Como construir um mundo

July 25, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Epistemología, Ontologia, Cosmologia
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COMO CONSTRUIR UM MUNDO por Waldísio Araújo Logo, se o Ser é uma coisa e o Uno é coisa diferente, não é pelo fato de ser um que o Uno é diferente do Ser, como não é pelo fato de ser que o Ser é diferente do Uno; diferem entre si por causa do Outro e do Diferente. (Platão, diálogo Parmênides)

Os sistemas filosóficos de Platão e de Aristóteles, já em si fortemente antagônicos, foram construídos a partir de jogos de oposições que ainda hoje inspiram o pensamento humano: sensível e inteligível, corpo e alma, certeza e opinião, potência e ato, essência e acidente, tragédia e comédia… (Detalhe de A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, cerca de 1510).

Admitindo-se que toda ordem possível origine-se e esteja mergulhada em uma Indeterminação caótica preexistente, e ignorando momentaneamente o problema de como PÔDE a ordem surgir de algo que lhe é essencialmente contrário, introduzimos aqui a questão de como PODE a ordem parecer algo tão estável em todos os níveis de ordenação que se estendem do mais “simples” átomo à mais complexa sociedade humana.

Verdadeiras ou ilusórias, concebidas de forma espontânea ou laboriosa, todas as formas que criamos para imaginarmos um mundo estável, coerente e previsível parecem fundamentar-se, direta ou indiretamente, em algum jogo de dualidades, de pares de elementos bastante heterogêneos entre si e que se guerreiam, se aliam, se contradizem ou se complementam, mas que – mediante uniões, dissociações, substituições ou superposições – paulatinamente constroem, justificam ou mesmo põem em questão uma descrição, uma visão de mundo, uma mitologia, uma seita, uma teoria, um sistema… Não pretendemos aqui enfrentar de forma exaustiva os problemas relacionados a uma noção tão complexa como a de dualismo (e seus “desafetos”: o monismo e o pluralismo). Tampouco desejamos enveredar por questões relativas a sutis diferenças terminológicas entre dualismo, dualidade, oposição ou contradição (entre outros tantos); nem mesmo classificar exaustivamente os tipos de dualidades. Apenas tratamos, de forma muito genérica, de quaisquer tipos de contraposições entre coisas, estados ou princípios, e de resto pretendemos destinar a artigos posteriores quaisquer elucidações que se fizerem necessárias. Desde crianças encontramos, em toda a nossa vivência de mundo, uma complexa malha de contraposições entre noções como as de grande e pequeno, de distante e próximo, de antigo e novo, de feio e belo, de natural e cultural, de rico e pobre, de vivo e inanimado, de sagrado e profano, de local e alienígena, de positivo e negativo, de interior e exterior, de sábio e ignorante, de atraente e repulsivo, de amável e detestável, de seguro e perigoso, de homossexual e heterossexual, de fácil e difícil, de valente e covarde, de qualitativo e quantitativo, de imanente e transcendente, de verdadeiro e falso, de finito e ilimitado, e tantas outras oposições conflitantes ou aliadas que

superpovoam nossas mentes. Ocorre que, além dessas dualidades fundamentais e de natureza universalmente subjetiva, costumamos instaurar oposições substantivas entre coisas ao menos aparentemente objetiváveis, como entre matéria e energia, vida e morte, governante e governado, homem e mulher, corpo e alma, língua e fala, Deus e mundo, caos e cosmos, capitalismo e comunismo, essência e existência, paz e guerra, tese e antítese, análise e síntese, Flamengo e Fluminense, descrição e narração, sujeito e predicado, Tom e Jerry, ser e nada, história e ficção, sonho e vigília, ácido e base, Caim e Abel, eucarionte e procarionte, revolução e reforma, fenômeno e númeno, partícula e onda, e muitos outros opostos que nossa ciência, filosofia, religião, arte ou o próprio senso comum inventaram, inventam e provavelmente inventarão através dos séculos. O surpreendente é que todas essas e muitas outras oposições convivem em nossa mente sem que enlouqueçamos. Porém, o aparente paradoxo se desfaz (com a condição de não estarmos realmente loucos) se admitirmos a hipótese de que tais oposições são justamente a condição para que possamos pensar e falar, isto, é ordenar o mundo e comunicar aos nossos “semelhantes” tal ordenação. O que insinuamos aqui é que, diante do supremo caos do mundo que ela nos oculta, a confusão de dualidades com que alimentamos nossa consciência é uma obra-prima de clareza, um cúmulo de organização. Para recorrermos a uma analogia, imagine-se que toda a cultura humana seja um gigantesco castelo de cartas erigido por uma criança medrosa que o vai construindo mediante a colocação das cartas duas a duas, numa paciente montagem em que as diagonais se apoiam nas que se lhes opõem e que, juntas, se mantêm verticalmente à custa do atrito das superfícies horizontais da plataforma de base e dos sucessivos andares. E que esse “sistema” inerentemente frágil permanecerá de pé enquanto uma leve brisa, tremor ou piparote não o puser abaixo, o que se torna mais iminentemente ameaçador à medida em que o prédio se vai tornando mais alto – ainda que se deva observar que essas forças de destruição advêm do mesmo fundo de resistência do ar, atrito, gravidade e vontade humana que tornou possível a própria construção. Por estar implícita desde o começo na ereção do edifício de oposições, defendemos aqui que nenhuma dualidade é mais fundamental que a que opõe caos e ordem, e não é à toa que inumeráveis religiões, mitologias e teorias científicas têm explicado o surgimento de todas as coisas quer pela ordenação de um estado caótico originário quer pela ruptura de um estado bem ordenado – desenvolvendo-se o mundo, a partir daí, como desdobramento mais ou menos conflitante das forças caóticas e ordenadoras. Não sabemos a razão de tal privilégio das dualidades, mas é fácil imaginarmos que elas ajudam-nos a pensar sem a pobreza das visões monistas e a excessiva complicação dos diversos pluralismos. Ademais, a linguística estruturalista e a semiótica nos ensinam que os signos com que nos expressamos já contêm em si uma dualidade entre significante e significado e se desdobram a partir de contextos duplos como sintagma-paradigma, sincronia-diacronia e langue-parole, além do fato de um signo só ter determinado valor se contraposto a outro signo qualquer dentro do sistema ao qual pertence. Por outro lado, os princípios da lógica usual (o de não-contradição, o do terceiro excluído e mesmo o de identidade) pressupõem algum tipo de contraposição entre proposições. E a própria informação a ser comunicada é explicada atualmente em termos de dualidades mínimas de informação a que chamamos bits.

Talvez todas as dualidades que o homem tem inventado sejam meramente uma tentativa, geralmente inconsciente e sempre frustrada, de superar a irredutibilidade daquela relação fundamental entre caos e ordem. Trata-se, em suma, da profunda angústia de não podermos conjurar para sempre o caos, a imprevisibilidade, a instabilidade, o não-sentido que constitui talvez o fundo sem fundo de todas as coisas. Todas as outras dualidades seriam, então, simples reduplicações e reagrupamentos dessa oposição primordial, e isso explica, por exemplo, o fato de a morte, a doença, o mal e a loucura (em oposição à vida, à saúde, ao bem e à razão) serem facilmente assimilados ao “lado negro da força”, enquanto seus opostos evocam os parentescos estabelecidos dentro de um mundo ordenado. Acentuamos aqui o caráter caótico do mundo, ainda que este venha a comportar virtualmente um infindável número de castelos de cartas mais ou menos ordenados, aos quais chamamos impropriamente “universos”, essas ilhotas de organização aparentemente autônomas. Como, porém, estamos a falar antes de tudo de nosso castelo mental, formado de cartas linguísticas e conceituais, jamais saberemos se o modo dualista mediante o qual ele tem sido erguido corresponde a algo fora de nossa mente humana, pois pode muito bem ocorrer que as dualidades existam apenas em nossos cérebros, como simples métodos de construção mental de realidades. Desse modo, ainda que reconheçamos o valor das oposições PARA NÓS, jamais poderemos concluir por um caráter dualista do próprio mundo “em si” nem podemos saber, por extensão, se a vida é realmente o contrário da morte; o homem, o da mulher; o sábio, o do ignorante; o belo, o do feio… É portanto mero pressuposto nosso (logo, suposto previamente, e, portanto, sempre suposto) que o mundo é constituído de ilhotas provisórias de ordem isoladas mas cognoscíveis, num oceano infinito e caótico, ao invés de um mundo de ilhotas provisoriamente caóticas e desconhecidas perdidas num todo em larga medida ordenado ou em vias de ordenar-se. Contra a ciência e contra a religião, nada tentamos aqui provar ou garantir, pois consideramos que é empobrecedor falar apenas do verificável e certo. Mas dois argumentos (não provas) ao menos fortalecem nossa crença: nossa multimilenar experiência humana nos sugere que tudo o que é ordenado (do átomo à galáxia, passando pelos organismos e suas interações e pensamentos) acaba por desintegrar-se mais cedo ou mais tarde; e a fugacidade de todos os entes, que se autoproduzem como ordem a partir do caos e nele se dissolvem após imporem alguma duração ao não-tempo, os torna únicos, raros e poderosos e, como tais, potencialmente intensos e inventivos. Esta intensidade criadora – que tomamos aqui como um valor mais elevado – tem sido exercida raras vezes na história do Ocidente (os períodos grego e renascentista são os exemplos mais marcantes). Nossa modernidade, contudo, mergulha paulatinamente no mais entediante niilismo, e arriscamos a hipótese de que isso se deve, sobretudo, ao nosso medo inconsciente de vermos enfraquecerem-se ou mesmo abolirem-se as dualidades que, ao longo dos séculos, fossilizaram-se, cristalizaram-se, coisificaram-se de tal forma que todo o nosso edifício civilizacional (com elas construído) tornou-se demasiadamente rígido e pouco maleável a ponto de ameaçar partir-se diante das ondas, abalos e erupções que percorrem o Abismo sobre o qual nossas vidas flutuam. Waldísio Araújo [email protected]

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