse o homem — mas a hospitalidade não é um uso entre nós; não precisamos de hóspedes.” (KAFkA, 1969, p. 31) — como a Pousada provavelmente também não precisa, tanto que nela não há quartos. José Manuel Heleno entrevê em “A Pousada” igualmente “uma sensação de desen-

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contro, de inospitalidade e de estranheza que se prende também com a busca da identidade” (1997, p. 141), marca reconhecidamente recorrente em personagens de Agustina.11 E L. provavelmente se conhece tão pouco quanto nós conseguimos conhecê-lo. Essa constatação explicaria por fim a sensação (que nunca poderemos validar terminantemente) de que sua maleta estaria vazia: o fato é que nem mesmo L., em momento algum do conto, ainda que sem mostrá-la a mais ninguém do que a si próprio, abrira a sua bagagem. À porta do quarto “A Pousada” é um conto cuja conclusão não o conclui, no sentido pragmático do termo. Silvina Rodrigues Lopes, ao analisar os desfechos de algumas obras de Agustina, entendeu que “não são porém puramente inconclusivos, eles são uma espécie de conclusão da impossibilidade de con cluir” (1992, p. 17). Esta concepção — também kafkiana, tanto que Ricardo Piglia define o autor tcheco como “um mestre na arte dos finais infinitos” (2004, p. 99) — é a mesma que leva a autora a criar a teoria do inacabado para analisar o romance Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, onde, segundo ela, “tudo está sujeito a uma rotação sem desenlance e que é o discurso do inacabado” (BeSSA-LUíS, 1984, p. 99). Mas não se trata de fazer da Agustina de Contos impopulares uma autora em sua “época mais niilista”, como define (para nós equivocadamente) Catherine Dumas (2002, p. 26). Agustina e Kafka não são niilistas porque não fazem apologia ao vazio ou à ausência de sentido, mas, pelo contrário, não permitem (porque não creem admissível) que haja possibilidade de verificar a existência ou não do vazio. “A Pousada”, como outros escritos agustinianos, não é portanto um texto sem sentido, mas antes um conto cujos significados não são facilmente alcançáveis. Por isso, como lembra Dumas, “durante muito tempo Agustina Bessa-Luís foi vista pelo leitor português como uma escritora secreta, hermética, à margem da literatura em vigor” (2002, p. 46). E a comparação que Sartre realiza entre Kafka e Camus no artigo “Explicação de O estrangeiro” parece dar conta do que tentamos defender em relação à poética de Agustina: Kafka é o romancista da transcendência impossível: o universo, para ele, é carregado de signos que não compreendemos; há um reverso do pano de fundo. Para Camus o drama humano é, ao contrário, a ausência de qualquer transcendência. (2005, p. 126)

No fim das contas, é possível então que não se adentre no Castelo ou na Pousada porque, da mesma maneira, não se adentra nas causas ou nos fins que motivam os movimentos dos persona gens, assim como não se adentra na própria natureza desses personagens ou mesmo nos sentidos que regem o mundo em que caminham. Dessa forma, a intangibilidade desses locais representaria, em instância última e metalinguisticamente, a intangibilidade do próprio texto fantástico contemporâneo, cujos sentidos (se há) sempre nos escapam no exato instante em que parecem se abrir à legibilidade, do mesmo modo que os quartos da Pousada (se há) oferecem-nos seu conforto mas se nos fecham antes de darmos o primeiro passo para o seu interior. Cercamos assim “A Pousada” como L. e Maria cercaram a Pousada. E sentimos que, como os personagens, terminamos a em preitada quase da mesma maneira que a iniciamos: perplexos e buscando em vão compreender. Referências 11 Segundo Catherine Dumas (2002, p. 16), “a grande originalidade dos romances de Agustina Bessa-Luís reside no tratamento dado à questão identidária”.

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