COMO CONSTRUIR UM ARQUIVO QUE NÃO EXISTE?

May 23, 2017 | Autor: Giselle Beiguelman | Categoria: Contemporary Art, Archives, Memory Studies
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COMO CONSTRUIR UM ARQUIVO QUE NÃO EXISTE?

BEIGUELMAN, GISELLE (1); PATO, ANA (2) 1. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto. Email: [email protected] 2. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU/USP, Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto. Doutoranda Processo FAPESP: 2013/08130-0 Email: [email protected]

RESUMO O presente artigo trata da experiência de realização da exposição Arquivo e Ficção, durante a 3ª Bienal da Bahia (2014), que levou para o Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), um grupo de artistas para desenvolverem suas pesquisas e obras, em torno do acervo e da história do Arquivo Público. Como tornar público o arquivo público?, foi a partir desta indagação que o projeto curatorial foi organizado com o objetivo de discutir a invisibilidade do Arquivo Público e dos arquivos em geral. Este artigo pretende tratar de um projeto específico, que nasce de um diálogo entre as autoras do artigo, a saber, curadora e artista e de uma indagação comum: Como narrar a história do lugar? Se as pedras pudessem falar o que elas nos contariam?

Palavras-chave: Arquivo; Arte contemporânea; História; Patrimônio Cultural; (In)visibilidade.

O contexto: 3ª Bienal da Bahia. Primeiramente, será necessário abordar a história da Bienal da Bahia e sua relação com a questão da memória. A 3ª Bienal da Bahia, acontece 46 anos depois de sua última edição, em 1968, fechada pela ditadura militar (1964-1985). Em vista disso, ao retomar o projeto de Bienal para a Bahia, a urgência de constituir um arquivo tornou-se premente. Com o fechamento traumático da 2ª Bienal, a prisão dos organizadores, e a apreensão e desaparecimento de obras consideradas subversivas pelo regime militar, qualquer documentação que existisse no período sobre o evento sumiu ou foi esquecida. Como construir um arquivo que não existe? Ao retomar o projeto de Bienais na Bahia, a 3ª Bienal teve como missão estruturante criar seu próprio arquivo, até então inexistente. Uma memória que precisou ser garimpada entre recortes de jornal, testemunhos orais e coleta de documentos dispersos. O desejo de narrar as histórias das primeira e segunda edições da Bienal (1966 e 1968, respectivamente) guiou o pensamento da edição de 2014, retomada no ano em que o país intensifica a abertura dos arquivos da ditadura, com as Comissões da Verdade, e recorda os cinquenta anos do golpe militar. Um ponto fundamental no formato da 3ª Bienal da Bahia foi ocupar “lugares” existentes na cidade, incluindo igrejas, mosteiros, terreiros de candomblé, arquivos públicos, acervos privados, museus de arte, de etnografia, de arte sacra, ateliês de artistas, bibliotecas, cineclubes e centros culturais. Essa operação resulta na descentralização de um espaço único, capaz de representar o todo, e assume, como forma, uma rede dispersa de pequenos centros. Ao analisar a arquitetura que se tornou padrão para exibição de arte nos museus, galerias e bienais (paredes brancas, lisas e neutras, estruturadas de forma a criar um espaço geométrico, o chamado “cubo branco”), Elena Filipovic (2005) faz uma crítica contundente ao uso desses espaços, aludidos como neutros, e à necessidade de problematizar o “lugar” de exibição da arte. A recusa em construir paredes falsas, como reação à noção de neutralidade e isolamento da arte, e a pulverização do pensamento do artista, no contexto da cultura e em diálogo com a história dos espaços, articula o modelo de Bienal aqui proposto. É neste contexto, que a ação no Arquivo Público acontece. Isto posto, é importante ressaltar que a proposta de ocupação do Arquivo Público, durante a Bienal da Bahia, não se resumiu a levar o artista para o arquivo, mas a propor situações que priorizassem a colaboração e o choque de práticas e procedimentos, utilizados no campo da arte e das ciências humanas, com o objetivo de discutir a problemática do arquivo no 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

contexto brasileiro e, mais especificamente, na Bahia. Por que nossos arquivos estão em situação de risco? Como tornar público o arquivo público? Qual a chave mágica para abrir os arquivos? É esse entremeio que a prática do artista no arquivo possibilita: o diálogo entre arquivistas, historiadores, conservadores, pesquisadores e o público. Com efeito, a exploração do arquivo pelo artista pode colaborar de forma bastante proveitosa, seja na valorização cultural do arquivo ou mesmo no estabelecimento de novos critérios de organização e visibilidade dos documentos e imagens do arquivo. É nessa direção, que o arquivista Yvon Lemay (2009) propõe examinar minuciosamente a “reutilização do arquivo” proposta pelos artistas, como forma de trazer para a prática do arquivista um olhar mais crítico. Enquanto, para os arquivistas, os documentos são descritos e analisados por sua natureza testemunhal e informacional, para os artistas, os documentos possuem, ainda, a capacidade de emocionar e de problematizar. O reconhecimento dessa qualidade revela, segundo Lemay, uma dimensão até então oculta para a arquivística e tem como potencial criar caminhos para possibilitar o acesso do público aos arquivos. Para Lemay, os arquivistas devem apoiar programas de residência artística nos arquivos, ao considerar que essas iniciativas permitem, aos profissionais, observar, descrever e examinar uma nova forma de exploração dos arquivos, bem como desenvolver uma tipologia para essas ações. Em suas palavras, esse tipo de encontro representa uma fonte profícua de investigação para a arquivologia, ao trazer perspectivas novas, tanto para a prática do arquivista, quanto para os fundamentos teóricos da disciplina. Nesse sentido, a proposta de Lemay coloca em evidência a necessidade de procurarmos pistas para a questão do arquivo, dentro de um panorama global e transdisciplinar. Eis, portanto, em linhas gerais, o contexto no qual adentramos no Arquivo Público.

O lugar: Arquivo Público. O Arquivo Público do Estado da Bahia foi criado em 16 de janeiro de 1890, e é considerado o segundo arquivo mais importante do Brasil, depois do Arquivo Nacional (1838), no Rio de Janeiro. A documentação do Arquivo Público corresponde ao período do século 17 ao século 20, e está dividida em cinco seções: Colonial-Provincial; Arquivos Judiciários; Arquivos Republicanos; Fazendária-Alfandegária; e Arquivos Privados. Sua importância destaca-se por três conjuntos documentais que fazem parte do “Memória do Mundo”, da Unesco, a saber: “Tribuna da Relação do Brasil e da Bahia: 1652-1822”, “Registros de

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Entrada de Passageiros no Porto de Salvador (Bahia): 1855-1964” e “Cartas Régias: 16481821”. Além do valor de sua documentação, o Arquivo Público está localizado num espaço arquitetônico de relevância histórica, o Solar Quinta do Tanque. Em 1552, Tomé de Souza (governador-geral do Brasil) doa à Companhia de Jesus as terras para a construção da Quinta do Tanque. A Quinta funcionou como Colégio, casa de repouso e laboratório científico dos jesuítas, para pesquisas relativas a produtos agrícolas e estudos sobre as saúvas. Um ilustre morador da Quinta foi o filósofo e escritor Padre Antonio Vieira; o padre vive no local entre 1682 e 1697, ano de sua morte. Em 1759, com a expulsão dos jesuítas do Brasil, a Quinta é abandonada. Entre, 1784 e 1938, o local passa a abrigar um hospital para leprosos, ficando conhecido como a Quinta dos Lázaros. Com o fim do hospital a Quinta fica relegada por quase 30 anos, é nesse período que a Quinta é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (1949). Em 1979, o prédio é restaurado para receber, no ano seguinte, o Arquivo Público.

José Rufino, Pulsatio, mobiliário de metal, 2014. 3ª Bienal da Bahia Foto: Alfredo Mascarenhas

A escolha da Quinta do Tanque para abrigar o APEB seguiu, na época, a recomendação de privilegiar a arquitetura colonial de antigos conventos, hospitais, fortes e presídios – com suas paredes largas, poucas vidraças e pátios internos –como espaço adequado para 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

solucionar o problema da preservação de documentos, em países tropicais. Contrariando uma tendência da arquivística produzida na Europa e Estados Unidos que recomendava, em geral, que no interior de prédios de arquivos se deve-se obter condições climáticas ideais, com a finalidade de controlar as elevações de temperatura, umidade relativa e a luminosidade excessiva, característica das regiões tropicais. Cientes da realidade de suas instituições, os profissionais de arquivos, em países de região tropical, buscaram soluções que se adequassem a situação de seus países, evitando assim, a opção pela climatização por ser uma solução de custo elevado e que envolvia, no período, técnicas sofisticadas de implantação, operação e manutenção (Franco, 1983, 135). Devemos agradecer aos nossos arquivistas que não seguiram a moderna arquivística dos países ricos, pois, com o passar dos anos, a condição de conservação da Quinta do Tanque e, consequentemente, da documentação ali abrigada ficou comprometida pela falta de manutenção do prédio. Encontramos o Arquivo Público num estado alarmante de deterioração das estruturas do prédio, com ameaça de desabamento, risco de incêndio, por conta da fiação antiga, e cheio de goteiras. Além da condição precária das instalações do prédio, o terreno do Arquivo Público foi, ao longo dos anos, sendo invadido por moradia popular. A equipe do Arquivo Público permaneceu nos últimos três anos trabalhando sem iluminação, o que fez com que parte dela trabalhasse na área do pátio interno. Em julho de 2014 foi aprovada, em caráter de urgência, uma obra emergencial no prédio do Arquivo Público para reforma do telhado. Esta constatação, que à primeira vista poderia ter descartado o Arquivo como um lugar para receber obras de arte, só fez aguçar ainda mais nosso desejo de trabalhar dentro das mesmas condições impostas à equipe do Arquivo e aos documentos da história do Brasil. Em linhas gerais, os artistas Eustáquio Neves, Gaio, Giselle Beiguelman, Ícaro Lira, José Rufino, Magdalena Campos-Pons & Neil Leonard, Omar Salomão, Paulo Bruscky, Paulo Nazareth e Rodrigo Matheus foram convidados a produzir um trabalho para o “lugar”, o Arquivo Público, com o intuito de aprofundar investigações de interesse, e conhecer o cotidiano do Arquivo e de sua equipe. A experiência dos artistas, resultou em uma série de proposições artísticas. Destacamos neste artigo um dos temas abordados: a relação entre arquitetura da exclusão e arquitetura da memória (a história do leprosário), foi a partir dessa discussão que a artista Giselle Beiguelman desenvolveu seu projeto para a Bienal. Na ala direita do prédio do Arquivo, interditado em caráter emergencial, dez dias antes da abertura da Bienal é que a instalação da artista foi montada. Curiosamente, a liberação 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

dessa única sala, na ala do prédio condenado e submetido a reforma do telhado, foi autorizada pelos engenheiros do patrimônio devido ao projeto arquitetônico dos jesuítas, que escolheram escorar sua construção numa grande rocha. Foi justamente essa escora que permitiu a ocupação, a única entrada para a sala de Beiguelman era pela janela e pressupunha a subida da pedra. Como entrar numa área interditada? Indagação colocada ao artista Gaio Matos que construiu uma série de platôs para permitir o acesso do público a estes espaços em situação de risco.

Gaio Matos, Platôs, site specific, 2014. 3ª Bienal da Bahia. Foto: Alfredo Mascarenhas

Em Beleza convulsiva tropical, uma pequena sala escorada na pedra, com água minando de suas paredes emboloradas e com vista para casas de ocupação ilegal do terreno do APEB, que a artista propôs contar a história do lugar, um relato sonoro entremeado por fatos históricos e sensações. Se as pedras pudessem falar o que elas nos diriam? Essa foi uma das nossas primeiras conversas, imaginar o que as pedras nos diriam e foi nesse ritmo que a voz da artista-historiadora ecoou no Arquivo, dia após dia, uma história contada e recontada. O público se sentava na sala da pedra e ouvia a voz da artista e das pedras. No seu processo de pesquisa, Beiguelman visitou o Arquivo Público, conversou com a equipe do APEB e fez consultas à documentação referente à história da Quinta do Tanque e do leprosário. Ao apropriar-se da arquitetura e da situação urbana e social do edifício do APEB, a artista utiliza como chave de leitura uma frase escrita com musgos (moss graffiti) e 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

a narração em áudio (18’40”). Em Beleza Convulsiva Tropical, Beiguelman discute a tensão entre natureza e cultura, o informal e o formal, as situações entre controle e descontrole que se emaranham à história cultural e urbana do Brasil. Para Beiguelman, os trópicos são entendidos como uma situação e não como um dado climático. É diante dessa mesma condição que o sociólogo Gilberto Freyre organiza seus seminários de Tropicologia (1966-2001), tendo como escopo criar um campo de cruzamento de saberes científicos, humanísticos, artísticos e práticos voltados à produção de conhecimento sobre o Trópico, com enfoque no contexto brasileiro e com um panorama não eurocêntrico. Como premissa da ação curatorial, o intuito do projeto não foi em nenhum momento adotar uma atitude de denúncia diante do abandono do patrimônio histórico e dos profissionais responsáveis pela administração da memória. Mas, dar visibilidade ao Arquivo Público, buscar novos usos para os arquivos e expor o potencial desse tipo de ação que aproxima arte e lugares da memória. Se por uma lado, a operação artística na exposição Arquivo e Ficção coloca em evidência uma questão central para o projeto: a situação de risco em que se encontra a memória no Brasil (afinal, a condição do Arquivo Público não é um caso isolado). Por outro, expõe a urgência em procurarmos soluções para o patrimonial cultural evitando, uma perspectiva pessimista em relação às nossas possibilidades (como propunha Freyre), seja como instituições da memória, seja como artistas e curadores diante da realidade das nossas instituições.

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Paulo Bruscky, Conceitos, frases impressas e pintadas, 2014. 3ª Bienal da Bahia Foto: Alex Oliveira

A exposição no Arquivo Público ficou aberta de 17 de julho a 7 de setembro, e recebeu um público de aproximadamente, 3 mil visitantes. Uma pergunta que se coloca para esse tipo de ação, que atua no limite entre arte e história, é se estaríamos no campo da arte ou da história. Mas, faz sentido, ainda, esse tipo de indagação? Não seria essa uma nova forma de contar as histórias, ou melhor, de emboscarmos os arquivos? Para tornarmos público o arquivo público, é preciso compreendê-lo como um espaço de ação e de representação da memória e não como um espaço de denúncia. Entretanto, não se trata de uma ação pedagógica de conscientização, estamos numa outra esfera, a esfera da narração imaginada nas entranhas do corpo, com uma força que não se coloca como panfletária, mas poética (Rolnik, 2011). Por meio de processos artísticos, somos capazes de adentrar em um campo afetivo das memórias, de perceber a capacidade do documento de emocionar (Lemay, 2009). A capacidade de evocação da arte, é tratada de maneira bastante esclarecedora por Beatriz Sarlo (1997, p.32) ao comparar, no contexto da ditadura militar, na Argentina, a força que um poema tem para reconstruir uma memória de medo e violência, mesmo que tal acontecimento, já tenha sido, no presente, parcialmente solucionado, por leis de reparação

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e punição, como a lei da anistia, ou mesmo por pactos de esquecimento, como é o caso do abandono dos nossos arquivos. Não se trata de resgatar a memória esquecida, na Quinta do Tanque, afinal só é possível resgatar suportes da memória (documentos, fotografias, objetos, relatos, etc) mas nunca memórias propriamente ditas (Menezes, 2007, p.30). Trata-se, então, de evocar, no presente, o trauma, sem fixá-lo no passado, mas sim atualizando-o e emprestando-lhe novos sentidos. É nesta torcedura que se localiza o modelo de ação proposto pela 3ª Bienal da Bahia para (re)inserir a arte no contexto da cultura. Acreditamos ser essa uma estratégia potente para lidarmos com os desafios colocados pela relação entre patrimônio cultural e educação. Passemos, então, a narração da artista diante da história do lugar.

Giselle Beiguelman, Beleza Foto: Alfredo Mascarenhas

convulsiva

tropical,

site

specific,

2014.



Bienal

da

Bahia

O Relato: Beleza convulsiva tropical (Transcrição da narrativa em áudio na intervenção realizada no APEB) Os trópicos parecem conspirar contra a memória. A rebeldia, a força e a exuberância da vegetação têm uma potencia que engole as pedras, corrói o concreto, infiltra-se, toma os espaços e subjuga o que estiver a sua volta. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

Aqui prevalece um estado de beleza convulsiva, uma tensão permanente entre a natureza e a técnica, uma batalha úmida, macia, violenta e vigorosa. Penso nisso com uma certa frequência. Desde que passei a trabalhar em um edifício modernista completamente vilipendiado pela história e pelo clima. O prédio da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – da USP. Agrada-me um conceito que permita lidar com a ruína sem melancolia, sem romantismo, enxergá-la como evidência do tempo em ação, da matéria em movimento. Beleza convulsiva... Beleza convulsiva é uma formulação do Andre Breton, o poeta e mentor do surrealismo. Aparece em dois poemas e em um dos manifestos que ele escreveu. Tem uma definição mais enxuta _ “A beleza será convulsiva ou não será” _ e outra mais detalhada: “A beleza convulsiva será erótico-velada, explosivo-fixa, mágico-circunstacial ou não será”. A primeira aparece em Nadja, de 1928. Gosto mais. Estilisticamente. Mas a segunda é a mais perfeita tradução de Salvador: A cidade respira essa ideia “erótico-velada, explosivo-fixa, mágico-circunstancial”. É seu ar. Seu horizonte imaginário. Sequencias de ruínas urbanas atropelam a paisagem o tempo todo. Encortiçados ou abandonados, os seus antigos casarões são devorados por plantas viçosas, muito verdes e felizes. A luta do asfalto contra as samambaias parece sem fim. Como seria Salvador sem suas casas centenárias em decomposição? Seria Salvador ainda?

A Quinta do Tanque Difícil entender a relação de Salvador com seu passado. Ele parece persistir como ancestralidade, na devoção, sagrada e profana, que emana de todos os seus pontos. Mas não como tempo histórico. O passado aí é uma espécie de vibração, de corrente que se propaga pelo presente. Apesar dele e a despeito dele.

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O Arquivo do Estado da Bahia fica lá. Em um solar do século 16 onde o Padre Antonio Vieira, aquele que transformou o sermão em literatura e que se contrapôs à Inquisição, morou. O lugar é afastado do centro. Sempre foi. É a antiga Casa de São Cristóvão, mais conhecida como Quinta do Tanque. Espaço de retiro dos padres jesuítas desde nos idos do 1500 e tantos, tornou-se bairro periférico. O motorista de táxi que me levou a primeira vez lá, perdeu-se muito para chegar. Nunca havia ouvido falar dali. O endereço não lhe dizia nada. Outros táxis, passantes, donos de bancas e gente botecos no caminho, para quem recorremos, tampouco situavam-se. É na Rua Quinta dos Lázaros..., eu dizia, conferindo a mensagem de texto que me confirmava o destino no celular. Ninguém sabia onde ficava. Mas também, que nome... Depois de uns tantos telefonemas e uma espécie de GPS oral feito por algum funcionário do Arquivo ao motorista, chegamos. Na próxima vez, diga que vai ao posto em frente ao cemitério. Todo mundo conhece, me aconselha o motorista. Anotado. Não entendi, mas copiei. Depois me deram outra dica infalível: diga que vai para lá, perto da maternidade. Nunca entendi, como alguém adivinharia que maternidade, mas enfim, em Salvador, tudo é possível. Desde que se tenha fé. Ao menos, parece. Desço do taxi. Sensação de estar no meio do nada. Rua estreita, movimentada naquele ponto, mas vazia acima e abaixo. Alguns imóveis deteriorados, caindo as pedaços, outros bem pintados. Conjunto sem presença ou vestígio de qualquer coisa arquitetonicamente muito relevante ou notável. Tudo estranho. Tudo feio. Isso durou um tempo. Até eu cruzar o portão. O jardim arborizado e frondoso, o pátio amplo, a visão ao fundo de um chafariz, um casarão tipo solar, cujo segundo andar não se sabe ao certo quando foi construído. Tudo me indica que é um puxadão. Não consta da planta original, mas Padre Antonio Vieira caiu de lá, segundo um documento que fala de uma queda em uma escada. Portanto esse segundo andar existe pelo menos desde o século 17 e deve ser o primeiro puxadinho ou puxadão da História do Brasil. 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

Me dou conta que estou na tal da Quinta dos Padres, ou Quinta do Tanque, como historicamente é bem conhecido esse edifício sóbrio, mas pintado de cor de rosa... Uma bela visão. Surpreende. Sinto-me dentro de um filme. Parece um filme. Não é. Mas poderia ser. Essa área, onde hoje está o arquivo e que já foi muito maior, era agrícola. Uma quinta propriamente dita. Cultivavam-se lá várias espécies. Laranja, canela, pimentas, mandioca, muitas coisas. Os textos sobre a história desse lugar sempre exaltam sua beleza nos tempos coloniais. É bonito mesmo. É patente que já foi mais. Em um deles, conta-se que na época dos jesuítas, a propriedade tinha um sistema hidráulico muito sofisticado que abastecia o interior do edifício. Utilizava, para tanto, as águas de uma fonte da encosta que apoia parte do edifício. Além disso, na parte baixa do terreno, as águas das abundantes nascentes eram represadas, formando o “tanque” que deu nome a essa quinta. Pode ser exagero, mas há quem diga que esse tanque era de dimensões consideráveis, sendo até navegável com pequenas canoas. Se chegava a tanto, não sei. Mas o fato é que água não é um problema nesse local. O problema é pensar que hoje um arquivo público, o segundo mais importante do Brasil, com documentos que remontam ao período colonial, documentos únicos, manuscritos, mapas desenhados, processos, enfim todo um repertório documental e de cultura material acumulado do país, está aí. O sofrimento desses papeis tão delicados e preciosos diante de sua exposição à umidade com que convivem na Quinta do Tanque, contrasta com o bem que faz à vegetação. Enquanto as jaqueiras explodem seus frutos em verdadeiro exercício de desafio às leis mais elementares da gravidade e do bom senso, os coqueiros se espraiam, as nascentes brincam e as águas vão subindo pelas paredes. É Beleza convulsiva mesmo...

A Quinta dos Lázaros Mas quem anda pelos seus corredores pela primeira vez, digo pelos corredores do Arquivo, sente que há algo que pesa. Trabalhei muitos anos em arquivos e o convívio com 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

documentos que apesar de históricos, dizem respeito a vidas de pessoas que não conhecemos, sempre me perturbou. É um sentimento um pouco parecido com o que sentimos quando caminhamos em um cemitério: que direito temos de visitar os mortos que não são nossos? Mas no Arquivo da Bahia o peso parece maior. Logo na entrada, há um busto do padre Antonio Vieira que antes de deixar esse lugar para ir morrer no centro de Salvador, escreveu: Adeus tanque não vou buscar saúde nem vida, senão um lugar mais sossegado e quieto. Era um prenúncio do falecimento, mas talvez também do que viria a suceder. Quando os jesuítas foram expulsos do Brasil, por ordem do Marquês de Pombal, em 1758, quase cem anos depois da morte de Vieira, seus bens foram sequestrados. A Quinta do Tanque passou para o domínio da Coroa portuguesa e seu terreno, de seis hectares, foi à leilão. Adquirido [em 1762] pelo governo, passou a ser leprosário, nome dado às colônias onde ficavam isolados os doentes contaminados com hanseníase. Vem daí a denominação de Quinta dos Lázaros para a Quinta do Tanque e também para o cemitério que fica à sua frente e é visível dos janelões do prédio que hoje abriga o Arquivo. Nesse cemitério, o mais antigo de Salvador, construído há mais de 200 anos, estão, dizem, os túmulos de Lampião e Maria Bonita, e os de Cosme de Farias, da renomada cozinheira Maria de São Pedro, que deu seu nome ao famoso restaurante do Mercado Modelo e o guerrilheiro Carlos Marighella, a que visitei. Tudo ali me espantou. A miséria, as imagens de depois e do além num cenário urbano digno de Glauber Rocha. Uma terra em transe, entre deus e o diabo sob muito sol. O cemitério da Quinta dos Lázaros, no bairro da Baixa de Quintas, foi criado no ano de 1785. Com 52,5 mil metros quadrados, o equivalente a cerca de sete campos de futebol, possui área construída de 19,2 mil m2, dos quais apenas 6.000 metros quadrados estão disponíveis para sepultamentos em covas rasas (de chão) e de indigentes e crianças de até três anos que são enterrados em espaços específicos para serem depois removidos. Não tive coragem de querer saber para onde e como. Para além do assombro e do horror, intriga-me essa relação entre espaços de natureza tão distinta e ao mesmo tempo tão semelhantes. Olhando, de dentro do Arquivo, pelas suas janelas, o cemitério e os paredões de jazigos temporários, impossível não perceber como arquivos e cemitérios são parecidos. De um lado, gavetas de documentos. De outro, gavetas de corpos, inicialmente provenientes do leprosário que funcionava neste prédio que hoje abriga o Arquivo do Estado.

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É impossível imaginar o sofrimento dos doentes naquela época. Cheia de estigmas sociais, a hanseníase é uma das moléstias mais carregadas de preconceitos e circundada de mitos e ignorâncias de toda ordem. Fico pasma com a perenidade no imaginário coletivo das imagens bíblicas sobre Lázaro -- o mendigo que tinha o corpo coberto pelas chagas da lepra. Espanta-me como são introjetadas em nossa mentalidade fórmulas higienistas do século 19 que transformaram o doente contagioso em uma espécie de morto civil e social. Lembro-me de ter aprendido muito pequena, em casa, com meu pai, Bernardo Beiguelman, que o correto é falar hanseníase. Geneticista, ele realizou importantes pesquisas no tema. Termos como leproso e mal de Hansen não usávamos por terem conotação pejorativa. Meu pai não gostava e insistia em que falássemos hanseníase. Não era cisma nem exagero de meu pai. Para se ter uma ideia do tamanho do preconceito que envolve a doença, conto que os porteiros do prédio em que morávamos evitavam nossa correspondência, pois meu pai recebia cartas de pacientes. Acreditava-se que o simples contato com os envelopes contaminaria quem os tocasse. Se isso acontecia nos anos 1970, imagine o horror que deviam ser essas instituições no fim do século 18. A situação como um todo, um espaço de reclusão – o do retiro dos jesuítas -- que se transforma em um espaço de exclusão – o local de confinamento dos leprosos – parece um enredo escrito pelo filósofo francês Michel Foucault, que se dedicou ao estudo das formas de vigiar e punir como tecnologias de criação de poder sobre o corpo e a vontade do outro ao longo da história. E essa impressão fica ainda mais forte quando se lembra que o casarão, onde hoje está o Arquivo, foi palco de diversos eventos que performatizam a tensão entre controle e descontrole, institucional e informal, cultura e natureza, desde sempre. Li que processo de Independência da Bahia, conquistado a custa de muito sangue, quase um ano depois do silencioso e pacífico 7 de setembro de 1822 no Ipiranga, em São Paulo, e outras revoluções como a Sabinada, tiveram articulações traçadas entre suas salas. O local, quando ainda era Quinta dos Lázaros, foi também refúgio de negros apreendidos na repressão ao tráfico negreiro. Enfrentando sérios problemas financeiros, o terreno foi dividido, em 1834, em quarteirões e teve partes arrendadas. Mas durante todo o século 19 e até o fim dos anos 1930, o prédio continuava a servir de hospital dos então chamados “lázaros”. Acompanhando, nos anos 1930/40 os novos métodos de higienização social do Estado Novo de Getulio leprosário foi transferido para a Fazenda Águas Claras. O combate à 7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

hanseníase se tornou sistemático. Em sintonia com as diretrizes ideológicas da Alemanha nazista, os doentes eram denunciados às autoridades, caçados em casa, suas famílias eram perseguidas pelo Estado e, eram compulsoriamente isolados. A Fazenda Águas Claras deu origem ao Hospital Dom Rodrigo de Menezes, em homenagem ao governador que nos ido do século 18 havia criado o Asilo de Quintas. Construído em terras adquiridas em 1938, o Hospital foi inaugurado em 1949, como Hospital Colônia para acolher 83 hansenianos vindos do Asilo Secular de Quintas, onde estavam segregados e abandonados pela sociedade e pelas famílias. Projetado como hospital de isolamento, com 230 leitos, o antigo Hospital Colônia fica em uma área de mais de 350mil metros quadrados, que além do prédio do hospital, incluía casas geminadas, presídio, manicômio e celas de cadeia.

O Arquivo Com a mudança dos doentes para Águas Claras, o casarão da Quinta do Tanque caiu em total abandono por décadas. O terreno foi invadido por todos os lados. Por moradias e pelo mato. É quase um exercício surrealista abrir as janelas de várias salas do arquivo. Enormes, coloniais, elas ficam hoje a palmos de distância do interior das casas das favelas que ocuparam ao longo dos anos o terreno. O confronto subjacente à tensão entre tecnologia e natureza que reverbera as convulsões da beleza tropical, se repõe e se atualiza como o embate entre formal e informal que é Salvador, que é o Brasil. Quando digo que o prédio e seu terreno ficaram abandonados por décadas, não exagero. Foram quase 50 anos... Foi só depois ser incluído em proposta de valorização de monumentos baianos, em meados dos anos 1970, que se inicia a restauração do prédio Quinta dos Padres. Na gestão do então governador Antonio Carlos Magalhães, “o acervo do órgão fundado pelo governador Manoel Vitorio Pereira em 16 de janeiro de 1890”, é transferido para Baixa de Quintas. O prédio histórico dos jesuítas transforma-se no Arquivo Público do Estado da Bahia. Mudanças de instituições desse perfil são sempre perigosas, pois podem implicar perda de materiais únicos sem reposição, como toda a documentação relacionada ao Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) baiano, desaparecida até hoje. Não se sabe se durante a mudança ou antes.

7º SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: AGENTES MULTIPLICADORES DO PATRIMÔNIO Belo Horizonte, de 10 a 12 de junho de 2015 ISSN 2176-2783

O fato é que os anos se passaram e o Arquivo continuou nesse lugar, entre o abandono e o cuidado de seus funcionários. Há três anos não se pode acender a luz no prédio, pois há risco de incêndio. Poucas semanas antes da inauguração da exposição Arquivo e Ficção, da 3a Bienal da Bahia, iniciou-se sua reforma. Mas essa já é um outra história. De beleza convulsiva e tropical.

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